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O Rap como resgate sensorial do som1

Márcio Borges Lacerda


Aluno do programa de mestrado
em Comunicação e Linguagens da
Universidade Tuiutí do Paraná - UTP

Resumo:

A música Rap ultrapassou as fronteiras dos guetos e tornou-se uma forma de expressão
cultural marcadamente inserida como um canal de resistência social. Porém outra faceta
deste gênero é que ele não necessariamente se apóia em imagens para que seja entendido e
para criar significação. É um retorno, um resgate aos registros sensoriais da oralidade, da
fala e da audição. Aproveitando-se de uma crise de saturação imagética que insiste em
permanecer em nossa cultura da mídia, o Rap surge como uma nova forma cultural
permeada de sentidos de luta e resistência social que se consolida através da própria
resistência a função exacerbadora das imagens. O Rap dá o tom de uma nova
possibilidade de romper com o estatuto da imagem em nossa cultura para inaugurar um
resgate ao mundo dos sentidos esquecidos por nós já há algum tempo.

Palavras-chave: Rap, som, imagem, sentidos

Abstract

The Rap music exceeded the borders of the ghettos and became a form of inserted cultural
expression as a canal of social resistance. However another one side of this sort is that it if
not necessarily support in images so that it is understood and to create meaning. It is a
return, a rescue to the sensorial registers of the orality, of it speaks and the hearing. Using
to advantage itself of a crisis of the image saturation that it insists on remaining in our
culture of the media, the Rap appears as a new cultural form of felt of fight and social
resistance that if the increasing functions of the images consolidates through the proper
resistance. The Rap gives the tone of a new possibility to breach with the statute of the
image in our culture to inaugurate a rescue to the world of the directions forgotten for us
already has some time.

Key words: Rap, sound, image, felt

1
Trabalho apresentado para obtenção de nota na disciplina Mídias e cultura ministrada pelo Prof. Dr. Alberto
Klein do programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiutí do Paraná - UTP
Introdução

O instinto de sobrevivência cultural do homem, principalmente do excluído e


sem voz, se faz presente na música Rap. Este gênero que está inserido no movimento Hip
Hop, desde sua formação já se fez diferente levando-se em consideração que nasceu nas
ruas, nos guetos através de sentimentos de revolta social e resistência cultural. Mais que
uma nova forma ou gênero cultural a música Rap trouxe uma nova forma de expressão
que resgata o som como protagonista da ação comunicativa. O som ultrapassa a fronteira
da imagem, mesmo sendo gerador de imagens, é como se elas ficassem em segundo plano.
Este trabalho visa ser o início de um debate a respeito de como em uma época
de crise das imagens pela sua saturação, podemos encontrar novas formas de comunicação
conscientes e não necessariamente mediadas pelas instancias comuns da mídia. O resgate
do corpo e todos os seus sentidos, não apenas o do olhar. A potencialidade comunicativa
do homem moderno é minimizada a partir da formatação da sociedade pelas imagens.
Acontece que as imagens já não são capazes de produzir o efeito desejado, pois elas
exacerbaram sua condição de elo de ligação do homem com o mundo, elas passaram a
dominar o mundo e a entregá-lo pronto ao homem, ou pior, passaram a dominar o homem
e criar o seu mundo.
Para que seja mais bem assimilado, a texto começa com uma abordagem
conceitual e histórica da música Rap, seu condicionamento ao movimento Hip Hop, como
e onde nasceu, qual seu propósito inicial dentro, principalmente, da cultura americana e
quais suas características.
A seguir é apresentada uma breve análise do corpo enquanto veículo especial
para a divulgação da música Rap e o que implica em tal ato comunicativo, não
esquecendo que mesmo sendo a música Rap intimamente ligado a aparatos eletrônicos, ela
é executada em sua forma mais “rudimentar” nos guetos e favelas de modo corporal, ou
seja, utilizando-se apenas do corpo para dirigir ou imitar sons.
Na última parte é abordada a questão da oportunidade que o Rap tem de se
firmar como forma de agregação cultural não ligada à imagem. A crise da imagem, por
sua saturação, dá lugar ao resgate do som como protagonista da ação comunicativa. O
tema é tratado levando em consideração o pensamento de dois autores preocupados com a
questão da imagem, o alemão Hans Belting e o Professor e pesquisador Norval Baitello Jr.
Somando o trabalho de outros autores, a tentativa desde breve ensaio é trazer à
discussão, como através de uma forma tão característica e própria de se fazer cultura pelo
ato comunicativo pode influenciar as outras formas culturais, ou seja, como o Rap nascido
nos guetos e favelas pode servir de exemplo para a projeção de novas formas mais
democráticas com os sentidos humanos na formação de cultura.
Rap, surge um novo discurso

