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Resumo
A importância da obra de Winnicott para a psicanálise vem sendo reafirmada nos últimos
anos, junto ao seu interesse crescente para o campo das psicoses. O propósito do presente
estudo é apresentar as bases teóricas dessa que é uma das abordagens mais fecundas para
a compreensão do fenômeno psíquico, não apenas em condições patológicas, como em
condições normais de desenvolvimento. Trata-se de um arcabouço conceitual que nos
permite pensar a problemática resultante das organizações não edipianas do aparelho
psíquico, cujas incidências na clínica contemporânea são cada vez mais freqüentes. Enfoca-
se, sobretudo, a gênese da organização psicótica, em suas relações com a constituição do
mundo interno e o papel estruturante do objeto e da experiência ilusória no desenvolvimento
psíquico.
Abstract
Over the last few years, the importance of Winnicott’s work for psychoanalysis has been
reaffirmed together with its growing interest to the field of psychosis. The purpose of the
present study was to present the theoretical basis of this approach, which is one of the most
fecund for the understanding of the psychic phenomenon, not only in pathological conditions
but also in normal developmental conditions. This is a conceptual framework that allows us to
reflect about problems resulting from non-oedipal organization of the psychic apparatus, which
incidence in contemporary clinical practice is increasingly frequent. Major emphasis is placed
on the genesis of psychotic organization, on its relations to the constitution of the inner world
and the structuring role played by the object, and the illusory experience in the psychic
development of the human being.
O presente artigo tem como propósito apresentar a concepção de mundo interno elaborada
por Winnicott e sistematizar suas contribuições no que concerne à constituição dos
fundamentos da organização psicótica. Tendo em vista esses objetivos, procuraremos ao
longo de nossa exposição traçar um paralelo entre os processos normais de estruturação do
psiquismo e as suas perturbações correlatas observadas na personalidade psicótica.
Procuraremos explicitar, no decorrer de nossa argumentação, o vértice que privilegiamos em
nossa leitura, segundo o qual a psicose está ligada à privação emocional em um estádio
anterior àquele em que o bebê possa perceber essa privação. Isso acarreta uma interrupção
no sentimento de continuidade do existir, que nem sequer é experimentada como tal, dada a
indiferenciação em relação ao ambiente.
Quando, entretanto, ocorre uma adaptação falha às necessidades da criança, e isso a obriga
a reagir a essa experiência – sentida como invasiva –, o sentido do self se perde. A criança se
afunda no não-senso, isto é, na impossibilidade de atribuir significado, nomear e organizar as
experiências sensoriais e o próprio corpo, devido à fenda profunda que o atravessa. Nesse
caso, a criança reage a essa experiência traumática retornando ao estado inicial de
isolamento.
À medida que se reitera a experiência de uma adaptação não suficientemente boa, começa a
ser produzida uma distorção psicótica da organização meio ambiente-indivíduo. As relações
com os objetos produzem, sucessivamente, a perda do sentido de integridade do self, de
modo que, para recuperá-lo, o indivíduo é obrigado a recorrer cada vez mais ao retorno ao
isolamento primário. Essa operação vai adquirindo um caráter crescente de organização
defensiva como repúdio à invasão ambiental. O self pode ser esmagado no espaço da
realidade que ele nunca alcança e da subjetividade que carece de sentido.
Essa continuidade não pode ser assegurada pelo indivíduo por si só, mas depende de um
meio ambiente facilitador. Por conseguinte, a falha da provisão básica inicial perturba os
processos de maturação, barrando o crescimento emocional da criança. Nesse sentido, o que
constitui a etiologia das psicoses, em particular da esquizofrenia, é uma falha do processo de
maturação e integração. "Psicose é uma doença de deficiência do ambiente" (Winnicott,
1963b/1983, p. 231) 4. Isso não deve ser entendido como a presença de experiências
traumáticas severas ou a ocorrência de eventos adversos durante a primeira infância 5. O
ponto central é que essas falhas são imprevisíveis. Elas não podem ser consideradas pelo
bebê como projeções, porque ele ainda não atingiu um estado tal em que a estrutura de ego
torne possível atribuir ao ambiente a produção desses fracassos, já que não há uma oposição
inicial entre o externo e o interno 6. O resultado mais marcante das falhas ambientais é um
sentimento permanente de aniquilamento e pânico que toma conta do bebê. A continuidade
de sua existência é subitamente interrompida Loparic, 1996).
