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REVISÕES BIBLIOGRÁFICAS DA OBRA DE MICHEL FOUCAULT

crítica, problematização, polêmica

Entre a polêmica e a crítica

 DE VI, p.256-257
 DE VI, p.274
 DE V, Política, polêmica, problematização
 O que é a crítica?
 DE VI, É importante pensar? p.355

CRÍTICA

Crítica histórica.
A crítica histórica se desenvolve em um elemento de positividade, pois é a História
mesma que constitui a origem absoluta e o movimento dialético da história como
ciência. Se a ciência histórica progride por desmistificações sucessivas, isso se dá
também, e em [p.123] um mesmo movimento, por uma tomada de consciência pro-
gressiva de sua situação histórica como cultura, de seu valor como técnica, de suas
possibilidades de transformação real e de ação concreta sobre a História. (FOUCAULT,
1957b, VII, p. 122-123)

Crítica como linguagem segunda.


Daí a necessidade dessas linguagens segundas (o que, em suma, chamamos de crítica):
elas não funcionam mais agora como adições exteriores à literatura (julgamento,
mediações, conector que se pensava útil estabelecer entre uma obra remetida ao enigma
psicológico de sua criação e o ato consumidor de sua leitura); doravante, elas fazem
parte, no coração da literatura, do vazio que ela instaura em sua própria linguagem; elas
são o movimento necessário, mas necessariamente inacabado através do que a fala é
reconduzida à sua língua, e através do que a língua é estabelecida sobre a fala.
(FOUCAULT, 1964g, I, p.217)

Consciência crítica: inquietude reflexiva de algo (a literatura) consigo mesma.


Costuma-se dizer que a consciência crítica, a inquietude reflexiva a respeito do que é a
literatura se introduziu bem tarde, na rarefação e no esgotamento da obra, no momento
em que, por [p.141] razões puramente históricas, a literatura só foi capaz de se dar a si
mesma como objeto. Parece-me, no entanto, que a relação da literatura consigo mesma,
a questão a respeito do que ela é, fazia, desde o início, parte de sua triangulação de
nascimento. A literatura não é o fato de uma linguagem transformar-se em obra, nem o
fato de uma obra ser fabricada com linguagem; a literatura é um terceiro ponto,
diferente da linguagem e da obra, exterior à linha reta entre a obra e a linguagem, que,
por isso, desenha um espaço vazio, uma brancura essencial onde nasce a questão “O que
é a literatura?”, brancura essencial que, na verdade, é essa própria questão. Por isso, a
questão não se superpõe à literatura, não se acrescenta a ela por obra de uma
consciência crítica suplementar: ela é o próprio ser da literatura originariamente
despedaçado e fraturado.
Para dizer a verdade, não tenho o projeto de falar da obra, da literatura ou da linguagem.
Gostaria de situar minha fala – que infelizmente não é obra, nem literatura – na
distância, na separação, no triângulo, na dispersão de origem onde a obra, a literatura e a
linguagem se ofuscam mutuamente; isto é, se iluminam e cegam umas às outras para
que, talvez graças a isso, algo de seu ser venha sorrateiramente até nós. ([1964-K]
Linguagem e literatura. In: MACHADO, R., p.140-141)

Adensamento da crítica. Desaparecimento do homo criticus (séc. XIX). Atos


críticos/da crítica.
Poder-se-ia dizer que nunca a camada da linguagem crítica foi mais densa do que hoje.
Nunca se utilizou tanto a linguagem segunda, chamada crítica, e, reciprocamente, nunca
a linguagem absolutamente primeira, linguagem que só fala de si mesma e de seu
próprio ser, foi proporcionalmente tão tênue quanto hoje.
Ora, esse adensamento, essa multiplicação dos atos críticos acompanhou um fenômeno
quase inverso: o personagem do crítico, o homo criticus, inventado mais ou menos no
século XIX, entre La Harpe e Sainte-Beuve, está desaparecendo no momento mesmo
em que se multiplicam os atos de crítica. Isto é, ao proliferarem, se dispersarem, se
espalharem, os atos críticos vão se alojar não mais nos textos destinados à crítica, mas
nos romances, nos poemas, nas reflexões, eventualmente nas filosofias. É preciso
encontrar atualmente os verdadeiros atos da crítica nos poemas de Char, nos fragmentos
de Blanchot, nos textos de Ponge, muito mais do que em uma ou outra parcela de
linguagem destinada explicitamente, e pelo nome de seu autor, a ser ato crítico. Poder-
se-ia dizer que a crítica se torna uma função geral da linguagem em geral, mas sem
organismo, nem sujeito próprio. (FOUCAULT, 1964k, Linguagem e literatura. In:
MACHADO, R., p.155)

