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Resumo: o presente artigo tem por objetivo realizar uma analise do ideário filosófico de
Peter Sloterdijk e desenvolver uma crítica final. Destacam-se dois pontos fortes do seu
trabalho: (a) Crítica da Razão Cínica; e (b) Regras Para o Parque Humano. Na sua
perspectiva, as chamadas antropotécnicas colocam em pauta uma decisão política sobre
a espécie humana. Nesse sentido, Sloterdijk aventa a possibilidade de se fazer uso da
engenharia genética como mecanismo de contenção da violência desinibida constatada
no mundo atual. Em sua compreensão antropológica, a história humana é definida pela
dinâmica envolvendo seleção, domesticação e exposição do homem. De um lado estão
os domesticados. De outro, os domesticadores - estes que escolhem as ferramentas de
seleção, no governo denominado zoopolítico. Assim, as antropotécnicas são
responsáveis por produzir o homem, não sendo exclusividade das atuais biotecnologias
intervir na estrutura humana. Com isso, entra em cena a sua crítica à violência na
atualidade como produto da indústria do entretenimento, que dá vazão à animalidade do
humano. Eis o motivo para anunciar o colapso do humanismo - entendido como
instrumental inibidor da violência pela leitura.
1
1. INTRODUÇÃO
Na estrutura mais íntima do humanismo, como sua alma mesma, agita-se
preso o monstro que, como fascista, faz do mundo prisão. Adorno, Theodor
W. Minima Moralia.
1
Disponível em: http://oglobo.globo.com/sociedade/mostra-reproduz-zoo-humano-que-exibia-negros-na-
noruega-12627773. Acessado em 03/08/14.
2
Disponível em: “http://www.excelsior.com.mx/global/2014/05/17/959854”. Acessado em 03/08/14.
3
Superando metade da população da Noruega à época que tinha um pouco mais de dois milhões de
habitantes.
4
Disponível em: “http://actualidad.rt.com/cultura/view/128376-zoologico-humano-racismo-noruega”.
Eventos relacionados também analisados neste texto:
“http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186”. Acessado em 03/08/14.
5
SLOTERDIJK, Peter. Sin Salvación: Tras las Huellas de Heidegger. Tradução de Joaquín Chamorro
Mielke. Madrid, 2011. p. 100.
2
com os saberes atuais, a partir das formas e das relações dessa produção por meio de
técnicas do extase, permitindo-se interpretar o homem no mundo. Trata-se, em ultima
análise, de compreender que se trata de uma tecnologia de modelagem das
características biológicas do homem. Atualmente, um exemplar da antropotécnica que
ganha destaque é a ciência genética, que promete novas formas de intervir no gene.
Rapidamente, essas novidades se tornam o estopim para conflitos discursivos, que veem
a necessidade de se elaborar um novo conceito de humano frente ao avanço das
biotecnologias. Neste contexto, aventa-se a possibilidade de refrear a violência humana
com o emprego da tecnologia genética. Seria a maneira de se tornar o homem mais
facilmente domesticável. Essa hipótese foi levantada pelo filósofo alemão Peter
Sloterdijk6.
6
Sloterdijk é professor na universidade de Karlsruhe - cidade em que nasceu, no ano de 1947. Desde
2002, tornou-se bastante conhecido na Alemanha pela participação no programa de televisão Quarteto
Filosófico, com participação de Rüdiger Safranski, chegando ao fim em 2012. No meio intelectual, seu
nome ganha reconhecimento com a publicação do livro Crítica da Razão Cínica, em 1983, e com a
conferência de 1999, na Baviera, que gerou forte polêmica, pois incendiada por integrantes do
establishment filosófico alemão – Jürgen Habermas e seus discípulos. Sloterdijk suportou o peso
atmosférico de uma Alemanha pós-guerra. No final dos anos setenta, sua influência intelectual estava
vinculada à Escola de Frankfurt e ao complexo depressivo da esquerda, da qual se considerava um
adepto. Nesse período, viajou para a Índia e viu na nova fase uma distinção determinante na futura
orientação de sua vida intelectual. Com essa experiência, o filósofo reconheceu que o sentido da
mobilidade encontrou seu verdadeiro caminho, precisamente nesse movimento empreendido pelo ser
humano quando escreve a próxima página da sua vivência, identificando na viagem, portanto, o sentido
de sua mudança radical. Em razão dessa metamorfose, ele confessa ter ainda forças inspiradoras que lhe
dão impulso para arriscar novas ideias, método que denomina intoxicação voluntária. Toda a energia vital
que colhera noutro território se transformou na obra que lhe permitiu repensar e reposicionar a filosofia
nos anos oitenta. Trata-se do livro mais lido desde o pós-guerra na Alemanha, intitulado Crítica da Razão
Cínica, de 1983. De lá para cá, ele vem publicando diversos livros e investindo em conferências que têm
gerado alvoroço no campo intelectual e midiático SLOTERDIJK, Peter. O Sol e a Morte. Tradução de
Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Lisboa: Relógio D’Água, 2007.