Winnicott (1963c/1983) chama essas falhas da provisão básica de privação, opondo esse
conceito ao de perda, já que, ao tratar das psicoses, ele não se refere àqueles casos
intermediários, em que a provisão ambiental é boa de início (logo, há uma mãe que evita esse
tipo de deficiência em um primeiro momento), e depois falha em um estádio em que a criança
ainda não foi capaz de estabelecer um ambiente interno que lhe permita ficar independente.
Isso é uma perda e não leva à psicose. O que mostra que a psicose não pode ser explicada
no quadro da função sexual.
Essa afirmação não se baseia em dados de pesquisa, ainda não disponíveis nessa área, mas
em observações não sistemáticas oriundas da experiência clínica de psicanalistas como
Alvarez (1994) e Zimerman (1999), que têm constatado que "...a maioria das pessoas que
hoje procura análise apresenta importantes problemas caracterológicos, de baixa auto-estima
e de prejuízo do sentimento de identidade, derivados da permanência de um estado
depressivo subjacente, muitas vezes resultantes das primitivas feridas narcisísticas"
(Zimerman, 1999, p. 312). Como ressalta Loparic (1996), é preciso buscar novos modelos
explicativos para lidar com esses casos que interrogam os limites da psicanálise, uma vez que
a metapsicologia não é capaz de, por si só, elucidar a essência trágica do homem
contemporâneo, com sua existência fraturada e descontínua.
Desse modo, investigando as particularidades dos fenômenos que têm origem nesses
estádios mais elementares do existir humano, segundo Loparic (1996), Winnicott rejeita a
idéia do conflito edípico como motor do desenvolvimento psíquico e fonte precoce das
neuroses. O que move o bebê, segundo ele, é o próprio fato de estar vivo. O bebê não deseja
incorporar a mãe, e muito menos castrar o pai (Winnicott, 1987/1990). Tudo o que ele anseia
é a presença reasseguradora da mãe, que lhe inspire uma confiança básica em si mesmo e
no mundo. Somente quando o seu contato com a mãe-ambiente for satisfatório, o bebê
poderá adquirir a capacidade de usar os seus mecanismos mentais.
As Angústias Impensáveis
De acordo com Loparic (1996), Winnicott, em sua obra, reconheceu que nas psicoses e em
outros distúrbios severos correlatos as angústias maciças não parecem se enquadrar no
clássico modelo da regressão aos pontos de fixação pré-genitais, vinculadas ao conflito
edípico mal resolvido (ver também Winnicott, 1955/1978). Nesses pacientes, não é possível
identificar a origem da problemática em termos de dificuldades de resolução de um complexo
de Édipo plenamente desenvolvido. Ainda que tenha acatado, inicialmente, as reformulações
kleinianas em termos da posição depressiva, Winnicott acabou se convencendo da existência
de problemas iniciais do desenvolvimento humano que desencadeiam o que ele denominou
de angústias impensáveis, que não podem ser entendidas por meio da concepção edipiana 7.
Segundo Loparic (1996), são angústias relacionadas não à função sexual, mas às múltiplas
ameaças ao sentimento de existir que assolam o bebê, tais como o temor do retorno a um
estado de não-integração (levando ao aniquilamento e à ruptura da linha de continuidade do
ser), o medo da perda de contato com a realidade e o temor da desorientação no espaço, o
pânico do desalojamento do próprio corpo (o despencar no vazio) e de um ambiente físico
imprevisível, etc. Essas angústias primárias são impensáveis porque não podem ser definidas
em termos de relações pulsionais de objeto, baseadas no modelo representacional (isto é,
relações mediadas por representações de objeto, ou seja, representações mentais). Ocorre
que tais angústias não acedem à percepção, nem chegam a ter um estatuto de fantasia, e à
medida que não ganham conteúdo representacional, são impedidas de alcançar a
simbolização.
Essas angústias eclodem em uma etapa bastante precoce da vida, antes que tenha sido
claramente configurado um sujeito capaz de experimentá-las como algo interno. Os estados
que as originam precedem, portanto, ao início da atividade dos mecanismos mentais e das
forças pulsionais, o que implica que essas angústias não possam ser compreendidas em
termos do conflito gerado pela situação edípica. Pode-se, então, interrogar sobre sua
verdadeira origem. Essas angústias assaltam a mente do bebê em um estágio do
desenvolvimento primário quando há o encontro com um mundo sentido como
incompreensível.
