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Resumo:
Abstract:
Palavras-chave:
Keywords:
Introdução
Cada particular é o que é, ganha seu sentido próprio e único na referência que
carrega em si ao todo narrativo do qual participa. Mas, da mesma maneira, esta
totalidade tem um caráter lacunar, sendo mais um princípio agregador do que um
“arquiacontecimento” dentre outros. A narração é uma abertura, que dá sentido
exatamente por não possuir um sentido; por conta de sua indeterminação originária ela
pode ser ampla o suficiente para reunir variantes dispersos. Como o buraco negro
maciço que existe no centro de toda a galáxia.
“‘O Narrador’ coloca alguns marcos tímidos para definir uma atividade
narrativa que saberia rememorar e recolher o passado esparso sem, no entanto,
assumir a forma obsoleta da narração mítica universal, aquilo que Lyotard
chamará de as grandes narrativas legitimantes”
Justificativa
“As ideias relacionam-se com as coisas como as constelações com as estrelas” e
“a ideia pertence a um domínio radicalmente diverso daquele que ela apreende”
(BENJAMIN, 2013, p.22), como a constelação, desenho mental dos homens baseado no
modo como as estrelas aparecem pra nós, cuja arbitrariedade revela sua natureza distinta
da das próprias estrelas, gigantes distantes que não sabem que fazem parte de
constelações. Diferente das galáxias, as constelações são abertamente designações
humanas, do mesmo modo que as imagens que as nuvens formam no céu não têm
relações com as nuvens, mas conosco.
Esta reflexão de Origem do drama barroco alemão, escrito entre 1924-5, já nos
revela do que trata a ideia de narração para Benjamin, que será mais explorada nos anos
1930. Assim como a constelação, a narração agrupa entes dispersos, dá sentido, forma,
imagem para eles. Este sentido é imagético porque é aberto, carrega consigo certa
indeterminação. É visível sua arbitrariedade; os pontos que ligam as estrelas poderiam
formar outras imagens. Porém, eles não formam: as constelações que nos habituamos a
ver existem em nossas vidas, servindo como pontos de referência tanto pra astrologia
quanto pra astronomia e navegação. Assim, poderíamos dizer, age a narração, como
aquela que fazemos sobre nós mesmos, nosso país, o presente estado de coisas, etc. Ela
une pontos diversos, formando uma imagem criada por nós.
Para nós, que o tema da narração seja abordado em um ensaio de 1936 evidencia
o interesse de Benjamin em responder questões de seu tempo, um tempo único,
extremamente decisivo. Se trata do contexto da estruturação do nazismo na Alemanha e
do fascismo na Itália, onde se avizinha o início da segunda guerra mundial, em 1939.
Nesta época o engajamento de Benjamin com o materialismo histórico e o pensamento
marxista atinge seu grau mais intenso. Os grandes textos do meio dos anos 1930, como
O Autor como produtor, O Narrador, A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica e os ensaios sobre Bertold Brecht tem um evidente caráter militante e uma
proximidade de Benjamin com o comunismo. Não é estranho partir da hipótese, então,
de que a ideia de narração tem um óbvio caráter político, relacionado à capacidade de
narrativas se oporem a ascensão dos fascismos. Atestam isso os textos da época
abordarem a questão do fascismo e manifestarem uma preocupação “prática” com as
consequências de sua ascensão naquele momento.
1
Este exemplo de Benjamin é interessante para nós, pois é usual entre os comentadores de Hegel a
comparação da Fenomenologia do Espírito com o romance de formação, gênero literário surgido na
mesma época. Mas, mais do que isso, a comparação costuma ser feita especificamente com o próprio
Wilhelm Meister (NASCIMENTO, 2018, p.176). Porém, ela tem um caráter ambíguo, onde podemos
destacar a posição do próprio Hegel de criticar o Meister por seu subjetivismo burguês (WERLE, 2013, p.
27-8).
