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AS ORDENAÇÕES AFONSINAS

Contextualização histórica: Seguindo a periodização proposta por Almeida Costa, o 2º período


da História do Direito Português, que se segue ao período da individualização do direito
português (1140-1248), é o período do Direito português de inspiração romana-canónica, o qual
tem início em 1248 e fim em meados do século XVIII. AC promove uma subdivisão neste período:
a época da receção do Direito romano renascido e do direito canónico renovado (1248-1446/47)
e a época das Ordenações (1446/47-1769/1772).

O pensamento jurídico medieval encontrava o seu fundamento do Direito Natural, conforme


teorizado e desenvolvido por S. Tomás de Aquino. Mas, regressando à perspetiva das fontes do
Direito, observamos que, aquando da transição da Alta Idade Média (século V a X) para a Baixa
Idade Média (séculos XI a XV) surge, no Ocidente Europeu, um novo interesse teórico e prático
pelas coletâneas do Corpus Iuris Civilis, o que levou a um renascimento do Direito Romano. (não
devemos esquecer a renovação do direito canónico) Não se pode, contudo, falar em
“renascimento” do Direito Romano, por dois motivos: por um lado, o DR vulgar sempre esteve
presente ao longo do tempo; por outro lado, o próprio direito romano justinianeu não deixou
de ser conhecido, estudado e aplicado até esta transição temporal. Simplesmente e sobretudo
a partir do século XI, os juristas voltaram a estudá-lo e a utilizá-lo com uma profundidade não
verificada nos séculos anteriores. A subsistência do DR vulgar é que possibilitou este
renascimento, ao permitir o reencontro com as estruturas do DR clássico.

Torna-se necessário, de facto, ter em conta um quadro complexo de causas ou conexões que
levaram a este cenário de renascimento: Desde logo, a restauração do Império do Ocidente, o
chamado Sacro Império Romano-Germânico, que aí encontrava o seu sistema jurídico. Sob a
égide da Igreja, operou-se, não só essa renovação política, mas também a aplicação do direito
das coletâneas justinianeias às matérias temporais. Com a morte de Carlos Magno, as relações
entre o Papado e o poder temporal agudizaram-se, originando uma querela que se prolongaria
no tempo, relacionada com a relação e a (in)dependência entre o poder espiritual e o poder
político, procurando os defensores do poder imperial soluções que robustecessem a sua posição
no DR justinianeu, quer face à Igreja, quer face aos reinos medievais. Acrescem ainda o
universalismo da fé cristã, o surgimento das Universidades e progresso cultural, o aumento da
população, o êxodo rural ou o surgimento de uma economia citadina, assente na moeda. Desde
o século XI fez-se sentir este intenso interesse, redescoberto, pelo estudo do direito justinianeu.
Na literatura jurídica do século XI, denotava-se, de igual forma, o reflexo do Corpus Iuris Civilis,
nomeadamente obras como Exceptiones legum romanorum Petri (obra-síntese de todas as que
a antecederam) ou Brachilogus Iuris Civilis (uma exposição de todo o direito segundo o modelo
das Institutiones justinianeias). Na península ibérica a receção do DR renascido atrasou-se
relativamente à generalidade da Europa. Só ao longo do século XIII o movimento romanístico
tendeu a difundir-se em todos eles. A história dos nossos primeiros reis mostra que eles tiveram
colaboradores a quem não eram estranhas as coletâneas justinianeias, acompanhadas dos
estudos correspondentes (Mestre Alberto, Mestre Julião, Mestre Vicente). Contudo, para que
se possa falar em efetiva receção do DR renascido, torna-se necessária a prova de que este tenha
entrado na prática dos tribunais e do tabelionato e isso só se sucedeu nos começos do século
XIII. O verdadeiro renascimento do direito romano, isto é, o estudo sistemático e a divulgação,
em largas dimensões, da obra jurídica justinianeia, inicia-se apenas no século XII, com a Escola
de Bolonha ou dos Glosadores, que teve grande expressão na Europa graças à permanência em
Bolonha de escolares estrangeiros e à fundação de Universidades nos vários Estados europeus.
A escola dos glosadores viveu o seu período áureo durante o século XII, datando do início do
século XIII o princípio do seu declínio. A última grande glosa, a Magna Glosa foi aplicada nos
Tribunais dos países do ocidente europeu ao lado das disposições do CIC. Em Portugal, e por
força das ordenações, foi fonte de direito subsidiário. A magna glosa de Acúrsio marca o fim de
um ciclo e o início de um novo período de transição na metodologia da ciência jurídica. Surge
então o “tractarus”, uma exposição concentrada sobre um instituto jurídico e exaustiva, já
separada do texto legal. Assinala-se ainda alguma evolução em determinados ramos do Direito,
em direção à sua autonomia científica, como é o caso do Direito processual e das normas
notariais.

