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This paper discuss the prescription of drugs for autistic patients, the analyst’s
response, and the treatment. Autism and psychosis are brought together and absence
of the Name-of-the-father is analyzed. “The treatment of the Other” is considered as
a direction to be taken. The hypothesis of indifference in autism and the need for
producing significant knowledge in the child is discussed on the basis of the relationship
between signifier and jouissance, and on the differentiation among the registers of
the real, the symbolic and the imaginary. Based on a clinical fragment, the results of artigos > p. 25-34
“practice among many” is discussed, this practice being generalized to the constitution
of knowledge by autistic patients.
> Key words: Psychoanalysis; autism; knowledge; jouissance
pulsional > revista de psicanálise >
que se congela, poder-se-ia dizer. Que você tenha dificuldade para escutá-los,
para dar seu alcance ao que dizem, não impede que se trate,
finalmente de personagens bem verbosos.
(Lacan, 1988)
*> Trabalho apresentado no IX Simpósio da ANPEPP-2002, Águas de Lindóia. Grupo de Trabalho 23: Psico-
patologia e Psicanálise. Temática: Psicofármacos e Clínica Psicanalítica: sobre usos e abusos.
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A demanda de medicação enunciada de profissionais encarregados da educa-
por terceiros em nome de alguém que ção e da reabilitação desses pacientes.
não demanda em nome próprio redo- Em proveito da eliminação de distúrbios
bra a problemática ética acerca dos usos (do sono, da motricidade, da alimenta-
e abusos de psicofármacos. Nesse qua- ção), esse pedido ignora a escuta, fazen-
dro deve ser inserido o caso que o autis- do calar a todos antes mesmo que a fala
mo configura para a clínica psicanaliti- produza os efeitos que identificamos, a
camente orientada. Descritas como crian- partir da invenção freudiana, como o in-
ças que bastam a si mesmas, que rejeitam consciente.
o outro, que não acedem à palavra, os A resposta a ser dada, a cada caso, dian-
autistas se apresentam como um limite te da oferta de medicação que testemu-
mudo que desafia o tratamento pela pa- nhamos na contemporaneidade, e da de-
lavra. manda dirigida ao analista no sentido de
Nos casos como os de autismo, tão refra- homologar o uso de psicofármacos, re-
tários à intervenção do psicanalista, tão mete ao corpo, ao gozo e, por conseguin-
alheios ao estabelecimento de laços so- te, à clínica do real. A demanda de medi-
ciais, trata-se de fazer advir um sujeito camento ao analista é curiosa, se pensar-
cuja constituição se encontra em impas- mos no lugar periférico ou na extra-
se. Imerso na linguagem, o autista sofre territorialidade da psicanálise frente à
de uma perturbação que paralisa seu medicina. Essa demanda nem sempre
acesso ao campo dos significantes, desconhece a situação marginal da psica-
onde ele pode surgir como sujeito. Sua nálise em relação à prática médica: não se
produção como falante não dispensa sua espera que seja o psicanalista a prescre-
singularização, requer a construção de ver o remédio. Lacan (1985) alertava os
um saber significante e mobiliza neces- psiquiatras para o papel de distribuidores
sariamente o corpo, conforme veremos da indústria farmacêutica. A tarefa costu-
adiante. ma ser devidamente imputada ao médico,
Na clínica deparamo-nos inicialmente de direito, o depositário dos agentes tera-
artigos
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aí se experimenta não é algo a ser ni, 1991). Mesmo sem a significação fálica,
minimizado. Sob o prisma do Outro o saber a ser forjado também deve des-
excessivo e invasor, a reclusão em que a completar o Outro. O saber delirante tem
criança se encerra para escorraçá-lo é da a função de subtrair ao Outro – que não
ordem da resposta. O enclausuramento deixa de ser uma ficção do sujeito – a
não é, portanto, primário e pode ser onisciência e a onipotência.
