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A arte de “inacabar” as coisas

Eu tinha resolvido fazer uma faxina no meu quarto. Esvaziei todas as prateleiras e gavetas,
joguei tudo no chão e fui limpando coisa por coisa antes de devolver pro lugar. Burrice minha.
É claro que eu não conseguiria arrumar tudo aquilo de uma só vez! Acabei me distraindo com
as relíquias que encontrei e perdi o entusiasmo pela arrumação. Ou seja, ficou tudo jogado,
até que a diarista veio e guardou tudo nos lugares errados para que eu pudesse deitar na
minha cama e caminhar pelo quarto sem ter que desviar das coisas. Depois, quando procuro
minhas coisas e não encontro, eu não posso nem reclamar, já que ninguém tem culpa por eu
ser desorganizada demais.

Mas minha desorganização não me preocupa tanto quanto minha mania de deixar as coisas
inacabadas, como eu fiz com a faxina. Meu computador está cheio de textos sem desfecho,
minha estante tem uma porção de livros lidos pela metade, e existem dezenas de filmes que
eu comecei a assistir e não terminei. Às vezes passo dias trabalhando em uma ideia e desisto
antes de colocá-la em prática. Não é como se eu não fosse fiel aos meus ideais - eu tenho
minhas convicções e chego a irritar por ser tão inflexível. Eu me refiro às coisinhas pequenas,
como enviar uma carta, aprender um instrumento, experimentar uma receita... É como se
nada fosse interessante o bastante para manter a minha atenção focada. Eu sempre fui meio
hiperativo, então quando as coisas começam a me entediar, eu desisto delas, ou então as
troco por outras coisas que me pareçam mais atraentes. E isso me incomoda, porque eu sei
que a vida exige perseverança. Eu não posso desistir dos meus objetivos antes de alcançá-los,
por menor que eles sejam, porque se isso vira um hábito, eu me torno uma pessoa sem
propósito nenhum.

Felizmente, se minhas vontades são promíscuas e efêmeras, meus sentimentos são por demais
persistentes. Eu não desisto de um amor só porque ele é complicado, nem troco de amigos
porque eles não são divertidos. Outra coisa: eu não deixo as coisas pela metade quando as
faço para os outros, porque eu sei que é importante pra eles. Talvez seja isso que está faltando
em mim: certeza das coisas que são importantes pra mim. Eu paro e penso “não vou morrer se
não fizer isso”, quando eu deveria pensar “vou fazer isso porque quero”. Eu preciso parar de
ter vontades e começar a senti-las, porque aquilo que se tem pode se perder, mas sentimento
é que nem arte: não se cria, nem se perde: se transforma.
[ Entre Colchetes ]

Eu estou ótimo [mas as vezes me bate uma vontade tão grande de ser dono da minha própria
vida! Não falo sobre ganhar o meu próprio dinheiro e morar na minha própria casa, eu falo
sobre coisas simples, que nem exigem tanta liberdade. Eu quero ser dono dos meus
pensamentos, quero não precisar justificá-los a toda hora, como se estivesse sob supervisão
militar. Eu quero ser levado a sério, quero ser a minha medida para todas as coisas e decidir o
que é ou não importante pra mim. Eu quero ter meu espaço vital. Quero ter a chance de errar e
quebrar a cara, quero ter a chance de acertar e me vangloriar pela vitória ter sido mérito
apenas meu, sem intervenção de ninguém. Estou cansada de tanta gente dando pitaco, me
dizendo como eu devo ser, o que eu devo fazer, o que eu devo querer... Eu não quero nada
disso! Eu não quero ser assim, não sou de brinquedo, não sou controlável, não sou
influenciável. Não quero ser o fantoche de brinquedo em cima da estante, quero me sujar,
quero quebrar minha capa de porcelana e virar gente. Não quero ser apenas um colchete no
contexto da minha vida - informação adicional -, não quero estar nas entrelinhas. Quero ser
linha com cerol pra quebrar as linhas de todo mundo que insiste em bordar flores no meu
jardim de espinhos!], ótimo até demais.

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