A isto se soma o debate que Benjamin realiza dentro do próprio campo da
esquerda, de onde ele esperava uma resposta a este tempo. Benjamin se posiciona, neste
debate, entre a social-democracia alemã, que compôs a natimorta República de Weimar
(que governou entre o fim da primeira guerra e a chegada de Hitler ao poder) e o
stalinismo soviético. As duas perspectivas teriam em comum uma narrativa do
progresso, de viés iluminista, com o qual Benjamin tem aberta confrontação (LÖWY,
2005, p. 84). Estas narrativas, predominantes na esquerda de sua época, não eram, para
Benjamin, capazes de cumprirem esse papel narrativo novo que ele almeja como
resposta a crise da modernidade.
Também nos parece uma boa hipótese partir da ideia de que Benjamin analisa e
procura responder os problemas de seu tempo através da noção de que há uma crise da
modernidade não resolvida. Ou seja, é possível supor que a crise da modernidade, que é
uma crise da narrativa e da experiência, pode ser concebida por Benjamin como
interconectada ao problema político de sua época.
É neste sentido que Châtelet (1995, p.56) vai dizer, numa interpretação
condizente com o debate pós-estruturalista do qual ele fazia parte, que o Espírito
Absoluto, “diríamos hoje”, é cultura e está na linguagem. Para Châtelet (Idem, p.66-7),
Hegel leva à cabo uma “tentativa furiosa de introduzir a transparência integral na
comunicação”, uma “experiência do discurso integralmente controlado” que obriga o
homem a ver-se como “animal que tem sua essência no discurso”.
O que isso quer dizer? Talvez algo mais simples do que possa parecer. A
filosofia toma como objeto a si mesma e descobre que está na história e que é resultado
de uma formação. O seu desenvolvimento, ela percebe, não é aleatório, mas expressa
uma ordem interna – a dialética. O discurso,
O que ele descobre, então, é que há uma necessidade imposta no modo como o
discurso torna qualquer coisa inteligível, desde o comportamento das plantas até a
natureza de Deus: algo só pode ser compreendido na medida em que se reporta aquilo
que é diferente de si. Hegel acredita ter encontrado o modo como a razão se articula
através de oposições que constituem partes de um processo no qual a verdade não é uma
de suas partes, mas a própria totalidade em si e para si mesma. Mas a razão é mais do
que apenas um atributo da alma ou um discurso tomado como convenção humana da
qual a natureza é um exterior separado. Lembremos que a grande proposta de Hegel é
eliminar a separação entre sujeito e objeto. Assim, Hegel vai dizer:
Parece-nos que pensar a narrativa hoje tem uma importância de peso parecido
com o que tinha em 1936, tanto no que diz respeito à crise política geral quando a crise
interna das narrativas dentro da esquerda, problema que era prioritário para Benjamin
naquele momento. Entrar em Hegel para resolver esta questão (com a ajuda da visão
histórica de Benjamin, que procura “escovar a história a contrapelo” e salvar os
elementos periféricos, aparentemente triviais e efêmeros que um sistema tão grande
quanto o próprio universo, como o de Hegel, poderia deixar escapar) é entrar no núcleo
da própria inteligibilidade, que em seu sistema oferece não apenas uma narrativa, mas o
princípio de narratividade que nos permite hodiernamente distinguir verdadeiro de falso,
certo de errado, nós e eles. Como, afinal, essa estrutura de ordenação da realidade
funciona?
Este tempo, por sua vez, não é apenas a forma geral de todo o ato de olhar para
seu próprio presente, mas também a realização concreta desta forma, ou seja, trata-se
também de uma investigação sobre a Modernidade, a época de Hegel:
Este olhar sobre a sua própria época, procedimento inabitual na filosofia até
então2, coincide com o movimento da filosofia olhar para si mesma, ter a experiência de
sua consciência. O termo usado por Hegel no antigo título da Fenomenologia, “Ciência
da experiência da consciência” é Erfahrung, o mesmo que Benjamin usa em
Experiência e pobreza, texto que, segundo Gagnebin (2013, p.57), deve ser lido em
conjunto com O Narrador. Explicar a conexão e diferença deste termo nos dois autores
será fundamental para nós. No movimento que passamos a ter a experiência da filosofia
em si, ou seja, uma experiência do discurso que procurava a substância e não de uma
substância, descobrimos o caráter histórico da filosofia e, segundo Benjamin, entramos
em uma crise narrativa que é uma crise da impossibilidade da experiência, agora
substituída gradualmente pela vivência (Erlebnis), de caráter mais individual. Assim a
narração se entrava, pois dependia da experiência, de caráter comunal. Esta é a condição
da Modernidade, período de Hegel e Baudelaire.
