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RESUMO
O pluralismo jurídico apresenta a problematização da fonte do direito
não ser somente o Estado, pois as comunidades organizadas também
produzem normas. Logo, qual seria a fundamentação dessa compre-
ensão jurídica plural? É possível encontrar uma racionalidade de tipo
emancipatória que visualiza o pluralismo jurídico como capacidade ra-
cional de emancipar os sujeitos em dada situação de opressão. Contudo,
a ideia desta racionalidade deve ser observada em uma realidade his-
tórica concreta e isso demanda a observação do tipo de racionalidade
enquanto potencialidade crítica do direito. Ora, o trabalho considera as
limitações do racionalismo emancipador e explora o caráter de critici-
dade do pluralismo jurídico na realidade periférica. O objetivo geral do
estudo é refletir sobre os limites do racionalismo emancipatório e, de
forma específica renovar a perspectiva da racionalidade emancipatória
no horizonte pluralista da libertação. Tais objetivos serão buscados por
meio de uma pesquisa bibliográfica e de uma metodologia analética.
Portanto, a contribuição do estudo é abrir o horizonte emancipador
como fenômeno intramoderno e verificar a existência de outras facetas.
Palavras-chave: emancipação; juridicidade crítica; libertação; pluralismo
jurídico; racionalidade.
*
Este artigo foi elaborado como fruto do trabalho de pesquisa desenvolvido no grupo de pesquisa “Pensamento Jurídico
Crítico Latino-americano”, vinculado ao Programa de Mestrado em Direitos Humanos e Sociedade da Universidade do
Extremo Sul Catarinense (Unesc). O artigo foi revisado e ampliado, e sua bibliografia, atualizada da sua versão original.
**
Professor titular aposentado no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
e professor do Mestrado em Direito e Sociedade da Universidade La Salle (Unilasalle-RS) e Mestrado em Direitos Humanos
da Unesc, Brasil. Doutor em Direito. É pesquisador nível 1-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq) e consultor Ad Hoc da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Membro
da Sociedad Argentina de Sociología Jurídica, do Grupo de Trabalho do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais
(Clacso) (Argentina-Equador): “Pensamiento Jurídico Crítico” . Professor visitante de cursos de pós-graduação em várias
universidades do Brasil e do exterior (Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Itália, México, Peru e Venezuela).
Autor de vários livros, dentre os quais: Pluralismo jurídico: fundamentos de una nueva cultura en el derecho. Sevilla: Mad, 2006;
Crítica Jurídica en América Latina. México: Florianópolis: Nepe – Núcleo de Estudos e Prática Emancipatórias, 2013; Teoría
crítica del derecho desde América Latina. Madrid: Akal, 2017. Correio eletrônico: wolkmer@yahoo.com.br
***
Doutor e Mestre em Direito pela UFSC. Pesquisador do Núcleo de Pensamento Jurídico Crítico Latino-americano (coorde-
nador da linha Constitucionalismo Crítico) da Unesc. Professor do Mestrado em Direitos Humanos e Sociedade da Unesc e
professor convidado do Mestrado em Direitos Humanos da Universidad Autónoma de San Luis de Potosí (UASLP), México.
Membro do Grupo de Trabalho do Clacso: “Crítica Jurídica Latinoamericana”. Correio eletrônico: lucas-sul@hotmail.com
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uma leitura crítica das relações entre Es- 1. A RACIONALIDADE EMANCIPATÓRIA PRESENTE
tado, sociedade e direitos, especialmente NO PLURALISMO JURÍDICO
a partir do viés plural-jurídico-comunitá-
rio-participativo. O pluralismo jurídico pode ser concebido
de diferentes vieses: conservador, liberal,
Na sequência, é explorado o pluralismo emancipador; porém, em todos eles, é
jurídico de tipo comunitário participativo sempre possível visualizar a ampliação
como perspectiva de abertura ao horizon- da concepção unívoca da produção do
te de fundamentação latino-americano, direito. Assim, pretende contrapor ao mo-
ainda sem superar o campo emancipató- nismo jurídico; nesse caso, o problema se
rio, mas abrindo possibilidades concretas encontra na pretensa razão científica de
para uma perspectiva de apontamento qualificar e definir o conceito de direito
da ruptura e da subsunção da emancipa-
mais adequado para a leitura das práticas
ção jurídica no viés do pensamento de
jurídicas, inclusive delimitando o campo
libertação.
de abrangência de qualquer outra prática
que não seja a oficializada pelo Estado;
E, na última etapa, serão redefinidas
a questão é refinada no movimento de
as bases racionalistas do pluralismo
coroar o sistema legiferante estatal como
jurídico no sentido da libertação, espe-
imperador do império jurídico.