3
Sloteredijk vê o desterro das práticas de aparência humanista como resultado
lógico e principal do presente, afetando o que numa terminologia heideggeriana seria
habitar a linguagem. A casa do ser desaparece e o que se constitui como uma
característica fundamental da história técnica e intelectual, por conta da tecnologia, é
que se está organizando a linguagem e a escritura de outra forma, bastante diferente das
interpretações tradicionais (religião, metafísica, humanismo). Nesse rumo, não se
constrói mais a casa do ser no sentido de aproximar o distante. Falar e escrever em
épocas de códigos digitais não se realiza mais como transmissão, o que promoveria uma
conciliação com aquilo que é externo. E isso foi algo que Heidegger havia formulado ao
dizer que a falta de morada seria o destino do mundo, dado que a tecnologia é um
destino que faz parte da história do ser7. No estágio atual do mundo, o cerne de questões
mais extremas exige colocar no espaço de discussão a problemática do processo
civilizacional. A técnica permite novas formas de conceber os agregados humanos. A
escrita e a fala se perdem no sem sentido perante a dominação que exercem os códigos
digitais e as transcrições genéticas. É o que será enfocado nos próximos tópicos.
7
SLOTERDIJK, Peter. “El hombre operable; Notas sobre el estado ético de la tecnología génica”, en
Revista ARTEFACTO, 4: 91-105. URL= <http://www.revista-artefacto.com.ar/revista/nota/?p=91>.
Conferencia del 19 de mayo de 2000, en el Centro de Estudios Europeos (CES) de la Universidad de
Harvard, EE UU.
8
Sobre a polêmica desencadeada pela conferência de Sloterdijk e a questionável credibilidade da postura
de Habermas, ver: MARQUES, J. O. de A. Sobre as regras para o parque humano de Sloterdijk. São
Paulo: PUC, 2004. v. 4, n. 2. pp. 363-81.
4
Retomemos o início da sua crítica: “os livros, disse uma vez o poeta Jean Paul,
são cartas volumosas dirigidas aos amigos”9. Para conceber uma leitura antropológica
da domesticação do humano, são utilizadas duas palavras-chaves, que, aliás, dão o
sentido à discussão sobre o colapso do humanismo: inibição e desinibição. A inibição
humanista, nessa acepção, encontra seu nascedouro nas práticas da leitura da
Antiguidade, cuja finalidade era a de domesticar e pacificar o homem pela leitura.
Sloterdijk vê nas palavras do poeta a natureza e a função do humanismo. A carta,
porém, além de ser um instrumento comunicativo de amigos distantes, opera de uma
maneira não manifesta: ela projeta uma sedução à distância: um convite para o leitor
entusiasmado fazer parte de uma comunidade de amantes de livro. Essa transmissão de
cartas extensas estabeleceu seu elo mais importante na formação de uma cultura letrada
na apropriação romana dos textos gregos e que, após a queda do Império, as culturas
europeias posteriores se tornaram suas sucessoras. Esse o fantasma comunitário que
subjaz todo humanismo: uma comunidade que lê os mesmos livros. Humanitas, desde
Cícero, é expressão que designa as consequências da alfabetização. Desde então, a
própria filosofia reuniu seguidores pelo amor, pela amizade. E com a emergência do
Estado-Nação moderno, a leitura deixa de ser privilégio de uma elite. Mas como uma
espécie de seita, os humanizados dão inicio a um projeto expansionista. Ou seja, o
humanismo ganha um caráter pragmático, evidenciado nos Estados dos séculos XIX e
XX, como forma de instituir uma sociedade literária - modelo normativo de sociedade
política10.
9
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 21.
10
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 21-6.
5
humanista, Sloterdijk segue a linha crítica que vê no humanismo a eterna insurgência
contra uma espécie de violência congênita do humano. O problema é que as épocas de
maior barbárie foram aquelas em que o humanismo foi invocado como pretexto. Daí
que a pergunta sobre a manutenção do humanismo pressupõe o interesse de continuar a
tendência humana à selvageria. Ou seja, é bastante evidente nas palavras do filósofo que
em vez de se negar a animalidade do humano, melhor reconhecê-la, numa medida
adequada, e esse é o modelo de governo já reconhecido nos preceitos realistas de Platão.
O excesso humanista, repreendendo totalmente o lado animal do humano, teve seu
maior exemplo na eclosão da barbárie do séc. XX. A grande questão é que a
animalidade tem de ser reconhecida a fim, consequentemente, de ser domesticada. Na
visão de Sloterdijk, atualmente ocorre um descarrilamento da violência quando o poder
se manifesta sem freios, especialmente pelos meios de entretenimento que abrem todas
as portas da desinibição. Mas isso vem a indicar um detalhe importante. As sociedades
da alta cultura tornam sensível o fenômeno humanista de lidar com o humano aos sinais
simultâneos de duas forças modeladoras, denominadas como influxos inibitórios e
desinibitórios11. Assim, dirá o filósofo que:
11
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 27-31.
12
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 32.
6
também seria suscetível às influências externas que dão vazão à bestialidade.
Entretanto, há uma segunda constatação. Ao retornar à sua casa, o humanista concluiria
que a natureza é inseparável dos media domesticadores e, portanto, bastaria escolher as
ferramentas mais adequadas para afetá-la. O humanista então deveria romper com os
hábitos propícios à bestialidade potencial e da direção desumanizadora da “vociferante
matilha do espetáculo”13.
13
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 32-4.
14
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 37.