Crítica literária como, originalmente, instituição judicativa, hierarquizante,


mediadora.
crítica literária (...) uma instituição judicativa, hierarquizante, mediadora entre uma
linguagem criadora, um autor criador e um público de simples consumidores.
Estabelece-se atualmente uma relação bastante diferente entre a linguagem que se pode
chamar de primeira, que chamaremos mais simplesmente de literatura, e a linguagem
segunda, comumente chamada de crítica, que fala da literatura. (FOUCAULT, 1964k,
p.156)
 Mudança da crítica na atualidade: da leitura à escrita. [...] crítica
desempenha um papel totalmente novo, que não é mais o de antes, o papel
intermediário entre a escrita e a leitura. Na época de Sainte-Beuve, até mais ou
menos hoje, o que era afinal fazer crítica senão fazer uma espécie de leitura
privilegiada, primeira, uma leitura mais matinal do que todas as outras, que
permitia tornar a escrita – necessariamente um pouco opaca, obscura ou
esotérica do autor – acessível a esses leitores de segunda que todos nós
seriamos, leitores que têm necessidade de passar pela crítica para compreender o
que lêem? Em outras palavras, a crítica era a forma privilegiada, absoluta e
primeira da leitura. Ora, parece-me que atualmente o que há de importante na
crítica é que ela está passando para o lado da escrita, e isso de dois modos. Em
primeiro lugar, porque a crítica cada vez mais se interessa não pelo momento
psicológico da criação da obra, mas pelo que é a escrita, pela própria densidade
da escrita dos escritores, com suas formas, suas configurações. Em segundo
lugar, porque a crítica deixa de querer ser uma leitura melhor, [p.157] mais
matinal, ou mais bem armada, e está se tornando, ela própria, um ato de escrita.
Uma escrita sem dúvida segunda em relação a uma outra, mas, de qualquer
modo, que forma com todas as outras um entrelaçado, um enredo, uma rede de
pontos e linhas. Pontos e linhas da escrita que, em geral, se cruzam, se repetem,
se superpõem, se defasam para finalmente formar, em uma neutralidade total, o
que se poderia chamar o conjunto total da crítica e da literatura, isto é, o atual
hieróglifo flutuante da escrita em geral. (FOUCAULT, 1964k, p.156-157)
o Recusa da noção de metalinguagem como método da crítica.
 Crítica como exegêse e retórica. [...] crítica, de modo bem ingênuo, não como
uma metalinguagem, mas como a repetição do que há de repetível na linguagem.
Desse modo, a crítica literária, provavelmente, se inscreveria em uma grande
tradição exegética que começou, ao menos no que diz respeito ao mundo grego,
com os primeiros gramáticos que comentaram Homero. Será que não se poderia
dizer, numa primeira aproximação, que a crítica é pura e simplesmente o
discurso dos duplos, isto é a análise das distâncias e das diferenças nas quais se
repartem as identidades da linguagem? (FOUCAULT, 1964k, p.160-161)
o A crítica entendida nesse sentido, como ciência das repetições formais da
linguagem, existiu durante muito tempo e tem um nome: a retórica. A
segunda forma de ciência dos duplos seria a análise das identidades, das
modificações ou mutações dos sentidos através da diversidade das
línguas: como se pode repetir um sentido com palavras diferentes? Foi
aproximadamente isso o que fez a crítica no sentido clássico do termo, de
Sainte-Beuve até mais ou menos hoje, quando procurava encontrar a
identidade de uma significação psicológica ou histórica, em suma de uma
temática qualquer, através da pluralidade de uma obra. É isso que se
chama tradicionalmente de crítica.
 Terceira forma de crítica: decifração da auto-referência. Mas será que não
poderia haver, se é que já não existe, espaço para uma terceira forma de crítica
que seria a decifração da auto-referência ou autoimplicação da obra na estrutura
densa de repetição de que falei a respeito de Homero? Será que não haveria
espaço para a análise da curva pela qual a obra sempre se designa no interior de
si mesma e se apresenta como repetição da linguagem pela linguagem? Parece-
me que é a análise dessa implicação da obra em si mesma, a análise dos signos
pelos quais a obra não cessa de se designar no interior de si mesma, que dá
sentido aos empreendimentos diversos e polimorfos chamados, hoje, de análise
literária.
o Crítica como análise literária na forma de simulacro (da literatura,
da filosofia). Gostaria de lhes mostrar como esta noção de análise
literária, utilizada e aplicada por pessoas diferentes, como Barthes,
Starobinski etc, pode fundar uma reflexão, isto é principiar e desdobrar
uma reflexão quase filosófica. Pois não me vanglorio de fazer uma
filosofia verdadeira do mesmo modo que, ontem, não permitia aos
literatos fazer uma verdadeira literatura; do mesmo modo como ontem a
literatura estava no simulacro da literatura, eu estaria, hoje, no simulacro
da filosofia. Em suma, gostaria de saber se não seria na direção de um
simulacro de filosofia que essas análises literárias poderiam levar.
(p.162-163)