Rhythm and poetry, ritmo e poesia são as traduções respectivamente em inglês


e português de um fenômeno musical relativamente novo que tomou seu espaço nas
realidades sociais das mais diversas comunidades de um mundo globalizado, onde as
minorias clamam por visibilidade em busca de reconhecimento e valorização cultural.
O Rap tal como o conhecemos nasceu nos EUA mas sua origem remonta à
década de 60 quando na Jamaica surgiram os “Sound Systems”, aparelhos de som que
eram ligados nas ruas dos guetos jamaicanos para animar as festas da população jovem.
Essas festas serviam como pano de fundo para o discurso dos “toasters”, gíria que
originou o termo “mestres de cerimônia”, ou MC’s2, que discutiam em suas falas, assuntos
como a violência das favelas de Kingston, a situação política na Jamaica, sem deixar de
lado temas como sexo e drogas.
Ao serem obrigados, por causa da crise econômica que se abatera sobre a ilha,
a migrarem para os EUA, muitos jovens jamaicanos levaram consigo a cultura do “canto
falado” e introduziram os “Sound Systems” na cultura nova-iorquina, a primeira cidade a
vivenciar tal manifestação.
Nos EUA a cultura negra que já tinha em seu histórico, lutas inesgotáveis pelos
seus direitos humanos e culturais, viu eclodir mais um movimento envolvendo as minorias
dos guetos de Nova-Iorque, especialmente no Bronx, bairro de maioria negra com
péssimos índices de violência, de bem-estar e condição humana.
Não era a primeira vez que surgia um movimento popular negro que exaltava a
necessidade de liberdade e respeito pela cultura afro-americana. Desde o início do século
XX com o Jazz, o Blues e o Rhithm and Blues, entre outros, as manifestações pela causa
negra eram evidentem, e ainda hoje é assim como observa Douglas Kellner em seu
trabalho de análise do movimento rapper americano:

Os negros americanos têm tradicionalmente usado a música e a linguagem


musical como forma privilegiada de resistência à opressão. O Gospel surgiu
como reação à opressão da escravidão, enquanto o blues expressava uma resposta
ao racismo institucional, de tal forma que ambos refletiam o sofrimento
produzido pela opressão e pela resistência a ela. O Ragtime e o Jazz baseavam-se
nas experiências dos negros americanos em busca de uma linguagem musical que
articulasse sofrimento e alegria, angústia coletiva e expressão individual,
dominação e resistência. (2001, p. 228)

A história da resistência negra às formas de opressão está diretamente ligada à


música. A partir da transformação na década de 50 do Rhythm Blues no Rock and Roll
alguns artistas negros como Chuck Berry e Little Richard, entre outros, entram
definitivamente na cultura prevalecente, o que vale dizer que a indústria cultural acabou
por abranger essas manifestações. Mesmo com alguns brancos como Pat Boone, tentando
explorar a música negra, os “fãs” do Rock and Roll, preferiam os artistas negros. Segundo
Kellner, foi um acontecimento especialmente significativo que a música negra utilizasse a
cultura da mídia para disseminar seus significados, seus sons, suas vozes. (2001, p 228)
Apesar de o Rap existir desde a década de 70 foi a partir dos anos 80 que essa
forma cultural teve sua explosão entre a sociedade americana. Foi uma década de cortes
orçamentários para programas sociais nos governos conservadores da época, fato que
contribui fortemente para as manifestações dos negros, que foram a parcela da população
mais atingida pelas dificuldades e os problemas sociais como a violência, a AIDS, a
gravidez na adolescência e o desemprego.