Ou seja, tudo começa com o nascimento, que é um problema fundamentalmente do bebê, não
da mãe (Loparic, 1996). E o bebê, como tal, não existe no início, segundo a conhecida
expressão de Winnicott (1971/1975). Há apenas uma configuração inicial e indissolúvel,
formada pelo bebê e o ambiente, do qual a criança não se diferencia. Isso porque nenhuma
distinção primordial entre o interno e o externo é pressuposta, como em Melanie Klein. O que
para Klein constitui o bom objeto (seio bom), para Winnicott resume-se tão somente à
maternagem acompanhada da amamentação. Em contrapartida, não existe algo semelhante a
um mau objeto (seio mau), alvo de sucessivos ataques desferidos pela criança. E, à medida
que não há noção de exterioridade, não se pode falar de mecanismos de projeção ou
introjeção operando desde o nascimento. Só é possível projetar se há um continente para
acolher a projeção. Em uma situação como essa, o bebê não pode sentir ódio pelo objeto,
pois não sabe o que é possuir algo diferente de si mesmo. A própria capacidade de possuir e
de usar o objeto (evolução da "relação de objeto" para o "uso do objeto") deve ser construída
na relação satisfatória com a mãe-ambiente (Winnicott, 1969/1975a).
Para Klein (1946/1982), a ênfase está posta no interno, enquanto que para Freud (segundo
Pereda, 1997) a angústia é sempre marcada pela carência dos primórdios e pela perda do
objeto (ou nas fantasias de castração). Ou seja, se em Klein importa a pulsão de morte, em
Freud contam as perdas. Já Winnicott (segundo Pereda, 1997) introduz a importância radical
do outro no processo de estruturação da subjetividade, rompendo com a dicotomia interno-
externo.
"O que ele descreve em sua transicionalidade é a perda do objeto para que surja o sujeito.
Objeto que ‘demora’ em sua representação mais autônoma (disponibilidade da
representação), que se encarna nele perdendo-se (metáfora a meio caminho, que é objeto
transicional), mas que finalmente desaparece e marcará com isto a simbolização mais
acabadamente realizada e a disponibilidade da fantasia" (Pereda, 1997, p. 85).
Talvez o que sobreviva não seja o objeto (que existe para ser "morto"), mas o sujeito marcado
pela perda ou pela destruição do objeto, testemunhando o aparecimento da fantasia, como
uma "metáfora viva" que dá acesso ao pensamento e à cultura. Winnicott destaca que no
estabelecimento da alteridade algo se perde ao se adquirir essa conquista. Já as falhas e
distorções do brincar (processo simbólico) levam à formação de formações e divisões que se
estruturam em pseudo-identificações, na linha do falso self. As perturbações ou a detenção do
brincar criam condições para o desenvolvimento de patologias infantis e a base para os
transtornos do adulto.
Esse objeto pode ser materializado em qualquer suporte da realidade, como o polegar, a
ponta de uma manta, um urso de pelúcia ou uma boneca de pano, já que o que importa é a
função que ele desempenha e não o objeto em si. Desse modo, entre a realidade externa e a
realidade subjetiva, que de início são incomunicáveis e imissíveis, funda-se um campo
intermediário de ilusão. Para o bebê, significa uma zona de compromisso que não é
contestada quanto ao fato de pertencer ao mundo puramente subjetivo ou ao território da
realidade compartilhada.
É nessa área constituída pelo jogo e pelo fantasiar que a criança pode colocar em uso o
sonho e os seus impulsos de vida e, através desses recursos, começar a manipular a
realidade externa, modelando-a de acordo com suas necessidades e possibilidades de
assimilação8. O fato é que o adulto, porque intui essa verdade, concede ao bebê licença para
que ele exercite à vontade "essa loucura". Só gradualmente exige que ele discrimine entre a
realidade subjetiva e a realidade compartilhada. Essa indulgência dos pais, uma espécie de
"moratória" do juízo crítico da realidade, prolonga-se na vida adulta, quando se manifesta no
campo cultural sob a forma de arte e religião, por exemplo. Nessas áreas, de que todos
necessitamos, também se observa esse "descanso do teste de realidade e da aceitação da
necessidade" (Winnicott, 1951/1978, p. 382).
