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Energia
Sobre a história do setor brasileiro de energia de acordo com seus
principais marcos regulatórios
Mateus Bernardino
May 24, 2016 · 17 min read
O primeiro momento — que vai do final do século XIX (1879) até os anos 1930 —
representa uma etapa emergente. Ele retrata um período em que a organização do
setor de energia contava com um “arquipélago de ilhas elétricas” funcionando sob
regimes regulamentários incipientes, tendo natureza local (geralmente municipal) e
que responde às urgências de produção de setores específicos da indústria, agricultura,
iluminação das cidades e serviços públicos de transporte. Estamos ainda longe da
generalização e universalização do consumo doméstico.
O segundo momento — que vai de 1930 até o início dos anos 1990 — coincide com a
era da formação e instauração de um monopólio público. Nele o governo verticalizou e
integralizou as esferas de geração, transmissão e distribuição da produção do setor de
energia. O intuito era fornecer as bases para o atendimento cada vez maior da
demanda de energia das manufaturas e das municipalidades, abrindo e consolidando
também as vias para o consumo doméstico e sua extensão. É nesse momento que se
instaurou uma regulamentação baseada nos custos históricos efetivos (cost of service)
e/ou na garantia de taxas de rendimento sobre investimento realizado (rate of return).
O terceiro momento é marcado pelo período que veio depois das reformas que
ocorreram ao longo dos anos 1990, e se inserindo em um Plano Nacional de
Desestatização que buscava maior abertura dos setores de infraestruturas. Esse
momento é marcado pela quebra de monopólios estatais em determinados segmentos
do setor elétrico, privatização de companhias públicas e maior foco nas agências
regulamentadoras enquanto protagonistas da coordenação e da organização das
políticas governamentais. Foi também o momento de transição para uma
regulamentação “mais incitativa” fundamentada nas tarifas (price cap), uma das
consequências mais importantes daquele marco regulatório.
Tendo por objetivo preparar melhor o terreno para abordagem do tema da liberalização
dos mercados de energia, esse artigo tratará sobre os dois primeiros marcos
regulatórios. Iremos rever um pouco mais detalhadamente as principais
mudanças organizacionais dentro de uma perspectiva histórica. A intenção é
estudar um pouco mais afundo a história dos principais acontecimentos políticos e
organizacionais, e as principais mudanças do ponto de vista regulamentário até o
incício do processo de abertura — terceiro marco regulatório.
O Código das Águas foi o resultado de embates políticos e diálogos importantes entre
os produtores de energia e o governo. Ele marcou também o aumento da necessidade
de pressão pela captura dos órgãos governamentais para aquisição dos direitos de
exploração e produção no setor — visto que agora a competição era mais restrita.
Do ponto de vista político, o Código das Águas de 1934 violava alguns dos princípios
liberais que regiam o ideal de competição formalizado na postura institucional da
Constituição da Primeira República.
Essa violação se fez em benefício de uma nova postura mais desenvolvimentista do
governo e um modelo mais intervencionista na economia, algo que se materializou na
nova Constituição de 1934.
Foi nessa época que inscreveram ao nível constitucional algumas das restrições e
delimitações aos direitos de propriedade, notadamente sobre os recursos do
subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, florestas, caça, pesca… e
qualquer outra coisa que pudesse ser considerada de interesse público no governo do
ditador Getúlio Vargas.
O Código das Águas promovia um novo sistema jurídico com reformas controlando
desde os níveis de lucro até os caminhos de expansão dos investimentos, as linhas de
expansão da matriz energética, as empresas que poderiam participar das concessões, a
quantidade de recursos empresariais que poderiam vir do exterior, se os lucros
poderiam ou não deixar o país. Antes algumas empresas do setor energético
conseguiam taxas de retorno de até 30%, agora todas deveriam se contentar com
retornos de até 10%.
Ilustração: Maior Período de Expansão em Capacidade Instalada (Fonte: Gomes et Vieira 2009)
Ou seja, por um lado, o setor de energia não podia mais contar com ajustes tarifários
reais permitindo a manutenção das receitas que fomentaram a produção e a expansão
em capacidade, isto quer dizer, havia real perda de valor da tarifa e descapitalização
das empresas. Gradativamente as contas se deteriorariam e as taxas de remuneração
cairiam também progressivamente (Ver Ilustração 2 logo abaixo).