2
Rappers que cantam, compõem as músicas e animam os bailes.(CONTIER, 2005)
A partir daí, novos ingredientes foram sendo colocados como marcas de
identidade dos negros norte-americanos, criando assim o movimento chamado Hip-Hop,
que provém do inglês to hip e to hop, ou seja, movimentar os quadris e saltar.(CONTIER
2005)
Foram desenvolvidas novas formas de música, dança e canto, apropriadas à
experiência e a cultura negra da sociedade norte-americana. O grafite urbano, o break, as
rádios segmentadas e os Disc-jóqueis - Dj’s de clubes que praticavam o chamado
sampling (sobreposição de músicas populares com sons do rap e ruídos eletrônicos), o
scratching (movimentação rápida da agulha sobre o disco) e o punch-phrasing (mudança
hábil de um prato para outro).
O Rap é na realidade a forma, ou o estilo musical do movimento. Esse
movimento é constituído basicamente por outras formas de expressão além da música,
como o break (a dança) e o grafitismo (a expressão plástica). Em suma, os praticantes
desta forma cultural pregam ser esta um modo de vida, uma filosofia cultural das ruas e
dos guetos das grandes cidades.
O Rap é uma forma cultural nascida nas ruas, que se destaca não só pelo seu
conteúdo mas também pela sua forma de expressão, onde a oralidade dá o tom das ações
principalmente quando é executado in loco nas comunidades expostas ao tema da música.
Douglas Kellner descreve assim a música Rap:

A voz é muito importante, e as letras características transmitem experiências e,


muitas vezes, mensagens. O Rap é um modo de falar, e não de cantar, que
freqüentemente utiliza rimas complexas, embora não ortodoxas. Em geral é
executado em andamento rápido, em staccato, e a combinação complexa de rima
e ritmo pode criar tensões entre a espontaneidade da performance e a fixidez da
letra. As canções são freqüentemente longas e às vezes sinuosas, continuando
uma tradição afro-americana de contar histórias longas e complexas com
variações individuais e refrões em solo repetidos indefinidamente como um rag-
time, no jazz e no blues. (2001, p. 231)

Com o desenvolvimento da cultura Hip Hop foi também acontecendo um


fenômeno que já acontecera com outras modalidades também musicais como o Rock and
Roll que se transformou, diante da pressão exercida pela mídia e a industria fonográfica
nos EUA, em mercadoria cultural. No Rap, as dissidências não demoraram a acontecer, e
a ala mais radical permaneceu , ou pelo menos tentou permanecer, à margem da indústria
cultural evocando as raízes eminentemente de resistência social do movimento.
A crítica ao modelo sócio-econômico capitalista e excludente, e
paradoxalmente o apoio ou suporte da cultura da mídia levou o movimento Hip-Hop
norte-americano a uma ruptura interna. Essa ruptura se dá até os dias de hoje como
esclarece Kellner:
[Este movimento] Como fórum cultural, é um terreno de disputa entre diferentes
tipos de rap em que competem diversas modalidades de expressão vocal, visão
política e estilo. Portanto é um erro generalizar em torno do rap, visto que as
diferenças entre os rappers são extremamente significativas.(2001, p. 230-231)

O Rap se difunde pelo mundo e na década de 80 chega ao Brasil,


“ironicamente” através da classe média brasileira que teve acesso ao movimento nos EUA
e introduziu, com a ajuda da cultura da mídia importada dos EUA, nos clubes brasileiros,
o break.
Esses brasileiros que viajavam para os EUA, quando voltavam, paulatinamente
foram introduzindo o break nas danceterias e clubes nos bairros nobres de São Paulo. O
break logo se tornou um modismo entre os jovens de classe média. O músico Nelson
Triunfo3 na época se apresentava com o seu conjunto de soul, Funk & Cia em uma casa
3
Integrante e um dos fundadores do grupo Racionais MC’s
noturna chamada Fantasy em São Paulo. E após ter freqüentado durante aproximadamente
um ano, levou o break e o Hip Hop para o seu local da origem: a comunidade em que
vivia.