A impossibilidade de configurar uma área segura para desenvolver o fantasiar impede o bebê
de conviver com o segredo, necessário para que ele se sinta fortalecido o suficiente para
deixar, em segurança, a proteção do isolamento primário. O campo transicional não se
constitui como tal, impedindo que a criança flutue para dentro e para fora do seu mundo
interno, de acordo com suas necessidades.
Winnicott (1952/1978) chama a atenção para o papel que os processos intelectuais assumem
nessa época. Através deles, os fracassos do meio ambiente podem ser gradualmente levados
em conta e tolerados. Eles funcionam como um elo de ligação entre a adaptação incompleta e
a completa, permitindo ao indivíduo preencher a lacuna existente entre ambas e assim obter
uma compensação para as falhas ambientais. Desse modo, através desse mecanismo
propiciado pelos processos cognitivos que é o fantasiar, uma adaptação não suficientemente
boa pode se transformar em uma adaptação suficientemente boa - o que nos remete à
descrição de Freud (1920/1969) sobre o bebê que, através do jogo e da fantasia, encontra um
meio de transformar uma experiência desagradável em uma atividade prazerosa. O brincar
"verdadeiro" permite ampliar a compreensão do processo simbólico e de sua função, através
da representação, conceito essencial também na formulação freudiana – basta pensar no jogo
do carretel, que instala um fenômeno novo em que imagem e palavra se amalgamam.
Se o ambiente se comporta de modo uniforme, tanto mais fácil será essa tarefa que a criança
tem de estruturar. Já uma adaptação variável (meio ambiente imprevisível e pouco sensível)
tende a ser traumática, anulando o efeito positivo dos períodos de adaptação adequada.
Winnicott (1952/1978) afirma que uma capacidade intelectual restrita induz maiores
dificuldades nessa tarefa de transformação dos traumas resultantes da adaptação insuficiente
às necessidades. Disso resultam as psicoses comuns nos deficientes mentais.
Por outro lado, também se observa que um indivíduo com uma elevada potencialidade
cognitiva, que o capacita a lidar com sérios fracassos na adaptação à necessidade, pode
desenvolver um tipo de distorção da personalidade que Winnicott (1960/1983) denomina falso
self, juntamente com uma perversão da atividade mental, à medida que ela é utilizada contra
a psique. A hipertrofia dos processos intelectuais, nesses casos, corresponderia a uma reação
defensiva contra um colapso esquizofrênico potencial. A atividade de pensamento acaba por
se tornar inimiga da psique.
Mannoni (1970, p. 90) mostra que falso e verdadeiro self não são "dois tipos de
personalidades (...), mas uma bipolaridade em um mesmo indivíduo", sendo que a função
primordial do falso self é precisamente ocultar e proteger o self verdadeiro. Assim, ambos
permanecem como vicissitudes naturais de expressão da vida psíquica (Pereda, 1997).
Winnicott (1960/1983) inscreve na patologia do falso self um amplo leque de doenças, como
as psicoses, os quadros borderline, a depressão e o suicídio. De um modo geral, nas
enfermidades, incluindo-se aí as neuroses, encontram-se presentes os aspectos menos
autênticos (mais falsos) da personalidade: "O autêntico fica do lado do verdadeiro: a saúde, a
cultura, a criatividade", o que contrasta com a proposta freudiana de que as mais nobres
qualidades humanas são feitas do mesmo estofo que os vícios" (Pereda, 1997, p. 81).
Por outro lado, o verdadeiro self não surge como resultado do conflito, mas previamente. É
uma área não reativa, talvez primária e livre de conflitos, celeiro de possibilidades da evolução
espontânea na fecunda tessitura da trama subjetiva. Pode-se fazer uma aproximação entre a
noção winnicottiana de que o self encontra-se situado no corpo com a gênese do ego como
um ego corporal, projeção mental da superfície do corpo, conforme a descrição de Freud
(1923/1969). Mas nunca é demais lembrar que talvez não existam equivalências possíveis e
que a maioria dos conceitos não se harmonizam e dificilmente podem ser enquadrados na
metapsicologia habitual. A propósito, a elucidação de determinadas noções é lenta e
complexa, devido às suas múltiplas conceituações e usos, e a distintas visões do aparelho
psíquico, que não se harmonizam com as noções conhecidas, como as da metapsicologia
tradicional. Além do que é necessário ter muita cautela quando se faz uma confrontação de
modelos teóricos em psicanálise e respeitar as diferenças conceituais existentes entre os
diversos autores e suas teorias inspiradas em bases epistemológicas distintas.
