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DOSSIER

PLANEAMENTO FAMILIAR

Biotecnologia em
reprodução humana
assistida
VASCO M. ALMEIDA*

RESUMO
O conhecimento na área da reprodução humana tem revelado um grande desenvolvimento nas últi-
mas três décadas, tendo como consequência a introdução de novas tecnologias à disposição da
medicina da reprodução e da investigação em biologia reprodutiva. da de modo a proporcionar o desenvol-
Pretende-se com este trabalho abordar, de uma forma sistematizada e sintética, a tecnologia que vimento de um folículo. No dia progra-
hoje em dia pode ser utilizada em reprodução humana assistida. mado para a realização da inseminação,
o membro masculino do casal procede
Palavras-Chave: Reprodução Assistida; Infertilidade; Esterilidade. à colheita do esperma que será proces-
sada no laboratório.
A técnica de preparação ideal é aque-
INTRODUÇÃO la que conduz à obtenção do maior nú-
mero de espermatozóides morfologica-
mente normais e de boa motilidade
desenvolvimento da bio-

O
num reduzido volume de meio de cultu-
tecnologia em reprodução
ra1; preferencialmente a concentração
humana assistida tem
de espermatozóides após tratamento
permitido delinear novas
deverá ser superior a 1x106/ml. A pre-
estratégias no sentido de incrementar
paração de espermatozóides utilizando
o conhecimento na área, bem como
gradientes de concentração é a mais di-
disponibilizar novas possibilidades de
vulgada actualmente dado que, para
diagnóstico e tratamento da infertili-
além de permitir a obtenção de um ele-
dade.
vado número de espermatozóides com
Pretende-se, assim, neste trabalho,
boa motilidade e morfologia, reduz
fornecer, de uma forma necessariamen-
significativamente a contaminação bac-
te sintética, uma panorâmica da tecno-
teriana e a presença de leucócitos 2,3.
logia mais comum que hoje em dia se
A inseminação deverá ser realizada
pode utilizar nesta área.
sem traumatizar o endométrio e em
condições assépticas.
INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL INTRA-UTERINA
FERTILIZAÇÃO IN VITRO (FIV)
A inseminação artificial intra-uterina é
um método relativamente simples uti-
Desde 1978 (nascimento do primeiro
lizado no tratamento de alguns casais
ser humano através da técnica de ferti-
sub-férteis. Tem como principais indi-
lização in vitro), temos assistido a avan-
cações a anovulação, ovulações pouco
ços notórios em cada uma das etapas
frequentes, infertilidade idiopática, hos-
que envolvem este tipo de tratamento,
tilidade do muco cervical, bem como a
que têm como reflexo o aumento das
*Professor da Faculdade de Ciências existência de um factor masculino mo-
taxas de gravidez FIV a nível mundial.
da UP, responsável pelo sector derado.
laboratorial do Centro de Estudos No sentido de aumentar o sucesso de
A estimulação ovárica é monitoriza-
de Infertilidade e Esterilidade um ciclo de FIV procede-se à estimula-