7
e, portanto, fundamentos todos metafísicos. Heidegger define como essencialmente
necessário - no contexto em que ainda não pensamos- escutar o que o ser tem para
dizer, na sua historicidade, a fim de somente com esse trabalho meditativo poder dizer o
que resta ser dito; e então “o homem será agraciado com a devolução da casa para
habitar na verdade do ser”15. Assim, o pensar teria a missão de pensar o mundo no seu
sentido próprio. Para isso, não seria mais aceitável recorrer ao auxílio da Antiguidade,
como faziam os humanismos que ele criticava, por conceber sua potencialidade
destrutiva. Esse humanismo que Heidegger ataca deixa de perguntar sobre a relação do
ser com o humano, tornando-se essa uma pergunta inexistente em razão da sua origem
metafísica16.
15
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 16.
16
Na explicação de Heidegger, o humanismo enquanto humanitas encontra sua primeira versão em
Roma, contrapondo homo humanus ao homo barbarus. Na incorporação da paideia herdada dos gregos o
humanismo se sedimenta na educação da cultura nessa matriz essencialmente romana, isto é, que se
encontrou com a cultura do helenismo. Também a Renascença dos séculos XIV e XV é uma renascença
romana e, consequentemente, incorpora a paideia grega. No humanismo do séc. XVIII, o seu
desdobramento combina essa mesma influência. Então, aqui o pensar em Heidegger afirma que a verdade
do homem como animal rationale, como pessoa ou se espiritual-anímico-corporal, em suma, não está à
altura da dignidade que lhe é própria e nesse aspecto essa filosofia sustenta um ideário que é contra o
humanismo HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Centauro, 2005. pp. 22-6.
17
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. pp. 27-8.
8
no sentido de inaugurar um pensamento anti-humanista. Ele quer justamente salvá-lo e,
para isso, a única via possível seria a construção de um novo sentido. Na sua
reformulação da palavra humanismo, ele apresenta o homem enquanto ex-sistente:
“postado num processo de ultrapassagem, na abertura do ser, que é o modo como o
próprio ser é; este projetou a essência do homem, como um lance, no ‘cuidado’ de si.
(...) Mundo é a clareira do ser no qual o homem penetrou a partir da condição de ser
projetado de sua essência”18. É o pensar que determina o lugar do ser, trabalhando na
edificação da casa do ser. Essa morada consiste em sua essência de Ser-no-mundo. Nas
suas palavras: “o discurso sobre a casa do ser não é uma transposição da imagem da
‘casa’ para o ser; ao contrário, um dia seremos mais capazes de pensar o que é ‘casa’ e
‘habitar’ a partir da essência do ser adequadamente pensada”19. A ex-sistência se instala
na linguagem, sendo a casa do ser e a habitação do humano, bem como habitação da
essência do homem. O ser está, assim, a caminho da linguagem, que é elevada à clareira
do ser e o ser requisita o pensamento. Pensar é trazer à linguagem isso que permanece à
espera do homem enquanto destino20.
18
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 64.
19
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 77.
20
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. pp. 51-85.
9
como animal aberto ao mundo, capaz de mundo e, neste sentido, de seres que se
congregam. A história real da clareira reúne narrativas de cunho antropológico na
exposição do surgimento humano-sapiens partindo do animal-sapiens, que Sloterdijk
procurou na história primordial da hominização em que o homem, em meio aos
mamíferos vivíparos, surge prematuramente, extrapolando o seu ambiente pela
inadaptação, mas dessa falha extraindo benefícios. O vir ao mundo do homem não pode
esquecer que o trajeto da constituição da própria espécie guarda relação com sua
imaturidade crônica, o que se vê como um insucesso no processo de vir a ser animal.
Fracassado como animal, o ser humano extrapola seu ambiente, ganhando o mundo no
sentido ontológico. Esse vir ao mundo é o ex-tático do humano, sua herança genética
que lhe põe em movimento. A casa do ser, entretanto, produz em conjunto com esse sair
ao mundo a possibilidade de viver a ex-tasi do estar no mundo, que consistiram nas
linguagens tradicionais. Estar-no-mundo e estar em si são a mesma confluência e o
limite entre a história natural e a história da cultura. Significa que o vir-ao-mundo se
traduziu por vir-à-linguagem. Na reconstituição da história da clareira, além desse
primeiro processo de entrada do humano nas casas da língua, há um segundo marco: na
tendência à aglomeração, começa-se a construir casas com as próprias mãos. Então os
seres humanos se tornam sedentários. A partir disso, se os humanos são acolhidos pela
linguagem, também passarão a ser domesticados por suas casas. Aqui configura uma
nova relação do humano com o animal. Inicia-se a era dos animais domésticos21.
21
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 48-54.
22
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 54.
10
4. De Nietzsche a Platão e o mal-estar decisório: a criação/produção do homem no
governo da Zoopolítica
23
“Porque queria saber o que tinha acontecido ao homem durante a sua ausência: se se tornara maior ou
menor. E divisando uma fileira de casas novas, ficou admirado e disse: ‘que significam aquelas casas
novas? Na verdade, não foi nenhuma grande alma que as edificou para lhe servirem de símbolos. E
aqueles quartos e aquelas salas! Como poderão viver ali homens?’ (...) Por fim, disse com tristeza:
‘Todas as coisas se tornaram menores’. (...) A virtude, para eles, é o que modera e domestica; assim
fazem do lobo um cão, e do homem, o melhor animal doméstico do homem”. NIETZSCHE, Friedrich
Wilhelllm. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. pp.
151-4.
24
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 58-60.