2
Segundo Foucault, no pequeno texto “Qu’estce que les Lumières?”, de 1984, Kant é um dos primeiros
a fazer a filosofia pensar seu presente histórico.
vai, pouco a pouco, preencher o papel deixado vago pela história
comum. Benjamin situa neste contexto o surgimento de um novo
conceito de experiência, em oposição àquele de Erfahrung
(Experiência), o do Erlebnis (Vivência), que reenvia à vida do
indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua
solidão” (GAGNEBIN, 2013, p.59).
Hegel vai produzir uma narrativa unificadora sobre toda a história e toda a
filosofia no preciso momento em que a “história comum” se torna impossível e também
uma crítica do “idealismo subjetivo” e do “subjetivismo burguês” no momento em que a
vivência individual toma o lugar das narrativas comunitárias. Para nós, isto coloca
Hegel em uma posição privilegiada para encaminhar a questão benjaminiana sobre a
possibilidade de uma narração, pois expressa de maneira filosófica a questão não
resolvida que a modernidade lega para Benjamin e para nós.
Bibliografia:
Nesta época de “atrofia da experiência (Idem, p.49) não somos capazes, pela
própria natureza atomizada da vivência e pelo efeito hipnotizante do choque, de
desenvolver uma memória ampla, capaz de juntar os acontecimentos de forma narrativa,
ao mesmo tempo em que não nos sentimos mais vinculados ao passado, à tradição que
antes desempenhava um papel aglutinador nas comunidades. Porém, uma volta ao
passado não está em jogo para Benjamin, que “sempre insistirá nas perspectivas
salvadoras que esta crise da tradição pode também oferecer à ação histórica dos
homens” (GAGNEBIN, 2013, p. 30). É, então, de uma nova maneira de estabelecermos
vínculos entre nossas experiências que Benjamin está falando. Como seria possível uma
narração própria dessa época de crise da experiência?
1.2 Narração
Benjamin (1994, p.115) diz que “... essa pobreza de experiência não é mais
privada, mas de toda a humanidade”, de modo que, poderíamos dizer, tornaria possível
uma “experiência da pobreza”, ou seja, seria possível narrar a falta de experiência,
narrar aquilo que todos temos em comum, que é a impossibilidade de termos algo em
comum na modernidade. A experiência, por tanto, de uma falta. É disso que tratam
Baudelaire, Kafka, Proust, Lesskov, que tanto interessaram a Benjamin. Mas, para além
da literatura, podemos também entender essa nova narração em outros termos.
Esta reflexão de Origem do drama barroco alemão, escrito entre 1924-5, já nos
revela do que trata a ideia de narração para Benjamin. Assim como a constelação, a
narração agrupa entes dispersos, dá sentido, forma, imagem para eles. Este sentido é
imagético porque é aberto, carrega consigo certa indeterminação. É visível sua
arbitrariedade; os pontos que ligam as estrelas poderiam formar outras imagens. Porém,
eles não formam: as constelações que nos habituamos a ver existem em nossas vidas,
servindo como pontos de referência tanto pra astrologia quanto pra astronomia e
navegação. Assim, poderíamos dizer, age a narração, como aquela que fazemos sobre
nós mesmos, nosso país, o presente estado de coisas, etc. Ela une pontos diversos,
formando uma imagem criada por nós que de maneira difusa guia a nossa vida
cotidiana, nossos valores imediatos, aquilo que naturalizamos.
1.3 Modernidade
Nosso ponto aqui é este: sobram evidências de que a narração era uma questão
política para Benjamin que busca a origem de uma outra narração, uma nova narração,
que parte da modernidade, mas ao mesmo tempo pode ir além dela e pensar sua própria
época. Benjamin visualizou naquele contexto as consequências políticas de uma crise de
narrativas na esquerda e no mundo. A crise de narrativas gera um vazio que pode ser
apropriado para diferentes lados. Narrativas constituem uma história em comum que
gera práticas em comum, mas ao mesmo tempo surge já da materialidade, que no
marxismo quer dizer, da história, da sociedade, da cultura em sua dimensão prática,
sensível. Como dar origem a uma nova narrativa?