Nesse momento, os simpatizantes dessa manifestação cultural, ainda não


conseguiam explicar o movimento Hip Hop. Em sua essência, o Hip Hop, nesta
fase representava simplesmente a dança. O break era visto como uma dança
robótica e o Rap ainda não era conhecido com essa denominação.(...)
Posteriormente, o break conquistou as ruas e as camadas dos excluídos sociais da
cidade de São Paulo através da formação de grupos de baile, que se reuniam,
num primeiro momento, na Praça Ramos, em frente ao Teatro Municipal, e num
segundo, nas proximidades das galerias de lojas de discos da 24 de maio, esquina
com a Dom José de Barros. Os iniciadores desse movimento foram Nelson
Triunfo, Thaide & DJ Hum, MC/DJ Jack, Os Metralhas, Racionais MC's, Os
Jabaquara Breakers, Os Gêmeos, entre outros. (CONTIER, 2005)

A passagem das danceterias de classe média para as ruas e os guetos de São


Paulo trouxe a discriminação, o preconceito e mudou significamente a história do
movimento da música Rap no Brasil.

Devido à perseguição policial e às reclamações dos lojistas que admitiam que


essas aglomerações favoreciam roubos e furtos, esses grupos da 24 de maio
passaram a se fixar no largo São Bento. Numa determinada fase desse
movimento, houve uma divisão entre os breakers e os rappers, os primeiros
continuaram no largo São Bento e a outra facção dirigiu-se para a Praça
Roosevelt. A cisão entre o largo São Bento e a praça Roosevelt foi fundamental
para essa prática cultural, pois, a partir desse momento os excluídos sociais
(Office boys, por exemplo) identificaram-se com o verdadeiro conceito de rap,
num espaço geográfico diferenciado. Assim, o Rap tornou-se um gênero musical
com uma certa autonomia em face do break. (CONTIER, 2005)

Foi natural o crescimento do movimento Rap que teve a seu favor ainda, novas
formas de gravação e reprodução de sons cada vez mais apoiados pela cultura da mídia e a
indústria cultural globalizada dos anos 90 e 2000.
Uma questão que não pode deixar de ser mencionada é o fato de que a música
rap acompanhou o próprio desenvolvimento e mutação da cultura mundial apoiada nas
novas tecnologias de gravação, reprodução e distribuição de formatos culturais,
derrubando fronteiras, quebrando regras comerciais, minimizando tabus e preconceitos
(apesar de ainda sofrer com eles) e estabelecendo um elo comum entre as comunidades
negras e pobres das sociedades onde é escutada.
O Rap é uma expressão cultural marcadamente ligada à tecnologia, uma vez
que utiliza a ritmos reproduzidos eletronicamente que são as bases, porém muitas vezes
também são utilizados apenas as cordas vocais e o próprio corpo para a produção do som.
Essa faceta do Rap é que interessa a esse trabalho e a partir dela, é que irão se
concentrar as atenções e o foco deste ensaio. O Rap enquanto forma cultural baseado na
oralidade, e que longe das formatações midiáticas tradicionais toma a forma da mais pura
expressão cultural nascida nos últimos tempos, passa a ser o núcleo da discussão.
É claro que não podemos esquecer do suporte em mídias terciárias4 que tanto
faz expandir a cultura Hip Hop e a música Rap, porém a forma da ação cultural que se
torna o alvo deste trabalho é justamente a forma mais “simples” e natural das
comunidades que, sem muitos recursos tecnológicos, ainda assim perpetuam a cultura Rap
em suas vidas e suas rimas.