11
homens pela distinção entre, de um lado, os animais que sabem ler e, de outro, os que
não sabem. Logo, os homens são animais que criam e são criados. E ninguém melhor do
que Platão para descrever esse modelo de governo que é traduzido por um parque
humano. Antes, diga-se que Sloterdijk entende que cada vez mais os homens se
encontram numa posição ativa acerca da definição da espécie, desprendendo-se da
condição de mero objeto, contudo sem que o façam de modo voluntário. Esse é o ponto
forte do seu texto, porque para ele, hoje em dia, há um mal-estar da decisão. Num tom
nietzschiano, o filósofo prevê que futuramente os seres humanos se rebaixarão
vergonhosamente se acaso colocarem no lugar de responsáveis por suas decisões um
ente divino ou algo equiparável. Daí que será uma postura ativa a formulação de um
código das antropotécnicas. Esse código modificará a noção clássica de humanismo,
tornando público que humanitas significa mais do que a amizade entre os homens: “o
ser humano representa o mais alto poder para o ser humano”25. Sloterdijk está certo de
que os próximos períodos serão decisivos para as definições de políticas da espécie.
Poder-se-á testemunhar se as fracções sociais dominantes saberão desenvolver
procedimentos eficazes de autodisciplina. A cultura contemporânea continua a ser o
espaço de combate entre os impulsos bestializantes e os domesticadores frente aos seus
media. Sloterdijk pressupõe um irrefreável movimento desinibidor e, de acordo com sua
perspectiva, se não for apresentada uma nova estrutura moderadora da violência – dado
que a escola perde a luta contra a indústria do entretenimento, a exemplo da televisão e
dos filmes violentos. Mas é algo incerto se nos encaminhamos para a modificação das
características da espécie com uma futura antropotécnica de planejamento genético26.
Eis que Sloterdijk recorre ao que denomina magna carta da politologia pastoral
europeia. Essas lições - um discurso prático sobre a criação dos homens - estão no
Político, de Platão, que já indicavam que pensar, desde então, significa um acesso à
verdade por meio da classificação frente à multiplicidade de coisas e conceitos. Platão
elabora o diálogo entre Sócrates e o Estrangeiro a fim de planejar a criação de um povo
ainda não existente. Platão entendeu por necessário mostrar que o discurso político
corresponde a uma comunidade de homens à semelhança de um jardim zoológico,
revelando que o problema do comportamento humano é um problema zoopolítico. “O
25
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. p. 63.
26
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 64-5.
12
que se apresenta como uma reflexão sobre política é na realidade uma reflexão
fundamental sobre as regras de funcionamento de um Parque Humano”. Os parques
humanos são lugares nos quais os homens deliberadamente se colocam. Então,
Sloterdijk quer saber se a diferença que existe entre a população e a direção desse
zoológico humano é apenas de grau ou específica. A resposta platônica é a de que só
pode haver uma diferença, que é de inteligência e somente sofistas argumentariam que
os pastores são iguais ao rebanho. O verdadeiro criador, detentor do conhecimento, “se
acha mais perto dos deuses do que os confusos viventes de que cuida”27. As indicações
perigosas de Platão deixam entrever que a diferença pelo saber, agora na alta cultura,
implica em poder. A antropotécnica política de Platão já não é só domesticar, mas criar
exemplares humanos de acordo com um Estado ideal e isso tem início com a
classificação. Eis a doutrina do estadista que numa direção classificatória chega ao
homem, um bípede sem penas e que se condiciona a uma guarda voluntária. A perícia
do senhor platônico chega ao seu modelo de Estado desejado quando no uso da
antropotécnica saiba encontrar a via mais adequada para entrelaçar os óptimos do
gênero humano, as propriedades guerreiras e a sensatez humanista, equilibradamente no
tecido estatal da zoopolítica. Para Sloterdijk, Platão esquematiza o programa de uma
sociedade humanista que, num único humanista absoluto, define o amo da ciência
pastoral. A tarefa do super-humanista consistiria em planificar as “propriedades de uma
elite que deverá ser desenvolvida por si só”28.
27
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’.
Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007. pp. 67-8.
28
No unilateralismo das forças bávaras o desejo de guerra aniquilaria a pátria. E o excesso intelectual
conduziria ao isolamento que poderia levar à escravização do país em razão do distanciamento dos
assuntos que são pertinentes ao Estado. SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano: uma
resposta à ‘Carta Sobre o Humanismo’. Tradução de Manuel Resende. Coimbra: Angelus Novus, 2007.
pp. 71-2.
13
5. Crítica da Razão Cínica: uma crítica ao humanismo
29
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed. Siruela, 2007.
p. 14.
14
Nessa obra, o filósofo defende ter havido uma superação da concepção marxiana da
ideologia como falsa consciência, dizendo que na sua forma atual, ela expressa o que
ele mesmo cunhou como cinismo moderno, entendido como falsa consciência
esclarecida. Trata-se da consciência nada ingênua de quem sabe o que faz e ainda
continua fazendo, sem ilusão, sem erro e sem engano. Sloterdijk encontrou seu
patronímico no cinismo grego – Kynismo- de Diógenes de Sínope. Com respostas
astutas e contundentes, Diógenes fazia sua crítica irônica aos intelectuais prepotentes
como Platão; e aos poderosos, como Alexandre, que ele criticava por meio da sua forma
de viver sem posses. Portanto, discurso e modo de existir não se distanciavam no
cinismo grego. Com o desabrochar da modernidade, a crítica muda de lado, passando a
ser instrumentalizada pelos Estados desde os gabinetes políticos. É a oportunidade para
o advento do cinismo moderno, que acomoda sentidos opostos numa racionalidade que
se configura universalmente, permeando o individual e o coletivo.
