Você está na página 1de 31

ZOOPOLÍTICA, ANTROPOTÉCNICA E PÓS-HUMANISMO:

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE O PENSAMENTO DE PETER


SLOTERDIJK

Resumo: o presente artigo tem por objetivo realizar uma analise do ideário filosófico de
Peter Sloterdijk e desenvolver uma crítica final. Destacam-se dois pontos fortes do seu
trabalho: (a) Crítica da Razão Cínica; e (b) Regras Para o Parque Humano. Na sua
perspectiva, as chamadas antropotécnicas colocam em pauta uma decisão política sobre
a espécie humana. Nesse sentido, Sloterdijk aventa a possibilidade de se fazer uso da
engenharia genética como mecanismo de contenção da violência desinibida constatada
no mundo atual. Em sua compreensão antropológica, a história humana é definida pela
dinâmica envolvendo seleção, domesticação e exposição do homem. De um lado estão
os domesticados. De outro, os domesticadores - estes que escolhem as ferramentas de
seleção, no governo denominado zoopolítico. Assim, as antropotécnicas são
responsáveis por produzir o homem, não sendo exclusividade das atuais biotecnologias
intervir na estrutura humana. Com isso, entra em cena a sua crítica à violência na
atualidade como produto da indústria do entretenimento, que dá vazão à animalidade do
humano. Eis o motivo para anunciar o colapso do humanismo - entendido como
instrumental inibidor da violência pela leitura.

Palavras-chave: Violência; Humanismo; Zoopolítica; Antropotécnica;

1
1. INTRODUÇÃO
Na estrutura mais íntima do humanismo, como sua alma mesma, agita-se
preso o monstro que, como fascista, faz do mundo prisão. Adorno, Theodor
W. Minima Moralia.

Foi inaugurado no dia 15 de maio, de 2014, em Oslo, na Noruega1, um evento


descrito como zoológico humano. Ideia patrocinada pelo governo norueguês, trata-se de
uma exposição dos artistas Mohamed Ali Fadlabi e Lars Cuzner, que celebra o
bicentenário da Constituição do país. Sobre o projeto, Fadlabi declara o seguinte:
“queremos recuperar as histórias sobre o ‘zoo humano’, algo que foi apagado
completamente da memória coletiva e creio que conseguimos”2. Os artistas tinham em
mente reproduzir o evento que ocorreu no ano de 1914, na Feira Universal de Oslo. Na
ocasião do século passado, foram encerrados durante cinco meses num ambiente
artificial oitenta pessoas de origem africana. A exposição recebeu em torno de 1,5
milhões de visitantes3, que desejavam assistir seres humanos comportarem-se como
selvagens em espaços artificiais. A novidade é que a atual versão da exposição lançou
um convite público e internacional, via internet, para voluntários que se dispuserem a
participar da experiência do parque humano. Os artistas dizem que uma das intenções
do projeto é chamar à atenção para temas como racismo e dominação cultural4.

O evento norueguês lança pistas a respeito da metáfora do parque temático que


define o modelo de governo chamado zoopolítico. Esse modelo de governo opera com
base na condição animal do ser humano, lançando mão de ferramentas aprimoradas
antropologicamente a fim de influenciá-lo de modo eficiente. Sua garantia de eficiência
pressupõe que o ser humano é um animal influenciável. A política de produção do
homem no uso de ferramentas de seleção e domesticação, na correspondência com
determinados interesses de Estado, chama-se antropotécnica. Daí se dizer: “o homem
no fundo é produto”5. Entender o homem como produto exige uma leitura, de acordo

1
Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/mostra-reproduz-zoo-humano-que-exibia-negros-na-
noruega-12627773. Acessado em 03/08/14.
2
Disponível em: “http://www.excelsior.com.mx/global/2014/05/17/959854”. Acessado em 03/08/14.
3
Superando metade da população da Noruega à época que tinha um pouco mais de dois milhões de
habitantes.
4
Disponível em: “http://actualidad.rt.com/cultura/view/128376-zoologico-humano-racismo-noruega”.
Eventos relacionados também analisados neste texto:
“http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186”. Acessado em 03/08/14.
5
SLOTERDIJK, Peter. Sin Salvación: Tras las Huellas de Heidegger. Tradução de Joaquín Chamorro
Mielke. Madrid, 2011. p. 100.

2
com os saberes atuais, a partir das formas e das relações dessa produção por meio de
técnicas do extase, permitindo-se interpretar o homem no mundo. Trata-se, em ultima
análise, de compreender que se trata de uma tecnologia de modelagem das
características biológicas do homem. Atualmente, um exemplar da antropotécnica que
ganha destaque é a ciência genética, que promete novas formas de intervir no gene.
Rapidamente, essas novidades se tornam o estopim para conflitos discursivos, que veem
a necessidade de se elaborar um novo conceito de humano frente ao avanço das
biotecnologias. Neste contexto, aventa-se a possibilidade de refrear a violência humana
com o emprego da tecnologia genética. Seria a maneira de se tornar o homem mais
facilmente domesticável. Essa hipótese foi levantada pelo filósofo alemão Peter
Sloterdijk6.

Ver-se-á que o filósofo encontra-se particularmente preocupado em apresentar


uma narrativa do atual estágio do mundo. Entende-se que um autor simboliza, em
alguma medida, um corpo ressonante das tensões vivenciadas por sua época, que se
comprimem no terreno do intelecto e se cristalizam nas páginas dos seus livros, tal
como cartas a leitores distantes, ainda que suas mensagens não sejam sugestivas de uma
nova amizade. A relação saber-poder, de fato, condensa uma lógica seletiva e astuta que
descobre como identificar a devida utilidade não apenas dos saberes técnicos, mas
também do discurso filosófico, podendo conferir fundamento ao exercício da
dominação (cultural, econômica, etc.). Em vista disso, apresentar-se-á neste artigo uma
síntese das principais ideias de Sloteredijk, tendo-se por obra estruturante o livro Regras
Para o Parque Humano.

6
Sloterdijk é professor na universidade de Karlsruhe - cidade em que nasceu, no ano de 1947. Desde
2002, tornou-se bastante conhecido na Alemanha pela participação no programa de televisão Quarteto
Filosófico, com participação de Rüdiger Safranski, chegando ao fim em 2012. No meio intelectual, seu
nome ganha reconhecimento com a publicação do livro Crítica da Razão Cínica, em 1983, e com a
conferência de 1999, na Baviera, que gerou forte polêmica, pois incendiada por integrantes do
establishment filosófico alemão – Jürgen Habermas e seus discípulos. Sloterdijk suportou o peso
atmosférico de uma Alemanha pós-guerra. No final dos anos setenta, sua influência intelectual estava
vinculada à Escola de Frankfurt e ao complexo depressivo da esquerda, da qual se considerava um
adepto. Nesse período, viajou para a Índia e viu na nova fase uma distinção determinante na futura
orientação de sua vida intelectual. Com essa experiência, o filósofo reconheceu que o sentido da
mobilidade encontrou seu verdadeiro caminho, precisamente nesse movimento empreendido pelo ser
humano quando escreve a próxima página da sua vivência, identificando na viagem, portanto, o sentido
de sua mudança radical. Em razão dessa metamorfose, ele confessa ter ainda forças inspiradoras que lhe
dão impulso para arriscar novas ideias, método que denomina intoxicação voluntária. Toda a energia vital
que colhera noutro território se transformou na obra que lhe permitiu repensar e reposicionar a filosofia
nos anos oitenta. Trata-se do livro mais lido desde o pós-guerra na Alemanha, intitulado Crítica da Razão
Cínica, de 1983. De lá para cá, ele vem publicando diversos livros e investindo em conferências que têm
gerado alvoroço no campo intelectual e midiático SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte. Tradução de
Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2007.

3
Sloteredijk vê o desterro das práticas de aparência humanista como resultado
lógico e principal do presente, afetando o que numa terminologia heideggeriana seria
habitar a linguagem. A casa do ser desaparece e o que se constitui como uma
característica fundamental da história técnica e intelectual, por conta da tecnologia, é
que se está organizando a linguagem e a escritura de outra forma, bastante diferente das
interpretações tradicionais (religião, metafísica, humanismo). Nesse rumo, não se
constrói mais a casa do ser no sentido de aproximar o distante. Falar e escrever em
épocas de códigos digitais não se realiza mais como transmissão, o que promoveria uma
conciliação com aquilo que é externo. E isso foi algo que Heidegger havia formulado ao
dizer que a falta de morada seria o destino do mundo, dado que a tecnologia é um
destino que faz parte da história do ser7. No estágio atual do mundo, o cerne de questões
mais extremas exige colocar no espaço de discussão a problemática do processo
civilizacional. A técnica permite novas formas de conceber os agregados humanos. A
escrita e a fala se perdem no sem sentido perante a dominação que exercem os códigos
digitais e as transcrições genéticas. É o que será enfocado nos próximos tópicos.