cificamente coletando as contribuições
do pensamento filosófico da libertação
Vale insistir na mesma perspectiva da
dusseliano, em especial suas categorias
e metodologia analética a fim de apon- questão do conceito de direito, quanto
tar os limites da racionalidade jurídica ao problema atemorizador não somente
emancipatória quando contextualizada para os teóricos do pluralismo jurídico,
em uma realidade concreta que represen- como também para os seus críticos; via
ta a exterioridade do projeto jurídico da de regra, a ideia ou o conceito de direito
modernidade. trata de delimitar o campo de análise dos
autores e, conforme é postulada esta ou
Portanto, a contribuição do estudo é abrir aquela forma, pode-se concluir o seu
o horizonte emancipador como fenômeno posicionamento. Assim, a pretensão de
intramodernidade e verificar que a outra denunciar toda a postura compreensí-
faceta é a libertação, que se propõe ir vel do direito emanado exclusivamente
além dos limites da modernidade e da sua do Estado como conceito oficial, de
condição periférica; insurge, assim, uma imediato exclui os demais conceitos
racionalidade jurídica propositiva, prota- ampliados, como também o fazem, de
gonista e que emerge desde a condição maneira inversa, aqueles ampliados para
encoberta do Outro, que não é somen- outras manifestações ou aportes con-
te, por vezes, marginal no sistema, mas ceituais, mas que, ao final, reconhecem
também excluído da comunidade desse a oficialidade do direito estatal, eis o
sistema. problema central.
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Diante disso, de forma análoga ao proble- Para a teoria do PJCP, “[...] trata-se da
ma do conceito de direito no pluralismo construção de uma racionalidade como
jurídico, é o tema da emancipação, pois, expressão de uma identidade cultural
em geral, é relacionada com a ideia de re- enquanto exigência e afirmação da liber-
conhecimento jurídico e por via de inser- dade, emancipação e autodeterminação”
ção no catálogo de direito. A ambiguidade (Wolkmer, 2012, p. 247). A problemática
do conceito de emancipação no contexto fundante de uma necessária racionalidade
da América Latina se deve no âmbito do emancipatória se estabelece diante das
pluralismo jurídico pelo fato de que se mazelas sociais que distorcem as relações
emancipa o outro sujeito como diferente, políticas e sociais.
desconsiderando a sua condição na rea-
lidade histórica concreta —distinto —; Soma-se aos elementos anteriores o con-
ou seja, emancipar é reconhecer o outro texto do declínio das práticas tradicionais
como membro diferente na comunidade de representação política, da crise na efi-
de comunicação ideal1 e esquecer a sua cácia das estruturas judiciais morosas e
condição na comunidade de comunicação estatais em responder à pluralidade das
real. Ora, nada mais que os movimentos demandas e dos conflitos, do crescente
jurídicos chamados emancipatórios bus- aumento de bolsões de miséria e das
cam a incluir o outro no mesmo sistema novas relações colonizadoras de países
que gera dominação e colonialidade. ricos com nações em desenvolvimento.
Nesse contexto, abre-se a discussão para
Nesse sentido, cabe verificar tendências a consciente busca de alternativas capa-
teóricas como o Pluralismo Jurídico Co- zes de desencadear diretrizes, práticas
munitário-participativo (PJCP), que adota e regulações voltadas para o reconheci-
entre as suas categorias fundamentadoras mento à diferença (singular e coletiva) de
o viés emancipador. O PJCP tem como uma vida humana com maior identidade,
elemento finalizador a proposta de uma autonomia e dignidade. E, ante essa lei-
racionalidade emancipatória que se tra- tura sociopolítica, o pluralismo jurídico
duz na crítica ao modelo de racionalidade munido de racionalidade emancipatória
técnico-formal e se afirma por meio de pode oferecer algumas alternativas. Logo,
uma perspectiva crítico-dialética, origi- a situação expressa a:
nada na vida concreta dos sujeitos —e,
em específico, das necessidades históri- [...] nova relação entre Estado e
cas—; além disso, envolve a totalidade Sociedade, em processo de lutas
sistêmica em que estes se encontram, ou e superações multiculturais no
seja, nas relações sociais, políticas, jurí- âmbito local, criando um novo
dicas e econômicas no desenvolvimento espaço comunitário, de caráter
neo-estatal, que funde o Estado e
da estrutura da modernidade.
a Sociedade no público: um espa-
ço de decisões não controladas
nem determinadas pelo Estado,
1
Sobre essas duas categorias, ver Dussel (2005). mas induzidas pela sociedade.