15
foram as políticas fascista e totalitária que simplesmente não escondiam sua violência,
pois ambas se apresentavam por uma nudez sem véus, deixando a crítica em estado de
mudez. Recentemente, o desmascaramento se tornou uma forma de crítica fisionômica
plebeia que, de acordo com Sloterdijk, deixou a crítica filosófica com o semblante
ressentido, sintetizando tal expressão no rosto de Adorno, quando, num protesto, suas
alunas – da geração sessenta e oito- puseram seus seios à exposição nua. Desde então,
acreditando viver a realidade dos fatos, uma crítica do corpo nu -neokynismo - se impôs
contra a crítica intelectual. A tradição filosfi´ca passa a ser, de certo modo,
desacreditada em suas ambições, como se não estivesse mais autorizada a dizer nada
além do que estivesse nas prateleiras empoeiradas de antigas bibliotecas. Teóricos não
seriam mais do que sonhadores que pouco ou nada conhecem da realidade vivida.
O cinismo opera, como se vê, sempre por duas vertentes que confluem num só
fim: o da ideologia que interessa aos cínicos no poder. Cinismo dos meios e cinismo dos
fins. Realismo e idealismo. Essa é a forma duplicada de uma consciência que se
autojustifica pela assunção de que nenhum meio é caro o suficiente perante fins
grandiosos. Um cinismo para a realidade do dia-a-dia e outro para aspirações à grandeza
dos projetos políticos. Essa racionalidade reconfigurada a partir da ideologia na
modernidade apresenta problemas que desde então são considerados insolúveis. E desde
esse livro, o humanismo é atacado por Sloterdijk, podendo-se considerá-lo um teórico
que procurou manter, em certa medida, uma linha de coerência discursiva. Agora,
oportuno que se analise uma importante crítica do autor a respeito da situação da Europa
no contexto mundial para que no último tópico possamos ligar todos os pontos e
produzir uma crítica a propósito da sua obra como um todo.
30
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002.
16
até 1945, de Colombo a Hitler, no pós-guerra esse centro de influência foi assumido
pelos EUA. Desde então, o americanismo condensou as potencialidades humanas tão
somente na capacidade para o consumo. Por consequência, um processo de desinibição
pela indústria do entretenimento promoverá, na sua tese, a extinção do humano.
31
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002. p. 74.
17
por isso, vivemos em esferas32. Aqui a influência de Platão já é evidente. No entanto, o
que ele pretende é retirar a ênfase do tempo, como fizera o Heidegger de Ser e Tempo, e
centralizar sua análise no estar-no-mundo. Melhor dizendo, no vir-ao-mundo, que
caracteriza a dinâmica espacial da sua obra.
A teoria das esferas pode ser entendida como uma grande narrativa sobre as
culturas e seus desdobramentos no tempo e no espaço. Daí que Sloterdijk denomina
toda a sua obra como uma novela hiperbólica do processo civilizatório, tornando patente
sua crença no projeto do esclarecimento que criticou na Crítica da Razão Cínica.
32
“La esfera es la redondez com espesor interior, abierta y repartida, que habitan los seres humanos en la
medida em que consiguen convertirse em tales. Como habitar significa siempre ya formar esferas, tanto
en lo pequeno como em lo grande, los seres humanos son los seres que erigen mundos redondos y cuja
mirada se mueve dentro de horizontes. Vivir em esferas significa generar la dimensión que pueda
contener seres humanos. Esferas son creaciones espaciales, sistémico-inmunológicamente efectivas, para
seres estáticos em los que opera el exterior”. SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología.
Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2003. p. 37.
33
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas (microsferología). Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2011. pp. 13-6.
18
Tratemos se sintetizar as três esferas em suas equações topológicas.
7.1 Bolhas
Neste sentido, a vida para o filósofo é também uma questão de formação: formar
esferas. Desde que haja vida humana, teremos globos habitados, estacionários ou em
movimento, uma espécie de vitalismo geométrico. Não é um acaso que nas primeiras
páginas da sua obra, Sloterdijk mencione a inscrição no pórtico da Academia de Platão,
advertindo que ali não se permitiria a entrada de quem não fosse geômetra. Quem se
atém um instante à capacidade simbólica dessas palavras rapidamente percebe a
amplitude que ganha uma advertência humorada: “yo no sólo colocaría la frase
platónica sobre la entrada a una academia sino sobre la puerta misma de la vida, si no
fuera un tanto indecente querer guarnecer com advertencias el ya de por sí demasiado
estrecho acesso a la luz del mundo...”36. Sloterdijk previne para que não se deixe passar
desatento pela segunda frase da Academia: também estaria excluído quem não estivesse
disposto a assumir o risco de se ver envolvido por um emaranhado de temas amorosos
com outros viventes do jardim dos teóricos. Inclusão, exclusão, amor e forma seguem a
mesma história e toda solidarização (ser-com) é a expressão da formação de esferas, um
processo de criação de espaços interiores que impulsiona o humano para a extensão do
34
Um interessante artigo sobre as Esferas em: LEAL, Edilene. Peter Sloterdijk: a novela dos espaços. São
Cristíóvão: Revista Tomos, jan./jun. de 2010. pp. 221-41.