Operações críticas (Resposta a uma questão, p.12-15)


1) Estabelecer limites. [...]
2) Apagar as oposições pouco refletidas. [...]
3) Levantar a denegação que teve por objeto o discurso em sua existência própria (e é,
para mim, a mais importante das operações críticas que realizei). [...]
4) Enfim, última tarefa crítica (que resume e envolve todas as outras): libertar de seu
status incerto esse conjunto de disciplinas que chamamos de história das ideias, história
das ciências, história do pensamento, história dos conhecimentos, dos conceitos ou da
consciência. Essa incerteza manifesta-se de várias maneiras: [...]
 Não escrevo, então, uma história do espírito, segundo a sucessão de suas formas
ou a espessura de suas significações sedimentadas. Não interrogo os discursos
sobre o que, silenciosamente, querem dizer, mas sobre o fato e [p.11] as
condições de sua aparição manifesta; não sobre os conteúdos que podem
encobrir, mas sobre as transformações que efetuaram; não sobre o sentido que
neles se mantêm como uma origem perpétua, mas sobre o campo onde
coexistem, permanecem e apagam-se. Trata-se de uma análise dos discursos na
dimensão de sua exterioridade. Daí três consequências:
― tratar o discurso passado não como um tema para um comentário, mas como
um monumento* a descrever em sua disposição própria;
― procurar no discurso não, como nos métodos estruturais, suas leis de
construção, mas suas condições de existência;**
― relacionar o discurso não ao pensamento, ao espírito ou ao sujeito que
possamos fazer surgir, mas ao campo prático no qual se desenrola.

Afastamento em relação à prática e ao método da crítica literária moderna. Recusa


da noção de obra, valorização do dito/escrito.
Inicialmente, a noção de obra. É dito, de fato (e é também uma tese bastante familiar),
que o próprio da crítica não é destacar as relações da obra com o autor, nem querer
reconstituir através dos textos um pensamento ou uma experiência; ela deve antes
analisar a obra em sua estrutura, em sua arquitetura, em sua forma intrínseca e no jogo
de suas relações internas. Ora, é preciso imediatamente colocar um problema: “O que é
uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome obra? De
quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por aquele que é
um autor?” Vemos as dificuldades surgirem. Se um indivíduo não fosse um autor, será
que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele deixou em seus papéis, o
que se pode relatar de suas exposições, poderia ser chamado de “obra”? Enquanto Sade
não era um autor, o que eram então esses papéis? Esses rolos de papel sobre os quais,
sem parar, durante seus dias de prisão, ele desencadeava seus fantasmas. (FOUCAULT,
1969d, O que é um autor?, DE III, p.269)
 Tema do desaparecimento do autor (1971, Entrevista com Michel Foucault,
com S.P. Rouanet e Merquior). Toda a crítica de Blanchot consiste no fundo
em mostrar como cada autor se coloca no interior de sua própria obra, e isto de
uma forma tão radical que a obra tem que destruí-lo. É nela que o autor tem seu
refúgio e seu lugar; é nela que ele habita; é ela que constitui sua pátria, e sem ela
não teria, literalmente, existência. Mas essa existência que o artista tem em sua
obra é tal que ela o leva, fatalmente, a perecer.

Pensamento (acontecimento). [Theatrum Philosoficum, DE II]