2. Livros são cartas: o humanismo e a domesticação pela leitura

No derradeiro ano de 1999, Sloterdijk realiza uma conferência na Baviera, em 17


de julho de 1999, num colóquio consagrado a Heidegger e Levinas8, que resultou no
livro Regras Para o Parque Humano. Sloterdijk procurou apontar, inicialmente, os
sinais que confirmam ser a última parada de um caminho de resistência, de uma
experiência histórica que, irreversivelmente, se despede do humanismo sustentado pela
leitura. O que se torna definitivo, na sua concepção, se resume na necessidade de
pensarmos que a partir de agora, em sociedades pós-humanas, pós-históricas e pós-
epistolares, o inevitável está posto perante nós: está em processo uma reformulação do
que entendemos por humano. O fator de maior importância dessa redefinição nos
conduz, atualmente, à seara das tecnologias biológicas.

7
SLOTERDIJK, Peter. “El hombre operable; Notas sobre el estado ético de la tecnología génica”, en
Revista ARTEFACTO, 4: 91-105. URL= <http://www.revista-artefacto.com.ar/revista/nota/?p=91>.
Conferencia del 19 de mayo de 2000, en el Centro de Estudios Europeos (CES) de la Universidad de
Harvard, EE UU.
8
Sobre a polêmica desencadeada pela conferência de Sloterdijk e a questionável credibilidade da postura
de Habermas, ver: MARQUES, J. O. de A. Sobre as regras para o parque humano de Sloterdijk. São
Paulo: PUC, 2004. v. 4, n. 2. pp. 363-81.

4
Retomemos o início da sua crítica: “os livros, disse uma vez o poeta Jean Paul,
são cartas volumosas dirigidas aos amigos”9. Para conceber uma leitura antropológica
da domesticação do humano, são utilizadas duas palavras-chaves, que, aliás, dão o
sentido à discussão sobre o colapso do humanismo: inibição e desinibição. A inibição
humanista, nessa acepção, encontra seu nascedouro nas práticas da leitura da
Antiguidade, cuja finalidade era a de domesticar e pacificar o homem pela leitura.
Sloterdijk vê nas palavras do poeta a natureza e a função do humanismo. A carta,
porém, além de ser um instrumento comunicativo de amigos distantes, opera de uma
maneira não manifesta: ela projeta uma sedução à distância: um convite para o leitor
entusiasmado fazer parte de uma comunidade de amantes de livro. Essa transmissão de
cartas extensas estabeleceu seu elo mais importante na formação de uma cultura letrada
na apropriação romana dos textos gregos e que, após a queda do Império, as culturas
europeias posteriores se tornaram suas sucessoras. Esse o fantasma comunitário que
subjaz todo humanismo: uma comunidade que lê os mesmos livros. Humanitas, desde
Cícero, é expressão que designa as consequências da alfabetização. Desde então, a
própria filosofia reuniu seguidores pelo amor, pela amizade. E com a emergência do
Estado-Nação moderno, a leitura deixa de ser privilégio de uma elite. Mas como uma
espécie de seita, os humanizados dão inicio a um projeto expansionista. Ou seja, o
humanismo ganha um caráter pragmático, evidenciado nos Estados dos séculos XIX e
XX, como forma de instituir uma sociedade literária - modelo normativo de sociedade
política10.

A partir disso, os povos se organizam segundo seus cânones de leitura de acordo


com cada espaço nacional. O ensino com a leitura obrigatória dos clássicos e o serviço
militar obrigatório são os dois lados do humanismo armado e eficiente, que faz parte da
estruturação da burguesia clássica. Na Alemanha, o auge desse humanismo foi no
período que abrange os anos de 1789 a 1945. Nesse tempo, o saber do mestre pelo
conhecimento privilegiado correspondia ao lugar de transmissão dos textos fundadores
da comunidade. Essa época estaria chegando ao seu estágio final, principalmente, pelo
estabelecimento dos meios de entretenimento de massas: o rádio, a televisão e as redes.
Ainda que depois de 1945 tenha havido uma tentativa de dar continuidade à tradição

9
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 21.
10
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 21-6.

5
humanista, Sloterdijk segue a linha crítica que vê no humanismo a eterna insurgência
contra uma espécie de violência congênita do humano. O problema é que as épocas de
maior barbárie foram aquelas em que o humanismo foi invocado como pretexto. Daí
que a pergunta sobre a manutenção do humanismo pressupõe o interesse de continuar a
tendência humana à selvageria. Ou seja, é bastante evidente nas palavras do filósofo que
em vez de se negar a animalidade do humano, melhor reconhecê-la, numa medida
adequada, e esse é o modelo de governo já reconhecido nos preceitos realistas de Platão.
O excesso humanista, repreendendo totalmente o lado animal do humano, teve seu
maior exemplo na eclosão da barbárie do séc. XX. A grande questão é que a
animalidade tem de ser reconhecida a fim, consequentemente, de ser domesticada. Na
visão de Sloterdijk, atualmente ocorre um descarrilamento da violência quando o poder
se manifesta sem freios, especialmente pelos meios de entretenimento que abrem todas
as portas da desinibição. Mas isso vem a indicar um detalhe importante. As sociedades
da alta cultura tornam sensível o fenômeno humanista de lidar com o humano aos sinais
simultâneos de duas forças modeladoras, denominadas como influxos inibitórios e
desinibitórios11. Assim, dirá o filósofo que:

O convencimento de que os seres humanos são ‘animais sob


influência’ pertence ao credo do humanismo, assim como o de que por
isso é imprescindível descobrir o modo correto de os influir. A
etiqueta Humanismo recorda – com falsa inocência – a perpétua
batalha em torno do homem, que se concretiza como uma luta entre as
tendências bestializantes e as domesticadoras12.

Para Sloterdijk, era mais fácil a percepção de ambos os influxos na época de


Cícero, quando os romanos, por meio de seus anfiteatros e nos combates de morte com
feras, estimulavam as tendências bestializantes numa eficaz articulação da rede de mass
media. O homo inhumanus pôde satisfazer um apetite que, durante o Império, também
foi o meio de saciar os romanos e representou uma técnica de dominação. O humanismo
antigo entrava nesse cenário hostil como posição contrária ao anfiteatro pelas leituras
humanizadoras. Mas, se porventura, conforme a hipótese de Sloterdijk, algum
humanista antigo se deparasse com a multidão vociferante, ele logo constataria que, de
fato, é um homem igual àqueles que integravam a multidão e, consequentemente,

11
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 27-31.
12
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 32.

6
também seria suscetível às influências externas que dão vazão à bestialidade.
Entretanto, há uma segunda constatação. Ao retornar à sua casa, o humanista concluiria
que a natureza é inseparável dos media domesticadores e, portanto, bastaria escolher as
ferramentas mais adequadas para afetá-la. O humanista então deveria romper com os
hábitos propícios à bestialidade potencial e da direção desumanizadora da “vociferante
matilha do espetáculo”13.

Dessa conjectura se extrai a antropodiceia do humanismo, que consiste em


conceber os humanos a partir das formas de comunhão e comunicação que lhes
orientam, assentam e informam seu modo de ser e vir a ser no mundo. Esse é o ensejo
para a apreciação do ensaio de Heidegger, que inicialmente, foi uma carta volumosa
para um amigo. Trata-se do texto Carta Sobre o Humanismo. O gesto de Heidegger é
alçado à condição de evento por Sloterdijk, pois “Heidegger inaugurava um espaço de
pensamento trans-humanista ou pós-humanista, espaço em que, desde então, se tem
vindo a movimentar uma parte essencial da reflexão filosófica sobre o homem” 14.
Importante que se contextualize a Carta de Heidegger na leitura do seu conteúdo.

3. O evento Heidegger: o humanismo à escuta

No pós-guerra, Heidegger anuncia o fracasso das vertentes humanistas que


procuram retomar o espaço de justificação do ser humano no mundo. Ele os refuta
dizendo que somente é possível salvar o humanismo com a pergunta que consiste em
procurar saber o que é o homem. Além disso, é assentado que Heidegger entende não
ser possível uma comunidade entre humano e animal. Somente a escuta do ser retomaria
o caminho da pacificação, muito além da domesticação do humano. No livro Carta
Sobre Humanismo, vislumbra-se um filósofo que contextualiza, de certo modo, o
pensamento filosófico e sociológico, bem como define o sentido do fracasso das três
manifestações do humanismo – cristianismo, marxismo e existencialismo, em vista da
ressignificação do homem, do mundo e das vias escolhidas para o fundamento do
projeto de cada um deles. Considera o filósofo que todos eles pressupõem uma noção
fixa e pré-dada, quer da natureza, quer da história, quer do mundo e do seu fundamento

13
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 32-4.
14
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 37.

7
e, portanto, fundamentos todos metafísicos. Heidegger define como essencialmente
necessário - no contexto em que ainda não pensamos- escutar o que o ser tem para
dizer, na sua historicidade, a fim de somente com esse trabalho meditativo poder dizer o
que resta ser dito; e então “o homem será agraciado com a devolução da casa para
habitar na verdade do ser”15. Assim, o pensar teria a missão de pensar o mundo no seu
sentido próprio. Para isso, não seria mais aceitável recorrer ao auxílio da Antiguidade,
como faziam os humanismos que ele criticava, por conceber sua potencialidade
destrutiva. Esse humanismo que Heidegger ataca deixa de perguntar sobre a relação do
ser com o humano, tornando-se essa uma pergunta inexistente em razão da sua origem
metafísica16.