Fatores de penetração do DR renascido na Península Ibérica e em Portugal:


1) Mobilidade de estudantes peninsulares e de jurisconsultos estrangeiros: Os juristas
que iam estudar para o estrangeiros regressavam geralmente a Portugal, onde ocupavam postos
proeminentes na Igreja, política ou ensino, por eles passando essencialmente a difusão do DR e
do DC;
2) Difusão do CIC e da Glosa: os juristas regressavam do estrangeiro, trazendo consigo
vários textos que se revelaram importantes para a difusão do DR;
3) Ensino do DR nas Universidades: Em Portugal, a 1ª universidade foi criada no reinado
de D. Dinis, oficialmente no dia 9/8/1290, transitando entre Lisboa e Coimbra, fixando-se por
fim nesta última cidade, em 1537. Para além disso, prosseguiu a afluência de estudantes às
universidades estrangeiras, mais renomeadas;
4) Legislação, prática e produção de obras jurídicas de inspiração romanística: no que às
obras jurídicas diz respeito, elas foram escritas inicialmente em castelhano, com uma forte
influência do DR renascido e do DC renovado. Algumas chegaram a servir como fontes
subsidiárias, tais como “Flores de Derecho” e “Nueve tiempos de los pleitos”, de Jácome Ruiz,
que eram compêndios de Direito Processual Civil de inspiração romano-canónica. No âmbito da
política legislativa do rei Afonso X de Leão e Castela destacam-se o Fuero Real, compilação de
normas jurídicas municipais, versando sobre D. Privado e D. Penal e as Siete Partidas, que em
Portugal nunca chegou a vigorar como fonte subsidiária de direito, uma exposição jurídica de
carácter enciclopédico, de inspiração romano-canónica, mas da qual consta uma síntese de
princípios filosóficos, teológicos, religiosos e morais, de origens variadas. Foi uma fonte
relevante na formação dos juristas e chegou, e Castela em meados do século XIV, fonte
subsidiária.

Durante o século XIV, desenvolveu-se a Escola dos Comentadores, primeiro em Itália (Revigny e
Belleperche) e depois em França. O seu método baseava-se na leitura de textos de autores,
através da técnica da quaestio: o debate em face de determinadas teses, dos argumentos pro e
contra e na apresentação da solução. O comentador não só procedia à exegese do texto sobre
o qual trabalhava, como procurava ainda sistematizar as normas e os institutos jurídicos de um
modo mais apurado, articulando a história das palavras, a análise crítica e a síntese. Os
comentadores levavam em consideração as glosas e comentários sucessivos de que o texto
interpretado já havia sido alvo, recorrendo ainda ao ius proprium (costumes, estatutos e leis
locais de cada país) e ao DC, acabando por criar novos institutos e mesmo novos ramos do
Direito. O auge desta escola medeia-se entre o início do século XIV e meados do século XV. O
principal nome é Bártolo (1314-1357). Os seus comentários, pelo prestígio generalizado que
mereceram, tornaram-se fonte subsidiária de direito nos diversos ordenamentos jurídicos
europeus, tendo entre nós sido supletivamente aplicados, por força das Ordenações, a par da
Glosa de Acúrsio.
Acima das diferenças cumpre realçar a comum matriz prudencial das escolas jurídicas medievais:
elas partem não do sistema jurídico no seu todo, mas da situação jurídica em concreto; a solução
não se obtinha a partir da subsunção do facto à norma legal, mas sim pela ponderação da justiça
no caso concreto, sendo em função desta que era encontrada a norma aplicável. Ia-se do facto
para a norma, não da norma para o facto, como se faz hoje em dia. Ao longo da segunda metade
do século XV, assiste-se ao declínio e ao esgotamento das possibilidades da Escola dos
Comentadores, devido ao emprego rotineiro do método do comentário, à estagnação da
produção jurídica, à perda de preocupação criativa e ao abuso da autoridade e repetição dos
argumentos por parte dos autores. Esta autoridade era aferida através da communis opinio, que
começou por ser o parecer ou sentimento generalizado que as pessoas nutriam em face de certo
assunto, mas que no século XIII passou a abranger o entendimento dos doutores, daqueles que
gozavam do “saber socialmente reconhecido”, e a partir do século XV passou a referir-se
exclusivamente ao parecer destes últimos. Ainda hoje se usa o argumento da autoridade, a par
dos argumentos racionais. Nas Ordenações Manuelinas, a não oposição à communis opinio dos
doutores chegou a ser requisito para a relevância subsidiária da Glosa de Acúrcio e do
Comentário de Bártolo. Paralelamente ao renascimento do DR e intimamente relacionado com
esse renascimento está a renovação do DC, aquém e além-fronteiras.