 Diferença com a ciência (conhecer) e crítica (julgar). A filosofia tentou fazer
ambas as coisas, desejan-[p.240]do-se ciência, produzindo-se como crítica.
Pensar seria, ao contrário, fazer agir o fantasma na mímica que uma vez o
produziu; seria tornar o acontecimento infinito, para que ele se repita como o
singular universal. Pensar de forma absoluta seria, portanto, pensar o
acontecimento e o fantasma. (...) (FOUCAULT, 1970e, p.239-240)
 Pensamento como irregularidade e dissolução do eu. É preciso pensar o
pensamento como intensa irregularidade. Dissolução do eu. (FOUCAULT,
1970e, p.244)
 PENSAMENTO E PROBLEMA (IDÉIA). Liberação do pensamento do
modelo escolar. Para liberar a diferença é preciso um pensamento sem
contradição, sem dialética, sem negação: um pensamento que diga sim à
divergência; um pensamento afirmativo cujo instrumento é a disjunção; um
pensamento do múltiplo – da multiplicidade dispersa e nômade que não é
limitada nem confinada pelas imposições do mesmo; um pensamento que não
obedece ao modelo escolar (que tru-[p.246]que a resposta pronta), mas que se
dedica a insolúveis problemas: ou seja, a uma multiplicidade de pontos notáveis
que se desloca à medida que se distinguem as suas condições e que insiste,
subsiste em um jogo de repetições. Longe de ser a imagem ainda incompleta e
embaralhada de uma Idéia que, lá de cima, eterna, deteria a resposta, o problema
é a própria idéia, ou melhor, a Idéia não tem outro modo de ser senão o
problemático: pluralidade distinta cuja obscuridade sempre insiste de antemão, e
na qual a questão não cessa de se deslocar. Qual é a resposta para a questão? O
problema. Como resolver o problema? Deslocando a questão. O problema
escapa à lógica do terceiro excluído, já que ele é uma multiplicidade dispersa:
ele não se resolverá pela clareza de distinção da idéia cartesiana, já que ele é
uma idéia distinta-obscura; ele desobedece seriamente ao negativo hegeliano,
pois é uma afirmação múltipla; ele não está submetido à contradição ser-não-ser,
ele é ser. É preciso antes pensar problematicamente do que interrogar e
responder dialeticamente. (FOUCAULT, 1970e, p.245-246)

Sua análise do tipo crítica não é um novo método. [1971-D] Conversação com
Michel Foucault – [IV, p. 13-25]
– Para começar, eu não estou nada certo de ter inventado um novo método, como o
senhor o diz tão amavelmente; o que faço não é diferente do que se faz hoje, em muitos
outros países: nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França, na Alemanha. Não tenho
pretensão à originalidade. Entretanto, é verdade que tratei, prioritariamente, fenômenos
do passado: o sistema de exclusão e a prisão dos loucos na civilização européia do
século XVI ao século XIX, a constituição da ciência e da prática médicas no início do
século XIX, a organização das ciências humanas nos séculos XVIII e XIX. Mas, se me
interessei – de fato, me interessei profundamente – por esses fenômenos foi porque vi
neles maneiras de pensar e de se comportar, que são ainda as nossas.
Tento pôr em evidência, fundamentando-me em sua constituição e sua formação
histórica, sistemas que ainda são os nossos nos dias de hoje, e no interior dos quais nos
encontramos apanhados. Trata-se, no fundo, de apresentar uma crítica de nosso tempo,
fundamentada em análises retrospectivas. (FOUCAULT, 1971d, p.13)
 Revolução do modelo de transmissão do saber [problema educacional da
década de 1970] – os estudantes como seus próprios arquivistas [fazem a
relação com o saber/arquivo sem mediação – a instituição como meio de se
promover a autoeducação]. – No que concerne ao que se passa, um pouco por
toda parte, no ensino superior, o senhor acha que somos todos, e o senhor
também, prisioneiros de um certo tipo de sistema? – A maneira segundo a qual
as sociedades transmitem o saber é determinada por um sistema complexo: é um
sistema que ainda não foi plenamente analisado, mas que, parece-me, está em
vias de explodir – aliás, mais sob a influência de um movimento revolucionário
do que sob o efeito de uma simples crítica teórica ou especulativa. Nesse
sentido, há uma diferença notável entre os loucos e os doentes, de um lado, e os
estudantes, do outro; nossa sociedade torna difícil aos loucos, que estão
internados, ou aos doentes, que estão hospitalizados, realizarem sua própria
revolução; desse modo, é do exterior, por meio de uma técnica de demolição
crítica, que precisamos contestar esses sistemas de exclusão dos loucos e dos
doentes. Quanto ao sistema universitário, ele pode ser contestado pelos próprios
estudantes. Nesse momento, as críticas que emanam do exterior, dos teóricos,
dos historiadores ou dos arquivistas não bastam mais. E os estudantes tornam-se
seus próprios arquivistas. (FOUCAULT, 1971d, p.14)
 não é preciso sair da instituição para estabelecer uma relação de
ousadia com o saber e de liberdade com o ensino e a pesquisa,
basta que sua própria lógica interna seja modificada.
 (De Vincennes ao Collège de France).