4
Ver a “Teoria das Mídias” do autor alemão Harry Pross
O corpo na cultura Rap

Em face ao propósito deste trabalho é necessário elucidar a importância do


corpo enquanto forma midiática de transmissão da cultura emanada pela música Rap.
Mesmo, como já citado anteriormente, que a música Rap seja reproduzida utilizando-se de
vários suportes onde a tecnologia é marcadamente importante, nas comunidades, guetos
de formação cultural desse gênero, o corpo ainda é um suporte onde a característica da
oralidade se faz mais presente. Não quero dizer com isso que os outros meios de
transmissão da música Rap, como os cd’s ou dvd’s e até mesmo os shows que reúnem
multidões não estejam implicados neste sistema que privilegia o aspecto oral da forma
cultural, é que a princípio penso ficar mais fácil para o início deste trabalho tratar da
forma mais “rudimentar” de Rap.
Como expresso pelo autor norte-americano Douglas Kellner, o Rap não é uma
forma de cantar e sim de falar, penso ser por aí que devemos começar. O corpo fala, esta
constatação tão discutida e argumentada gera aqui mais uma questão a ser levantada. Em
um mundo onde as imagens se consagram como o fio condutor de nossa sociedade, onde o
olhar é privilegiado já há muito tempo em nosso sistema social, que valores novos trás a
musicalidade do Rap? Creio que seja o retorno ao uso do sentido do som, da audição e da
fala.
Não obstante e nem com isso quero dizer que exista uma substituição da
imagem que é gerada em nossa mente, mesmo que inconsciente, quando escutamos uma
música como o Rap. O que chamo a atenção é sobre a agregação, ou uma maior pré-
disposição para o sentido oral e audível de transmissão de uma cultura onde as
significações estão presentes inclusive nas entonações, sem falar nas linguagens
utilizadas. As imagens continuarão sendo geradas em nossa mente. O autor alemão Hans
Belting escreve:
As palavras estimulam nossa imaginação, enquanto a imaginação, por sua vez,
transforma as palavras nas imagens que elas significam. Neste caso, é a
linguagem que serve como um meio para transmitir imagens. Mas aqui também
ela necessita do nosso corpo para preenchê-las com experiências pessoais e
significado; esta é a razão pela qual a imaginação tem geralmente resistido a
qualquer controle público. (BELTING, 2001)

A música Rap se difere dos outros gêneros musicais pelo fato de explorar com
mais propriedade a função da fala e da audição. As percepções que advém de seu
conteúdo são mais complexas devido a forma como a mensagem é disseminada. Não
podemos negar que também os sons geram imagens internas, mas diferentemente de
outras formas musicais e culturais, o ouvido é mais exigido e presume a existência de um
código novo e próprio daqueles que estão inseridos no meio Rap.

Nosso ouvido também participa da apropriação das imagens. O filme sonoro foi a
primeira mídia visual a explorar nossa capacidade de ligar som e visão de forma
aproximada. Tanto que o acompanhamento musical, já oferecido em filmes
mudos por um pianista, muda também a experiência das imagens no sentido de
que elas se tornam diferentes quando uma trilha sonora distinta forma a
impressão que se opera em nossos sentimentos (BELTING, 2001)