encarado como um recurso radical para O tratamento do Outro corresponde a
lidar com sua presença insuportável. uma dimensão da prática possível na psi-
Essa concepção assenta-se na idéia do cose, ou a uma maneira de entendê-la; ele
gozo insuficientemente negativizado na contempla o saber e o gozo, enquanto
psicose e, por isso, sujeito aos fenômenos eles se localizam no sítio do Outro, onde
de retorno no Outro, como na paranóia, não deveria estar. O trabalho não incide
ou no corpo, como na esquizofrenia e no sobre o sujeito, mas sobre o Outro exces-
autismo. O Nome-do-pai, princípio de se- sivo e, por isso, doente. O Outro super-
paração na neurose, conduziria à extra- existe, existe em demasia e deve ser tra-
ção do objeto, que passaria a aglutinar o tado, deve ceder de sua existência para
gozo restante. que o sujeito possa advir. Tal como o en-
A direção do tratamento com crianças, tendo, o tratamento do Outro não reser-
neuróticas ou psicóticas, pode ser orien- va ao analista o lugar de um Outro alter-
tada pela psicanálise. Com os neuróticos, nativo, este sim suportável. O analista se-
ela consiste em seguir a lógica do signifi- ria um agente que faz a mediação entre o
cante, deixar a criança descompletar o sujeito e o Outro, de cujo gozo a criança
adulto e, de posse da chave fálica, cons- se protege. Esvaziá-lo de saber é retirar-
truir a fantasia (Baïo et al., 1992). Não há lhe a consistência; barrar-lhe o gozo é
travessia da fantasia, mas construção da destituí-lo.
neurose infantil. A interpretação por par- Conforme apontado anteriormente, a se-
te do analista não é o essencial, já que na gunda ordem de decorrências da ausên-
construção da fantasia – e da neurose cia do Nome-do-pai no autismo não se
artigos
que lhe é correlata – é a criança que in- coloca mais em termos de forclusão espe-
terpreta o enigma do desejo do Outro. cífica da psicose, mas de indiferenciação
Quando se trata de crianças autistas e – esta é a nossa hipótese. Ao comentar
psicóticas, vemos uma outra dimensão se um caso de psicose na infância, o caso
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esboçar. O sujeito sofre do Outro. Esta- Dick relatado por Melanie Klein, Lacan
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mos às voltas com doenças do Outro (a afirmou: “Esse jovem sujeito está inteiri-
expressão é de Lacan), que existe em de- nho na realidade, no estado puro, incons-
masia. Nesse sentido, não é sobre o sujei- tituído. Ele está inteirinho no indiferencia-
to que incide o ato do analista, não são as do” (Lacan, 1979, p. 84). A realidade em
produções do sujeito que são interpreta- pauta não é a realidade psíquica. De
das. O tratamento visa o Outro, a ponto de acordo com o referencial teórico que se
Alfredo Zenoni, ter designado a clínica impôs na época, trata-se antes de um real
das psicoses com a expressão que se primitivo e amorfo, que deveria subme-
consagrou: “tratamento do Outro” (Zeno- ter-se à primazia do simbólico. A condi-
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ção da criança psicótica corresponderia ligação com o corpo (Freud, 1915). Quan-
ao confinamento num real2 homogêneo, do o saber fica vetado à criança, o incons-
sem distinção entre os registros do real, ciente não se constitui e as zonas eróge-
do simbólico e do imaginário. O proble- nas que lhe são homólogas não se demar-
ma, como podemos verificar, é tão anti- cam. Assim, o corpo não sofre o mapea-
go quanto o ensino de Lacan, mas é re- mento necessário à ordenação do circui-
lançado a partir da clínica solidária da ar- to de satisfação pulsional; daí a desordem
ticulação entre os registros (ou elos) no em relação ao gozo. A busca desenfreada
nó borromeano. Reunidos os três elos, há de S2 é uma tentativa de remediar essa si-
equivalência; por isso, um quarto deve tuação. Podemos abordá-la em termos de
interpor-se. O Nome-do-pai,3 operador da elaboração do fort-da, de simbolização
amarração entre os registros, vale dizer, primordial no par S1- S2, ou de alienação
de diferenciação, pode faltar. Quando isso no par significante inaugural.
ocorre, é a imersão no indiferenciado. Enquanto nos restringíamos às referên-
Lacan (2001)4 se interroga – pergunta re- cias dos anos 1950 e 1960, isto é, ao pri-
tórica – se uma criança que tapa os ou- meiro conjunto de conseqüências da au-
vidos a algo que é falado, já não está no sência de um significante primordial, a
pós-verbal, uma vez que se protege do carência significante definida como for-
verbo. O autista não está intocado pelo clusão do Nome-do-pai se traduzia inicial-
significante. Por conseguinte, não escapa mente em excesso de gozo no Outro e,
à condição de falante. Em relação ao par em seguida, em ausência de condensação
significante S1- S2, ele se acha num “impé- do gozo remanescente no objeto mais-
rio de S1”5 , despojado de S2, vale dizer, do gozar. A partir dos anos 1970 (Lacan,
saber significante. As excentricidades, es- 1975) o significante é objeto de uma nova
tereotipias, batimentos ritmados com relação com o gozo: situado no próprio
que nos defrontamos no autismo corres- campo do gozo, ele induz este último. O
pondem a uma tentativa de inscrever S2. autista, “ser verboso”, não escapa à causa
Desde Freud, o inconsciente tem relação material do gozo, já que não fica imune ao
artigos
necessária com o corpo. A pulsão é defi- significante. Nesse segundo contexto teó-
nida como exigência de trabalho feita ao rico situa-se a segunda ordem de conse-
aparelho psíquico em decorrência de sua qüências da ausência do Nome-do-pai.