A monstruosidade da crítica [objeção às críticas polêmicas]. Borges e a crítica


ficção. [1971-H] As monstruosidades da crítica – [III, p. 316-325]
 Existem críticas às quais se responde e aquelas às quais se replica. Injustamente,
talvez. Por que não dar ouvidos de forma igualmente atenta à incompreensão, à
banalidade, à ignorância ou à má-fé? Por que rejeitá-las como a tantos incidentes
que vêm manchar a honra da família? (...)(FOUCAULT, 1971h, p.316)
 No entanto, seria engano meu reclamar. O Sr. Steiner inventa, para meu maior
benefício, obras que jamais escrevi. (...)(FOUCAULT, 1971h, p.325)
 Uma evidência se impõe: é preciso combater vigorosamente a idéia de que o Sr.
Steiner pudesse ser um homem desprovido de talento. Não somente ele
reinventa aquilo que lê no livro, não somente inventa elementos que ali não
figuram, mas inventa também aquilo a que faz objeção, ele inventa as obras com
as quais ele compara o livro, e inventa até as próprias obras do autor.
 Uma lástima, para o Sr. Steiner, que Borges, homem de gênio, já tenha
inventado a crítica-ficção. (FOUCAULT, 1971h, p.325)

Postulados de uma filosofia autorreferente, sem relação com a exterioridade cuja


pretensão é uma crítica universal do saber. [1972-C] Resposta a Derrida – [I, p.
269-284]
Derrida pensa poder retomar o sentido de meu livro ou de seu “projeto” nas três
páginas, nas três únicas páginas que são dedicadas à análise de um texto reconhecido
pela tradição filosófica. Com sua admirável honestidade, ele próprio reconhece o
paradoxo de sua empreitada. Mas, sem dúvida, ele pensa ultrapassá-lo porque admite,
na realidade, três postulados.
1) Em princípio, ele supõe que todo conhecimento, e mais amplamente todo discurso
racional, mantém com a filosofia uma relação fundamental, e que é nessa relação que
essa racionalidade ou esse saber se fundamentam. (...)
2) Em relação a esta filosofia que detém eminentemente a “lei” de todo discurso,
Derrida supõe que se cometem “falhas” de uma natureza singular: não tanto falhas de
lógica ou de raciocínio, acarretando erros materialmente isoláveis, mas, antes, falhas
que são como um misto do pecado cristão e do lapso freudiano. (...)
3) O terceiro postulado de Derrida é que a filosofia está além e aquém de todo
acontecimento. Não apenas nada pode acontecer-lhe, mas tudo o que pode acontecer
encontra-se já antecipado ou envolto por ela. (...) O excesso da origem, que só a
filosofia (e nenhuma outra forma de discurso e de prática) pode repetir para além de
todo esquecimento, retira toda a pertinência do acontecimento. De modo que, para
Derrida, é inútil discutir a análise que eu proponho desta série de acontecimentos que
constituíram durante dois séculos a história da loucura; e, para dizer a verdade, meu
livro é bastante ingênuo, segundo ele, por querer fazer esta história a partir desses
acontecimentos irrisórios que são o internamento de algumas dezenas de milhares de
pessoas, ou a organização de uma polícia de Estado extrajudicial. Teria bastado, mais do
que amplamente, repetir uma vez mais a repetição da filosofia por Descartes, repetindo,
ele próprio, o excesso platônico. Para Derrida, o que se passou no século XVII não
poderia ser senão “amostra” (ou seja, repetição do idêntico), ou “modelo” (quer dizer,
excesso inesgotável da origem): ele não conhece a categoria do acontecimento singular.
Portanto, para ele é inútil – e, sem dúvida, impossível – ler o que ocupa a parte
essencial, senão a totalidade, de meu livro: a análise de um acontecimento.
Esses três postulados são consideráveis e bastante respeitáveis: eles formam a armadura
do ensino da filosofia na França. E em nome deles que a filosofia se apresenta como
[p.271] crítica universal de todo o saber (primeiro postulado), sem análise real do
conteúdo e das formas desse saber; como injunção moral que só se desperta com sua
própria luz (segundo postulado); como perpétua reduplicação dela própria (terceiro
postulado) em um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a nenhuma
exterioridade. (FOUCAULT, 1972c, p.269-271)