O encontro com o objeto é uma potencialidade, como vimos anteriormente, que dará um
sentido ao gesto espontâneo do bebê e validará (ou não) o "ser verdadeiro em potência"
(Winnicott, 1971/1975). A mãe, portanto, é vista sempre em sua dimensão potencial, "e esta
mãe compreendida como entorno ou como semelhante se afasta dos objetos parciais"
(Pereda, 1997, p. 82), marcando aí um novo contraste entre a teoria winnicottiana e o
pensamento freudiano e kleiniano.
Assim, a fonte do gesto espontâneo – aquele que expressa um impulso genuíno, expresso
através de um gesto, ato ou balbucio – , é o self verdadeiro potencial, mas também o ser
espontâneo representa o ser verdadeiro em ação, que se dirige ao outro, o qual percebe e dá
lugar a que o gesto se realize. Como diz Pereda (1997, p. 87): "Quase poderíamos dizer que o
self verdadeiro é o resultado de um encontro simbolizado".
A mãe suficientemente boa como função materna, que responde à onipotência do bebê e de
certo modo lhe dá sentido, como diz Winnicott (1971/1975c) em O brincar e a realidade, tem
também uma função simbólica, à medida que outorga sentidos imaginários e,
simultaneamente, tem de se fazer falhante na sua capacidade de dar resposta, embora deva
introduzir a falha de modo gradual. É necessário que ela suporte profundamente e sustente
por um bom tempo – o tempo suficiente – o gesto através do qual o desejo da criança tenta se
escrever com o corpo.
A constituição do falso self surge também como uma defesa paradoxal, solução de
continuidade que vem preservar a continuidade do ser no self verdadeiro ameaçado. Com a
organização do falso self, o sujeito almeja proteger o self verdadeiro de novos ataques. Trata-
se de uma estratégia de sobrevivência baseada na resignação, na qual importa sobreviver em
vez de viver. Proteção contra a regressão a estados de não-integração, testemunhando o
esforço que demanda ao self esta tarefa de unificação, de manter separado o que é ego do
que não é. É a função materna que garantirá a continuidade do sentimento de existir da
criança e evitará a reação que resultará na dissociação, culminando com a organização de um
falso self.
Green (1994) especula que esse conceito talvez acrescente um terceiro tipo de processo, que
viria completar a clássica oposição entre processos primários e processos secundários,
propondo designá-los como processos terciários. Esses processos serviriam de agentes de
ligação entre os primários e os secundários, que estão sempre em perpétua interação. No
campo cultural, por exemplo, o mito desempenha essa função de ligação social entre a
realidade subjetiva, absolutamente singular e impermeável, e a realidade exterior, coletiva e
compartilhada. Green propõe que pensemos o mito como um objeto transicional coletivo. Isso
nos permite compreender melhor a noção de transicionalidade.
O mito, tal qual o brincar, coloca em jogo uma forma de lógica que não pode ser formulada
nos termos da lógica da não-contradição, da linguagem binária dos filósofos. É uma lógica do
equívoco e da ambigüidade, em vez da lógica do sim-ou-não. Um mito é e não é real,
pertence à categoria da ilusão. Como todo objeto transicional, não deve ser interpretado ao pé
da letra, mas como construções as quais não se concede a menor crença, uma vez que elas
não a reivindicam para operarem sua eficácia simbólica e desempenharem sua função
reguladora. Contudo, o consenso lhe concede uma existência inegável, reconhecendo seu
valor intrínseco.
Desse modo, o mito se liga tanto à realidade psíquica, pelas relações que mantém com o
sonho e a fantasia (ou seja, com um sentido inconsciente), como à realidade compartilhada
por toda uma sociedade, modulada pelos desejos coletivos.
