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ensino-medio-do-governo-temer

A quem interessa a reforma do Ensino Médio do


Governo Temer?
Grupo de Trabalho de Política Educacional - USP
10/03/2017

Foi surpreendente para os professores e professoras do Brasil a apre-


sentação de uma reforma de ensino por meio de Medida Provisória
(MP 746, agora Lei 13.415/2017) pelo atual governo. Não bastasse
isso, incomum até durante a ditadura militar de 1964/85, os prazos
foram todos reduzidos para uma aprovação célere. Todos os seria-
mente envolvidos com a Educação ficamos perplexos. Sabemos que
nenhuma reforma de ensino consegue ter êxito se não houver, antes e
durante sua implantação, debates, discussões, leituras e tempo de re-
flexão para eventual mudança de práticas e perspectivas.

O que estava acontecendo com o ensino médio para que tal mudança
se apresentasse como indiscutível, necessária e inadiável? Aparente-
mente nada, pois as evidências alardeadas para a repentina pressa
são conhecidas há anos: o desempenho insatisfatório dos concluintes
em avaliações nacionais padronizadas. Na verdade, não seria mais ló-
gico abrir esse processo de mudanças após a aprovação da Base Na-
cional Comum Curricular (BNCC), que ainda está em discussão no
Parlamento?

Despedaçando a formação

Lembremos também que o texto da BNCC ainda pode sofrer altera-


ções por parte do Conselho Nacional de Educação (CNE), que tem
por função essa elaboração e cujo calendário oficial prevê até o fim do
ano de 2107 para finalização da tarefa. Desse modo, o texto apro-
vado, que toma a BNCC como pré-requisito para estabelecer certas
exigências, curiosamente, teve de citar essa Base sempre no tempo
verbal futuro.

A pressa, caracterizada pelo inusitado uso de uma MP para tão impor-


tante reforma do ensino, pode ser atribuída ao verdadeiro teor da me-
dida, muito distante da propaganda, que foi desferida de modo vigo-
roso e talhada especificamente para o público jovem e suas insatisfa-
ções: vocês vão poder escolher seu itinerário formativo!

Na realidade, a reforma aprovada, Lei nº 13.415/2017, remodela 6 ar-


tigos importantes (art. 24; 26; 36; 44; 61 e 62) da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB - Lei 9394/96) e introduz um novo
(art. 35-A), retirando, na prática, a eficácia de normas legais existentes
que fortalecem a formação humana integral, a valorização dos profissi-
onais da educação e, em especial, a real autonomia pedagógica das
unidades escolares. Contraria, na essência, o que está disposto no
art. 12 da LDB, de que “os estabelecimentos de ensino, respeitadas as
normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência
de: I - elaborar e executar sua proposta pedagógica”.

A principal modificação feita na LDB, por meio da Lei 13.415, refere-se


ao caput do seu Art. 36, que passa a apresentar o seguinte teor: “o
currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum
Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados
por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a rele-
vância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino,
a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática e suas tec-
nologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências hu-
manas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional”.

Além do equívoco epistemológico, cometido nessa classificação, de


denominar área de conhecimento as “ciências da natureza” e as “ciên-
cias humanas”, acrescentou-se a elas, como também às linguagens e
à matemática, “e suas tecnologias” e, respectivamente, “aplicadas”, o
que exacerba o aspecto técnico em detrimento de outras interpreta-
ções, inclusive da interdisciplinaridade, por exemplo, com a aproxi-
mação entre física ou química de filosofia ou história.

Nada mais que uma fraude

Contudo, o problema maior é o engodo aplicado à sociedade, em par-


ticular a sua parcela jovem. Engana-se quem julga que essas opções
são verdadeiras, pois não há, na Lei, nenhuma disposição quanto à
oferta simultânea de quaisquer delas pelas escolas e nem mesmo
pelas redes públicas. É possível prever que, dadas as poucas possibi-
lidades da maioria dos sistemas, estes acabem optando por um único
itinerário formativo, ou seja, aquele que, ao mesmo tempo, tenha me-
nores custos permanentes e corresponda às qualificações dos profes-
sores da respectiva rede.

De fato e curiosamente, o novo artigo introduzido pelo Senado (35-A)


contém uma afirmação inusitada, em seu §5°: “A carga horária desti-
nada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não po-
derá ser superior a mil e oitocentas horas do total da carga horária do
ensino médio, de acordo com a definição dos sistemas de ensino”. E
isto embora esse mesmo artigo afirme, em seu caput, “A Base Naci-
onal Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem
do ensino médio (...)”. Considerando que a meta da Lei é atingir 4.200
horas de aula, ao longo dos três anos do ensino médio, resulta que a
carga relacionada à BNCC não poderá ocupar mais de 43% desse
total (?!). Contudo, as contradições não terminam aí: sabidamente, a
BNCC reserva 40% de sua carga total à parte diversificada, ou seja,
sujeita à opção pelas redes e escolas.

Desse modo, é possível que apenas 60% das, no máximo, 1.800


horas dedicadas à BNCC venham a corresponder ao conteúdo comum
a todas as escolas do país. Na prática, isso pode significar que al-
gumas matérias com déficit de professores já estabelecido há algum
tempo – por exemplo, Física e Química – apenas estarão represen-
tadas em uma fração quase insignificante das horas totais atribuídas a
esse novo ensino médio!