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2> Essa primeira concepção de real ainda não o coloca como o impossível (Lacan, 1975-1976).
3> O Nome-do-pai é um sinthoma , não o único. Sua ausência admite suplências, como em Joyce, a refe-
rência maior para as psicoses. Com a literatura, ele faz da escrita um sinthoma, quarto nó, capaz de dis-
tinguir os registros (Lacan, 1975-1976).
4> “Mais ce que je demande à quiconque a entendu la communication que je mets en cause, c’est oui ou
non, si un enfant qui se bouche les oreilles, on nous le dit, à quoi? à quelque chose en train de se parler,
n’est pas déjà dans le postverbal, puisque du verbe il se protège?”. (Lacan, 2001, p. 367)
5> Adoto a formulação: “O autista constitui-se num império de S1 que não faz cadeia, um S1 congelado que
não o representa ante outro significante, o S2, e retorna no real dos automatismos de linguagem” (Vidal &
Vidal, 1995, p. 127).
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O inconsciente não é apenas relação ao psicanálise nas instituições psiquiátricas;
corpo, mas relação a um corpo que per- não é de hoje que se busca fundar e man-
manece estranho a nós mesmos. 6 Por ter uma prática do inconsciente no con-
conseguinte, não se trata de gozar de si, texto institucional. A implantação da psi-
e sim de algo que preserva heterogenei- canálise na área de saúde mental ultra-
dade em relação ao falante. Na indiferen- passou os quadros da extensão (sob a
ciação, o corpo não assume a alteridade forma da apresentação de doentes, por
necessária, não se coloca como o locus exemplo). Se colocarmos entre parênte-
suficientemente distinto e alheio, onde o ses a complexa questão da formação do
sujeito pode gozar, pode encontrar satis- analista, podemos dizer que esse movi-
fação pulsional. mento de penetração culminou na incrus-
Quanto mais o corpo é manipulado no tação, no espaço das instituições psiquiá-
registro dos cuidados médicos, mais ele tricas tanto públicas quanto privadas, de
se furta a constituir esse lugar para um uma clínica muito próxima e talvez coin-
autista. As visitas ao médico e a ingestão cidente com a psicanálise em intenção.
de medicamentos não são a mesma coisa À medida que a inserção da psicanálise
para uma histérica, para um hipocondría- assumiu a forma de atendimentos indivi-
co e para um autista. Para os dois primei- duais conduzidos por analistas nos con-
ros, guardadas as devidas diferenças, há sultórios institucionais, esses mesmos
sintoma, isto é, há satisfação pulsional re- consultórios e o dispositivo que lhes é
lacionada ao saber inconsciente. No au- exclusivo revelaram-se impróprios a cer-
tismo, há gozo porque há corpo e há sig- tos pacientes.
nificante, mas o gozo não está localizado, Em retorno, o rendimento desse movi-
não está cifrado, é uma intensidade avas- mento de disseminação pode ser recolhi-
saladora, invasora e difusa. O gozo não do em instituições que inventaram, a par-
está devidamente aparelhado, porque fal- tir do fracasso de uma simples adaptação
ta significante7 para promover a ligação ou aplicação da psicanálise, uma nova
entre saber e gozo, articulação diferencia- maneira de lidar com casos para os quais
artigos
da entre inconsciente e corpo. Vale subli- o dispositivo tradicional não estava des-
nhar – e o ensino de Lacan em sua fase tinado. Esse é o caso de instituições que
mais tardia é decisivo quanto a esse pon- acolhem crianças autistas e psicóticas.
to – que não falta significante tout court. Vou mencionar duas, a começar por
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equipe não se caracteriza pela cooperação consulta a um advogado, quando o pa-
interdisciplinar, mas por um conjunto de ciente resolveu fazer greve de fome dian-
ações e escuta sustentados por agentes te do Parlamento Europeu. A invocação
múltiplos, quebrando o monopólio de dos nomes de Freud e Lacan foi um ou-
qualquer um deles sobre qualquer crian- tro recurso, dentre outros utilizados ao
ça. Quanto à forma diferenciada, vale di- longo do tratamento. A isso ele chamou
zer que há endereçamentos preferenciais de prática entre vários generalizada.