O DC, enquanto ordem, pode definir-se como a ordenação social imperativa que estrutura as
relações intersubjetivas de acordo princípios de justiça inerentes à realidade da comunidade
eclesial. O DC dá origem a “cânones”, os quais, em sentido estrito, abrangem apenas as normas
emanadas dos Concílios, por oposição aos decretos ou cartas decretais, normas provenientes da
direta iniciativa dos Papas. Os princípios fundamentais do DC baseiam-se na Revelação de Deus,
feita através de Cristo e dos seus seguidores diretos. Estes princípios constituem as fontes de
Direito divino. Estas são a Tradição viva (transmissão da mensagem de Cristo, através da
pregação, testemunho mediante as instituições e escritos inspirados por Deus) e a Sagrada
escritura (Bíblia). O DC conta também com fontes de Direito humano: costume, decretos dos
pontífices romanos, cânones dos concílios ecuménicos, concórdias e concordatas, doutrina,
jurisprudência e normas civis canonizadas.

Evolução do DC (REMISSÃO PÁG.223 LIÇÕES)

No século XII, assiste-se ao movimento renovador do DC, avultando neste período a experiência
de o Direito sábio, fruto da aliança entre a Santa Sé e a Universidade. Considerava-se na época,
de resto, que só o jurista que dominasse os dois âmbitos do Direito (Canónico e Civil) é que teria
uma formação completa. Não devemos falar em renascimento do DC, na medida em que este
ordenamento se manteve sempre vigente, acompanhando a presença viva da Igreja Católica e
sobrevivendo à queda do IRO.

Decreto de Graciano (1140): tentativa de coordenar, harmonizar e esclarecer preceitos


canónicos de diferentes proveniências, agrupando-os de forma sistemática. Na sua elaboração
foram tidos em conta a teleologia ou significado dos cânones, o tempo em que foram
elaborados, o local de onde provinham e o caráter geral ou excecional que assumiam;

Decretais de Gregório IX (1234): recolhe sobretudo normas pontifícias posteriores ao decreto


de Graciano, dividido em 5 livros que abrangiam âmbitos jurídico-eclesiásticos diversos;

Liber Sextus (Papa Bonifácio VIII, 1298): aglutinou um conjunto de normas surgidas após as
Decretais de Gregório IX;
Clementinas (aprovada pelo Papa Clemente V, publicada em 1317, já no pontificado de João
XXII): reuniu num corpo os cânones decorrentes do concílio de Vienne (1311-12), bem como as
decretais de Clemente V;

Extravagantes de João XXII e Extravagantes Comuns (dos papas subsequentes);

Corpus Iuris Canonici (1580): versão revista das compilações anteriores, aprovada pelo papa
Gregório XIII;

A reforma católica dar-se-ia com o Concílio de Toledo (1545-1563). Tomaram-se decisões


disciplinares que robusteceram e renovaram a organização da igreja (instituição dos seminários
e obrigação de residência dos bispos nas respetivas dioceses. O CIC só seria revogado pelo Codex
Iuris Canonici, mandado elaborar pelo Papa Pio X e promulgado por Bento XV, em 1917. Aqui
estamos já na presença de um código em sentido técnico, com rigor científico e sistemático.
Devem ainda assinalar-se, na esteira da renovação do DC segundo as diretrizes do Concílio
Vaticano II (1962-65), o Código de DC de 1983 (rito latino) e o Código dos cânones das Igrejas
Orientais de 1990 (ritos orientais). Conforme os canonistas trabalhassem sobre o Decreto de
Graciano ou sobre os Decretais de Gregório IX eram conhecidos por decretistas ou decretalistas.
Para além da ação dos juristas peninsulares, a penetração e difusão do DC na PI ficou a dever-
se ainda à divulgação de textos de DC, através de cópias e de traduções diversas. O DC era
aplicado quer nos Tribunais Eclesiásticos (certas matérias eram consideradas próprias da
jurisdição canónica, como o matrimónio, os testamentos, etc. É de referir que certas pessoas só
podiam ser julgadas nos Tribunais da Igreja, nomeadamente os clérigos), quer nos Tribunais Civis
(embora seja discutível com que extensão. A maioria da doutrina defende que o DC era fonte
imediata de direito aplicável. A verdade é que, mais tarde, o DC passaria a fonte subsidiária de
Direito, ou seja, a partir das Ordenações. Pela sua especificidade e pelas diferenças dos seus
objetos, o DC era menos suscetível de contradição com o Direito do poder político do que o DR.
Na ausência de normas nacionais que disciplinassem a questão concreta, o DC só prevalecia
sobre o DR havendo “razão de pecado”, ou seja, se a observação das soluções impostas pelo DR
fosse contraditória às exigências da moral cristã.