No Rap, a cultura redescobre a oralidade e o ouvido passa a ser o canal de


absorção desta cultura. Desde que o homem elegeu o olhar como a principal forma de se
relacionar com o mundo, todos os outros sentidos ficaram à sombra das imagens. O
resgate do som como forma de perceber uma realidade faz do Rap uma manifestação
importante.
Os outros sentidos, o olfato, o tato e o paladar, que presumem uma
proximidade, foram “abandonados” pelas pessoas em detrimento das possibilidades
midiáticas que as tecnologias da comunicação colocaram a disposição.
Resta-nos os vínculos sociais e culturais exercidos através das imagens e da
audição. Contudo o que se observa é uma saturação de imagens, sejam elas naturais ou
técnicas.(aproprio-me aqui do termo utilizado por Vilém Flusser em “A filosofia da caixa
preta”) O esforço que se faz é demonstrar o resgate de um sentido, o da audição pelo
menos, para que não percamos nosso corpo e todos os seus sentidos nos labirintos da
cultura da mídia. Malena Contrera afirma: “Ao perdermos a consciência corporal,
perdemos nossa acuidade sensorial, e ao lesarmos os sentidos de proximidade, passamos
pelas coisas sem sermos capazes de nos conectarmos a elas”. (CONTRERA, 1999)
Ao constatarmos na mídia tradicional a perda dos sentidos de proximidade e
com isso termos que trabalhar apenas com a audição e as imagens e, levando em
consideração que o universo das imagens satura nossa percepção a ponto de tornar-nos
“cegos”, a audição e a oralidade devem ser resgatadas como forma de percepção
comunicativa. Esse resgate é proposto pela música Rap.
O Rap afasta-se da necessidade proeminente da imagem e, forma vínculos pela
transmissão de sons codificados especialmente para “passar” a mensagem de, no caso,
uma resistência cultural contra-hegemônica principalmente às formas musicais
prevalecentes. Segundo Contrera:

Sem o estabelecimento de vínculos, o próprio sentido da comunicação em si


mesma está comprometido. Buscamos desesperados por mais informações todo o
tempo porque sentimos que algo nos falta e, principalmente nos grandes centros
urbanos globalizados e globalizantes confundimos, hoje, superabundância e
saturação informativa com comunicação. (CONTRERA, 1999)

Para comunicar o Rap usa o corpo e seus sentidos privilegiando a fala e a


audição. O corpo torna-se o suporte maior das grandes manifestações de expressão do
rapper. Torna-se além de uma estrutura física, um poderoso e complexo organismo
político e cultural através dos sentidos, que não apenas do olhar, e que materializa o
pensamento conectando o rapper à sua realidade.
O Rap enquanto expressão cultural que nasceu nos guetos faz sua parte,
utilizando-se do que a princípio parece ser uma confusão de sons e letras para formar
opiniões críticas em uma comunidade de excluídos sociais. A estética do Rap agitada e
muitas vezes cruel se identifica com o que o jovem dos guetos quer gritar. Segundo Celso
Martins Rosa:

Esse espírito de ruptura estética e o desejo de dizer algo fora dos padrões
estabelecidos por uma sociedade, como forma de expressão aparece de acordo
com os novos modelos culturais ligados diretamente ao conceito de apropriação
(samplear bases melódicas existentes num outro contexto). Essas manifestações
causam estranhamento e incômodo social. (ROSA, 2004)

A música Rap como experiência do corpo com sua linguagem e sua oralidade
específicas retiradas dos guetos, nos trás princípios próprios para a compreensão da
parcela jovem das periferias, que produz uma nova forma de comunicação, dando
legitimidade à expressão cultural “vozes dos excluídos”. Surge um novo discurso
atribuído a um contingente de jovens negros e pobres nas grandes cidades que não tinham
suas vozes ouvidas e seus problemas sociais observados pelos setores públicos. O Rap
propõe uma maneira particular de abordar o corpo. A oralidade que esse discurso produz,
representa um corpo supostamente matizado pela violência, fragmentado e simulado.
(ROSA, 2004)
A crise da imagem e a oportunidade do som

Como vimos anteriormente a imagem dá lugar, por sua saturação, ao som, a


forma oral de produzir cultura. O Rap aproveita-se deste fenômeno para se sobrepor como
uma forma de dar vez e voz a uma parcela marginalizada da população das favelas e
guetos. Hans Belting observa:

Platão, o primeiro midiólogo, opôs-se fortemente à escrita, atribuindo-lhe um


perigo para o corpo como memória viva e considerou, por outro lado, as
memórias técnicas, como o alfabeto, mortas. O que importa aqui não são suas
conclusões que já eram anacrônicas no seu próprio tempo, mas sua distinção
válida entre dois tipos de mídias - corpos falantes e linguagem escrita - para
lembrar seu argumento mais familiar. (BELTING, 2001)

A importância dos “corpos falantes”, ou dos corpos-mídia já discutida por


Platão segundo Belting, pode explicar a crise que se estabeleceu nas imagens, a chamada
crise da visibilidade. Ao delegar a importância suprema à imagem, o homem esqueceu de
sua memória corporal. É como se as imagens passassem junto com a memória e não
ficassem gravadas como deveriam. Essa “gravação” só se daria com o estabelecimento de
uma relação direta com o corpo e não apenas à delegação de poder à imagem. A visão do
que olhamos mas não enxergamos, do que vemos mas não nos lembramos nos fez
esquecer do que olhamos e sentimos, do que vemos e gravamos em nossa memória. O
corpo sente, o olhar deixou de sentir. Belting justifica:

As novas tecnologias da visão, entretanto, introduziram uma certa abstração na


nossa experiência visual visto que não mais somos capazes de controlar a relação
existente entre uma imagem e seu modelo. Por isso, depositamos mais confiança
nas máquinas visuais do que em nossos próprios olhos, chegando a uma literal fé
cega nas tecnologias. (BELTING, 2001)

O retorno ao sentido do som, da audição, da oralidade vem preencher essa


lacuna deixada pela saturação das imagens em nosso sistema midiático atual. Ao perceber
a música Rap como uma conquista do corpo em face ao endeusamento das imagens, a
sociedade tem a chance de aprimorar sua cultura, diversificando a forma de absorção de
idéias até aqui privilegiada no culto às formas da imagem. A oportunidade do som se faz
presente na crise da visibilidade que é comentada por Norval Baitello Jr.:

A cultura das imagens (e a transformação de toda a natureza tridimensional em


planos e superfícies imagéticas) abre as portas para uma crise da visibilidade,
dificultando aqui não apenas a percepção das facetas sombrias, mas até mesmo,
por saturação, aquelas regiões iluminadas. Assim como toda visibilidade carrega
consigo a invisibilidade correspondente, também a inflação e a exacerbação das
imagens agrega um desvalor à própria imagem, enfraquecendo sua força
apelativa e tornando os olhares cada vez mais indiferentes, progressivamente
cegos, pela incapacidade da visão crepuscular e pela univocidade saturadora das
imagens iluminadas e iluminadoras. (BAITELLO, 2002)

Se voltarmos no tempo, vamos ver que antes da era da reprodutibilidade


técnica a difusão musical era reservada a poucos, que a experiência musical era
insubstituível. Walter Benjamin já falava em seu famoso texto “A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica” da perda da aura e da questão da unicidade em suas análises
sobre as formas culturais no início do século XX. Apesar dele não se ater exclusivamente
à música, podemos por analogia reter tais pensamentos ao que concerne aos sons
musicais. A música, a exemplo da imagem, perde aí seus status de única passando a ser
“vítima” das formas midiáticas apoiadas em tecnologia. Em sua dissertação de mestrado
Julián Jaramillo cita Fernando Iazetta:

Um ouvinte do século XVIII que tivesse o privilégio de estar presente durante a


execução de uma sinfonia de Mozart, certamente teria uma escuta extremamente
atenta. A qualidade efêmera do som musical o obrigaria afazer todo o esforço
possível para reter em sua memória tudo aquilo que aquela experiência única da
escuta poderia lhe oferecer naquele momento. Ao final da obra, tudo que lhe
restaria daquela música seria aquilo que sua atenção e concentração lhe
permitisse guardar na memória. (IAZETTA Apud JARAMILLO 2005).