Heidegger rechaça a concepção do homem como animal racional e as


explicações orgânicas da sua essência, pois desde o seu ponto de vista o homem em sua
ex-sistência não é determinado pela natureza, de acordo com as posições biológicas ou
zoológicas. O que é próprio do homem no seu modo de ser se configura pela condição
de ele poder estar postado na clareira do ser, a ex-sistência do homem. O que o homem
é está na ex-sistência e se desdobra na clareira do ser. É que, para Heidegger, “as
plantas e os animais estão mergulhados, cada qual no seio do seu ambiente próprio, mas
nunca estão inseridos livremente na clareira do ser – e só esta clareira é ‘mundo’, por
isso, falta-lhes a linguagem”17. Ou seja, o homem tem mundo e os outros seres vivos,
ambiente. Portanto: o animal é carente de mundo. A partir disso, Heidegger reconhece
que o homem guarda sua essência na condição de ser mais do que simplesmente
homem, mais do que animal racional, em sua posição de estar jogado. Ele é pastor do
ser, não é pastor de um ente. Sua dignidade está em ser chamado pelo ser para guardar
sua verdade. O homem, por ser vizinho do ser, tem sua ex-sistência na proximidade que
é uma vigilância, um cuidado pelo saber. Heidegger faz sua crítica ao humanismo não

15
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 16.
16
Na explicação de Heidegger, o humanismo enquanto humanitas encontra sua primeira versão em
Roma, contrapondo homo humanus ao homo barbarus. Na incorporação da paideia herdada dos gregos o
humanismo se sedimenta na educação da cultura nessa matriz essencialmente romana, isto é, que se
encontrou com a cultura do helenismo. Também a Renascença dos séculos XIV e XV é uma renascença
romana e, consequentemente, incorpora a paideia grega. No humanismo do séc. XVIII, o seu
desdobramento combina essa mesma influência. Então, aqui o pensar em Heidegger afirma que a verdade
do homem como animal rationale, como pessoa ou se espiritual-anímico-corporal, em suma, não está à
altura da dignidade que lhe é própria e nesse aspecto essa filosofia sustenta um ideário que é contra o
humanismo HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Centauro, 2005. pp. 22-6.
17
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. pp. 27-8.

8
no sentido de inaugurar um pensamento anti-humanista. Ele quer justamente salvá-lo e,
para isso, a única via possível seria a construção de um novo sentido. Na sua
reformulação da palavra humanismo, ele apresenta o homem enquanto ex-sistente:
“postado num processo de ultrapassagem, na abertura do ser, que é o modo como o
próprio ser é; este projetou a essência do homem, como um lance, no ‘cuidado’ de si.
(...) Mundo é a clareira do ser no qual o homem penetrou a partir da condição de ser
projetado de sua essência”18. É o pensar que determina o lugar do ser, trabalhando na
edificação da casa do ser. Essa morada consiste em sua essência de Ser-no-mundo. Nas
suas palavras: “o discurso sobre a casa do ser não é uma transposição da imagem da
‘casa’ para o ser; ao contrário, um dia seremos mais capazes de pensar o que é ‘casa’ e
‘habitar’ a partir da essência do ser adequadamente pensada”19. A ex-sistência se instala
na linguagem, sendo a casa do ser e a habitação do humano, bem como habitação da
essência do homem. O ser está, assim, a caminho da linguagem, que é elevada à clareira
do ser e o ser requisita o pensamento. Pensar é trazer à linguagem isso que permanece à
espera do homem enquanto destino20.

Na crítica de Sloterdijk, ao defender a conciliação do homem com a palavra do


outro, Heidegger acaba insculpindo um homem mais preso do que nunca ao humanismo
clássico, deslocando uma função pedagógica para o centro da sua ontológica filosófica.
Eis o sentido que se deve dar a expressão o homem como pastor do ser. Esse é para
Heidegger o encargo do homem, guardar o ser, como um pastor que cuida do seu
rebanho na clareira, porém, em vez de gado, o que é confiado ao homem é o mundo
enquanto abertura. O que Heidegger propõe insere o homem numa tal formulação
domesticadora que nem a desbestialização humanista acreditaria ser realizável. Na
correspondência com o ser, ele propõe uma prisão para o homem nos muros da casa,
exigindo uma domesticação e um amansamento incomparáveis. Sloterdijk considera que
se formos extrair o essencial do ensaio de Heidegger, veremos que se trata de perquirir
se algo ainda amestra o ser humano frente ao ocaso do humanismo. Nessa perspectiva,
Heidegger ignorou uma pergunta fundamental concernente à diferença ontológica do
homem no início da história ao se expor na clareira. Trata-se de uma história do humano

18
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 64.
19
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 77.
20
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. pp. 51-85.

9
como animal aberto ao mundo, capaz de mundo e, neste sentido, de seres que se
congregam. A história real da clareira reúne narrativas de cunho antropológico na
exposição do surgimento humano-sapiens partindo do animal-sapiens, que Sloterdijk
procurou na história primordial da hominização em que o homem, em meio aos
mamíferos vivíparos, surge prematuramente, extrapolando o seu ambiente pela
inadaptação, mas dessa falha extraindo benefícios. O vir ao mundo do homem não pode
esquecer que o trajeto da constituição da própria espécie guarda relação com sua
imaturidade crônica, o que se vê como um insucesso no processo de vir a ser animal.
Fracassado como animal, o ser humano extrapola seu ambiente, ganhando o mundo no
sentido ontológico. Esse vir ao mundo é o ex-tático do humano, sua herança genética
que lhe põe em movimento. A casa do ser, entretanto, produz em conjunto com esse sair
ao mundo a possibilidade de viver a ex-tasi do estar no mundo, que consistiram nas
linguagens tradicionais. Estar-no-mundo e estar em si são a mesma confluência e o
limite entre a história natural e a história da cultura. Significa que o vir-ao-mundo se
traduziu por vir-à-linguagem. Na reconstituição da história da clareira, além desse
primeiro processo de entrada do humano nas casas da língua, há um segundo marco: na
tendência à aglomeração, começa-se a construir casas com as próprias mãos. Então os
seres humanos se tornam sedentários. A partir disso, se os humanos são acolhidos pela
linguagem, também passarão a ser domesticados por suas casas. Aqui configura uma
nova relação do humano com o animal. Inicia-se a era dos animais domésticos21.

Ver-se-á que o aspecto domesticador talvez seja o lado menos conflituoso da


história da casa, pois a clareira é simultaneamente o campo de batalha e locus de
decisão e seleção. Neste ponto chegamos a uma das afirmações mais importantes de
Sloterdijk: “onde há casas, há que decidir o que acontecerá às pessoas que as habitam;
nos factos e pelos factos, se decidirá quais os construtores que se elevarão à supremacia.
Na clareira se mostra porque metas lutam os humanos, logo que se revelam como
criadores de cidades e construtores de impérios22”. Isto enseja um convite para visitar os
escritos do filósofo das marteladas, que fortemente criticou o pastoreio platônico.

21
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 48-54.
22
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 54.

10
4. De Nietzsche a Platão e o mal-estar decisório: a criação/produção do homem no
governo da Zoopolítica

Nietzsche foi o filósofo que procurou radicalmente criticar a domesticação que,


desde Platão, subjugou o homem, por exemplo, no cenário em que Zaratustra vê casas23,
no entanto, com portas que homens da sua estatura não poderiam passar, pois teriam de
se curvar. Nessa passagem, citada literalmente por Sloterdijk, está sendo trabalhada a
crítica à concepção do homem que, enquanto tal, não é simplesmente observado,
selecionado e trazido à consciência política para melhor proveito do governo, senão que
toda coordenada política levaria à produção de um tipo específico de homem. Significa
dizer que o homem é criador do homem e, nesse contexto, o último homem corresponde
ao sucesso da domesticação do selvagem. Não seria, contudo, apenas o humanismo o
responsável por esse sucesso. É no horizonte da domesticação escolar que Sloterdijk
entendeu a mensagem de Nietzsche como um prenúncio das batalhas que seriam
travadas na clareira pelos poderes de produção humana. Zaratustra em seu passeio viu
que no uso de uma política de boa criação, combinando ética e genética, os homens
criaram um protótipo humano apequenado. A crítica que recusa a falsa inocência do
humanismo tem como certo que nada há de inocente em se criar homens para a
inocência. Esse o segredo humanista revelado por Nietzsche e que, hoje em dia, os
detentores do monopólio da criação dão continuidade de modo silente ao dizerem que
estão do lado do humano. O que Sloterdijk quer filtrar para a atualidade no texto
nietzschiano é o entrelaçamento de criação e domesticação que demarca a consciência
de produção humana que ele define com a palavra: antropotécnica24. Essa técnica
encontrou na leitura uma ferramenta eficiente de dominação humana.

A cultura da escrita que incentivou a alfabetização fomentou os resultados


seletivos, dividiu as sociedades e estabeleceu, em última análise, uma fratura entre
letrados e iletrados. Com essas distinções, Sloterdijk dirá que é possível se definir os

23
“Porque queria saber o que tinha acontecido ao homem durante a sua ausência: se se tornara maior ou
menor. E divisando uma fileira de casas novas, ficou admirado e disse: ‘que significam aquelas casas
novas? Na verdade, não foi nenhuma grande alma que as edificou para lhe servirem de símbolos. E
aqueles quartos e aquelas salas! Como poderão viver ali homens?’ (...) Por fim, disse com tristeza:
‘Todas as coisas se tornaram menores’. (...) A virtude, para eles, é o que modera e domestica; assim
fazem do lobo um cão, e do homem, o melhor animal doméstico do homem”. NIETZSCHE, Friedrich
Wilhelllm. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. pp.
151-4.
24
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 58-60.