de cada criança a um certo adulto, de Traçadas algumas linhas teórico-clínicas
modo que tais relações seletivas se pres- para uma direção de trabalho com o au-
tam à consideração no terreno da trans- tista, retornemos à demanda de medica-
ferência. ção. O que está em jogo quando se pede
O trabalho desenvolvido em Antenne 110 em nome de outro, e especialmente,
não é único nem solitário. Outras institui- quando o interessado é autista e se pede
ções têm feito essa experiência, especial- medicação? Essa questão me foi coloca-
mente na França, mas também no Brasil, da a partir de uma demanda de “remédio
onde o NAICAP (Núcleo de Assistência In- para dormir”, que uma mãe vem fazer
tensiva à Criança Autista e Psicótica) do para seu filho. Ela vem trazê-lo porque a
Instituto Philippe Pinel do Rio de Janeiro psicóloga da creche recomenda um trata-
tem funcionado segundo a “prática entre mento psicanalítico: os neurologistas de-
vários”. Essa expressão cunhada por claravam não haver problemas que eles
Jacques-Alain Miller (Baïo, 1999) traduz e pudessem resolver. Aquela mãe solicitava
sintetiza a deslocalização do saber e a que se endossasse com algum saber o
pluralização dos parceiros na clínica ins- voto que ela acalentava: o de produzir
titucional. quimicamente um ciclo de sono e vigília
Para os psicanalistas ligados à clínica de que seu filho de quase 5 anos ainda não
Antenne 110, a prática de vários não só havia conquistado.
operacionaliza a deslocalização do saber A criança dormia quando atingia um es-
e a diversificação dos parceiros, mas tam- tado de exaustão, geralmente ao cair da
artigos
tem algo a aprender com a prática entre do que de angústia propriamente dita. Às
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da, mas vai procurar a psicóloga que o À medida que algumas coordenadas cons-
havia encaminhado. Pergunta-lhe se o truídas na clínica institucional podem ser
menino não deve tomar remédio para trazidas para o consultório privado, a
dormir. Conta que eu não contra-indiquei. prática entre vários se generaliza. No en-
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8> Digo que o sono se tornou razoavelmente regular, não porque seja mais perturbado que nas demais
crianças. Nessas, ele se deixa interromper pelos sonhos de angústia, quando se rompe o acordo entre o
inconsciente e o pré-consciente, acordo este que permite manter o estado de sono. Num caso como esse,
não se pode dizer que o sonho chegou a se instituir como guardião do sono, pois um funcionamento desse
tipo requer, em termos freudianos, separação entre pré-consciente e inconsciente.
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as alterações introduzidas pela generaliza- uma prática do real, ela o é com muito
ção. Trata-se de uma prática, num certo mais razão no autismo, em que o prático
sentido, restrita em relação a seu modo da análise opera em prol de uma diferen-
de funcionamento original por pelo me- ciação no real homogêneo, para que o in-
nos três razões. consciente como diferença e descontinui-
A primeira, mais evidente, concerne à so- dade possa se escrever.
lidão em que a criança faz seu trabalho, O significante não exclui o gozo; ele o
sem a convivência com outras crianças. causa e também limita seu transborda-
Sabe-se que os autistas toleram muito mento. Ele desempenha essa dupla fun-
mais a presença de outra criança do que ção, quando se torna saber inconsciente.
a de um adulto: as instituições que abri- Por isso, deve passar para o lado da crian-
ram as portas de seus consultórios inter- ça enquanto saber significante. A prática
nos, criaram um cotidiano compartilhável entre vários, à proporção que deslocali-
pelas crianças entre si e pelos adultos e za o saber, propicia ao autista inscrever
crianças. Em segundo lugar, na série de para si um saber e extrair-se da indiferen-
adultos envolvidos no tratamento de uma ciação. Ao analista cabe testemunhar e
criança em consultório não-institucional, funcionar como o escriba que acusa a re-
os demais profissionais não ocupam em cepção da mensagem significante, que
relação a outras crianças o lugar do ana- acolhe esta mensagem como saber pro-
lista. Daí, uma tendência ou uma deman- duzido pelo sujeito e faz seu registro.
da de centralização do saber na figura do
analista, que não conta com um diretor Referências
de instituição e outros membros da equi- BAÏO, Virginio et al. Le travail en instituition et
pe para desmontar o movimento de con- son cadre. Préliminaire, n. 4, p. 7-20, 1992.
centração do saber. Como este movimen- BAÏO, V. Une pratique à plusieurs géneralisée.
to constitui uma demanda, cumpre Préliminaire, n. 11, p. 143-51, 1999.
abordá-lo como tal e não recuar. Por úl- FREUD, S. (1915). Os instintos e suas vicissitudes.
timo, a presença real de terceiros no dis- Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago,
artigos
Psicanálise e educação.
Eficaz: População selecionada Questões do cotidiano
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