Direito Comum: sistema normativo de fundo romano-canónico, consolidado pelos


comentadores, e que constituiu a base da experiência jurídica europeia até ao século XVIII. O
Direito Comum distinguia-se dos Direitos próprios que se iam desenvolvendo nos ordenamentos
jurídicos particulares dos Estados, formados por normas legislativas e consuetudinárias. Durante
os séculos XII e XIII, o Direito Comum, pelo menos no plano teórico, sobrepôs-se aos Direitos
próprios. Porém, nos séculos XIV e XV, estas fontes nacionais conseguiram equilibrar com o
Direito Comum, alcançando progressivamente o estatuto de fontes primárias dos respetivos
ordenamentos jurídicos e enviando o Direito Comum para o posto de Direito subsidiário. No
século XVI, há já uma independência plena do “ius proprium” (fonte normativa imediata e
exclusiva do Direito) sobre o Direito Comum (fonte subsidiária do Direito à mercê da vontade do
soberano).

Fontes do Direito Português de meados do século XII até às Ordenações Afonsinas:


1) A legislação geral: a partir do reinado de Afonso III, assiste-se à passagem das leis
gerais ao plano de principal fator de produção e revelação normativa. Até então, tal lugar
pertencia ainda ao costume. O fenómeno é contemporâneo das crescentes influências
romanísticas e canonísticas, o que permite descortinar um nexo de reciprocidade entre a
receção e a divulgação do D. romano-canónico e o aumento e concentração da produção
normativa no monarca. Os reis tinham interesse em recuperar e fomentar certos princípios
estruturantes do DR, do tempo do Principado e do Dominado, como por exemplo “o que agrada
ao Príncipe tem força de lei” ou “o Príncipe não está limitado pela lei”. A partir de Afonso III, a
lei passa a ser vista como produto da vontade do soberano e também como a sua atividade
normal, ao contrário do que acontecera no passado ou do que acontecia em Leão. Até então, a
promulgação de leis era um facto raro, que exigia a convocação da Cúria para a sua discussão e
aprovação (uma tradição da Monarquia limitada pelas ordens). A partir de Afonso III, a lei
transforma-se no modo corrente da criação de direito, sem necessidade do suporte político das
cortes. Os reis rodeiam-se de juristas de formação romanística e canonística tendo em vista
melhorar a perfeição técnico-jurídica das leis emanadas. As leis tinham de ser manuscritas e
copiadas, sendo registadas na chancelaria régia, que funcionava como mecanismo de
fiscalização da autenticidade das leis e elemento de prova do Direito em vigor. Os tabeliães eram
encarregados no registo e da leitura dos preceitos legais. Quanto ao início de vigência da lei, a
prática corrente era a da aplicação imediata da lei nova, mas houve diplomas legais com ima
“vacatio legis” mais ou menos prolongada.
2) Resoluções Régias: Os monarcas também tomavam decisões nas Cortes, perante
representações, solicitações ou queixas que lhe eram apresentadas. A única diferença destas
resoluções régias perante as leis gerais prendia-se com a iniciativa, visto que a aprovação
pertencia sempre ao rei.
3) Decadência do costume: Um costume valeria se apenas nos termos em que a vontade
do monarca o não contradissesse através de uma lei, assistindo-se assim à subversão do
fundamento autónomo do costume como fonte de Direito.
4) Forais e foros ou costumes: A partir de Afonso IV (1325-1357), cessa a concessão de
novos forais. Já os foros adquirem relevância. Estes disciplinavam todo o tipo de matérias
jurídicas e possuíam um alcance mais vasto do que as cartas de foral. Na elaboração dos foros
eram utilizados preceitos consuetudinários, normas de juízes arbitrais ou concelhios, normas
criadas pelos municípios, etc.)
5) Concórdias ou concordatas: Após a subida ao trono de D. Afonso III, os atritos entre
poder temporal e poder espiritual fizeram-se sentir com especial acutilância, daí que fosse
necessária a celebração de acordos entre os dois poderes tendo em vista o reconhecimento de
direitos e deveres de ambos.
6) Direito Subsidiário: Até às ordenações afonsinas, recorreu-se, em larga escala, ao DR,
ao DC e ao D. Castelhano, apesar deste último nunca ter tido vigência oficial. A aplicação
supletiva das obras decorreu sobretudo do mérito intrínseco do seu conteúdo RC. Nessa altura,
começaram as traduções. D. João I ordenou a tradução do Código de Justiniano, da Glosa de
Acúrsio e do Comentário de Bártolo, todos acompanhados de resumos interpretativos dos vários
preceitos quando necessários, a fim de evitar discrepâncias jurisprudenciais e com o objetivo de
garanti ruma correta aplicação do DR subsidiário. Terá havido, ainda assim, frequentes
preterições das normas jurídicas nacionais e sobreposições, no âmbito do DRS, das fontes
mediatas castelhanas até às fontes imediatas RC.