11
homens pela distinção entre, de um lado, os animais que sabem ler e, de outro, os que
não sabem. Logo, os homens são animais que criam e são criados. E ninguém melhor do
que Platão para descrever esse modelo de governo que é traduzido por um parque
humano. Antes, diga-se que Sloterdijk entende que cada vez mais os homens se
encontram numa posição ativa acerca da definição da espécie, desprendendo-se da
condição de mero objeto, contudo sem que o façam de modo voluntário. Esse é o ponto
forte do seu texto, porque para ele, hoje em dia, há um mal-estar da decisão. Num tom
nietzschiano, o filósofo prevê que futuramente os seres humanos se rebaixarão
vergonhosamente se acaso colocarem no lugar de responsáveis por suas decisões um
ente divino ou algo equiparável. Daí que será uma postura ativa a formulação de um
código das antropotécnicas. Esse código modificará a noção clássica de humanismo,
tornando público que humanitas significa mais do que a amizade entre os homens: “o
ser humano representa o mais alto poder para o ser humano”25. Sloterdijk está certo de
que os próximos períodos serão decisivos para as definições de políticas da espécie.
Poder-se-á testemunhar se as fracções sociais dominantes saberão desenvolver
procedimentos eficazes de autodisciplina. A cultura contemporânea continua a ser o
espaço de combate entre os impulsos bestializantes e os domesticadores frente aos seus
media. Sloterdijk pressupõe um irrefreável movimento desinibidor e, de acordo com sua
perspectiva, se não for apresentada uma nova estrutura moderadora da violência – dado
que a escola perde a luta contra a indústria do entretenimento, a exemplo da televisão e
dos filmes violentos. Mas é algo incerto se nos encaminhamos para a modificação das
características da espécie com uma futura antropotécnica de planejamento genético26.

Eis que Sloterdijk recorre ao que denomina magna carta da politologia pastoral
europeia. Essas lições - um discurso prático sobre a criação dos homens - estão no
Político, de Platão, que já indicavam que pensar, desde então, significa um acesso à
verdade por meio da classificação frente à multiplicidade de coisas e conceitos. Platão
elabora o diálogo entre Sócrates e o Estrangeiro a fim de planejar a criação de um povo
ainda não existente. Platão entendeu por necessário mostrar que o discurso político
corresponde a uma comunidade de homens à semelhança de um jardim zoológico,
revelando que o problema do comportamento humano é um problema zoopolítico. “O

25
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 63.
26
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 64-5.

12
que se apresenta como uma reflexão sobre política é na realidade uma reflexão
fundamental sobre as regras de funcionamento de um Parque Humano”. Os parques
humanos são lugares nos quais os homens deliberadamente se colocam. Então,
Sloterdijk quer saber se a diferença que existe entre a população e a direção desse
zoológico humano é apenas de grau ou específica. A resposta platônica é a de que só
pode haver uma diferença, que é de inteligência e somente sofistas argumentariam que
os pastores são iguais ao rebanho. O verdadeiro criador, detentor do conhecimento, “se
acha mais perto dos deuses do que os confusos viventes de que cuida”27. As indicações
perigosas de Platão deixam entrever que a diferença pelo saber, agora na alta cultura,
implica em poder. A antropotécnica política de Platão já não é só domesticar, mas criar
exemplares humanos de acordo com um Estado ideal e isso tem início com a
classificação. Eis a doutrina do estadista que numa direção classificatória chega ao
homem, um bípede sem penas e que se condiciona a uma guarda voluntária. A perícia
do senhor platônico chega ao seu modelo de Estado desejado quando no uso da
antropotécnica saiba encontrar a via mais adequada para entrelaçar os óptimos do
gênero humano, as propriedades guerreiras e a sensatez humanista, equilibradamente no
tecido estatal da zoopolítica. Para Sloterdijk, Platão esquematiza o programa de uma
sociedade humanista que, num único humanista absoluto, define o amo da ciência
pastoral. A tarefa do super-humanista consistiria em planificar as “propriedades de uma
elite que deverá ser desenvolvida por si só”28.

No modelo da tecedura, Platão definiu o modo de governar que ajustaria a


natureza animal do humano com sua natureza intelectual. E se no curso da história
humana, o uso da antropotécnica se deu de forma inconsciente, chegou o momento de
dar continuidade a esse processo conscientemente. Fica bastante claro nas ideias de
Sloterdijk que toda decisão futura sobre estar no mundo diz respeito à condição humana
em sua fundamental condição biológica.

27
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 67-8.
28
No unilateralismo das forças bávaras o desejo de guerra aniquilaria a pátria. E o excesso intelectual
conduziria ao isolamento que poderia levar à escravização do país em razão do distanciamento dos
assuntos que são pertinentes ao Estado. SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma
resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’. Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007.
pp. 71-2.

13
5. Crítica da Razão Cínica: uma crítica ao humanismo

Apesar de contornar o sentido decadente do humanismo, sobretudo com a


eclosão de uma série de acontecimentos irreversíveis, Sloterdijk não compartilha da
atmosfera catastrófica de boa parte dos intelectuais da atualidade, não obstante o caráter
emergencial do seu postulado – pois supõe haver, a respeito da espécie, uma chamada à
decisão no presente histórico, que, por definição, pressupõe fundamentalmente os
postulados da Crítica da Razão Cínica.

No contexto da Crítica, o filósofo anunciou que a filosofia estava morrendo e


que a agonia dessa velha arte da pergunta prolongava-se porque sua missão não se
completara. Ao prosseguir no ambiente do Regras, vê-se algo dessa matriz que chega ao
fim. De toda maneira, Sloterdijk também é um leitor de Foucault (que, entre outras
ideias, se firma na concepção de que o poder não só é exercido negativamente,
constituindo também um caráter positivo) e a ênfase que o filósofo alemão procura
atribuir à relação saber-poder na Crítica (“lo que aquí proponemos, bajo un título que
alude a una gran tradición, es una meditación sobre la máxima ‘saber es poder’. (...)
Quien pronuncia esta máxima dice por una parte la verdad: penetrar en el juego del
poder”29) ganha continuidade no lastro do Regras, pois o espaço político foi então
concebido enquanto dinâmica de domínio e exercício do poder atrelado e dependente
das tecnologias que incidem sobre o humano - que nas conclusões do filósofo tem uma
natureza há muito conhecida pela filosofia. Se formos atentar às explicações de cunho
antropológico na articulação do autor, nesse aspecto da modelagem das características
da espécie com auxilio de técnicas modificadoras e formadoras do homem, realmente,
nada há de novidade com relação às atuais antropotécnicas, especificamente as
tecnologias de seleção genética, exceto por um detalhe. Agora, esse processo pode ser
operado, até mesmo no seu próprio curso, de certo modo, conscientemente. Nesse ponto
é como se o filósofo convidasse ao enfrentamento da decisão sobre o conceito de
humano, chamando à atenção para o cuidado de se evitar os labirintos do cinismo, pois
na noção pós-marxista, sabemos o que fazemos.

Como ficou bastante conhecido no meio intelectual, Sloterdijk ganha um lugar


de destaque na Alemanha pós-guerra a partir da publicação da Crítica da Razão Cínica.

29
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed. Siruela, 2007.
p. 14.

14
Nessa obra, o filósofo defende ter havido uma superação da concepção marxiana da
ideologia como falsa consciência, dizendo que na sua forma atual, ela expressa o que
ele mesmo cunhou como cinismo moderno, entendido como falsa consciência
esclarecida. Trata-se da consciência nada ingênua de quem sabe o que faz e ainda
continua fazendo, sem ilusão, sem erro e sem engano. Sloterdijk encontrou seu
patronímico no cinismo grego – Kynismo- de Diógenes de Sínope. Com respostas
astutas e contundentes, Diógenes fazia sua crítica irônica aos intelectuais prepotentes
como Platão; e aos poderosos, como Alexandre, que ele criticava por meio da sua forma
de viver sem posses. Portanto, discurso e modo de existir não se distanciavam no
cinismo grego. Com o desabrochar da modernidade, a crítica muda de lado, passando a
ser instrumentalizada pelos Estados desde os gabinetes políticos. É a oportunidade para
o advento do cinismo moderno, que acomoda sentidos opostos numa racionalidade que
se configura universalmente, permeando o individual e o coletivo.

Pela literatura, Sloterdijk identificou o advento desse processo confirmado no


discurso do Grande Inquisidor de Dostoiévski, um humanista de Estado que governa no
auge da Inquisição por meio da instrumentalização do humanismo cristão e que assume
não ter alternativa senão restringir a liberdade dos seus governados para o seu próprio
bem. O Grande Inquisidor, figura símbolo do conservadorismo institucional, não
passaria de uma vítima das circunstâncias. Igualmente, Sloterdijk viu o cinismo
moderno pela estética de Goethe que ilustra a dialética do senhor e escravo inscrita no
pacto entre Fausto e Mefistófeles, o que nada mais é do que o significado do pacto
demoníaco que intelectuais humanistas selam com o poder dominante ou até mesmo a
instrumentalização teórico-discursiva levada a cabo pelos detentores do poder a fim de
atender aos seus interesses, cumprindo o protocolo de justificação das ações políticas. O
Grande Inquisidor, representante de um conservadorismo institucional, é menos
semelhante à figura religiosa de um pontífice do que a de um Goebbels ou a de um
Stalin. No mesmo sentido, um Mefistófeles sem chifres e sem cascos não passaria de
um teórico positivista cujo pacto sela a relação saber-poder.