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ção dos ovários para que estes possam -se o tratamento de eleição nos casos de
produzir vários ovócitos. Esta hipero- infertilidade masculina severa (oligo/
vulação realiza-se recorrendo à admi- /asteno/teratospermias graves).
nistração diária de hormona folículo- A primeira gravidez obtida por este
-estimulante (FSH) humana ou recom- tipo de micromanipulação foi relatada
binante, sendo a resposta do ovário por Palermo et al. em 19925. A ICSI con-
monitorizada por ecografias sucessivas. siste na injecção directa de um único es-
Quando os folículos ováricos atingem permatozóide no citoplasma de um
determinadas dimensões (superior a ovócito.
16mm), a ovulação é desencadeada Basicamente a tecnologia utilizada em
através da administração de uma ou- ICSI é semelhante à utilizada num ciclo
tra hormona (gonadotrofina coriónica- de FIV, excepto, obviamente, a subs-
-HCG); os ovários são puncionados 34 tituição da inseminação dos ovócitos pela
a 36 horas depois, sob anestesia. microinjecção. Esta realiza-se num mi-
Imediatamente a seguir à colheita, croscópio invertido com platina termos-
procede-se à triagem dos ovócitos no tatizada e com o auxílio de duas mi-
laboratório; estes são depois colocados cropipetas acopladas a micromani-
em meio de cultura, à temperatura de puladores (uma que sustenta o ovócito
37oC, numa atmosfera com 6% de dióxi- na posição pretendida e outra que per-
do de carbono e 5% de oxigénio com mite penetrá-lo com o intuito de deposi-
saturação de humidade. Concomitan- tar um espermatozóide no ooplasma)6,7.
temente procede-se ao tratamento da A ICSI é também utilizada nos casos
colheita do esperma com gradientes de de azoospermias em que é possível
concentração. Passadas algumas ho- obter espermatozóides ou espermátides
ras, procede-se à inseminação dos ovó- após biópsia testicular (TESE – testicu-
citos com os espermatozóides do côn- lar sperm extraction), aspiração de es-
juge, cuja concentração usualmente va- permatozóides no testículo (TESA – tes-
ria entre 50 e 100 × 103/ ml. ticular sperm aspiration), ou aspiração
Cerca de 16 a 18 horas após a inse- de espermatozóides no epidídimo (PESA
minação é feita a avaliação da fecunda- – percutaneous epididymal sperm aspi-
ção, sendo os pré-zigotos de novo colo- ration) 8.
cados em meio de cultura até ao dia da A microinjecção intracitoplasmática
transferência dos embriões que pode deve ser a metodologia utilizada nos ca-
ocorrer no espaço de tempo que medeia sos em que o membro masculino do ca-
entre o segundo e o quinto dia após a sal é portador de vírus de HIV, hepatite
inseminação. A transferência dos em- B e C. Assim, após o tratamento da
briões é feita com um cateter apropria- amostra de esperma de um modo se-
do, sob controlo ecográfico e o mais melhante ao referido anteriormente,
suavemente possível, sem lesar o endo- também designado por «lavagem dos
métrio. A técnica de transferência é espermatozóides», procede-se à deter-
essencial ao êxito do procedimento; minação da sua carga vírica. No caso de
transferências traumáticas associam- esta ser nula, poder-se-á então pro-
-se a menores taxas de gravidez4. ceder à microinjecção dos esperma-
tozóides nos ovócitos.
MICROINJECÇÃO INTRACITOPLASMÁTICA
DE ESPERMATOZÓIDES (ICSI) A CRIOBIOLOGIA NA REPRODUÇÃO HUMANA

A ICSI revolucionou as tecnologias de Embriões


reprodução humana assistida e tornou- As técnicas de criopreservação ofere-

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cem diversas vantagens em fertilização aumento das taxas de sobrevivência de


in vitro. ovócitos após descongelação e das res-
É consensual, na esmagadora maio- pectivas taxas de fecundação e gravidez,
ria dos centros que se dedicam a esta pelo que será fácil vaticinar que a crio-
área, a transferência uterina de um nú- biologia de células gaméticas femininas
mero máximo de dois a três embriões, assumirá cada vez mais um papel rele-
no sentido de evitar gravidezes múlti- vante em vários campos da reprodução
plas. Por outro lado, e como já referimos humana assistida10.
anteriormente, assiste-se, hoje em dia,
à produção de embriões supranume- Espermatozóides
rários como consequência do número A criopreservação de células esper-
elevado de ovócitos obtidos através da máticas remonta há cinco décadas11.
utilização dos diversos protocolos de in- Desde então até à actualidade foram
dução da ovulação. desenvolvidos diversos métodos e crio-
Após o relato, em 1983, da primeira protectores que permitem, após des-
gravidez resultante da criopreservação congelação, a obtenção de apreciáveis
de embriões9, este tipo de tecnologia taxas de sobrevivência e capacidade fe-
tem sido aperfeiçoado e utilizado na cundante em espermatozóides conge-
maior parte dos centros de fertilização lados.
in vitro, onde os embriões supranu- O processo de doação de células ga-
merários são criopreservados por roti- méticas masculinas encontra-se há al-
na, armazenados a -196oC e utilizados gumas décadas muito facilitado devido
em ciclos subsequentes com taxas de ao facto de ser possível o transporte e ar-
gravidez apreciáveis. mazenamento de alíquotas de amostras
No entanto, diversos sectores da so- de dadores durante largo tempo.
ciedade apontam problemas de ordem
legal, moral e religiosa relacionados com
a criopreservação de embriões huma- DIAGNÓSTICO GENÉTICO
nos de tal forma que esta técnica tem PRÉ-IMPLANTAÇÃO (DGPI)
sido restringida e mesmo proibida em
alguns países europeus. O diagnóstico de patologias do foro
genético em embriões em fase de pré-
Ovócitos e tecido ovárico -implantação constitui uma alternativa
Uma solução para aqueles problemas ao diagnóstico pré-natal e reveste-se de
poderá passar pela criopreservação dos grande utilidade, uma vez que permite
gâmetas femininos. Para além disso, os a selecção de embriões portadores de
casos de falência ovárica prematura, uma determinada anomalia genética.
endometriose, infecções pélvicas, esteri- O DGPI é realizado a partir de uma
lidade iatrogénica após rádio ou qui- ou duas células (glóbulos polares,
mioterapia em patologias neoplásicas bastómeros de embriões com oito a doze
podem ser evitadas com este tipo de células, células da trofoectoderme de
tecnologia; neste último caso, reveste- blastocistos) e, conforme o tipo de pato-
-se, também, de importância fulcral a logia, poderá ser empregue a hibridiza-
criopreservação de tecido ovárico e ção in situ com sondas fluorescentes
posterior autotransplante. (FISH) – nos casos de doenças causadas
A doação de ovócitos constitui uma por anomalias cromossómicas – ou a
outra área em que a congelação de célu- reacção em cadeia da polimerase (PCR)
las gaméticas femininas se poderá reve- – nas situações de doenças causadas
lar muito útil. por um gene12,13,14.
Recentemente tem-se assistido ao Factores como idade avançada (> 35