Ilustração 2: Taxas Reais e Valor de Remuneração das Tarifas de Energia (Fonte: Goldemberg et Prado 2003)
Por outro, um setor dependente de recursos externos (FMI) começaria a ver suas
despesas cada vez mais consagradas ao pagamento de dívidas, num cenário de juros
cada vez mais altos [vii]. Isto estaria suscetível de evoluir em endividamento crônico
conforme as taxas internacionais do dinheiro oscilassem positivamente e conforme o
câmbio se depreciasse, ou conforme a queda no ritmo de crescimento econômico
reduzisse a capacidade do governo em destinar recursos ao seu financiamento. E foi
tudo o que acabou ocorrendo.(Ver Ilustração 3 e Ilustração 4).
Ilustração 3: Tabela de Evolução dos Recursos de Financiamento Setor de Energia (Ferreira 2000)
Ilustração 4: Evolução dos Investimentos e do Serviço da Dívida das Empresa Estrangeiras, em milhões,
entre 1967 e 1989 (Oliveira 2004)
Em um período que ficou marcado por choques de preços nos mercados do petróleo
(1973 e 1979) e pela elevação das taxas de juro real ao nível internacional, em interno,
a economia brasileira perdia fôlego e ritmo de crescimento (Ilustração 5). A forte
desvalorização cambial aumentou as dificuldades em se refinanciar com recursos
externos, e por consequência, em financiar o setor elétrico.
Ilustração 5: Evolução das Taxas de Crescimento (Fonte Ipea)
Além das privatizações, o Revise sugeria um novo marco regulamentário inspirado nas
reformas que foram promovidas ao redor do mundo. Conceitos e ideias como produtor
independente, consumidor livre, livre acesso às redes de transmissão e distribuição eram
pautas para propostas de reestruturação. Essas seriam as diretivas guiando a tentativa
de liberalização do setor de energia no Brasil.
Em 1993, ao longo do governo Itamar Franco, foi instaurada a Lei 8.631 eliminando o
sistema de equalização tarifária entre as regiões e os mercados de consumo. Instauram-
se também modificações profundas e definitivas no arcabouço regulamentário do setor
de energia, entre outras, o fim da regulamentação fundamentada nos custos e nas
taxas de retorno e passagem à regra baseada no custo marginal e nos tetos tarifários
(price cap).
Ilustração 8: Principais Acontecimentos de 1990 até 2002 (Fonte Gomes e Vieira 2009)
Comentário Conclusivo
Essa foi a breve história dos eventos referenciais que se desenrolaram e culminaram na
abertura parcial do setor de energia, e na nova estrutura organizacional e normativa do
setor.
Esses recitos históricos não substituem uma análise crítica ou mais técnica, baseada na
teoria econômica e nos aportes das teorias organizacionais.
Notas
[i] Decreto 24.643, de 10 de Julho de 1934.
[iii] A Eletrobrás foi criada pela Lei n. 3.890-A, de 25 de Abril de 1961, no governo de
Jânio Quadros, tendo sido instalada oficialmente em 11 de Junho de 1962, já no
governo de João Goulart.
[v] Como sugeriu António Claret Gomes (p. 8): “Em síntese, o período que se estendeu
de 1946 (pós-guerra) a 1962 (criação da Eletrobrás) foi marcado por uma alteração
profunda no modelo brasileiro de desenvolvimento econômico, modelo que passou a
privilegiar a participação do Estado em funções produtivas, financeiras e
planificadoras. Nesse contexto, a constituição do BNDES criou condições para compor
o funding dos projetos de reaparelhamento da infraestrutura (com destaque para
energia e transportes) e de instalação da indústria de base. Ademais, o Banco teve
destacado papel no planejamento da economia. No setor elétrico, sua atuação foi além
da concessão de financiamentos em moeda nacional. A assistência financeira abrangia
prestar garantias e avais indispensáveis à obtenção de financiamentos no exterior para
importar equipamentos de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica,
autorizar inversões diretas de companhias de seguro e capitalização e ter participações
societárias/operações de underwriting.”
Ver mais em: GOMES, A. C.; et al. BNDES 50 Anos — Histórias Setoriais: O Setor
Elétrico. Banco Nacional de Desenvolvimento, Brasília: Dezembro 2002.
[viii] Lei 8.031 de 1990 instituiu o Programa Nacional de Desestatização (PND) e criou
o Fundo Nacional de Desestatização (FND). Ela marca o início do processo de
privatização e mudança no marco organizacional do setor.
[ix] “As Leis 8.987 e 9.074/95 introduziram ainda estas profundas alterações: (i) a
licitação dos novos empreendimentos de geração; (ii) a criação da figura do Produtor
Independente de Energia; (iii) a determinação do livre acesso aos sistemas de
transmissão e distribuição; e (iv) a liberdade para os grandes consumidores
escolherem seus supridores de energia.” (GOMES 2002, p. 13)
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