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Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,

Dizendo: "Fuge, fuge, Lusitano,

Da cilada que o Rei malvado tece,

Por te trazer ao fim, e extremo dano;

Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;

Sereno o tempo tens e o Oceano,

E outro Rei mais amigo, noutra parte,

Onde podes seguro agasalhar-te.

Aqui observamos o conselho de Mercúrio para que Vasco da Gama parta


imediatamente da região em direção ao norte, pois lá encontrará um rei amigável, que
proporcionará aos portugueses o descanso necessário e pedido por Vasco na sua oração
após descobrir a trama do rei de Mombaça.

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"Não tens aqui senão aparelhado

O hospício que o cru Diomedes dava,

Fazendo ser manjar acostumado

De cavalos a gente que hospedava;

As aras de Busíris infamado,

Onde os hóspedes tristes imolava,

Terás certas aqui, se muito esperas.

Fuge das gentes pérfidas e feras.

Nessa estância Camões dá dois exemplos de anfitriões que massacravam seus hóspedes.
O primeiro é Diomedes, rei da Trácia, que dava aos seus cavalos como repasto a carne
dos seus hóspedes sacrificados. O segundo é Busíris, tirano egípcio que imolava os
hóspedes para ofertá-los aos deuses.

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"Vai-te ao longo da costa discorrendo,

E outra terra acharás de mais verdade,

Lá quase junto donde o Sol ardendo

Iguala o dia e noite em quantidade;


Ali tua frota alegre recebendo

Um Rei, com muitas obras de amizade,,

Gasalhado seguro te daria,

E, para a Índia, certa e sábia guia."

Como conselho, Mercúrio aconselha Vasco a seguir em direção ao norte, perto da linha
do Equador, onde o dia e noite tem a mesma duração. Nesse local, segundo Mercúrio,
Vasco encontrará hospedagem segura e um guia correto para leva-lo à Índia.

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Vasco percebe que o sonho é um indicativo de que deve prosseguir, e acata ao conselho
divino,partindo com suas naus, apesar das tentativas de retardo dos mouros.Após a
partida, chegam os portugueses a Melinde, onde são recebidos com hospitalidade.
Vasco da Gama envia um embaixador ao rei, e recebe inúmeros presentes reais:
carneiros, galinhas e frutas. O embaixador português explica ao rei o motivo da viagem
e o porquê de Vasco da Gama não comparecer pessoalmente em terra: este cumpria
ordens do rei, que ordenou ao capitão que não deixasse a frota desamparada para ir em
terra. O rei de Melinde responde cortesmente afirmando estranha o fato de Vasco da
Gama não poder desembarcar, mas que estima a lealdade do português para com seu
rei.

Vai então o rei até a frota conhecer Vasco da Gama. O encontro é repleto de cortesia e
promessas de auxílio por parte dos nativos. O rei pede então que Vasco narre a história
de seu povo.

CANTO III

Levando em conta que o poema épico conta a história heroica de um povo, podemos
dizer com relativa segurança que o Canto III é um dos principais cantos de Os Lusíadas.
É nele que o poeta faz Vasco da Gama contar a história de Portugal. Mas seria pouco
dizer que ele faz apenas isso: temos aqui um painel histórico, geográfico, político e
mitológico de extrema riqueza, uma composição narrativa viva e brilhante, que busca
contar a história de Portugal com o engenho e arte que o poeta pede às musas no início
da obra.

Agora tu, Calíope, me ensina

O que contou ao Rei o ilustre Gama:

Inspira imortal canto e voz divina

Neste peito mortal, que tanto te ama.

Neste primeiro momento Vasco da Gama faz uma invocação à Calíope, a de bela voz,
musa inspiradora da poesia épica.
Assim o claro inventor da Medicina,

De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,

Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,

Te negue o amor devido, como soe.

Aqui Vasco remete a inúmeras figuras mitológicas relacionadas a poesia épica: a


primeira é o inventor da medicina, ou seja, Apolo, representação mítica do Sol, deus da
sabedoria, da poesia. Calíope e Apolo geraram Orfeu, poeta de grande habilidade e
amado pela sua música divina tocada junto à lira. As outras figuras que ali aparecem
são de ninfas que desprezaram ou forma desprezadas por Apolo. Pede então que a ninfa
nunca seja desprezada pelo deus da poesia, invocando seu nome em auxílio do que vai
contar

Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,

Como merece a gente Lusitana;

Que veja e saiba o mundo que do Tejo

O licor de Aganipe corre e mana.