Que futuro pode-se esperar para uma nação que opta por esse tipo de
caminho formativo para a grande maioria de sua juventude, alijando-a,
ainda mais, do contato estruturante com um conhecimento essencial
para a compreensão do mundo atual? Por óbvio, é de se supor que as
escolas particulares de elite, que atendem menos de 10% da popu-
lação na faixa etária, farão opções mais condizentes às reais bases
para uma educação abrangente e isso, necessariamente, ampliará o
fosso que já existe no país, entre ricos e pobres, quanto às oportuni-
dades de desenvolvimento intelectual.
O futuro é mais apartheid social

Portanto, o que esta reforma apresenta, de fato, de “novo e revolucio-


nário”, lembrando que o governo teve que pagar youtubers para fa-
larem bem da proposta, omitindo que se tratava de propaganda ofi-
cial? Que aspectos negativos ela traz para, de forma capciosa (contra-
riando as mais de 500 propostas de alteração - emendas parlamen-
tares, não acatadas - que a MP recebeu durante seu trâmite no Parla-
mento e omitindo os protestos, via abaixo-assinados de associações
científicas e sindicais), o Presidente da República precisar afirmar, no
dia da sua sanção, que havia “100% de apoio” da população para a
reforma, então oficializada?

Resumindo os fatos, um primeiro aspecto a se considerar quanto a


consequências da aplicação da reforma aprovada via Medida Provi-
sória é que, apesar de se propagar que os alunos poderão escolher
qualquer um dos cinco itinerários, quem vai estabelecer qual ou quais
itinerários de fato estarão disponíveis são os sistemas de ensino que,
em função da Emenda Constitucional 95/2016, não poderão aumentar
custos de pessoal. Assim, as escolas só poderão ter uma opção, em
função da existência (ou não) de professores efetivos.

Uma segunda questão, e esta altera bastante a concepção de currí-


culo de formação básica dos jovens, é que Educação Física, Socio-
logia, Filosofia e Arte são propostas como “estudos e práticas”, ou
seja, seus conteúdos poderão ser ensinados e diluídos em outras dis-
ciplinas e não mais como componentes curriculares.

Um dos poucos aspectos que foram relativizados na forma final da Lei


13.415 foi com relação à exigência exclusiva do inglês. Ela continua
como única língua estrangeira obrigatória, mas passam-se a permitir,
como optativas, as outras línguas, citando-se o espanhol como possi-
bilidade.

Um terceiro aspecto – grave nas suas consequências – é que a pro-


posta retoma uma visão reducionista no itinerário formativo “formação
técnica e profissional” como opção dual dentro do ensino médio. O iti-
nerário V - “formação técnica e profissional” - poderá ser ofertado por
meio de parceria com o setor privado e o sistema de ensino se servirá
de recurso público do FUNDEB para isso. E, também, especificamente
para este itinerário não há exigência de professores formados, pois
aqueles que atestarem notório saber em qualquer habilitação técnica
poderão receber certificado para o exercício da docência.

Abre-se, por fim, uma quarta questão, muito séria: a Lei propõe outra
possibilidade de pessoas não formadas nas licenciaturas assumirem
funções docentes. Segundo velhos hábitos brasileiros, qualquer profis-
sional graduado, apenas com uma complementação pedagógica, po-
derá assumir aulas no novo ensino médio (conforme novo inciso V no
artigo 61 da LDB). Além disso, aliados políticos do governo federal nos
estados já vem apresentando Projetos de Lei em que até mesmo essa
complementação ficaria superada e o notório saber passaria a de-
pender apenas de autorizações a nível estadual, como condição para
a atuação profissional como professor. Abre-se a possibilidade da pro-
fissão voltar a ser um bico, aviltando ainda mais as já insuficientes re-
munerações dos professores de grande parte das redes públicas.

Por fim, um aspecto grave da Lei, com repercussões na educação su-


perior diz respeito à formação do magistério. A Lei ultrapassando seus
limites e ferindo a autonomia das universidades brasileiras dispôs (§8º,
do art.62/LDB) que “os currículos dos cursos de formação de docentes
terão por referência a Base Nacional Comum Curricular”. Ora, essa é
uma concepção de formação docente que pretende “enquadrar” que
os professores só possam “aprender” a dar aulas, sobre o conteúdo
que o MEC determinar. Essa concepção já fora adotada por membros
do Conselho Estadual de São Paulo, em especial, por parte de conse-
lheiras que hoje fazem parte ou assessoram o MEC (Maria Helena
Castro, Guiomar Namo de Mello, Rose Neubauer da Silva).

Na ocasião, tentaram impô-la e vetaram 13 cursos de licenciatura da


USP e tantos outros da UNESP e da UNICAMP. Felizmente, a Consti-
tuição Federal de 1988, ainda que retalhada e reformulada, continua a
garantir nosso direito de propor com autonomia pedagógica os dife-
rentes cursos das universidades públicas de São Paulo.

A sociedade precisa ser alertada para as consequências dessa re-


forma, conhecendo, discutindo e combatendo os retrocessos que a le-
gislação aprovada trouxe para o ensino médio brasileiro. Licenciaturas
das Universidades: é preciso ação para brecar as consequências
dessas alterações na LDB!

O Grupo de Trabalho de Política Educacional da USP é formado


pelos professores(as) Carmen Sylvia Vidigal Moraes, César Minto,
Eduardo Donizeti Girotto, Ivã Gurgel, João Zanetic, Lighia B. Ho-
rodynski-Matsushigue, Lisete Regina Gomes Arelaro, Otaviano
Helene e Rubens Barbosa de Camargo

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