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anos) do membro feminino do casal e jection of single spermatozoon into an oocyte. Lan-
cet 1992 Jul 4; 340 (8810): 17-8.
insucesso repetido em ciclos de FIV são
6. Barnes FL. Equipment and general techni-
também apontados como indicação de cal aspects of micromanipulation of gametes and
DGPI. embryos. In: Gardner DK, Weissman A, Howles
Os resultados obtidos, decorridos dez CM, Shoham Z, editors. Textbook of assisted re-
productive techniques. Laboratory and clinical
anos após o início deste tipo de diagnós- perspectives. London: Martin Dunitz; 2001. p.
tico, permitem-nos afirmar que é um 139-146.
método cada vez mais importante na 7. Palermo G, Raffaelli R, Hariprashad JJ, Neri
prevenção do nascimento de crianças QV, Takeuchi T, Veeck L, et al. ICSI: technical as-
pects. In: Gardner DK, Weissman A, Howles CM,
afectadas por doenças do foro genéti- Shoham Z, editors. Textbook of assisted reproduc-
co15. tive techniques. Laboratory and clinical perspec-
tives. London: Martin Dunitz; 2001. p. 147-158.
8. Ubaldi F, Rienzi L. Micromanipulation
CONCLUSÃO techniques in human infertility: PZD, SUZI, ICSI,
MESA, PESA, FNA and TESE. In: Revelli A, Tur-
Kaspa I, Holte JG, Massobrio M, editors.
Como se constatou ao longo deste tra- Biotechnology of human reproduction. London:
The Parthenon Publishing Group; 2003. p.
balho, necessariamente não exaustivo,
9. Trounson A, Mohr L. Human pregnancy fol-
temos assistido nos últimos anos a um lowing cryopreservation, thawing and transfer of
grande desenvolvimento do conheci- an eight-cell embryo. Nature 1983 Oct 20-26; 305
mento em reprodução humana e à in- (5936): 707-9.
10. Gosden RG, Gosden LL. Cryopreservation
trodução de novas tecnologias como
of human oocytes and ovarian tissue. In: Brins-
instrumentos à disposição da medicina den PR, editor. Textbook of in vitro fertilization and
da reprodução e da investigação em bio- assisted reproduction. London: Taylor & Francis;
logia reprodutiva. 2005.
11. Bunge RG, Sherman JK. Fertilizing ca-
Algumas implicações de ordem ética pacity of frozen human spermatozoa. Nature 1953;
necessitarão certamente de ser discuti- 172 (4382): 767-8.
das, tendo como alvo primordial a apli- 12. Verlinsky Y, Kuliev A. Preimplantation ge-
cação do conhecimento científico e netic diagnosis and its role in assisted reproduc-
tion technology. In: Brinsden PR, editor. Textbook
técnico no nascimento de crianças of in vitro fertilization and assisted reproduction.
saudáveis. London: Taylor & Francis, 2005.
13. Yaron Y, Gamzu R, Malcov M. Genetic ana-
lysis of the embryo. In: Gardner DK, Weissman A,
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human reproduction. London: The Parthenon Vasco M Almeida
Publishing Group; 2003. Rua D. Manuel II 51 B
5. Palermo G, Joris H, Devroey P, Van Steir- 4050-345 Porto
teghem AC. Pregnancies after intracytoplasmic in- E-mail: valmeida@fc.up.pt

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