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e, aproveitando a abertura teórica de in- jurídica insurgente que, pela sua própria
tegração e mobilização, potencializar um natureza, só pode ser ilegal e contra a
sentido histórico concreto da realidade racionalidade e a filosofia moderna do
periférica. direito formal no sistema-mundo —fun-
dado com intuito de expansão capitalis-
3. REDEFININDO AS BASES RACIONALISTAS ta e privilegiando determinados setores
DO PLURALISMO JURÍDICO NO SENTIDO DA sociais—.
LIBERTAÇÃO
Naturalmente, a assertiva se insurge
Privilegiando a proposta por uma racio- como projeção inovadora, que se efetiva
nalidade crítica, devem-se considerar no campo da educação (conscientização
algumas precauções quando refletir essa e cultura), em que opera por uma via
temática na realidade periférica, pois o de aprendizagem comprometida com a
que importa são as especificidades que realidade fática, não abstrata, dos sujei-
impõem à verificação de alguns atos de tos subalternos envoltos no contexto de
renúncia e outros de aprofundamento manutenção da marginalidade no sistema
nas questões materiais que compõem a capitalista; essa alternativa é pensada
complexidade da sociedade específica: privilegiando uma estratégia de educa-
“[d]este modo, o novo conceito de razão ção libertadora, para a qual se afirma:
implica o abandono de todo e qualquer “[...] comprometida com o processo de
tipo de racionalização metafísica e (tec- desmitificação e conscientização (um
no)formalista equidistante da experiência novo ‘desencanto do mundo’), apta a
concreta e da crescente pluralidade das levar e a permitir, por meio da dinâmica
formas de vida cotidiana” (Wolkmer, 2001, interativa ‘consciência, ação, reflexão-
p. 176). -transformação’” (Wolkmer, 2001, p. 176).
Convoca para que não meramente as in-
Aparece aqui a evidência necessária dividualidades assumam esse processo,
para perceber que o fenômeno da ra- mas que também as identidades culturais,
cionalização moderna reflete no campo coletividades e experiências comunitárias
jurídico uma observância das manifesta- tomem a responsabilidade pelo outro —a
ções plurais em torno da produção e da vítima do sistema injusto— e produzam
reprodução da vida cotidiana como forma experiências alternativas que provoquem
de organização social que, atravessada a ampliação das possibilidades de desen-
por questões culturais, conforma por si volver a vida com dignidade e extrapolem
a essência que pode originar Outro Di- o horizonte reduzido pela racionalidade
reito, principalmente, quando a negação moderna (Wolkmer, 2001, p. 176).
das condições para essa produção e
reprodução da vida, se apresenta com o Diante disso, ainda resta expor certas
impedimento do exercício legítimo de um limitações conceituais na significação da
princípio humano (viver e ter condições proposta de racionalidade emancipató-
de vida), dando origem a uma tipologia ria, avançando na direção mais radical,
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mação da vida humana e da qualidade América Latina. Afinal, nem todo plura-
de desenvolvimento das suas distinções lismo jurídico na tradição latino-ameri-
ou diferenças culturais, sob condições cana foi liberador, pois está impregnado
materiais de vida adequadas aos seus por uma tradição colonizadora. Tal foi o
contextos sócio-históricos e que conside- caso das leis de Índias, ao se produzir
re as capacidades dos sujeitos ausentes um pluralismo jurídico que mantinha
como modo de produção epistemológico “emancipadas” as práticas jurídicas in-
e de desenvolvimento não subsumido na dígenas sob as condicionantes impostas
produção cientificista moderna5, mas sim pela Igreja Católica e pelos ditames da
autônomo e autodeterminado. Coroa Ibérica; ou seja, as leis e as cons-
tituições emancipadoras das nascentes
3.1. A questão da emancipação racionalista moderna nações latino-americanas conduziram
no horizonte do pluralismo jurídico latino-ameri- apenas à mudança de metrópole, assim
cano como as leis sociais da revolução social
mexicana (como exemplo) preparam os
Tendo em vista a premissa apontada trabalhadores e a mão de obra indígena
acima, vale recordar que o pressuposto e campesina (espoliada das suas terras
de uma racionalidade (que não deixa de pelas leis de amortização alguns anos
ser crítica) visualizada em um PJCP, ante antes da revolução jurídica-social de 1917)
as novas condições presentes, minimiza para um sistema de exploração capitalista
os demais pressupostos condicionantes incipiente, e assim por diante6.
dessa pluralidade transformadora.