O objeto transicional sinaliza a transição do bebê desde um estado de fusão com a mãe até
um estado em que ele está em relação com ela como um objeto externo e destacado. Mas,
para que a criança evolua desse estado de dependência absoluta, essencial nos estádios
mais primitivos, para uma condição de autonomia possível, é preciso que ela primeiro tenha
se certificado de que pode existir algo que não faz parte dela – o que Winnicott (1951/1978)
chama de primeira possessão não-eu, representada pelo objeto transicional.
Winnicott (1951/1978) diz que os fenômenos transicionais são permissíveis ao bebê porque
os pais reconhecem intuitivamente a tensão inerente à percepção objetiva, e não contestam o
bebê acerca da subjetividade ou da objetividade desses fenômenos, exatamente neste ponto
onde está situado o objeto transicional. Esse primeiro estádio do desenvolvimento depende,
assim, da capacidade especial da mãe de efetuar as adaptações às necessidades do bebê,
sustentando a ilusão de que aquilo que ele cria realmente existe. Esse paradoxo não deve ser
resolvido. Só assim o bebê estará capacitado a suportar as situações precoces de separação,
de perda e privação, sem o que o desenvolvimento psíquico fica comprometido, dando
margem para a instalação de algum núcleo patológico.
Assim, o paradoxo aceito pode ter um valor positivo, conduzindo ao desenvolvimento de uma
organização defensiva do Eu (um self verdadeiro). O adulto psiquicamente saudável seria
aquele capaz de extrair prazer desta área pessoal intermediária, sem reivindicar do outro a
aceitação da objetividade de seus fenômenos subjetivos. Isso porque ele sabe que essa área,
de fato, faz parte de um jogo, o jogo possível com a realidade (Chabert, 1993). Assim, ele
favorece na criança o reconhecimento gradual de suas próprias áreas intermediárias de
experiência. Reconhecimento que exige, a princípio, que elas não sejam contestadas quanto
a pertencer à realidade interna ou externa (realidade compartilhada), para que a vida
imaginativa possa ser fortalecida o suficiente, antes de começar a ser proporcionado à criança
o "desilusionamento".
A situação do brincar - da qual a situação analítica pode ser vista como uma variante -, solicita
o arranjo de um espaço de solidão, isto é, apela para esta possibilidade de uma "meditação
associativa em presença do outro" - no caso da situação clínica, o psicólogo ou o
psicoterapeuta (Chabert, 1993). Aí se constitui um campo de experiência, em que podemos
observar a capacidade do sujeito para situar-se em uma área transicional, o que permite
apreciar a qualidade da distância que ele assume em relação ao objeto. Dessa distância
depende, fundamentalmente, a capacidade do sujeito de jogar com o real, isto é, de manejá-lo
de maneira eficiente, através de representações que são construídas de acordo com as
necessidades de seu mundo interno.
As eventuais falhas no uso desse campo transicional nos permitem estimar as potencialidades
do indivíduo, em termos de saber qual é, para ele, o jogo possível com a realidade, e se esse
jogo lhe permite alcançar, ou não, o pensamento verdadeiramente criativo. O nível de eficácia
do funcionamento psíquico dependeria da medida em que o paciente se mostra capaz de
utilizar esse espaço transicional, no qual possa, simultaneamente, se auto-representar e
representar o objeto. É justamente a perda da possibilidade de pensar secretamente que está
no fundamento da psicose, e é contra suas conseqüências que o delírio se insurge e tenta
lutar.
A tendência à regressão, nesse sentido, deve ser vista como a expressão de parte da
capacidade do paciente de se curar, à medida que funciona como uma comunicação da parte
sadia do indivíduo, que proporciona ao analista a indicação de como deve se conduzir no
processo (conduzir-se no sentido de criar um ambiente propício à criação de novos
significados, mais do que interpretar, isto é, decodificar sentidos que já estariam presentes
ali). Cremos que é nesse sentido que Winnicott (1959 [1964] /1983), ressalta que "a regressão
representa a esperança do indivíduo psicótico de que certos aspectos do ambiente que
falharam originalmente possam ser revividos, com o ambiente dessa vez tendo êxito ao invés
de falhar na sua função de favorecer a tendência herdada do indivíduo de se desenvolver e
amadurecer." (p. 117)
Assim, Winnicott (1959 [1964]/1983) deduz que não se deve partir do modelo da neurose para
compreender a psicose, como uma espécie de negativo da neurose (até porque Freud,
1905/1969, já evidenciara que o negativo da neurose é a perversão). A psicose não é uma
espécie de neurose às avessas, ou uma neurose que ficou a meio caminho e não completou
todos os seus estágios. A neurose pressupõe que o paciente, durante a infância, atingiu um
determinado estágio de desenvolvimento emocional, em que as várias etapas do complexo
edípico foram superadas e organizadas sob a primazia da genitalidade, de modo que certas
defesas contra a ansiedade de castração puderam ser estabelecidas. A personalidade do
indivíduo está intacta, o que, em termos evolutivos, significa que ela pôde ser construída e
mantida, conservando sua capacidade para as relações objetais.
