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ARTIGO ARTICLE
Corpo e finitude – a escuta do sofrimento
como instrumento de trabalho em instituição oncológica
Abstract Based on the day-to-day care of pa- Resumo Partindo do cotidiano da assistência a
tients in the Pain Clinic of a Brazilian cancer pacientes que chegam à Clínica da Dor do Institu-
hospital (INCA), this article seeks to examine the to Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Sil-
consequences upon the psychic dimension of the va (INCA), o artigo procura examinar as conse-
fact of pain being intimately linked to the body. quências que traz, para o psíquico, o fato dele estar
Almost always profoundly affected by the illness, indissociavelmente ligado ao corpo. Quase sempre
the concept of the subject’s own body deeply mod- afetada profundamente pela doença, a concepção
ifies this identification. This not only causes suf- do corpo próprio traz alterações importantes quan-
fering, but also prejudices oncological treatment. to à identificação do sujeito, acarretando disfun-
Conceptualizing the body from a psychoanalyti- ções psíquicas, que não só causam sofrimento, como
cal standpoint, this article emphasizes the im- comprometem o tratamento oncológico. Desenvol-
portance of language and the spoken word in its vendo a conceituação psicanalítica do corpo, res-
constitution, as the body perceived by psychoa- salta a incidência da linguagem e da fala em sua
nalysis does not coincide with the biological body. constituição, que não coincide com a do corpo bio-
The importance of listening to what the patients lógico. Em seguida demonstra que a escuta da fala
say is therefore seen as an important tool in the do paciente, por parte do profissional, é um ins-
work of professionals in an oncological instituti- trumento de trabalho fundamental em instituição
on. Two possible positions regarding profession- oncológica. Conclui por caracterizar duas posi-
als dealing with the imminence of death and the ções possíveis a serem ocupadas por aquele que lida
finitude of life are then outlined. The first is re- com a morte e com a finitude: poupar-se a si pró-
fraining from being affected by the finite and per- prio do encontro com a dimensão finita e perecível
ishable dimension of life, feeling pity for the pa- da vida, sentindo pena do paciente, resignando-se
1
tients, resigning and distancing oneself from their e demitindo-se desse encontro; ou escutá-lo com
Clínica da Dor, Instituto
Nacional de Câncer José predicament. The second involves listening to the compaixão, reconhecendo o inexorável comum a
Alencar Gomes da Silva. patients with compassion, acknowledging the in- todos, de modo a que o sujeito possa sofrer isso não
Praça Cruz Vermelha 23,
exorable finitude common to all, such that they tão sozinho e venha a elaborar na palavra algo do
Centro. 20.230-130 Rio de
Janeiro RJ. may not suffer alone and share some of the horror horror que atravessa.
juliana.castro@inca.gov.br they are experiencing. Palavras-chave Câncer, Corpo, Finitude, Pala-
2
Centro de Filosofia e
Key words Cancer, Body, Finitude, Word, Liste- vra, Escuta
Ciências Humanas,
Universidade Federal do ning
Rio de Janeiro.
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Castro-Arantes JM, Lo Bianco AC
do”12. Isto é, mantemos o corpo afastado da cons- se efetua, uma vez que função e órgão seguem
ciência, recalcado, portanto inconsciente, e, no desarticulados, caracterizando os referidos fenô-
entanto, ele nos comanda em todas as circuns- menos de desespecificação pulsional.
tâncias da vida. A psicose mais uma vez nos ensina que as
funções corporais nem sempre coincidem com
O corpo pulsional e o sujeito do desejo as estabelecidas pela fisiologia e pela biologia. É
importante observarmos se e como a desespeci-
Nos voltaremos agora para os estudos da ficação pulsional, que opera na psicose, contri-
psicose. Embora não estejamos nos endereçan- bui para pensarmos o circuito pulsional na neu-
do neste artigo para a questão dos psicóticos, rose, ou seja, nos indagarmos se a oralidade psi-
entendemos que esses pacientes nos ensinam so- cótica pode esclarecer um destino pulsional que
bre a estrutura psíquica de todo ser que se en- não seria restrito a essa estrutura23.