35
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. p. 64-6.
36
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. p. 22.
19
aberto, experiência de transferência espacial que circunscreve os limites do meu
mundo37, dizendo quem sou pelo espaço que habito.
37
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 22-4.
38
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. pp. 72-4
39
O que Sloterdijk entende por intimidade se refere, exclusivamente, a espaços interiores divididos,
compartilhados, interssubjetivos, em que participam grupos diádicos multipolares de humanos e que só
existem por haver proximidade, incorporações, invasões, cruzamentos e ressonâncias, identificações,
acabando por criar formas peculiares de espaço como receptáculos autógenos. Para Sloterdijk o globo
psíquico primitivo (pré-nascimento) não tem um único centro que irradie tudo, mas dois epicentros que se
interpelam mutuamente por ressonância. SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología.
Tradução de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2003. pp. 98-9.
20
material, com um sútil odor comum da intimidade e da vontade sinônima. O mistério do
mundo resulta da força de compenetração oriunda de pares que se estendem a
comunidades, grupos e povos40, da esfera micro à macro.
7.2 Globos
40
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 49-50.
41
VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Dom Quixote, 1999.
21
capaz de suportar o ser humano? Quanto desacostumados dos primeiros
lugares necessita a alma capaz de pensar para se recolher em si mesma? 42
7.3. Espumas
42
SLOTERDIJK, Peter. Esferas II: globos. Macroesferologia. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. p. 309.
43
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. p. 20.
44
SLOTERDIJK, Peter. Esferas I: burbujas. Microesferología. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2003. pp. 33-4.
45
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Claudia Cavalcanti.
São Paulo: Estação Liberdade, 1999. SLOTERDIJK, Peter. O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas
culturais na sociedade moderna. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: para uma teoria filosófica da Globalização. Tradução de
Manuel Resende. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
22
temporal que insinua seu esgotamento a partir do séc. XX. Partindo dessas descrições,
para diagnosticar a atualidade e uma correspondente psicose epocal, Sloterdijk fala da
poliesferologia das espumas. Na sua proposta metafórica, as espumas, permeadas pelo
ar, são estruturas que se expandem e entram em colapso. A espuma só existe enquanto
forma autorreferente e vazia. Nada se segue a partir dela. Nessa leitura, a forma de vida
espumosa em seu caráter multifocal só poderia ter advindo das experiências do século
passado. A espuma revela que nada mais é central, pois tudo aspira a ser centro. Todo o
secundário e marginal também se centraliza. O acidental, o efêmero e o esponjoso não
permitiram nem mesmo o desprezo teórico, senão um lugar de destacado prestígio.
Basta ver a experiência intelectual que a psicanálise impôs, colocando em questão algo
rarefeito e insubstancial como o sonho e o inconsciente. Entretanto, na abordagem das
espumas, os indivíduos se caracterizam por se encontrar em espaços psíquicos isolados.
Em multidão desinibida, flutuam na água, sozinhos, como ilhas nomadizantes. Esse é o
individualismo produtor de unidades esponjosas que socialmente reivindicam cada vez
mais privilégios e menos necessitam do social, do ser-com. Todo indivíduo se torna um
sistema psíquico, um desatrelado, solto, pertencente a ninguém; órfão psíquico que a
partir de dentro da esfera de seus privilégios distintivos vê os outros como um míssil
que ameaça a sua ilha cósmica46. São indivíduos que não se orientam mais pela
repetição, nem pelo retorno. Isso porque, no processo geracional, são tanto novos como
últimos homens. A teoria das espumas se apresenta, na visão do autor, como uma
ontologia política dos espaços interiores animados, abrangendo o mais frágil como o
cerne da realidade contemporânea. Espuma é a palavra empregada para uma teoria das
estufas ampliadas. Portanto, é uma teoria que analisa as técnicas de climatização
simbólica dos espaços habitados por humanos e seus mecanismos de engenharia política
das construções e manutenções de unidades civilizadas47 da vida contemporânea.
46
SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: ensaio sobre hiperpolítica. Tradução de Claudia Cavalcanti.
São Paulo: Estação Liberdade, 1999. pp. 57-90.
47
SLOTERDIJK, Peter. Esferas III: espumas. Esferologia plural. Tradução de Isidoro Reguera. Madrid:
Siruela, 2004. pp. 27-35.
23
8. Conclusões
Em carta a Max Brod, Kafka perguntou ao seu amigo se seria possível atar uma
moça usando a escritura. Essa intuição revela o efeito de sedução da letra, resultado de
uma estratégia que, instrumentalizando a leitura, produz um efeito no outro: o leitor está
atado48. Eis a estratégia humanista. Se o humanismo está em crise, já não é mais sedutor
e, portanto, não mantém mais o outro atado às cercanias da casa do ser. Noutras
palavras, quando Sloterdijk sustenta que o humanismo entra em colapso, ele quer dizer
que o humanismo não consegue mais domesticar o humano.