Coletâneas privadas de leis gerais anteriores às O. Afonsinas: privadas, incluíam leis, costumes
gerais e jurisprudência. Podem ter constituído trabalhos preparatórios das Ordenações
Afonsinas, embora a tese seja contestada:
1) Livro das leis e posturas: compilação de preceitos do reinado de Afonso II ao de Afonso
IV;
2) Ordenações de D. Duarte: reunia as normas emanadas desde o reinado de D. Afonso
II até ao do próprio D. Duarte, constituem uma coletânea privada, na qual no seu prefácio aponta
como necessárias a um competente agente de justiça as qualidades da justiça, da prudência, da
temperança e da fortaleza. Nesta coletânea, verificamos várias normas de proteção jurídica das
pessoas, de bens jurídicos que hoje poderíamos integrar nos DLG ou até na chancela dos Direitos
Humanos.

EVOLUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS:

As novas doutrinas influenciaram em matérias de Direito político, nomeadamente na defesa da


ordem pública, como encargo exclusivo do Estado. No domínio do processo, convém enfatizar a
cisão entre o processo civil e o processo penal, tendo, neste último, sido substituído o sistema
acusatório pelo sistema inquisitório. Sublinha-se a substituição da oralidade pela escrita, a
introdução do sistema de recursos, a disciplina do ónus da prova e a prevalência da prova escrita
sobre a prova testemunhal. No que concerne ao Direito penal substantivo, assinala-se a sua
publicitação e a tendência romanística para o predomínio das sanções corporais em detrimento
das sanções pecuniárias, bem como o incremento de leis de aplicação geral.

EVOLUÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

As cortes medievais limitaram efetivamente o poder do monarca? Antes de mais, um rápido


traçado da sua evolução assinala a presença de procuradores dos concelhos, juntamente com
os dignatários da nobreza e do clero, a partir de 1254 (Cortes de Leiria); a sua participação nas
decisões (Coimbra, 1261); a reunião à parte do braço popular (Santarém, 1331). As cortes eram
convocadas pelo rei, na época e com a frequência que este entendesse, mas considerava-se que
o Rei tinha a obrigação de as convocar. Nelas se exercia o dever geral de aconselhar o monarca,
se ratificavam tratados de paz e de amizade, eram formulados pedidos e se elevavam queixas e
exerciam direitos de petição. Entre os séculos XII e XIV passaram a ter a função de autorização
do lançamento de impostos e da emissão e quebra de moeda. Em contrapartida, nunca foi aceite
a intervenção vinculativa das Cortes na decisão do casamento do rei. Com a crise 1385, coube
às Cortes a declaração de vacatura da coroa e a eleição do rei (cortes de Coimbra). Tal aconteceu
em 1438/39, com a mudança de regente à morte de D. Duarte, e muito mais tarde, em 1641,
com a aclamação de D. João IV como rei. Quanto às leis, no tempo dos primeiros reis, a
promulgação de leis gerais eram um facto raro, que exigia a convocação da Cúria para sua
discussão e aprovação. A partir do reinado de D. Afonso III (1248-1279), a lei é normalmente
elaborada sem o suporte político das cortes. Enquanto foram regularmente convocadas, as
cortes portuguesas serviram como mecanismo de limitação efetiva do poder real. Contudo, não
eram fontes existendi, visto que era sempre o rei e não elas a aprovar os diplomas legais.

Segundo a periodização da História do Direito Português proposta pelos Irmãos Albuquerque, a


passagem da época de receção do DRC para a época das Ordenações marca a transição do
período monista para o período pluralista. No primeiro, o jurista era essencialmente um conditor
iuris, cultor de um direito sem fronteiras, nem sempre promulgado nas comunidades que o
utilizam, ainda que aí vinculante. No segundo, surge o conceito moderno de Estado. O Estado
acabará por proclamar a redução do direito aos factos jurídicos por ele promulgados, acabando
por num sentido mais totalitário se identificar o Direito com a lei. O jurista converte-se num
jurista burocrático, posto ao serviço dos fins políticos do Estado e depois dos seus fins
administrativos. O seu Direito passa a ter unicamente o valor que o Estado lhe assina. A vontade
do Estado apresenta-se tão intocável e de tal forma determinante que repudia a simples exegese
dos doutores. Aparecerão as doutrinas denegadoras do valor jurídico do valor jurídico do DI e
até do DN, o qual deixa de ser entendido como conjunto de valores atemporais, vinculantes do
Estado e, portanto, dele limitadores, para passar pela fileira estatal. O costume vigorará só e
quando o Estado deixar: será o direito dele a declará-lo. O estado bane o costume contra legem.
Nem no mero plano deste a lei poderá ser revogada. A lei surge como um valor absoluto. Ela
incorpora a vontade do Estado, contra a qual nada poderá prevalecer.