contra com a linguagem. As disfunções que os Enfim, recorremos a textos sobre o corporal
acometem em sua relação com o corpo próprio na psicose, abordando os elementos estrutural-
nos permitem reconhecer outros fenômenos que mente e não fenomenologicamente, por enten-
dão novas notícias da constituição pulsional do dermos que nessa estrutura encontramos de for-
corpo. Esperamos, assim, encontrar outros sub- ma pungente a montagem, recalcada na neurose,
sídios que nos auxiliem na escuta dos pacientes que está em jogo na constituição do que chama-
sob tratamento oncológico. mos corpo próprio. A psicose nos mostra que o
A psicanálise desenvolve a teoria que apreen- corpo concebido pela psicanálise, com a marca
de tais fenômenos como indicadores de um fun- da palavra e da pulsão, contribui para as ques-
cionamento que, no entanto, é estrutural. O psi- tões com as quais nos havemos na clínica de pa-
cótico é tocado pela questão pulsional de manei- cientes em instituição oncológica, quase sempre
ra particularmente problemática. Reconhece-se de estrutura neurótica. Trata-se nessa clínica de
de início na psicose o que ficou estabelecido como um endereçamento ao sujeito que padece, no
uma “desespecificação pulsional”13. Sobressai momento mesmo em que seu desejo está viva-
nesses casos uma não coincidência entre órgão e mente em questão.
função. Se do ponto de vista da biologia a cada Para avançarmos na problemática do sujeito
órgão corresponderiam uma ou mais funções e seu desejo, vale recorrermos ainda à distinção
específicas, ou seja, por exemplo, às cavidades entre uma “pulsão subjetivante” e outra “dessub-
bucal e oral, corresponderiam as funções de in- jetivante”. Essa distinção foi realizada por Van-
gestão de alimentos, de respiração e de emissão dermersch24, quem, tratando de uma paciente
de sons para a comunicação, na psicose encon- bulímica, notou nela um conflito entre, de um
tramos pacientes cuja boca está ligada antes à lado, um funcionamento que aponta na direção
evacuação de fezes. Da mesma maneira, verifica- de seu desejo e, de outro, um que não dá lugar a
mos que ao ânus, aos intestinos, aos esfíncteres ela como sujeito – o qual triunfa, a despeito dela
não está relacionada a função de defecar, pois mesma. Ao falar desse conflito, a paciente faz uma
estes se encontram, na lógica delirante, obtura- mudança sintática em sua fala, passando do eu
dos, não permitindo a passagem das fezes. (quando fala de uma posição desejante) ao se
É o caso do paciente J.R., morador do Hospi- impessoal. O autor afirma tratar-se, na verdade,
tal Psiquiátrico de Jurujuba, instituição com a de um conflito entre uma pulsão subjetivante e
qual o INCA mantém um convênio no âmbito uma pulsão dessubjetivante. Em linhas gerais, faz
do Programa de Residência Multiprofissional em uma distinção entre o que chama funcionamento
Oncologia. J.R. apresentava quadro de anorexia subjetivante da pulsão – o qual tem efeito de su-
grave por se recusar a ingerir alimentos, e, sem jeito, que ele equivale ao desejo –, e outro que não
qualquer afecção orgânica, tinha a convicção de- produz sujeito. Neste, temos um funcionamento
lirante de que seu ânus estava fechado e, caso não subjetivante da pulsão, que opera de modo
viesse a se alimentar, as fezes sairiam por sua acéfalo. A pulsão acéfala é empuxo permanente,
boca. Como ele próprio afirmava à época, “a pulsão que não prepara a vinda do desejo. Para
comida entope, na hora de evacuar não desce”. sumarizar, há, então, pulsão dessubjetivante, a
Observamos um desligamento entre órgão e fun- qual opera de modo acéfalo, em que não há um
ção: ânus obturado por onde não defeca, boca “efeito sujeito” – note-se que não se está falando
onde não deve entrar a comida sob pena de por mais aqui de psicose, mas de casos de bulimia e
ela sairem fezes. É o discurso que vem ligar os toxicomania – e pulsão subjetivante, equivalente
órgãos em função13 e, na psicose, essa junção não ao desejo, e que tem “efeito sujeito”24.
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sentindo agora, mesmo com o curativo. Cheiro que em algum ponto possibilita sua elaboração,
de água de salmoura, de carne podre: carniça”. muitas vezes viabilizando no mesmo ato o trata-
Conta de um banho no chuveiro: “Eu olhava para mento oncológico25.
trás, no chão, e via os pedaços de carne, assim, Logo, escutar é dar as condições para que no
escorrendo…” E, depois acrescenta: “tem mulher trabalho com esse outro, que é o paciente, a pa-
que não deixa o marido ver. Eu não, fico à vonta- lavra seja dita. Oferecer-lhe a escuta e, em conse-
de em casa. Ele faz até o curativo. Não tem nada a quência, fazer valer sua palavra, constitui-se em
ver não”. “O meu marido fala para as pessoas: ‘O um meio crucial de dar-lhe o lugar, em que, se ele
meu casamento acabou’. Aí eu falo que não”. Por se depara com a aridez do que enfrenta, virá a se
outro lado, chama a atenção que ela diga: “às ve- responsabilizar por sua condição inexorável de
zes, eu choro em casa, falo que tudo acabou. Aí sujeito ao corpo.