Podemos pensar que o que aconteceu com a imagem, mesmo antes, ou a partir
da possibilidade de reprodução, aconteceu com a música. Se no aspecto imagético houve
uma saturação do olhar, uma cegueira, podemos afirmar que na música (nos sons) a
indústria cultural promoveu uma espécie de surdez.
A música Rap que nasce nos guetos e que tem por característica a sua
oralidade, resgata a forma de audição pré-reprodutibilidade. O Rap é ritmado pelo som
que quando executado interpessoalmente remete o ouvinte a uma experiência única
daquele momento. Os “ruídos” emitidos tanto pela voz, como que imitando o scratching,
tanto pela própria linguagem cadenciada pela letra, eleva a performance do Rap a um
novo grau de percepção da música contemporânea. Nas formas mais “puras” a voz do
rapper substitui o scratching, as cordas vocais se encarregam da reprodução. Podemos
observar a linguagem do Rap nas considerações de Jaramillo:

Observemos que o scratching é uma ferramenta fundamentalmente narrativa que


consiste em trabalhar com o ruído próprio da reprodução. Como assinala Stan
Link, o ruído gerado pelo aparelho reprodutor evidencia que o suporte de difusão
não é só um documento, mas também uma fonte sonora. Assim tomamos
consciência que esta presente um tipo de mediação. Chamado “ruído de
transdução”, localiza um ponto de origem em vez de reafirmar uma sensação de
reprodução; este ruído transforma a mediação numa condição causal,
enriquecendo a experiência da difusão e promovendo uma conceituação do ato da
escuta. O ruído do sinal fornece um tipo de sintaxe para o som reproduzido. O
scratching é a gramática da reprodução. (LINK, Apud JARAMILLO 2005)

Assim, a música Rap evoca o retorno dos sons como protagonistas na


formação cultural. O resgate do sentido da oralidade e da audição que não
necessariamente vem apoiada em imagens. A expressão criativa que nasce nas
comunidades excluídas das artes tradicionais tem nessa forma de comunicação uma nova
modalidade musical para interagir com o mundo sem as amarras da cultura da mídia, e se
conseguir manter suas características básicas que presumem uma proximidade em prol da
oralidade se consolidará como exemplo a ser seguido para a consecução de outras formas
artístico-culturais sejam elas de resistência ou não sem super valorizar o estigma do olhar
onipresente sobre o mundo.
Referências Bibliográficas

BAITELLO Jr, Norval. O Olho do furacão: A cultura da imagem e a crise da visibilidade -


Texto apresentado no Centro Interdisciplinar de semiótica da cultura e da mídia - CISC
-2002

BELTING, Hans. Imagem, Mídia e Corpo: Uma nova abordagem à Iconografia - 2001 -
Texto apresentado na disciplina “Mídias e culturas” ministradas pelo Prof. Dr. Alberto
Klein.

CONTIER, Arnaldo Daraya. O rap brasileiro e os Racionais MC's. In: SIMPÓSIO


INTERNACIONAL DO ADOLESCENTE, 1., 2005, São Paulo.
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php

CONTRERA, Malena Segura. O pânico na mídia: violência - uma das manifestações do


pânico. - Texto apresentado na COMPÓS – Congresso Nacional dos Programas de
Comunicação do Brasil, em 1999

JARAMILLO Arango, Julián - Homens, máquinas e homens- máquinas: o surgimento da


música eletrônica - Campinas, SP - 2005 - Dissertação (mestrado) Universidade Estadual
de Campinas. Instituto de Artes

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia - estudos culturais: identidade e política entre o


moderno e o pós-moderno - Bauru, SP: EDUSC, 2001

KLEIN, Alberto. Cultura da visibilidade: Entre a profundidade das imagens e a superfície


dos corpos - Trabalho apresentado ao grupo de trabalho “Comunicação e Cultura”, do XV
Encontro da Compôs, na Unesp, Bauru, SP, em junho de 2006-07-11

ROSA. Celso Martins.- Cultura Rap nas conexões das linguagens artísticas -
http://geocities.yahoo.com.br/anpap_2004/textos/chtca/celso_rosa.pdf

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