Foram as Descobertas que levaram à criação de um aparelho político-administrativo próprio,


baseado em conceitos de descentralização opostos ao critério centralizador seguido pela coroa
relativamente à administração no país e correspondentes à criação de um novo estado (Índia) e
a um reino (Brasil), que conduziram ao estabelecimento de órgãos legislativos próprios, o
estabelecimento de um aparelho judiciário específico, com funções tanto cíveis como criminais
e levaram ao recurso ao DR, como fonte subsidiária. Os Descobrimentos foram, em Portugal,
um dos motivos de centralização e do desenvolvimento do Estado, ao qual trouxeram novos
meios de ação e novas preocupações. Esta fase exigia uma direção concentrada, um poder
suscetível de mobilizar os recursos totais do país e uma vontade política forte para vencer as
hesitações e até oposições. Mediante os recursos das descobertas, a Coroa vai dominar a
nobreza e o clero. Nascia uma mentalidade administrativa formadora do Estado até então com
funções essencialmente políticas. No campo interno, o prínceps afirmar-se-á perante os demais
estratos da organização social, ao dispor de meios funcionais de governação e de meios
materiais até aí desconhecidos. Fortalecido e incontestado no plano interno, o rei vai
apresentar-se com protagonismo na esfera internacional, quer face à Santa Sé, quer face aos
restantes Estados europeus, sem o poderio dos descobrimentos.

Temos, pois, neste período monista, a conquista das fontes de Direito por parte do Estado, uma
fiscalização constante e uma burocratização minuciosa. Já posteriormente às Ordenações,
temos a fixação do absolutismo que, após a Revolução Liberal de 1820 se vai transformar em
centralismo parlamentar, gerando o Estado Moderno em Portugal, com a ideia de direitos
naturais do Homem, igualdade perante a lei, soberania popular, monarquia limitada e
Constituição.

ÉPOCA DAS ORDENAÇÕES

As ordenações afonsinas constituem a primeira codificação/compilação? de direito nacional,


surgindo no quadro de uma tendência positivista e legalista, traduzida na pretensão do Estado
deter progressivamente todo o Direito. Por conseguinte, regista-se, inicialmente, a pretensão
estatal de disciplinar o costume, o direito prudencial (doutrina), e o direito supra-estatal (RC,
aos quais se seguem o DN e o DI). O Estado acabará por, mais tarde, reduzir o Direito aos atos
por si promulgados, conduzindo assim a uma identificação total entre Direito e Lei.

ELABORAÇÃO E INÍCIO DE VIGÊNCIA

A sua elaboração, conforme resulta do proemio do Livro I, foi impulsionada pelas Cortes,
descontentes perante as incertezas derivadas da grande dispersão e confusão das normas, com
graves prejuízos para a vida jurídica e a administração da justiça. Não se tratava apenas de
organizar o extenso número de leis portuguesas, pretendia-se também limitar as dificuldades
de compreensão e de interpretação do Direito Comum. Na sequência dos pedidos formulados,
D. João I incumbiu João Mendes de elaborar a referida coletânea. Após a morte de ambos, D.
Duarte incumbiu a continuação dos trabalhos ao Doutor Rui Fernandes. D. Duarte, que, já antes
de subir ao trono, havia sido avisado pelo seu irmão e duque de Coimbra, D. Pedro, do estado
de letargia dos administradores de Justiça no reino. A obra viria a ser concluída em 28 de julho
de 1446, na Vila da Arruda, depois de uma comissão revisora composta pelo próprio Rui
Fernandes, pelo DR. Lopo Vasques e pelos membros do Desembargo do rei, Luís Martins e
Fernão Rodrigues, foi aprovada em 1446/7, em nome de D. Afonso V e passou a aplicar-se a
partir de 1450. No entanto, devemos ter em consideração que não havia na época uma regra
prática definida sobre a forma de dar publicidade aos diplomas legais. Além disso, ainda não se
utilizava a imprensa, pelo que levaria considerável tempo a tirarem-se as cópias manuscritas,
laboriosas e dispendiosas. A efetiva generalização da compilação deve ter-se operado a partir
de 1450. A sua difusão foi facilitada, uma vez que não apresentava inovações profundas,
servindo-se numa larga escala, de fontes anteriores.