Pede por fim, que a ninfa auxilie Vasco no seu desejo: contar a história dos portugueses
para que os demais povos vejam que das águas do Tejo também corre a água da fonte
Aganipe, que era conhecida como conspiradora dos poetas. Lembremos que na
primeira invocação Camões já se utiliza dessa imagem, remetendo ao Hipocrene, a
fonte surgida a partir da patada de Pégaso.

Deixa as flores de Pindo, que já vejo

Banhar-me Apolo na água soberana;

Senão direi que tens algum receio,

Que se escureça o teu querido Orfeio.

Pede então que deixe as flores de Pindo, monte localizado na Macedônia e localidade
dedicada a Apolo e às musas. Ao justificar seu pedido, Vasco afirma que se esse não for
cumprido, imagina lhe será negada a inspiração porque a musa teme que seu Canto
supere o de Orfeu, aqui grafado Orfeio.

3-5

Após essa invocação, todos atentam para as palavras de Vasco, que afirma que primeiro
começará sua descrição a partir da localização da Europa para em um segundo
momento narrar a história do seu país, reiterando que tudo a ser narrado ser a pura
verdade dos fatos.
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"Entre a Zona que o Cancro senhoreia,

Meta setentrional do Sol luzente,

E aquela que por fria se arreceia

Tanto, como a do meio por ardente,

Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,

Pela parte do Areturo, e do Ocidente,

Com suas salsas ondas o Oceano,

E pela Austral o mar Mediterrano.

Inicia-se aqui uma descrição brilhante e pormenorizada da geografia da Europa. Para


tanto, Vasco da Gama localiza o continente entre o Trópico de Câncer (a Zona que o
Cancro senhoreia) e o Pólo Norte (a meta setentrional onde o Sol se arreceia com o frio
extremo). Portanto, em relação à Europa, temos a Zona Equatorial ao sul (meio
ardente) e o Arcturo, (estrela Alfa da constelação do Boieiro, já citado na estância 21 do
Canto I, que está muito próxima ao Norte e por isso simboliza esse ponto cardeal) ao
norte. Já ao Ocidente temos ao Ocidente da Europa as salsas ondas do Oceano, ou seja,
o Atlântico, enquanto que ao sul, o ponto austral, o mar Mediterrâneo.

"Da parte donde o dia vem nascendo,

O último ponto a ser descrito, o único com ligação do continente às demais terras, é o
Oriente, de onde o dia nasce.

Com Ásia se avizinha; mas o rio

Que dos montes Rifeios vai correndo,

Na alagoa Meotis, curvo o frio,

Separando os continentes está o Don, rio que corre dos montes ao norte da Cítia (região
que vai dos Cárpatos até a fronteia com a atual Mongólia, passando pela vasta região do
sul da Rússia, abrangendo o território do Cazaquistão e dos demais países que se
avizinham ao Mar Negro e ao Mar Cáspio) e vai desaguar no Mar de Azov (alagoa
Meótis)

As divide: e o mar que, fero e horrendo,

Viu dos Gregos o irado senhorio,

Onde agora de Tróia triunfante

Não vê mais que a memória o navegante.


Mais ao sul temos descrito o mar Egeu, que separa a Grécia da Turquia, onde ficara a
mítica cidade de Tróia.

"Lá onde mais debaixo está do Pólo,

Os montes Hiperbóreos aparecem,

Inicia-se agora a descrição da Europa setentrional. No pólo Ártico encontram-se os


imaginários montes Hiperbóreos, que seriam o limite do continente ao norte.

E aqueles onde sempre sopra Eolo,

E co'o nome, dos sopros se enobrecem.

Aqui tão pouca força tem de Apolo

Os raios que no mundo resplandecem,

Que a neve está contido pelos montes,

Gelado o mar, geladas sempre as fontes.

Nesse local inóspito o Sol, representado por Apolo, não tem força com seus raios, os
ventos personificados por Éolo sopram incessantemente e as fontes, mares e os montes
permanecem sempre sob a neve.

"Aqui dos Citas grande quantidade

Vivem, que antigamente grande guerra

Tiveram, sobre a humana antiguidade,

Co'os que tinham então a Egípcia terra;

Mas quem tão fora estava da verdade,

(Já que o juízo humano tanto erra)

Para que do mais certo se informara,

Ao campo Damasceno o perguntara.

Aqui viveram os naturais da Cítia, região já descrita como origem do rio Tánais (hoje
conhecido como Don) que brota dos montes Rifeios. Esse povo guerreiro e antigo, em
tempos imemoriais havia travado batalha com os egípcios, porém isso só poderá ser
confirmado àquele que perguntar aos damascenos, ou seja, os primeiros homens, pois
consta que nos campos da região de Damasco, na Síria, Deus criara o homem.