No espaço político, o cinismo apareceu mais violentamente na forma do


marxismo russo que condensou em sua história opressiva o sentido das duas narrativas
literárias. Isso permitiu entender que as pretensões de desvelamento oriundas da crítica
ilustrada não tiveram a façanha de deixar o poder sem máscara e, desta maneira,
modificar as estruturas sociais, conforme era a promessa. Outra vertente do cinismo

15
foram as políticas fascista e totalitária que simplesmente não escondiam sua violência,
pois ambas se apresentavam por uma nudez sem véus, deixando a crítica em estado de
mudez. Recentemente, o desmascaramento se tornou uma forma de crítica fisionômica
plebeia que, de acordo com Sloterdijk, deixou a crítica filosófica com o semblante
ressentido, sintetizando tal expressão no rosto de Adorno, quando, num protesto, suas
alunas – da geração sessenta e oito- puseram seus seios à exposição nua. Desde então,
acreditando viver a realidade dos fatos, uma crítica do corpo nu -neokynismo - se impôs
contra a crítica intelectual. A tradição filosfi´ca passa a ser, de certo modo,
desacreditada em suas ambições, como se não estivesse mais autorizada a dizer nada
além do que estivesse nas prateleiras empoeiradas de antigas bibliotecas. Teóricos não
seriam mais do que sonhadores que pouco ou nada conhecem da realidade vivida.

O cinismo opera, como se vê, sempre por duas vertentes que confluem num só
fim: o da ideologia que interessa aos cínicos no poder. Cinismo dos meios e cinismo dos
fins. Realismo e idealismo. Essa é a forma duplicada de uma consciência que se
autojustifica pela assunção de que nenhum meio é caro o suficiente perante fins
grandiosos. Um cinismo para a realidade do dia-a-dia e outro para aspirações à grandeza
dos projetos políticos. Essa racionalidade reconfigurada a partir da ideologia na
modernidade apresenta problemas que desde então são considerados insolúveis. E desde
esse livro, o humanismo é atacado por Sloterdijk, podendo-se considerá-lo um teórico
que procurou manter, em certa medida, uma linha de coerência discursiva. Agora,
oportuno que se analise uma importante crítica do autor a respeito da situação da Europa
no contexto mundial para que no último tópico possamos ligar todos os pontos e
produzir uma crítica a propósito da sua obra como um todo.

6. Se a Europa Despertar: a vontade de poder

Em 1994, cinco anos antes da conferência sobre o parque humano, Sloterdijk


lança o livro Se a Europa Despertar30. Nele, apresenta seus argumentos sobre o homem
europeu, este que, na sua visão, sempre protagoniza as inventividades realmente
importantes para o gênero humano. Essa obra traz, em linhas gerais, a crítica –num tom
quase histérico- ao unilateralismo dos EUA e as consequências que decorreram da
tomada do centro da cultura. Se a direção da cultura estava nas mãos da Europa de 1492

30
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002.

16
até 1945, de Colombo a Hitler, no pós-guerra esse centro de influência foi assumido
pelos EUA. Desde então, o americanismo condensou as potencialidades humanas tão
somente na capacidade para o consumo. Por consequência, um processo de desinibição
pela indústria do entretenimento promoverá, na sua tese, a extinção do humano.

De fato, tornou-se problemática, a partir desse período, a condição da Europa.


Sua letargia política é fortemente refletida na crise econômica dos últimos anos. Daí que
o filósofo considera necessária a retomada civilizacional no curso da história. Uma das
suas propostas, por exemplo, é a ampliação do número de integrantes da União
Europeia (UE). Na época em que Sloterdijk escreveu a obra, havia doze países
compondo a UE. Para ele, com vinte e seis Estados-membros seria possível começar a
deslocar o imperialismo inautêntico norteamericano. Seria o início de um novo percurso
com o auxilio da história do humanismo europeu e sua potencialidade inventiva que se
reengajaria pela inteligência elevada da Europa, apostando na sua imaginação política,
que revela há muito tempo sua missão. Se a Europa despertar da sua letargia política,
nesse projeto, significaria despertar para um sonho. Para Sloterdijk, essa é a região do
globo que há mais de quinze séculos, com todo tipo de experimento e perguntando
incessantemente o que realmente interessa à existência humana, concluiu que o homem
não pode estar largado à miséria. Esse é o seu projeto político: “compreendemos
paulatinamente que sonhar lúcido é, desde o início, a principal função da cultura
política”31. Têm-se aí a proposta de concepção afirmativa do homem, rechaçando o
desprezo que é inerente aos imperialismos.

Com esses registros, passaremos à análise do projeto Esferas, que, em suma,


procura dar conta da fundamentação antropológica do ser humano em sociedade. Ao
final teceremos as devidas considerações.

7. Uma introdução ao projeto Esferas: bolhas, globos, espumas

Em recente obra dividida em três volumes, Sloterdijk se lança numa expedição


fenomenológica com o interesse de apresentar um ambicioso projeto intitulado Esferas.
As Esferas são três. Pela ordem: Bolhas, Globo e Espumas. Cada uma delas encontra
explicação em tempo e lugar devidos. Na sua concepção: viver é questão de forma e,

31
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002. p. 74.

17
por isso, vivemos em esferas32. Aqui a influência de Platão já é evidente. No entanto, o
que ele pretende é retirar a ênfase do tempo, como fizera o Heidegger de Ser e Tempo, e
centralizar sua análise no estar-no-mundo. Melhor dizendo, no vir-ao-mundo, que
caracteriza a dinâmica espacial da sua obra.

A experiência existencial no espaço é entendida como experiência primeira do


humano. Não se compreendendo o espaço como algo neutro, constitui-se antes como
um constructo geométrico artificial, uma esfera que circunda o ser-aí, que dá guarida ao
humano, frágil e carente de proteção, física e psicologicamente. Essa com-formação
indica que o ser-aí é sempre ser- com. Contudo, a primeira crise do humano ocorreria
quando do estalar da esfera protetora, que ocorreria primeiramente no nascimento,
quando de improviso, se é golpeado pelo ar nos pulmões, rompendo-se com a clausura
materna de garantia total. Toda catástrofe estaria em se transferir de uma esfera à outra.
Sloterdijk procura demonstrar que o desenvolvimento da condição humana se considera
preponderantemente extrauterino. Por isso que culturas, visões de mundo, mentalidades,
Estados (macroesfera), enfim, todos seriam esferas imunizantes (autodefesas criativas)
que o humano cria para si, como numa estufa climatizada artificialmente a fim de se
proteger da ameaça advinda de um exterior que não lhe concerne. Daí que a inteligência
de uma cultura se traduziria na resolução da transferência dos espaços animados sem o
recurso à violência. Numa época de crise, identifica-se grande perigo na conformação
existencial em que um conglomerado de pessoas – as massas- sem relações humanas,
tenta conformar novas esferas, desencadeando ainda mais crises33. Vendo assim as
coisas, a experiência totalitária diz bastante sobre isso, pois se instituiu como uma
política de retorno desesperado ao útero.

A teoria das esferas pode ser entendida como uma grande narrativa sobre as
culturas e seus desdobramentos no tempo e no espaço. Daí que Sloterdijk denomina
toda a sua obra como uma novela hiperbólica do processo civilizatório, tornando patente
sua crença no projeto do esclarecimento que criticou na Crítica da Razão Cínica.

32
“La esfera es la redondez com espesor interior, abierta y repartida, que habitan los seres humanos en la
medida em que consiguen convertirse em tales. Como habitar significa siempre ya formar esferas, tanto
en lo pequeno como em lo grande, los seres humanos son los seres que erigen mundos redondos y cuja
mirada se mueve dentro de horizontes. Vivir em esferas significa generar la dimensión que pueda
contener seres humanos. Esferas son creaciones espaciales, sistémico-inmunológicamente efectivas, para
seres estáticos em los que opera el exterior”. SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología.
Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2003. p. 37.
33
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas (microsferología). Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2011. pp. 13-6.

18
Tratemos se sintetizar as três esferas em suas equações topológicas.

7.1 Bolhas

Nessa concepção, o ser humano é apresentado como um geômetra. A ideia


novelesca34 do seu projeto consiste em descrever o mundo, a consideração sobre os
espaços humanos, como um jogo de pérolas de cristal. Esfera é a expressão que se
emprega para definir uma ontologia relacional que produz os mais variados espaços
ocupados pelos viventes civilizados. São formas enquanto forças de efetivação da
realidade, organizações simbólicas e pragmáticas. A fenomenologia esférica, em última
análise, pretende formular uma critica da razão redonda35.