Nesse sentido, como resposta à Carta Sobre o Humanismo de Heidegger,
passando por Nietzsche e sua crítica à domesticação do homem pelo homem, chegando,
finalmente, às recomendações de Platão sobre o pastoreio humano, Sloterdijk oferece o
diagnóstico da crise do humanismo, levantando a possibilidade de manipulação genética
cumprir a função domesticadora. Esse é o terreno da antropotécnica, isto é, a técnica de
domesticação e de produção do homem. Sloterdijk defende a necessidade de se definir
regras para o uso das ferramentas de seleção genética. Por mais que essa afirmação
pareça espantosa, o filósofo sustenta que, além de a seleção genética ser uma prática
usada há milénios, na atualidade, ela está disponível e em uso na engenharia social,
contudo de um modo desgovernado.
De tudo até aqui levantado se percebe que, se em Regras Para o Parque
Humano existe a receita política para o exercício do poder sobre o comportamento
humano, tendo-se em conta a animalidade do homem, é em Se a Europa Despertar que
o filósofo elabora uma receita de alianças para uma Europa pretensamente renovada e
mais potente. Resta bastante claro que Sloterdijk acredita na influência cultural como
potência domesticadora. Com isso, ele eleva ao plano político, com as Esferas, uma
ontologia espacial reconfigurada, reorganizando a noção de ser no espaço (ser-no-
mundo) e, assim, concebe um governo na orientação zoopolítica. Bastante claro nessa
percepção que se assume a desigualdade entre os seres humanos quase que naturalizada.
Até porque, o filósofo entende que na odisseia antropológica uns são objeto da seleção
antropotécnica e outros decidem sobre a seleção. Quem seleciona são os detentores do
saber-poder. Veja-se que, se uma retomada do monopólio cultural é necessária, um
48
PIGLIA, Ricardo. El Último Lector. Barcelona: Anagrama, 2005. pp. 39-40.
24
gigantesco constructo narrativo foi apresentado por meio de uma nova concepção da
existência humana. Desde a Crítica da Razão Cínica os motivos dessa reorientação vêm
sendo elaborados na forte crítica ao humanismo. Romper com o cinismo, segundo o
filósofo, é a medida necessária à civilização que, continuando nestas condições
ideológicas, não suportará mais um século. Por outro lado, deve-se constatar que a partir
do seu discurso é inviável não cair numa trama cínica em terreno político. Afinal, como
falar da ideologia estando-se envelopado pela ideologia? Não existe um locus
argumentativo meta-ideológico. Por outro lado, seriam as articulações da obra Crítica
uma pretensa blindagem para as suas propostas futuras? De qualquer sorte, desde o
princípio Sloterdijk é em certa medida franco no que diz. A Crítica da Razão Cínica
pode ser entendida como uma crítica do humanismo cínico e o filósofo leva isso até o
final.
25
caberia não apenas à Alemanha, mas à toda a cultura ocidental humanista. Quando
Heidegger diz: “precisamos abandonar o humanismo clássico”, ele também quer dizer
(tal como Goebbels diria em julgamento):“nós, alemães, somos tão responsáveis pelos
fatos quanto vocês. Eis nossa forma de vida ocidental e, por isso, não pensamos”. Esse
parece ser o inicio do cinismo que Sloterdijk pretendeu apontar, no discurso que
sobrecarregou a Alemanha até hoje. Daí que a Crítica da Razão Cínica precisou
desfazer os nós de uma história contada por aqueles que não apenas ganharam a guerra,
mas também o centro de influência cultural do mundo. Sloterdijk parece querer
demonstrar exatamente o mesmo que Heidegger quando aponta para Platão como o
autor do projeto eugenista ocidental e, por isso, mais de dois milênios de pensamento
filosófico estariam infectados por essa teoria que foi lida de forma trágica somente no
Sec. XX, quando levou ao extremo a relação saber-poder. Isso não é reforçado quando
Sloterdijk, no seu projeto Esferas, diz que Hitler foi um filósofo clássico? Logo, uma
crítica à razão cínica parece ser uma carta de exculpação, um livrar-se da dívida. Em
definitivo, nada mais convincente para ambos, Sloterdijk e Heidegger, do que o pós-
humanismo, já que o humanismo teria sido o verdadeiro responsável pelas atrocidades.
Não é à toa Sloterdijk ver no Grande Inquisidor - o pontífice que queima hereges para
honrar a deus - um humanista conservador.
49
Disponível em: “http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-14-355_pt.htm”.
26
almeja em diversas passagens das suas obras quando tenta salvar Heiddeger50 (este que
Rüdiger Safranski51 chamou de Fausto moderno), chegando a considerá-lo um professor
universitário ingênuo quando acreditou na política hitlerista52. Não poderia ser diferente
com relação a uma das suas mais fortes influências, que foi Nietzsche, ao dizer que
somente detratores veriam nos seus livros alguma semelhança com políticas fascistas -
dado que toda forma de humilhação do homem acaba por ser antagônica à forma de
elevá-lo asseverada por Zaratustra53. Salvando a Europa e salvando os seus filósofos,
Sloterdijk quer salvar a filosofia da morte anunciada em carta aberta. Para ele, é tempo
de reinventar a arte de pensar, mesmo que se chame isso por outro nome, como por
exemplo, Biosofia, em afinidade com as biotecnologias – que, por exemplo, trabalham
com a conformação dialógica ser-ambiente.