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"Agora nestas partes se nomeia


A Lápia fria, a inculta Noruega,

Aqui Vasco descreve a Lápia, nome alternativo da Lapônia, a inculta Noruega, onde o
processo civilizatório foi mais demorado e o cristianismo chegou tardiamente.

Escandinávia Ilha, que se arreia

Das vitórias que Itália não lhe nega.

Agora cita a Escandinávia, que venceram batalhas contra os romanos.

Aqui, enquanto as águas não refreia

O congelado inverno, se navega

Um braço do Sarmático Oceano

Pelo Brúsio, Suécio e frio Dano.

No inverno ficam congeladas as águas do Báltico (Oceano Sarmático), que banha a


costa dos brúsios, dos suécios e dos daneses (em ordem: os prussianos, os suecos e
dinamarqueses).

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"Entre este mar e o Tánais vive estranha

Gente: Rutenos, Moseos e Livónios,

Sármatas outro tempo; e na montanha

Hircínia os Marcomanos são Polónios.

Sujeitos ao Império de Alemanha

São Saxones, Boêmios e Panónios,

E outras várias nações, que o Reno frio

Lava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio.

Estra estrofe faz uma descrição detalhada da Europa Central: entre o Báltico e o rio
Don vivem povos de hábitos estranhos, como os rutenos, habitantes da Galícia e da
Hungria; os livônios, que habitam a atual região das atuais Letônia, Estônia, Lituânia e
Bielorrússia; sármatas, habitantes russos da foz do Don; os marcomanos, povo que
habitava a região da Saxônia e da Boêmia e que foram derrotados pelos romanos no
século II d.C; saxônios, boêmios e panônios povos do sul da Alemanha, na Áustria e na
Croácia, na região dos rios Danúbio e Drava.

Por fim cita as demais nações que vivem às margens dos rios Reno, Danúbio, Amasis
(atual Ems) e o Albis (atual Elba).

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"Entre o remoto Istro e o claro Estreito,


Aonde Hele deixou co'o nome a vida,

Entre o Danúbio (antigamente chamado de Istro) e o estreito de Dardanelos,


antigamente chamado de Helesponto porque ali se dizia que Heles, afogou-se ao
atravessar o estreito montada no velocino alado de Hermes.

Estão os Traces de robusto peito,

Do fero Marte pátria tão querida,

Nessa região vivem os Trácios, da antiga região da Trácia, hoje compreendendo os


territórios do nordeste da Grécia, da Turquia Europeia e da Bulgária.

Onde, coHemo, o Ródopesujeito

Ao Otomano está, que submetida

Bizâncio tem a seu serviço indino:

Boa injúria do grande Constantino!

Nessa região da península balcânica (aqui chamada de Hemo, seu antigo nome), está o
Ródope, cadeia de montanhas e é submetida ao jugo dos turcos otomanos após passar
em mãos do imperador Constantino, que cometeu boa injúria ao declarar o
cristianismo a religião oficial do seu império.

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"Logo de Macedónia estão as gentes,

A quem lava do Axio a água fria;

Logo mais ao leste Vasco da Gama descreve a Macedônia, que é contada pelo rio
Vardar, denominado Axios ainda hoje pelos gregos.

E vós também, ó terras excelentes

Nos costumes, engenhos e ousadia,

Que criastes os peitos eloquentes

E os juízos de alta fantasia,

Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,

E não menos por armas, que por letras.

Aqui encontramos rimas de louvor ao mundo grego, aos seus costumes, seus feitos e
sua cultura.

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"Logo os Dálmatas vivem; e no seio,


Onde Antenor já muros levantou,

A soberba Veneza está no meio

Das águas, que tão baixa começou.

Passa pelos dálmatas, habitantes da Dalmácia, atual Croácia; e cita Antenor, Trioiano
de nascimento que aportou à foz do Timavo e fundou Antenória, hoje Pádua, na Itália.
Antenor já fora citado por Zeus nas suas promessas à Vênus, quando cita Antenor como
um dos três grandes navegadores que terão seus nomes obscurecidos pelos feitos
portugueses.

Perto de Pádua está Veneza, que cresceu sobre as ilhas da lagoa que leva o nome da
cidade.

Da terra um braço vem ao mar, que cheio

De esforço, nações várias sujeitou,

Braço forte, de gente sublimada,

Não menos nos engenhos, que na espada.