Neste sentido, a vida para o filósofo é também uma questão de formação: formar
esferas. Desde que haja vida humana, teremos globos habitados, estacionários ou em
movimento, uma espécie de vitalismo geométrico. Não é um acaso que nas primeiras
páginas da sua obra, Sloterdijk mencione a inscrição no pórtico da Academia de Platão,
advertindo que ali não se permitiria a entrada de quem não fosse geômetra. Quem se
atém um instante à capacidade simbólica dessas palavras rapidamente percebe a
amplitude que ganha uma advertência humorada: “yo no sólo colocaría la frase
platónica sobre la entrada a una academia sino sobre la puerta misma de la vida, si no
fuera un tanto indecente querer guarnecer com advertencias el ya de por sí demasiado
estrecho acesso a la luz del mundo...”36. Sloterdijk previne para que não se deixe passar
desatento pela segunda frase da Academia: também estaria excluído quem não estivesse
disposto a assumir o risco de se ver envolvido por um emaranhado de temas amorosos
com outros viventes do jardim dos teóricos. Inclusão, exclusão, amor e forma seguem a
mesma história e toda solidarização (ser-com) é a expressão da formação de esferas, um
processo de criação de espaços interiores que impulsiona o humano para a extensão do

34
Um interessante artigo sobre as Esferas em: LEAL, Edilene. Peter Sloterdijk: a novela dos espaços. São
Cristíóvão: Revista Tomos, jan./jun. de 2010. pp. 221-41.
35
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. p. 64-6.
36
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. p. 22.

19
aberto, experiência de transferência espacial que circunscreve os limites do meu
mundo37, dizendo quem sou pelo espaço que habito.

Em vista disso, na formulação do Esferas I (Bolhas), Sloterdijk tem como


proposta descrever o espaço humano no ser-junto, entendendo que seres humanos
produzem um interior chamado microesfera, um sistema de imunidade anímico, pondo
acento na dupla, não no indivíduo. A imunidade-eu dirá respeito à imunidade-nós.
Desde o princípio, em termos biológicos, o espaço humano existe bipolarmente, no
útero; e pluripolarmente, em situações mais avançadas nos entrelaçamentos animantes,
na vivência coletiva que forma algo como um campo de espelhos articulados por
diversos outros, refletindo sua luz no indivíduo. Dessas concepções de vizinhança,
aparecem proximidades como o amor, a amizade, a communitas, etc., que significa dizer
que onde há viventes juntos, haverá manutenção da mesma esfera de patência
(Heidegger), em que cada um tem acesso ao outro. Esfera I é uma ginecologia filosófica
dos espaços transicionais, é também, conforme seu próprio autor diz, a imersão no
abismo do nervosismo ontológico diante do co-existente, causador de estranheza: o
outro. Do mais distante ao mais próximo, ser-em-esferas significa uma relação
existencial básica que se impõe e reconstitui por necessidade a cada crise. Habitar um
espaço e inserir-se num receptáculo autógeno são expressões para dizer o mesmo a
respeito dos seres humanos nas suas experiências existenciais38. O que está em jogo
aqui é que viver em esferas é selar um pacto pneumático formando uma aliança que
proporcione uma intimidade bipolar39. No espaço espiritual, para além das concepções
teológicas, onde houver ar, haverá dois a respirar, tal como no mito adâmico em que o
Deus criador, num primeiro momento deu forma ao barro, e num segundo momento,
conferiu vida a essa forma de homem por um sopro de ar, fazendo-o viver à sua imagem
e semelhança. Adão e seu senhor se dividem mutuamente na origem de uma placenta
subjetiva; eles vivem da mesma placenta conformadora do Eu, nutrem-se do mesmo

37
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 22-4.
38
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. pp. 72-4
39
O que Sloterdijk entende por intimidade se refere, exclusivamente, a espaços interiores divididos,
compartilhados, interssubjetivos, em que participam grupos diádicos multipolares de humanos e que só
existem por haver proximidade, incorporações, invasões, cruzamentos e ressonâncias, identificações,
acabando por criar formas peculiares de espaço como receptáculos autógenos. Para Sloterdijk o globo
psíquico primitivo (pré-nascimento) não tem um único centro que irradie tudo, mas dois epicentros que se
interpelam mutuamente por ressonância. SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología.
Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2003. pp. 98-9.

20
material, com um sútil odor comum da intimidade e da vontade sinônima. O mistério do
mundo resulta da força de compenetração oriunda de pares que se estendem a
comunidades, grupos e povos40, da esfera micro à macro.

Ao contrário de pensadores do espaço, como Paul Virilio41, que designam um


atual processo miniaturização espacial progressiva, Sloterdijk percorre o caminho
inverso, até porque seu campo é epistemologicamente muito mais amplo, abrangendo
temas que vão do anímico e relacional à produção de imunidades cosmológicas ou
artificiais frente a um espaço que está longe se ser só físico. Daí que a constituição da
interioridade terá uma mútua conformação do exterior-mundo e, consequentemente,
conformação de si. Em última análise, o filósofo das esferas fala de um processo que
tende sempre para o mais amplo.

7.2 Globos

Numa investigação extensa, Em Esferas II, Sloterdijk relata as consequências da


expansão anímica das ocupações imperiais e cognitivas do mundo. Descreve a
constituição bipolar no ambiente da familiaridade até a sua abertura para uma
multiplicidade de polos: família, cidade, império e universo infinito. Por isso, a
microesfera é um espaço cuja capacidade de crescimento se vale da incorporação por
assimilação, mantendo o fluxo numa escalada para o mais abrangente. Trata-se de um
espaço elástico que se deforma e se reconforma para o mais amplo, a macroesfera, o
cosmos - a esfera protegida por deus – contido já aí um princípio de globalização
metafísica pela visão do velho mundo. Este gigantesco volume, de quase mil páginas,
ambiciona demonstrar que a esfera metafísica estava fadada ao fracasso, revelando o
conflito entre imunidade e infinidade. Nas suas palavras:

O destino de todos os sistemas metafísicos de imunidade se decide frente à


questão de se os seres abertos ao grande mundo, os seres humanos da época
dos impérios e cidades, conseguem dar plenamente o salto de autoabrigo
coletivo em comunidades cidadãs fortificadas à autogarantia individual, para
além de pátrias ocasionais. É de interesse existencial para eles saber com
clareza se seriam capazes de chegar a viver uma vida plena também no
estrangeiro mais remoto: uma questão cifrada para estes na consideração de
se eles, os mortais, que dependem de uma família e estão apegados ao solo,
poderiam familiarizar-se também com o universo exterior. Quanto exílio é

40
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 49-50.
41
VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Dom Quixote, 1999.

21
capaz de suportar o ser humano? Quanto desacostumados dos primeiros
lugares necessita a alma capaz de pensar para se recolher em si mesma? 42

A modernidade, nessa visão, destruiu o monocentrismo metafísico que prometia


a proteção de todos os seres pelo deus único, sua rotunda totalidade. Isso compreende o
início da expansão europeia desde 1492, que situa a largada à globalização terrestre43.
Na esteira de Nietzsche, Sloterdijk entende que a morte de deus representou uma
dissolução imunitária devastadora. Segundo ele, desde a idade moderna o homem em
seu mundo se depara com a necessidade de apreender a verdade de um exterior que não
diz respeito ao humano. Depois que a maior forma de imunização esférica se desfez,
não há quem tenha inventado uma envoltura protésica substituta à sua altura. A partir de
então, por todos os lados o ser humano é atravessado por exterioridades assustadoras
que exalam um frio espacial e extra-humano. Assim sendo, condenado ao exílio, o
homem moderno se expatriou no sem-sentido, acabando por perder o interesse por
bolhas de ilusão entretecidas por seus predecessores. Uma época em que começa a fazer
desaparecer a ilusão de que a pátria estaria no centro do universo e de que a terra estaria
envolta de proteções esféricas enquanto abrigos celestes forçou o ser humano a aprender
a viver sem suas cascas protetoras. Desde então, Estar-no-mundo passa a significar
defrontar-se com a existência sem abrigo. Desprovido de casca, o ser humano responde
ao estranhamento exterior com técnicas de aquecimento e políticas de climatização, no
esforço de compensar a falta de envoltura no espaço por um mundo civilizado
tecnológica e artificialmente44.

7.3. Espumas

Por último, Em Esferas III, esse processo de construir esferas artificialmente


leva o filósofo ao diagnóstico (elaborado também paralelamente noutros trabalhos45) da
forma de estar-no-mundo na modernidade em suas etapas finais, dessa circunscrição

42
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: globos. Macroesferologia. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. p. 309.
43
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. p. 20.
44
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 33-4.
45
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Claudia Cavalcanti.
São Paulo: Estação Liberdade, 1999. SLOTERDIJK, Peter. O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas
culturais na sociedade moderna. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: para uma teoria filosófica da Globalização. Tradução de
Manuel Resende. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.