A psicose está ligada à privação emocional em um estádio anterior àquele em que o bebê
possa perceber essa privação. Além da falha ambiental em si, a provisão necessária está
completamente fora da percepção e da compreensão do bebê. Nesse caso, não chegou a
existir uma provisão sentida como suficientemente boa e que, em determinado momento,
cessou. Em vez de uma interrupção no sentimento de continuidade da existência, que fazia
parte do ambiente suficientemente bom, o bebê é surpreendido por uma interrupção de seu
existir que não pôde ser atribuída a ninguém e a nada, e que nem sequer é experimentada
como tal, já que ele se encontrava em um estágio evolutivo que ainda não o capacitava a se
diferenciar minimamente do ambiente. Assim, o ponto de origem da privação é mais precoce e
totalmente indeterminado, ocasionando não propriamente uma perda, total ou parcial, mas
uma incapacidade absoluta de se relacionar com objetos (Loparic, 1996).
Essa é uma visão completamente nova e revolucionária, e não uma mera rearticulação de
conceitos já conhecidos, que aparecem reciclados sob uma nova roupagem. A ênfase é posta
no ajustamento defeituoso do ambiente, e só secundariamente na reação da criança, o que
contrasta vivamente com a tradição kleiniana, que coloca a fantasia inconsciente como eixo
da organização psíquica, minimizando o papel exercido pelo objeto externo no processo de
constituição dos pilares da subjetividade.
Por outro lado, Winnicott (1959 [1964]/1983) lembra que os mecanismos primitivos que atuam
no psicótico não são privilégio das psicoses. Portanto, o que tipifica a psicose, na visão
winnicottiana, não são os mecanismos psíquicos, nem o tipo de ansiedade em jogo, mas as
defesas primitivas, que não teriam de ser organizadas nos estágios subseqüentes do
desenvolvimento caso houvesse, nas etapas mais precoces de dependência quase absoluta,
a provisão suficientemente boa. As falhas do ambiente favorável levam a esse
comprometimento da evolução da personalidade e do self do indivíduo, cujo "resultado é
chamado esquizofrenia" (Winnicott (1959-64/1983b, p. 124).
Loparic (1996) sublinha que Winnicott (1951/1978; 1955/1978; 1963/1983c; 1971/1973c; entre
outros), trabalha a questão da falta, da ausência, da expectativa não correspondida, do
encontro frustrado, do desejo não contemplado, o que fica evidente quando ele diferencia o
no-thing (ausência de coisa) do nothing (coisa alguma, ou sua inexistência), que caracteriza a
organização psicótica.
Winnicott é um analista do vazio, para usarmos uma expressão de Green (1975/1988). Ele
aponta para a valorização da dimensão do negativo, isto é, a necessidade, em primeiro lugar,
da análise daquilo que não pôde ser construído ao longo do processo de desenvolvimento
mental, evidenciando-o nas organizações narcísicas, e, em seguida, na organização psicótica.
A análise nesses casos tem de se dedicar à tarefa de criação de significados – mais do que
de desvendamento e interpretação de sentidos latentes e, portanto, existentes embora
cifrados – , visando levar o indivíduo à simbolização, que irá permitir que o psiquismo supere
suas fraturas e entre em conexão com o corpo e suas moções pulsionais. À medida que
estimulamos o mundo interno, facultamos ao paciente a possibilidade de desenhar os
contornos de sua subjetividade, através de um processo de amadurecimento progressivo. A
partir daí, a psicanálise pode se defrontar com alguns fenômenos mais arcaicos, como as
angústias impensadas (Winnicott), que nos permitem meditar sobre a solidão essencial do
homem contemporâneo, com sua natureza essencialmente trágica (Loparic, 1996).