Relação crítica e política. [1974-A] Da natureza humana: justiça contra poder


(conversa com Chomsky) – [IV, p. 87-132]
 Interesse pela política. M. Foucault: Nunca me ocupei com a filosofia. Mas
esse não é o problema. Sua questão é: por que eu me interesso tanto pela Commented [U1]: Nunca se ocupou da filosofia. Principal
política? Para lhe responder muito simplesmente, eu diria: por que eu não problema sempre foi a política/poder.
deveria estar interessado? Que cegueira, que surdez, que densidade de ideologia
teriam o poder de me impedir de me interessar pelo assunto, sem dúvida o mais
crucial de nossa existência, quer dizer, a sociedade na qual vivemos, as relações
econômicas nas quais ela funciona, e o sistema que define as formas regulares,
as permissões e as interdições que regem regularmente nossa conduta? A
essência de nossa vida é feita, afinal, do funcionamento político da sociedade na
qual nos encontramos. (FOUCAULT, 1974a, p.111)
o Recusa da ideia de uma democracia na atualidade. M. Foucault. Não,
não creio absolutamente que nossa sociedade seja democrática. Se
entendemos por democracia o exercício efetivo do poder por uma
população que não é nem dividida nem ordenada hierarquicamente em
classes, é perfeitamnete claro que estamos muito afastados dela. É
igualmente claro que vivemos sob um regime de ditadura de classe, de
poder de classe que se impõe pela violência, mesmo quando os
instrumentos dessa violência são institucionais e constitucionais. E a um
grau em que não se cogita de democracia para nós. (p.113)
 Verdadeira tarefa política é a de criticar [combater] o jogo das instituições
aparentemente neutras e independentes [por exemplo, as instituições de
ensino e pesquisa]. Sabe-se disso no que diz respeito à família, à universidade
e, de um modo geral, a todo o sistema escolar que, aparentemente, é feito para
distribuir o saber, é feito para manter no poder uma certa classe social e excluir
dos instrumentos do poder qualquer outra classe social. As instituições de saber,
de previdência e de cuidados, tais como a medicina, ajudam também a sustentar
o poder político. Isso é evidente a ponto de ser escandaloso, em certos casos
ligados à psiquiatria. Parece-me que, em uma sociedade como a nossa, a
verdadeira tarefa política é a de criticar o jogo das instituições aparentemente
neutras e independentes; criticá-las e atacá-las de tal maneira que a violência
política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa
lutar contra elas. Essa crítica e esse combate me parecem essenciais por
diferentes razões: em primeiro lugar, porque o poder político vai muito mais
profundo do que se suspeita; ele tem centros e pontos de apoio invisíveis, não
muito conhecidos; sua verda-[p.115]deira resistência, sua verdadeira solidez
encontra-se talvez ali onde não a esperamos. Talvez não baste dizer que, por trás
dos governos, por trás do aparelho de Estado, há a classe dominante; é preciso
situar o ponto de atividade, os lugares e as formas sob as quais se exerce essa
dominação. E porque essa dominação não é simplesmente a expressão, em
termos políticos, da exploração econômica, ela é seu instrumento, e em ampla
medida a condição que a torna possível; a supressão de uma se realiza pelo
discernimento exaustivo da outra. Se não conseguimos reconhecer esses pontos
de apoio do poder de classe, arriscamo-nos a lhe permitir continuar a existir, e a
ver se reconstituir esse poder de classe depois de um processo revolucionário
aparente. (FOUCAULT, 1974a, p.114-115)

Tarefa da crítica/trabalho crítico: desvelamento dos poderes (inclusive e


principalmente, do poder do humanismo e do pensamento revolucionário) (VII,
p.343-356). – [Michel Foucault. O filósofo responde. Jornal da Tarde, 01/11/1975,
p.12-13.]
 Introdução da reportgagem: Michel Foucault é uma vedete. Seu nome
freqüenta os jornais e revistas, nos últimos anos, com uma insistência pouco
comum para um filósofo, principalmente quando sua obra não é exatamente
fácil para os que não são técnicos no assunto. Alguns de seus livros tornaram-se
best-sellers mundiais, dentro e fora das universidades. Algumas pessoas
chegaram até a lê-los. (Reinaldo Lobo).
 Crítica como desvelamento: não do sentido, mas dos efeitos de um discurso.
- Quais são as tarefas da crítica hoje?
- O que você entende por essa palavra? Só um kantiano pode atribuir um sentido
geral à palavra “crítica”.
- Ontem, você disse que seu pensamento é fundamentalmente crítico. O que
significa um trabalho crítico?
- Diria: é uma tentativa de desvelar o máximo possível, ou seja, o mais profunda
e geralmente possível, todos os efeitos de dogmatismo ligados ao saber e todos
os efeitos de saber ligados ao dogmatismo. (p.354)
 Fazer a crítica como publicidade sem limites da voz dos outros
[Ensinamento de Foucault segundo Deleuze: não falar em nome dos outros;
problema da relação política e histórica com o outro; logo, problema da
relação tanto com a população, quanto com o arquivo]. Não quero fazer uma
crítica que impeça os outros de falar, exercer em meu nome o terrorismo da
pureza e da verdade. Não quero também falar em nome dos outros e pretender
dizer melhor o que eles disseram. Minha crítica tem por objetivo permitir aos
outros falar, sem pôr limites ao seu direito de falar. Desde a época da
colonização, existe um discurso imperialista que falou com grande
meticulosidade dos outros, transformando-os em exóticos, pessoas incapazes de
discorrer sobre si mesmas. À questão do universalismo revolucionário se pode
acrescentar esse problema. Para os europeus, e talvez mais ainda para os
franceses, a revolução é um processo universal. Os revolucionários franceses do
final do século XVIII pensavam fazer a revolução no mundo inteiro, e até hoje
eles não se livraram desse mito. O internacionalismo proletário relançou esse
registro em um outro registro. Ora, na segunda metade do século XX não houve
processo revolucionário senão no âmbito do nacionalismo. Disso decorre o mal-
estar de alguns teóricos e militantes da revolução universal. Eles são obrigados a
adotar o imperialismo do discurso universal, ou então a adotar certo
exotismo. (p.354-355)
 Fazer a crítica dos poderes humanistas: da ideia de um homem geral, do
homem normalizado e disciplinado. Se essas lutas (pelas minorias) forem
levadas em nome de uma essência determinada do homem, tal como ela foi
constituída no pensamento do século XVII, diria que essas lutas estão perdidas.
Pois elas serão conduzidas em nome do homem abstrato, normal, com boa
saúde, o precipitado de uma série de poderes. Se quisermos fazer a crítica desses
poderes, não devemos efetuá-la em nome de uma ideia do homem construída a
partir deles. Quando em um marxismo vulgar se fala do homem total, do homem
reconciliado consigo mesmo, do que se trata? Do homem normal, equilibrado.
Como se formou a imagem desse homem? A partir de um saber e de um poder
psiquiátricos, médicos, de um poder “normalizador”. Fazer uma crítica política
em nome do humanismo significa reintroduzir na arma do combate a coisa
contra a qual combatemos. (p.356)