22
temporal que insinua seu esgotamento a partir do séc. XX. Partindo dessas descrições,
para diagnosticar a atualidade e uma correspondente psicose epocal, Sloterdijk fala da
poliesferologia das espumas. Na sua proposta metafórica, as espumas, permeadas pelo
ar, são estruturas que se expandem e entram em colapso. A espuma só existe enquanto
forma autorreferente e vazia. Nada se segue a partir dela. Nessa leitura, a forma de vida
espumosa em seu caráter multifocal só poderia ter advindo das experiências do século
passado. A espuma revela que nada mais é central, pois tudo aspira a ser centro. Todo o
secundário e marginal também se centraliza. O acidental, o efêmero e o esponjoso não
permitiram nem mesmo o desprezo teórico, senão um lugar de destacado prestígio.
Basta ver a experiência intelectual que a psicanálise impôs, colocando em questão algo
rarefeito e insubstancial como o sonho e o inconsciente. Entretanto, na abordagem das
espumas, os indivíduos se caracterizam por se encontrar em espaços psíquicos isolados.
Em multidão desinibida, flutuam na água, sozinhos, como ilhas nomadizantes. Esse é o
individualismo produtor de unidades esponjosas que socialmente reivindicam cada vez
mais privilégios e menos necessitam do social, do ser-com. Todo indivíduo se torna um
sistema psíquico, um desatrelado, solto, pertencente a ninguém; órfão psíquico que a
partir de dentro da esfera de seus privilégios distintivos vê os outros como um míssil
que ameaça a sua ilha cósmica46. São indivíduos que não se orientam mais pela
repetição, nem pelo retorno. Isso porque, no processo geracional, são tanto novos como
últimos homens. A teoria das espumas se apresenta, na visão do autor, como uma
ontologia política dos espaços interiores animados, abrangendo o mais frágil como o
cerne da realidade contemporânea. Espuma é a palavra empregada para uma teoria das
estufas ampliadas. Portanto, é uma teoria que analisa as técnicas de climatização
simbólica dos espaços habitados por humanos e seus mecanismos de engenharia política
das construções e manutenções de unidades civilizadas47 da vida contemporânea.

Nas diversas obras paralelas ou mesmo conferências, notamos Sloterdijk como


um autor de um projeto teórico coerente com suas bases desde o início. Apresentado
esse panorama, no próximo tópico, procuraremos demonstrar que seu constructo teórico
guarda relação com seu desejo de reorientação civilizacional que atribui um papel
central à Europa frente à dinâmica do novo mundo e do novo homem.

46
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Claudia Cavalcanti.
São Paulo: Estação Liberdade, 1999. pp. 57-90.
47
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. pp. 27-35.

23
8. Conclusões

Em carta a Max Brod, Kafka perguntou ao seu amigo se seria possível atar uma
moça usando a escritura. Essa intuição revela o efeito de sedução da letra, resultado de
uma estratégia que, instrumentalizando a leitura, produz um efeito no outro: o leitor está
atado48. Eis a estratégia humanista. Se o humanismo está em crise, já não é mais sedutor
e, portanto, não mantém mais o outro atado às cercanias da casa do ser. Noutras
palavras, quando Sloterdijk sustenta que o humanismo entra em colapso, ele quer dizer
que o humanismo não consegue mais domesticar o humano.
Nesse sentido, como resposta à Carta Sobre o Humanismo de Heidegger,
passando por Nietzsche e sua crítica à domesticação do homem pelo homem, chegando,
finalmente, às recomendações de Platão sobre o pastoreio humano, Sloterdijk oferece o
diagnóstico da crise do humanismo, levantando a possibilidade de manipulação genética
cumprir a função domesticadora. Esse é o terreno da antropotécnica, isto é, a técnica de
domesticação e de produção do homem. Sloterdijk defende a necessidade de se definir
regras para o uso das ferramentas de seleção genética. Por mais que essa afirmação
pareça espantosa, o filósofo sustenta que, além de a seleção genética ser uma prática
usada há milénios, na atualidade, ela está disponível e em uso na engenharia social,
contudo de um modo desgovernado.
De tudo até aqui levantado se percebe que, se em Regras Para o Parque
Humano existe a receita política para o exercício do poder sobre o comportamento
humano, tendo-se em conta a animalidade do homem, é em Se a Europa Despertar que
o filósofo elabora uma receita de alianças para uma Europa pretensamente renovada e
mais potente. Resta bastante claro que Sloterdijk acredita na influência cultural como
potência domesticadora. Com isso, ele eleva ao plano político, com as Esferas, uma
ontologia espacial reconfigurada, reorganizando a noção de ser no espaço (ser-no-
mundo) e, assim, concebe um governo na orientação zoopolítica. Bastante claro nessa
percepção que se assume a desigualdade entre os seres humanos quase que naturalizada.
Até porque, o filósofo entende que na odisseia antropológica uns são objeto da seleção
antropotécnica e outros decidem sobre a seleção. Quem seleciona são os detentores do
saber-poder. Veja-se que, se uma retomada do monopólio cultural é necessária, um

48
PIGLIA, Ricardo. El Último Lector. Barcelona: Anagrama, 2005. pp. 39-40.

24
gigantesco constructo narrativo foi apresentado por meio de uma nova concepção da
existência humana. Desde a Crítica da Razão Cínica os motivos dessa reorientação vêm
sendo elaborados na forte crítica ao humanismo. Romper com o cinismo, segundo o
filósofo, é a medida necessária à civilização que, continuando nestas condições
ideológicas, não suportará mais um século. Por outro lado, deve-se constatar que a partir
do seu discurso é inviável não cair numa trama cínica em terreno político. Afinal, como
falar da ideologia estando-se envelopado pela ideologia? Não existe um locus
argumentativo meta-ideológico. Por outro lado, seriam as articulações da obra Crítica
uma pretensa blindagem para as suas propostas futuras? De qualquer sorte, desde o
princípio Sloterdijk é em certa medida franco no que diz. A Crítica da Razão Cínica
pode ser entendida como uma crítica do humanismo cínico e o filósofo leva isso até o
final.

Pela leitura do conjunto da obra há um detalhe bastante sensível, fazendo


aparecer as feridas e o orgulho de um intelectual alemão que arvorou seu sistema
filosófico numa espécie de defesa contra as ideologias que narraram a história do
mundo tomando a Alemanha nazista por grande vilã do séc. XX. O forte estigma da
culpa alemã oriunda do passado de guerras que culminou no Holocausto é enfrentado
por Sloterdijk com uma argumentação astuta. No lugar de ser uma mancha no passado
alemão e, portanto, o que também explica o receio do mundo de a Alemanha tornar-se
novamente uma potência, Sloterdijk vê o fator histórico como motivo de maturação
cultural, já que os EUA não passaram pela experiência de perder uma guerra, logo, não
incorporaram a sabedoria da decadência e da regeneração (nietzscheanamente falando).
Mais do que isso: o sentido que Sloterdijk dá à sua crítica ao humanismo parece ter
também o interesse de salvar a pátria. Sloterdijk parece querer aliviar o peso histórico
que carrega a Alemanha até hoje ao sinalizar que, desde Platão, cuja filosofia afeta por
mais de dois milênios a cultura ocidental, já estava planificado todo um projeto
eugenista, que foi executado de maneira literal só com as possibilidades modernas e por
uma ideologia cinicamente motivada, que, em definitivo, não era só nazista, nem só
fascista, mas essencialmente ocidental. Compreende-se, nessa linha, que a própria
crítica ao humanismo, primeiramente, elaborada por Heidegger foi uma estratégia de
quem continuou sendo um defensor da essência totalitária, porquanto pretendeu
deslocar a responsabilização da guerra para o berço humanista, insinuando que, sendo
humanismo e fascismo sinônimos, a responsabilidade, se devidamente observada,

25
caberia não apenas à Alemanha, mas à toda a cultura ocidental humanista. Quando
Heidegger diz: “precisamos abandonar o humanismo clássico”, ele também quer dizer
(tal como Goebbels diria em julgamento):“nós, alemães, somos tão responsáveis pelos
fatos quanto vocês. Eis nossa forma de vida ocidental e, por isso, não pensamos”. Esse
parece ser o inicio do cinismo que Sloterdijk pretendeu apontar, no discurso que
sobrecarregou a Alemanha até hoje. Daí que a Crítica da Razão Cínica precisou
desfazer os nós de uma história contada por aqueles que não apenas ganharam a guerra,
mas também o centro de influência cultural do mundo. Sloterdijk parece querer
demonstrar exatamente o mesmo que Heidegger quando aponta para Platão como o
autor do projeto eugenista ocidental e, por isso, mais de dois milênios de pensamento
filosófico estariam infectados por essa teoria que foi lida de forma trágica somente no
Sec. XX, quando levou ao extremo a relação saber-poder. Isso não é reforçado quando
Sloterdijk, no seu projeto Esferas, diz que Hitler foi um filósofo clássico? Logo, uma
crítica à razão cínica parece ser uma carta de exculpação, um livrar-se da dívida. Em
definitivo, nada mais convincente para ambos, Sloterdijk e Heidegger, do que o pós-
humanismo, já que o humanismo teria sido o verdadeiro responsável pelas atrocidades.
Não é à toa Sloterdijk ver no Grande Inquisidor - o pontífice que queima hereges para
honrar a deus - um humanista conservador.