FONTES UTILIZADAS E TÉCNICA LEGISLATIVA

Utilizaram-se na sua elaboração as várias espécies de fontes anteriores: leis gerais, resoluções
régias, subsequentes a petições ou dúvidas apresentadas em cortes ou mesmo fora delas,
concórdias, concordatas e bulas, inquirições, costumes gerais ou locais, estilos da Corte e dos
tribunais superiores (jurisprudência ou costumes aí formados), bem como normas extraídas das
“siete partidas” e preceitos de DRC, designados, respetivamente, “leis imperiais” ou “direito
imperial” e “santos cânones” ou “decretal”. Quanto á técnica legislativa, empregou-se, por via
de regra, o estilo compilatório, transcrevendo-se na íntegra, as fontes anteriores, cujos termos
seriam confirmados, alterados ou afastados posteriormente, através de uma indicação expressa.
Contudo, nem sempre se adotou este sistema. Em quase todo o livro I, utilizou-se o estilo
decretório ou legislativo, que consiste na formulação direta das normas sem referência às suas
eventuais fontes precedentes.

SISTEMATIZAÇÃO E CONTEÚDO:

A sistematização das Ordenações Afonsinas foi inspirada sobretudo nas Decretais de Gregório
IX. As ordenações encontram-se divididas em 5 livros, cada um dos quais dividido em títulos com
rúbricas e, por vezes parágrafos. Os livros são ainda precedidos de um proémio:
1)Livro I, composto por 72 títulos e diz respeito aos estatutos dos cargos públicos, régios
e municipais, ou seja, ao foro jurídico-administrativo;
2)Livro II, composto por 123 títulos e dedica-se a diversas temáticas, tais como: a
disciplina dos bens e privilégios da Igreja, os direitos do rei e a sua cobrança, a jurisdição dos
donatários e o estatuto dos Judeus e dos Mouros. São normas materialmente constitucionais;
3)Livro III, composto por 128 títulos, comporta o processo civil;
4)Livro IV, composto por 112 títulos, contém desorganizadamente, o direito civil
substantivo;
5)Livro V, composto por 121 títulos e respeitante ao direito e processo criminais;

O livro II transparece a visão medieval dos direitos. Verifica-se uma proteção estamental e
concreta dos direitos dos súbditos.

Segundo o professor Paulo Ferreira da Cunha, não encontramos nas ordenações a consagração
oficial das cortes, tão importantes na História do Direito Português. PFC defende que as OA
tiveram como propósito organizar as normas jurídicas nacionais, e não coligir matéria de índole
política, na qual o acervo de normas relativo às Cortes se incluía. Convém afirmar que a
elaboração das ordenações não visou em momento algum, estabelecer uma qualquer
Constituição escrita no país. Assim, num texto tão diversificado como é o das OA, em que não
se pretendeu, tão só, compilar normas políticas e constitucionais ainda que de natureza
tradicional, no Livro II não encontramos nenhuma Constituição escrita. Numa visão abrangente,
parece dever-se pensar que estes textos faziam efetivamente parte de uma Constituição
material. Seriam, na verdade, uma sua muito relevante parte escrita e até compilada. PFC
considera que a matéria sobre direitos reais do livro II constitui uma “pedra de toque da
constituição de então. Muitos dos títulos subsequentes são desenvolvimentos ou
complementos dos seus parágrafos, tanto dos patrimoniais, como dos políticos. Há ainda
normas administrativas ou, no máximo, de procedimento constitucional.

IMPORTÂNCIA DA OBRA

As Ordenações Afonsinas constituem uma síntese do trajeto de deste a função da nacionalidade,


ou, mais aceleradamente, a partir de Afonso III, afirmou e consolidou a autonomia do sistema
jurídico português no conjunto peninsular. As Ordenações posteriores pouco mais fizeram do
que, em momentos sucessivos, atualizar a coletânea afonsina. Acresce que é uma obra meritória
que ombreou com as homólogas estrangeiras da época, podendo, inclusivamente, assinar-se-
lhe alguma antecedência. A publicação das ordenações liga-se ao fenómeno de luta pela
centralização política. De um outro ângulo, acentua-se a independência do direito próprio do
Reino em face do Direito Comum, subalternizado no posto de fonte subsidiária por mera
legitimação da vontade do monarca.

Assim, as Ordenações Afonsinas assumem-se como um precioso elemento de investigação


histórica. Curiosamente, as OA não conheceram uma edição impressa durante a sua vigência
(até 1521, sendo já preparada a sua reforma em 1505, sendo a sua substituição explicada pela
introdução da imprensa em 1487, que reclamou a reforma da coletânea jurídica vigente, antes
da mesma ser dada à estampa e pela vontade de D. Manuel de associar o seu reinado a uma
profunda reforma legislativa), o que só sucederia em 1792, pela Universidade de Coimbra.