Seguindo pelo braço que vem ao mar, ou seja, pela península itálica, Vasco lembra dos
sucessos militares desse povo, aqui o braço assumindo o símbolo da força militar
romana, que subjugou muitos outros.

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"Em torno o cerca o Reino Neptunino,

Co'os muros naturais por outra parte;

Pelo meio o divide o Apenino,

No entorno da península observamos o reino de Netuno, pois encontramos ao leste e ao


oeste da península o mar Tirreno e o Adriático. Ao longo da península segue o Apenino,
cadeia de montanhas que ocupa boa parte do território italiano.

Que tão ilustre fez o pátrio Marte;

Mas depois que o Porteiro tem divino,

Perdendo o esforço veio, e bélica arte;

Pobre está já de antiga potestade:

Tanto Deus se contenta de humildade!

Vasco reforça a relação dos italianos com Marte, deus da guerra, em decorrência da
frequente beligerância dos romanos. O porteiro divino a que Vasco se refere é o Papa,
sediado no Vaticano e detentor das chaves do céu como sucessor de Pedro, que as
recebeu de Cristo.

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"Gália ali se verá que nomeada

Co'os Cesáreos triunfos foi no mundo,

A região da França, nomeada pelos romanos de Gália, é aqui descrita pelo capitão
português como um grande triunfo dos Césares

Que do Séquana e Ródano é regada,

E do Giruna frio e Reno fundo.

França que é banhada pelo Séquana (variação antiga do nome do Sena), desaguando no
norte país; pelo Ródano com sua foz ao sul; o Giruna (atual Garona) que deságua ao
oeste; e por fim o Reno, ao leste, na fronteira com a Alemanha.

Logo os montes da Ninfa sepultada

Pirene se alevantam, que segundo

Antiguidades contam, quando arderam,

Rios de ouro e de prata então correram.

Continuando o giro pela Europa, segue em direção à península ibérica, separada do


continente pelos Pirineus, cadeia de montanhas onde, segundo a tradição, morreu
Pirene (que dá seu nome à cordilheira), amada de Hercules, que inconformado com o
fato ateou fogo às matas da região, provocando um calor tão intenso que os metais da
terra se fundiram, fazendo brotar dela fios de ouro e prata.

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"Eis aqui se descobre a nobre Espanha,

Como cabeça ali de Europa toda,

Em cujo senhorio e glória estranha

Muitas voltas tem dado a fatal roda;

Aqui Vasco chega à Espanha, descrita como a cabeça da Europa, (imagem que será
retomada por Fernando Pessoa em Mensagem). Muitos povos diferentes se tornaram
senhorio dessa terra, fazendo girar a roda da Fortuna.

Mas nunca poderá, com força ou manha,

A fortuna inquieta pôr-lhe noda,

Que lhe não tire o esforço e ousadia

Dos belicosos peitos que em si cria.

Mas apesar de tudo, nessa terra surgem homens de coragem e nunca haverão de faltar.

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"Com Tingitânia entesta, e ali parece

Que quer fechar o mar Mediterrano,

Onde o sabido Estreito se enobrece

Co'o extremo trabalhado Tebano.

O país quase encontra ao sul a Tingitânia (ou seja, o Marrocos), quase fechando o
Mediterrâneo. Este só não é fechado porque Hércules, aqui chamado de Tebano porque
lá foi gerado por Alcmena, sua mãe

Com nações diferentes se engrandece,

Cercadas com as ondas do Oceano;

Todas de tal nobreza e tal valor,

Que qualquer delas cuida que é melhor.

Formada a partir de diversas nações que serão descritas na estância seguinte, a


Espanha é cercada pelo Oceano e cada reino que a compõe, cada uma com sua porção
de nobreza e valor, acredita ser superior às demais.

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"Tem o Tarragonês, que se fez claro

Sujeitando Parténope inquieta;

O Navarro, as Astúrias, que reparo

Já foram contra a gente Mahometa;

Tem o Galego cauto, e o grande e raro

Castelhano, a quem fez o seu Planeta

Restituidor de Espanha e senhor dela,

Bétis, Lião, Granada, com Castela.

Inicia sua descrição da Espanha pelo tarragonês, ou seja, pelo reino de Aragão,
Navarra, à noroeste da primeira, as Astúrias, ao norte, a Galícia, no extremo oeste,
Castela, ao centro, que comandou a Reconquista contra os muçulmanos, e as
imponentes cidades ao sul de Bétis, Leão e Granada.

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