O desdobramento desse ressentimento motivador da sua obra aparece na atual


disputa pela designação das formas de vida ocidentais que ensejou a construção de um
projeto de política futura com extensa fundamentação para a retomada do unilateralismo
da Europa. Não existe contradição discursiva quando ele sugere o uso da
antropotécnica genética como mecanismo de domesticação humana e contenção da
violência. Com essa concepção, Sloterdijk incorpora num sentido radical o dualismo
saber-poder. Não surpreende que hoje a União Europeia seja composta por vinte e oito
países, tal como na sua orientação em 1994 que reconhecia a necessidade da união de
forças. Também não assusta que o presidente da Comissão Europeia, José Manuel
Durão Barroso49, no discurso do dia oito de maio de 2014, tenha feito uso da expressão
sonho lúcido de Sloteredijk e mencionado o nome do filósofo em sua fala.
Evidentemente, Sloterdijk deseja salvar a Europa com a retomada do centro, almejando
nessa mesma empresa salvar seus filósofos do estigma nazista. É justamente o que ele

49
Disponível em: “http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-14-355_pt.htm”.

26
almeja em diversas passagens das suas obras quando tenta salvar Heiddeger50 (este que
Rüdiger Safranski51 chamou de Fausto moderno), chegando a considerá-lo um professor
universitário ingênuo quando acreditou na política hitlerista52. Não poderia ser diferente
com relação a uma das suas mais fortes influências, que foi Nietzsche, ao dizer que
somente detratores veriam nos seus livros alguma semelhança com políticas fascistas -
dado que toda forma de humilhação do homem acaba por ser antagônica à forma de
elevá-lo asseverada por Zaratustra53. Salvando a Europa e salvando os seus filósofos,
Sloterdijk quer salvar a filosofia da morte anunciada em carta aberta. Para ele, é tempo
de reinventar a arte de pensar, mesmo que se chame isso por outro nome, como por
exemplo, Biosofia, em afinidade com as biotecnologias – que, por exemplo, trabalham
com a conformação dialógica ser-ambiente.

Deve-se destacar, de toda sorte, que Sloterdijk chama à atenção para questões
decisivas do nosso tempo, tanto no plano internacional, quanto nacional. O antigo
método do humanismo de educar pelas artes, de formar e domesticar o indivíduo pela
leitura se encontra desgastado nas sociedades de massa. Deixa-se um espaço aberto para
os saberes legitimados nas mãos do governo zoopolítico. Eis a possibilidade de
ocupação da medicina genética no âmbito de domesticação do homem. Essa constatação
elucida, por exemplo, acontecimentos que dizem respeito ao nosso território, conforme
elencamos. Em 1997, foi publicado o experimento que resultou no primeiro clone de um
mamífero, a ovelha Dolly. Em 2001, foi divulgado o primeiro clone humano a partir de
células somáticas. Em 2003, o Projeto Genoma anunciou o sequenciamento e o
mapeamento de todos os genes humanos. Em 2008, foi noticiado no Reino Unido que
laboratórios já haviam produzido 150 híbridos contendo genética humana e animal.
Logicamente, quando se fala em seleção genética não se pode esquecer que no ano de
2008 o STF permitiu o a manipulação de células embrionárias em estudos para,
futuramente, em nome do bem da população, tornar viável a descoberta da cura de

50
A novela sobre Heidegger ainda irá longe. Com a futura publicação dos seus cadernos autobiográficos,
os chamados “cadernos negros”, o debate em torno da sua participação política no nazismo promete
colmatar algumas lacunas. Heidegger chegou a formular a crítica ao pensamento calculista dos judeus,
mas, em 1933, conforme Peter Trawny, Heidegger dissera que as coisas ainda não estavam tão claras para
ele, vindo a afastar-se do reitorado por em 1934, por identificar na política totalitária uma arma bélica,
impregnada de técnica. Disponível em: “http://www.dw.de/cadernos-autobiogr%C3%A1ficos-reavivam-
debate-sobre-heidegger-e-o-nazismo/a-17488624”.
51
SAFRANSKY, Rüdiger. Heidegger: um filósofo da Alemanha entre o bem e o mal. Tradução de De
Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005.
52
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed. Siruela, 2007.
53
SLOTERDIJK, Peter. O Quinto “Evangelho” de Nietzsche. Tradução de Flávio Beno Siebeniechler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

27
diversas doenças. Também não está desvinculada de todo esse emaranhado a
promulgação da Lei 12.654/2012, que permitiu a extração de material genético de quem
for condenado por crime violento contra a pessoa. Aqui já está formalmente declarado o
governo da zoopolítica em nosso país. Quando se fala em controle da violência por
meio das biotecnologias, rapidamente, se pode prever o entusiasmo das correntes do
positivismo lombrosiano revitalizadas e a consequente pergunta pelo fator genético
como predisposição ao crime.

A preponderância no espaço como correção ontológica, que dava maior


relevância ao tempo, agora começa a fazer sentido em termos ideológicos. Se a
antropotécnica tem o potencial de chegar à guerra como última parada, essa guerra não
será senão aquela que estrategicamente tem de gerar o colapso do ambiente, não mais
do inimigo. É que o humano não está no espaço, ele porta o espaço dentro de si, de
modo que Sloterdijk, convenientemente, está em sintonia com o posicionamento da
medicina genética, segundo o qual os genes são condicionados pelo ambiente, e este é
construído enquanto espaço artificial. Ou seja, nessa abordagem há um evidente
distanciamento do determinismo biológico mais grosseiro, como noutras formas de
positivismo renovado. Nem mesmo os geneticistas acreditam que o gene é a causa
determinante de um comportamento. Aqui Sloterdijk segue a cartilha platônica na
procura dos meios mais eficientes para influenciar o comportamento humano. É lógico
chegar à conclusão de que na constituição espacial em uma época na qual a técnica é
empregada como meio para construir mecanismos imunizantes, esse humano é também
concebido artificialmente, antes das possíveis intervenções genéticas. Ao que tudo
indica, Sloterdijk elaborou seu ideário, convenientemente, em sintonia com as novas
ciências. Igualmente, ao se reivindicar uma regulação pelos direitos do parque humano,
o filósofo reclama para a esfera de poder estatal, assuntos relacionados às vidas
particulares das pessoas em geral. De todas essas constatações, consideramos que
Sloterdijk não foi radical em sua crítica, preferindo justificar um elitismo e um
conservadorismo que, em determinado grau, pode-se entender como cinismo ao pé da
letra.

Finalizando este escrito, concordamos com Sloterdijk quando diz que: “a nova
política começa, para nós, com a arte de criar palavras que, a bordo da realidade,

28
permitam descortinar o horizonte”54. Sua provocação pretende atacar todo descaso com
relação à construção artificial do humano, vendo nisso talvez uma última possibilidade
de salvar o humanismo do seu ocaso. Sloterdijk é um autor em cujo corpo ressoa uma
pergunta fundamental da nossa época: o que é o humano? As biotecnologias exigem
também uma decisão, pondo em nossas mãos a pergunta sobre o lugar reservado à
antropotécnica, uma chamada à reorganização da vida em sociedade como um evento
histórico a ser promovido. Fato é que passamos por transformações profundas. E nesse
processo o humano está sendo reformulado em seu conceito e compreensão. Nessa
reformulação avista-se uma disputa, que é conceitual. E que é humanista? Mas será que
essa disputa levará novamente a humanidade aos conflitos imperialistas como no
passado?

Talvez Heidegger tenha dado alguma pista quando disse: “a disputa entre
pensadores é a ‘disputa amorosa’ da mesma questão. Ela auxilia-os alternadamente a
penetrar na simples participação no mesmo, a partir do qual eles encontram a docilidade
no destino do ser”55. Essa disputa não é de uma simples choupana, senão do seu bem
mais precioso: o humano. Não resta dúvida, a pergunta pelo ser é fundamentalmente
política e esta é, como se percebe, um parque temático para filósofos - que desde
antigos viram no livro o seu objeto de amor, mas também um caminho para a
dominação cultural.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias.


São Paulo: Centauro, 2005.

LEAL, Edilene. Peter Sloterdijk: a novela dos espaços. São Cristíóvão: Revista Tomos, jan./jun.
de 2010. pp. 221-41.

MARQUES, J. O. de A. Sobre as regras para o parque humano de Sloterdijk. São


Paulo: PUC, 2004. v. 4, n. 2. pp. 363-81.

54
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002. p. 79.
55
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 42.

29
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelllm. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Heloisa da
Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005.

PIGLIA, Ricardo. El Último Lector. Barcelona: Anagrama, 2005.

SAFRANSKY, Rüdiger. Heidegger: um filósofo da Alemanha entre o bem e o mal.


Tradução de De Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005.

SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed.
Siruela, 2007.

SLOTERDIJK, Peter. “El hombre operable; Notas sobre el estado ético de la


tecnología génica”, en Revista ARTEFACTO, 4: 91-105. URL= <http://www.revista-
artefacto.com.ar/revista/nota/?p=91>. Conferencia del 19 de mayo de 2000, en el
Centro de Estudios Europeos (CES) de la Universidad de Harvard, EE UU.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2003.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: globos. Macroesferologia. Tradução de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2004.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro


Reguera. Madrid: Siruela, 2004.

SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de


Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

SLOTERDIJK, Peter. O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade
moderna. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

SLOTERDIJK, Peter. O Quinto “Evangelho” de Nietzsche. Tradução de Flávio Beno


Siebeniechler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.

SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte. Tradução de Carlos Correia Monteiro de


Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2007.

SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: para uma teoria filosófica da Globalização.


Tradução de Manuel Resende. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.

30
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano. Tradução de Manuel Resende.
Coimbra: Angelus Novus, 2007.

SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São


Paulo: Estação Liberdade, 2002.

SLOTERDIJK, Peter. Sin Salvación: Tras las Huellas de Heidegger. Tradução de Joaquín
Chamorro Mielke. Madrid, 2011.

VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Dom Quixote,
1999.

31

Você também pode gostar