FONTES DE DIREITO NA ÉPOCA DAS ORDENAÇÕES

Fontes imediatas: a lei

1) Legislação extravagante: na época em que nos situamos, o conceito de lei correspondia


a toda a manifestação de vontade soberana com vista a proceder alterações na ordem
jurídica vigente. Consequentemente, eram incluídos preceitos que não gozavam de uma
aplicação geral e abstrata. As leis extravagantes cuidavam de matérias relativas à
manutenção da ordem pública, à administração da justiça e à cobrança de impostos.
Quanto ao direito privado, imperava o recurso ao direito subsidiário;
2) Diplomas reais: cartas de lei, alvarás, decretos, cartas régias, resoluções, provisões,
portarias e avisos. As cartas de lei caracterizavam-se por passar pela chancelaria régia,
começarem pelo nome próprio do rei e de serem utilizadas para os preceitos que
vigorariam mais de um ano. Os segundos gozavam de menor solenidade na forma e
destinavam-se aos preceitos de curta vigência;
3) Publicação e início de vigência da lei: As OA não disciplinavam a publicação e o início da
vigência da lei.
4) Interpretação da lei através de assentos: inicialmente só era admitida a interpretação
autêntica. Mais tarde, essa prerrogativa foi transferida para a Casa da Suplicação;
5) VER LIÇÕES ATÉ PÁG. 257

TEXTOS A COMENTAR:

LIVRO I, TÍTULO 2º: A chancelaria é o segundo ofício do Estado, daqueles que têm o ofício da
“Puridade”, ou seja, da regulação da vida das pessoas. O chanceler corresponde ao
intermediário entre o rei que promulga as suas leis e os homens, que vão ser regulados por essas
normas. Antes de publicar as leis, o chanceler mor deve, teoricamente, analisar os diplomas,
salvaguardando os erros ou preceitos “contra direito” que neles possam estar incluídos. O
chanceler mor verá todas as cartas, e se encontrar alguma que seja contra os direitos do povo,
ou do clero, ou de qualquer pessoa, não a deve “selar”, isto é, publicar, o que significaria o início
da sua vigência. Deverá falar com o rei ou com aqueles que os reis determinarem para tratar
dessas questões na sua ausência. As cartas não devem ser seladas, salvo se primeiramente
forem registadas na fazenda pelo Escrivão…

LIVRO II, TÍTULO 71º: Sempre foi vontade do rei D. João I, bem como dos seus predecessores,
que os judeus tivessem jurisdição para os casos entre eles, a nível criminal e civil, sendo julgados
segundo os seus direitos e costumes. Estas orientações reais deviam ser guardadas por lei. O rei
manda que em todo e qualquer caso a apelação fique reservada para os oficiais cristãos e os
desembarguem para a jurisdição judia. Trata-se de uma norma que garante aos rabis a guarda
dos seus julgados, direitos e costumes, pretendendo-se deste modo, garantir a existência de um
foro próprio par aos judeus das comunas. A ideia, ainda assim, não é procurar aplicar uma
qualquer ideia de igualdade entre cristãos e judeus. Assumindo as diferenças entende-se,
todavia, essencial garantir que essas mesmas minorias tenham a oportunidade de viver em paz,
podendo praticar os seus usos e costumes, mesmo que à parte da maioria cristã.

LIVRO V, TÍTULO 37º: Da autoria de D. Dinis, versa sobre “do que disse testemunho falso, e do
que lho fez dizer”; Observando que no seu reino se faziam muitos testemunhos falsos e
aconselhado pelas Cortes, o rei decidiu que quem desse falsos testemunhos deveria ser morto
imediatamente, sendo-lhes tirados os pés, as mãos e os olhos. Manda aos tabeliães que
registem esta ordenação e que a leiam cada mês em Concelho uma vez. D. Dinis refere que,
ainda que fosse notado este fenómeno nas ordenações antigas, a verdade é que as penas nunca
eram executadas, uma vez que eram muito graves e a sua execução tornavam-se mais leves, o
que, para D. Dinis, contribuía para que se mantivessem estes testemunhos falsos. Daqui em
diante, aquele que seja apanhado em semelhante situação, será açoitado publicamente e ser-
lhe-á cortada a língua em praça pública (“com a língua pecou, através da língua será punido”). E
deverá pagar da cadeia aquilo que danificou com o seu falso testemunho, toda a perna e dano
que por sua falsidade se verificou. Esta pena servirá de exemplo para as outras pessoas.

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