A psicanálise tradicional não comporta o desafio das psicoses e toda uma ampla gama de
patologias que, paradoxalmente, constituem parte significativa do universo da demanda
contemporânea de tratamento (Alvarez, 1994). Nesse sentido, o pensamento winnicottiano
traz um alento para aqueles que trabalham com situações limítrofes, com os chamados casos
borderlines, os transtornos de caráter e as psicoses em suas diferentes configurações.
1 Texto apresentado no Grupo de Trabalho "Psicanálise Contemporânea: Convergências e
Divergências". VII Simpósio de Pesquisa e Intercâmbio Científico da ANPEPP, Gramado,
maio de 1998. Artigo baseado na Tese de Doutorado (Santos, 1996). Projeto de pesquisa
financiado pela CAPES/PICD.
2 Endereço para correspondência: Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP.
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4 "...na psicose há defesas muito primitivas que são trazidas à ação e organizadas, por causa
de anormalidades ambientais" (Winnicott, 1959 [1964]/1983).
5 Por vezes, o fator ambiental não é um trauma específico e isolado, mas um padrão de
influências distorcidas, que se mantêm por um período de tempo suficientemente prolongado,
forçando o estabelecimento de defesas primitivas para a proteção do self, antes que a
realidade psíquica pudesse ser localizada em seu interior. Isto é o oposto do que Winnicott
denomina de ambiente favorável, isto é, aquele que permite a maturação da criança.
6 A noção de externalidade é uma construção posterior do bebê, quando ele aprende a usar o
objeto. Por esse prisma, o bebê de início não internaliza, nem projeta o objeto; não o ama,
nem o odeia, nem lhe é indiferente, mas sobretudo depende do objeto (Loparic, 1996). Nessa
etapa da vida, o amor é uma mera questão de dependência física; nesse sentido, a mãe
inicialmente não seria um objeto libidinal, mas uma mãe-ambiente da qual ele necessita de
maneira absoluta para não despencar no vazio. Se a mãe falhar, ele entra em colapso, porque
é sensível a algo em algum lugar, mas esse lugar não é nem dentro, nem fora. Não é um
objeto interno, e tampouco um objeto externo.
7 Além disso, Winnicott (1962) reputa como "contribuições duvidosas" de Melanie Klein a
manutenção do uso da teoria da pulsão de vida e da pulsão de morte, formulada por Freud,
bem como sua tentativa de considerar a destrutividade do bebê como um aspecto hereditário
ou como produto da inveja (Loparic, 1996). Em sua opinião, o conceito de pulsão de morte
não é necessário, já que a agressividade é vista mais como uma evidência de vida, à medida
que expressa a tentativa de separação e individuação em relação ao objeto (Winnicott, 1959
[1964]/1983).
8 Talvez o dramaturgo irlandês Bernard Shaw (1856-1950) tivesse essa idéia em mente ao
escrever que: "O homem razoável se adapta ao mundo. Aquele que não é razoável persiste
em querer adaptar o mundo a si próprio. Por isso, qualquer progresso depende do homem
não razoável."
Referências
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Standart das Obras Completas de Sigmund Freud — ESB (Vol. VII, pp. 121-252). Rio de
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Freud, S. (1969). O ego e o id. Em Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud
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Green, A. (1988). O desligamento. Em Sobre a loucura pessoal (pp. 280-299). Rio de Janeiro:
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Laplanche, J. & Pontalis, J.-B. (1967/1983). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
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Pereda, M. C. (1997). Existem equivalentes ao falso self em Freud e Klein? Em J. Outeiral &
S. Abadi (Orgs.), Donald Winnicott na América Latina: Teoria e clínica psicanalítica (pp. 79-
89). Rio de Janeiro: Revinter. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983). A capacidade para estar só. Em D.W. Winnicott (Org.), O ambiente e
os processos de maturação: Estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 31-
37). Porto Alegre: Artes Médicas (Original publicado em 1958). [ Links ]
Recebido em 15.01.99
Revisado em 12.06.99
Aceito em 15.06.99
Sobre o autor:
Manoel Antônio dos Santos é psicólogo, Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de
Psicologia da USP e Professor do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento
de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.