1978
Carta à “Unità”.
DE VI

Nostalgia de uma discussão.


Penso com nostalgia em uma discussão cuja função seria menos de reduzir as ideias aos
seus autores, os autores aos combatentes e a luta a uma vitória do que multiplicar as
hipóteses, os campos, as questões, os interlocutores, clareando as diferenças que os
separam e, então, as dimensões da pesquisa. (p.256-257)

O hoje.
Basta estar só para pensar no lugar dos outros; basta ser dois para pensar um contra o
outro. Quanto bastaria ser – sem que haja, automaticamente, semelhança – para começar
a pensar, ao menos, no que se está produzindo hoje e que já nos escapa das mãos?
(p.257)

1979
Michel Foucault e o Irã
DE VI

Crítica: atenção, presença, generosidade.


Blanchot ensina que a crítica começa pela atenção, pela presença e pela generosidade.
(p.274)
1981
É importante pensar?
DE VI

A crítica (dos intelectuais), seus efeitos no real (a possibilidade de problematizar


um tema/prática que não era problematizado há alguns anos) e sua temporalidade
(resposta sobre sua não efetividade). CRÍTICA E PENSAMENTO; CRÍTICA E
TRANSFORMAÇÃO [de si mesmo e do real; teoria/prática]; CRÍTICA E LUTA.
 Relação crítica e transformação 1: problematização. Será que você pensa que há
20 anos colocávamos os problemas da relação entre doença mental e a normalidade
psicológica, o problema da prisão, o problema do poder médico, o problema da
relação entre os sexos etc., como colocamos hoje? (p.356)
o Pensamento e gestão das práticas. Por outro lado, não há reformas em si
mesmas. As reformas não se produzem no ar, independentemente daqueles
que as fazem. Não podemos deixar de ter em conta aqueles que vão gerir.
(p.356)
o Não há oposição ideal VS. real. Sobretudo, não creio que possamos opor
crítica e transformação, a crítica “ideal” e a transformação “real”. (p.356)
 Crítica: interrogar os fundamentos das práticas que aceitamos no presente [≠
desmistificar, desiludir, revelar o real]. Uma crítica não consiste em dizer que as
coisas não são bem como são. Ela consiste em ver em que tipos de evidências, de
familiaridades, de modos de pensamento adquiridos e não refletidos repousam as
práticas que aceitamos. (p.356)
 Dessacralizar o social [as práticas político-institucionais], atentar para o
pensamento [as conexões entre as coisas; pesquisa sobre]. É preciso se liberar da
sacralização do social como a única instância do real e parar de considerar como vã
essa coisa essencial na vida humana e nos relacionamentos humanos, quero dizer, o
pensamento.
o Pensamento: aquilo que anima comportamentos, instituições e os
hábitos mais corriqueiros. O pensamento, isso existe além e aquém dos
sistemas e dos edifícios do discurso. É alguma coisa que às vezes se esconde,
mas sempre anima os comportamentos cotidianos. Há sempre um pouco de
pensamento, mesmo nas instituições mais bobas, há sempre pensamento,
mesmo nos hábitos mais mudos. (p.356)
o Crítica: tornar difícil os gestos simples/fáceis. A crítica consiste em
expulsar esse pensamento e tentar muda-lo: mostrar que as coisas não são
tão evidentes como cremos, fazer de sorte que o que aceitamos como indo de
nós não tenha mais de nós. Fazer a crítica é tornar difícil os gestos mais
simples. (p.356)
 Relação crítica e transformação 2: radicalidade. Nessas condições, a crítica (e a
crítica radical) é absolutamente indispensável para toda transformação, pois uma
transformação que ficasse no mesmo modo de pensamento, uma transformação que
só fosse uma certa maneira de melhor ajustar o mesmo pensamento à realidade das
coisas não passaria de uma transformação superficial. (p.356-357)
o Crítica do pensamento e urgência da transformação. Em compensação, a
partir do momento em que começamos a não mais poder pensar nas coisas
como nelas pensamos, a transformação torna-se, ao mesmo tempo, muito
urgente, muito difícil e absolutamente possível. (p.357)