Deve-se destacar, de toda sorte, que Sloterdijk chama à atenção para questões
decisivas do nosso tempo, tanto no plano internacional, quanto nacional. O antigo
método do humanismo de educar pelas artes, de formar e domesticar o indivíduo pela
leitura se encontra desgastado nas sociedades de massa. Deixa-se um espaço aberto para
os saberes legitimados nas mãos do governo zoopolítico. Eis a possibilidade de
ocupação da medicina genética no âmbito de domesticação do homem. Essa constatação
elucida, por exemplo, acontecimentos que dizem respeito ao nosso território, conforme
elencamos. Em 1997, foi publicado o experimento que resultou no primeiro clone de um
mamífero, a ovelha Dolly. Em 2001, foi divulgado o primeiro clone humano a partir de
células somáticas. Em 2003, o Projeto Genoma anunciou o sequenciamento e o
mapeamento de todos os genes humanos. Em 2008, foi noticiado no Reino Unido que
laboratórios já haviam produzido 150 híbridos contendo genética humana e animal.
Logicamente, quando se fala em seleção genética não se pode esquecer que no ano de
2008 o STF permitiu o a manipulação de células embrionárias em estudos para,
futuramente, em nome do bem da população, tornar viável a descoberta da cura de
50
A novela sobre Heidegger ainda irá longe. Com a futura publicação dos seus cadernos autobiográficos,
os chamados “cadernos negros”, o debate em torno da sua participação política no nazismo promete
colmatar algumas lacunas. Heidegger chegou a formular a crítica ao pensamento calculista dos judeus,
mas, em 1933, conforme Peter Trawny, Heidegger dissera que as coisas ainda não estavam tão claras para
ele, vindo a afastar-se do reitorado por em 1934, por identificar na política totalitária uma arma bélica,
impregnada de técnica. Disponível em: “http://www.dw.de/cadernos-autobiogr%C3%A1ficos-reavivam-
debate-sobre-heidegger-e-o-nazismo/a-17488624”.
51
SAFRANSKY, Rüdiger. Heidegger: um filósofo da Alemanha entre o bem e o mal. Tradução de De
Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2005.
52
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed. Siruela, 2007.
53
SLOTERDIJK, Peter. O Quinto “Evangelho” de Nietzsche. Tradução de Flávio Beno Siebeniechler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
27
diversas doenças. Também não está desvinculada de todo esse emaranhado a
promulgação da Lei 12.654/2012, que permitiu a extração de material genético de quem
for condenado por crime violento contra a pessoa. Aqui já está formalmente declarado o
governo da zoopolítica em nosso país. Quando se fala em controle da violência por
meio das biotecnologias, rapidamente, se pode prever o entusiasmo das correntes do
positivismo lombrosiano revitalizadas e a consequente pergunta pelo fator genético
como predisposição ao crime.
Finalizando este escrito, concordamos com Sloterdijk quando diz que: “a nova
política começa, para nós, com a arte de criar palavras que, a bordo da realidade,
28
permitam descortinar o horizonte”54. Sua provocação pretende atacar todo descaso com
relação à construção artificial do humano, vendo nisso talvez uma última possibilidade
de salvar o humanismo do seu ocaso. Sloterdijk é um autor em cujo corpo ressoa uma
pergunta fundamental da nossa época: o que é o humano? As biotecnologias exigem
também uma decisão, pondo em nossas mãos a pergunta sobre o lugar reservado à
antropotécnica, uma chamada à reorganização da vida em sociedade como um evento
histórico a ser promovido. Fato é que passamos por transformações profundas. E nesse
processo o humano está sendo reformulado em seu conceito e compreensão. Nessa
reformulação avista-se uma disputa, que é conceitual. E que é humanista? Mas será que
essa disputa levará novamente a humanidade aos conflitos imperialistas como no
passado?
Talvez Heidegger tenha dado alguma pista quando disse: “a disputa entre
pensadores é a ‘disputa amorosa’ da mesma questão. Ela auxilia-os alternadamente a
penetrar na simples participação no mesmo, a partir do qual eles encontram a docilidade
no destino do ser”55. Essa disputa não é de uma simples choupana, senão do seu bem
mais precioso: o humano. Não resta dúvida, a pergunta pelo ser é fundamentalmente
política e esta é, como se percebe, um parque temático para filósofos - que desde
antigos viram no livro o seu objeto de amor, mas também um caminho para a
dominação cultural.
REFERÊNCIAS
LEAL, Edilene. Peter Sloterdijk: a novela dos espaços. São Cristíóvão: Revista Tomos, jan./jun.
de 2010. pp. 221-41.
54
SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa Despertar. Tradução de Flávio Quintiliano. São Paulo: Estação
Liberdade, 2002. p. 79.
55
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2005. p. 42.
29
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelllm. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Heloisa da
Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005.
SLOTERDIJK, Peter. Crítica de la Razón Cínica. Tradução de Miguel Ángel Veja. Ed.
Siruela, 2007.
SLOTERDIJK, Peter. O Desprezo das Massas: ensaio sobre lutas culturais na sociedade
moderna. Tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
30
SLOTERDIJK, Peter. Regras Para o Parque Humano. Tradução de Manuel Resende.
Coimbra: Angelus Novus, 2007.
SLOTERDIJK, Peter. Sin Salvación: Tras las Huellas de Heidegger. Tradução de Joaquín
Chamorro Mielke. Madrid, 2011.
VIRILIO, Paul. A Inércia Polar. Tradução de Ana Luísa Faria. Lisboa: Dom Quixote,
1999.
31