meu marido diz que não, que não acabou”. Ora, justamente aqui, se coloca a pungente
Com a afirmação do marido, de que o casa- pergunta: que implicações isto traz para aquele
mento acabou, ela traz o estremecimento em sua que ao dar lugar ao sujeito compartilha com ele
posição de mulher. Ela diz ainda que: “o namoro a dureza que o travessa. Emprestar sua escuta
acabou” (remetendo-se à relação sexual). Mas, coloca ao profissional uma exigência que certa-
como vimos, acredita também que “não tem nada mente não será sem ônus para si próprio. Vimos
a ver” – ou a velar. Essas são frases que indicam, como há um efeito de real no corpo, quando o
no desvelamento explícito, o abalo no que é da sujeito é surpreendido pelo câncer. Esse real car-
ordem do sexual. Ao falar do casamento e do rega a angústia de castração, a transitoriedade
“namoro”, traz questões, em processo de elabo- da vida, sua finitude e, paradoxalmente, o desejo.
ração, sobre o seu lugar – ou sua perda de lugar. O desejo de um sujeito que é chamado a se posi-
Os pedaços de carne escorrendo no ralo es- cionar frente a todas estas questões (acerca das
tão na própria operação que terá feito dela, neste quais, na maior parte das vezes, nada queremos
momento, sujeito. Dito de outro modo, é por saber). É isso que será escutado e levantará, para
isso aparecer em suas palavras que, por radical aquele que escuta, essas mesmas dificuldades, sem
que seja, aí mesmo se constrói o lugar de um que muitas vezes se dê conta, já que, como obser-
novo sujeito, com um corpo agora afetado pela vamos, o corpo e as questões que ele porta são
doença. Trata-se disso, ou do pior. Pois, se não é deixados sob o recalque.
recolhendo nesses pedaços de carne e nesse tate- Nesse sentido, estão em jogo para nós pro-
amento (“acabou”, “não acabou”, “não deixa ver”, fissionais duas posições: a primeira diz respeito
“não tem nada a ver”) que ela se faz sujeito, ela ao sentimento de pena que se pode ter daquele
não teria lugar, já que não há mais o lugar de que chega com seu padecimento, a segunda, se
antes, a que possa retornar. nos decidimos pela escuta do sofrimento de um
Se para haver constituição corporal é preciso outro, refere-se à compaixão com que o acolhe-
uma operação, então, algo que atinja radicalmen- mos. Enquanto a pena está referida ao ódio, in-
te a anatomia (como um tumor), terá necessari- trínseco à dualidade – ou eu ou ele –, a compai-
amente efeitos na posição subjetiva do ser falante xão diz respeito a uma posição terceira, para fa-
– sua relação com o Outro, suas modalidades lar da qual usamos a imagem de uma faca só
discursivas, suas condutas sexuais e suas rela- lâmina que corta dos dois lados. Esta é uma ima-
ções com os outros –, uma vez que isso atualiza gem forte que nos faz ver que se a castração (ou
a posição do sujeito frente à castração. o que estamos reconhecendo como os limites
presentes na vida de cada um) está colocada para
A faca só lâmina daquele que escuta ou o paciente, ela está também, e, talvez, antes de
submeter-se a escutar na compaixão tudo, para aquele que escuta13. Isso não é escuta-
do sem que haja repercussões em cada um que o
Encontramos na Clínica da Dor um lugar faz. Trata-se, portanto, de uma reflexão impres-
onde as questões do sofrimento psíquico podem cindível para o trabalho em instituição oncológi-
se expressar de forma contundente, instando os ca, na medida em que somos atingidos por essa
profissionais a enfrentá-las. Todavia, nem sem- dimensão de “faca só lâmina”13.
pre a dor aí implicada é facilmente reconhecida. Abordar um paciente, sem qualquer possibi-
Trata-se, para aquele que assiste o paciente, de lidade curativa de uma doença que só faz avan-
reconhecer em sua fala o padecimento e muitas çar, abordá-lo para que possa “se adaptar à sua
vezes a angústia que o acompanha. Faz-se neces- nova situação”, valorizando o que “ainda pode
sária a escuta do sofrimento psíquico, pois é ela fazer”, é recebê-lo a partir de uma posição de
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