 Relação crítica e transformação 3: simultaneidade. Não há um tempo para a
crítica e um tempo para a transformação, não há aqueles que têm de fazer crítica e
aqueles que têm de transformar, aqueles que estão fechados em uma radicalidade
inacessível e aqueles que são obrigados a fazer as concessões necessárias ao real. De
fato, creio que o trabalho de transformação profunda só pode ser feito no espaço
aberto e sempre agitado de uma crítica permanente. (p.357)
 O papel do intelectual [do trabalho do pensamento sobre si mesmo] na
transformação. (p.357)
o Crítica e luta. Uma crítica é sempre o resultado de um processo no qual há
conflito, afrontamento, luta, resistência...
o O intelectual:
 Não deve ser o programador da transformação. Qual é a reforma
que vou poder fazer? Isso não é para o intelectual, creio, um objetivo
a perseguir.
 Deve perspectivar o alcance da problematização [liberação do
pensamento] para tornar urgente uma transformação: criar
vontade, dificultar para entranhar. Seu papel, visto que,
precisamente, trabalha na ordem do pensamento é o de ver até onde a
liberação do pensamento pode chegar a tornar essas transformações
bastante urgentes, de modo que se tenha vontade de fazê-las, e
bastante difíceis de fazer, a fim de que se inscrevam profundamente
no real.
 Dar visibilidade aos conflitos, tornar essencial uma nova ótica
sobre conflitos [relação de forças]. Visibilidade, transformação,
reforma provisória. Trata-se de tornar os conflitos mais visíveis, de
torna-los mais essenciais do que os simples confrontos de interesses
ou os simples bloqueios institucionais. Desses conflitos, desses
afrontamentos deve sair uma nova relação de forças cujo perfil
provisório será uma reforma.
 Trabalho do pensamento sobre si mesmo e transformação. O
problema da fagocitose da reforma pela mesmice. Se não houve,
na base, o trabalho do pensamento sobre si mesmo e se efetivamente
os modos de pensamento, quer dizer, os modos de ação, não foram
modificados, qualquer que seja o projeto de reforma, sabemos que
vai ser fagocitado, digerido pelos modos de comportamentos e de
instituições que serão sempre os mesmos.

Sobre sua participação em movimentos político-sociais [teoria-prática;


engajamento, compromisso]. Pesquisa como fragmentos de autobiografia [cf. O
intelectual e os poderes].
Cada vez que tentei fazer um trabalho teórico foi a partir de elementos de minha própria
existência: sempre em relação [p.357] com processos que via desenrolarem-se à volta de
mim. É bem porque pensava em reconhecer nas coisas que via, nas instituições nas
quais tinha interesse, nos meus relacionamentos com os outros, ranhuras, abalos surdos,
disfuncionamentos com que empreendia um trabalho, alguns fragmentos de
autobiografia. (p.357-358)
 A permanência de um trabalho de pesquisa que continua a mudar o
pesquisador.
Não sou um ativista recolhido e que, hoje, gostaria de retomar o serviço. Meu
modo de trabalho não mudou muito; mas o que dele espero é que continue a
mudar-me ainda. (p. 358)

Otimismo de Foucault: a possibilidade de transformação/mudança das coisas. O


trabalho sobre a dinâmica [transitoriedade] da verdade [inacessível].
Há um otimismo que consiste em dizer: de toda maneira, isso não poderia ser melhor.
Meu otimismo consistira, antes, em dizer: tantas coisas podem ser mudadas, frágeis
como são, ligadas mais a contingências do que a necessidades, mais ao arbitrário do que
à evidência, mais a contingências históricas complexas, mas passageiras, do que a
constantes antropológicas inevitáveis... Você sabe, dizer: somos muito mais novos do
que acreditamos não é uma maneira de diminuir o peso de nossa história sobre nossos
ombros. É, antes, colocar à disposição do trabalho que podemos fazer sobre nós
mesmos a parte maior possível do que nos é apresentado como inacessível. (p.358)

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