O problema da racionalidade jurídica
Destarte, implica obrigatoriamente dire- que se propõe, por vezes, emancipatória,
cionar tal proposta emancipadora a um quando visualizada para o continente lati-
pensamento de liberação presente na no-americano (historicamente dominado
e oprimido por processos de colonização
sentido de uma ética de conteúdo ou material. O
projeto de uma ética da libertação entra em jogo interno e externo), conduz a equívocos
de maneira própria a partir do exercício da crítica que geram a reprodução de novas esferas
ética [...], onde se afirma a dignidade negada da
hegemônicas, operadas pela despolitiza-
vida da vítima, do oprimido ou excluído [...]. É em
função das vítimas, dos dominados ou excluídos ção política que não enfrenta a realidade
que se necessita esclarecer o aspecto material da concreta das vítimas. Ao copiar essa pers-
ética para bem fundá-la e poder, a partir dela, dar
pectiva nitidamente europeia, acaba por
o passo crítico”. (Dussel, 2007, p. 93).
5
“A ética da libertação justifica que possam enunciar
olvidar que o continente europeu, ao falar
“juízos de fato” com relação à vida ou à morte do de emancipação, assume uma conotação
sujeito ético. Não nos referimos a juízos de fato por conta de quem está emancipando (su-
da razão instrumental que procedem do cálculo
meio-fim, formais, mas sim juízos referentes à
jeito dominador), ao ponto que, no espa-
produção, à reprodução ou ao desenvolvimento ço escravizado, explorado como mão de
da vida humana, materiais (mas não materialidade obra e, ao longo da história, colonizado
no sentido weberiano) e a partir de cujo âmbito
podem ser julgados criticamente os fins e valores”. 6
Sobre o pluralismo jurídico na América Originária,
(Dussel, 2007, p. 136). ver Machado (2015).
Desse modo, esses sujeitos podem, na Essa situação problemática está assen-
exigência política crítica dos mecanis- tada em um consenso perverso que se
mos de produção e reprodução da vida manifesta no processo de globalização
(fonte material do direito), ir estruturan- hegemônica, aquele traduzido na faceta
do processos de libertação por meio da do neoliberalismo como projeto neocon-
conscientização da opressão e da domi- servador (Santos, 2015, p. 7), no qual o
nação como formas de conservação da direito, diminuído à esfera da regulação
alienação. Ora, a emancipação jurídica na violenta e opressiva, limita-se apenas a
América Latina logra eficazmente incluir o legitimar tais eventos.
outro tardiamente em alguma armadilha
dentro das três matrizes (institucional: Dessa forma, não abandonando a crença
colonialidade, cultural: monocultural e em uma possível capacidade emancipa-
econômica: mercadocêntrica) e, no âm- dora do direito, Boaventura de Sousa
bito jurídico, uma perspectiva pluralista Santos (2015) refere: “[a] questão do
deve estar apta a desarmá-las. papel do Direito na busca da emancipa-
ção social é, actualmente, uma questão
Esses subsídios aludidos encontram certa contra-hegemónica que deve preocupar
aderência na proposta de emancipação todos quantos, um pouco por todo o sis-
do direito proporcionada pela leitura de tema-mundo, lutam contra a globalização
Boaventura de Sousa Santos. Para essa hegemónica neoliberal” (p. 11). Assim, eis
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ou mesmo para elaborar críticas, basta, à Para E. Dussel (2005), a proposta deve ser
maneira da Filosofia da Libertação (Dus- originada não meramente a partir de uma
sel, 2011) latino-americana, ousar pensar singularidade, de um “si mesmo” ou “nós
por intermédio das facetas perversas que coletivo”, e sim da seguinte forma:
atingem a zona periférica e a confirmam
Lo esencial, entonces, para una
como periférica (um pensamento situado),
filosofía de la liberación, no es el
ou mesmo, por essa condição, afirmar “yo” o el “nosotros” (aun como
que o estado de periferia já é propriamen- “comunidad de comunicación”)
te um elemento constituído pela conjun- o la “sociedad abierta”, que de
hecho puede “cerrarse” en una
tura sistêmica dominante. Acontece que,
totalización totalitaria de la Total-
nessa zona, local em que foi produzida idad, en su “lo público (Öffentlich-
a faceta encobridora da modernidade, keit)” burocratizado, sino el “tú”,
também podem emergir alternativas crí- el “vosotros”, “el otro” de toda
ticas provocadoras que desestabilizam o comunidad de comunicación —
la exterioridad transcendental
sistema moderno e não somente colocam a toda comunidad y ontología;
em crise seus paradigmas, como também trans-ontológica, entonces, que
superam criativamente o centro global con Lévinas hemos denominado
do poder. la alteridad metaísica del Otro
(para diferenciarla de la metafísi-
ca vulgar o dogmática, óntica). (p.
3.2. Por uma potencialidade libertadora do pluralismo 97, grifo nosso)
jurídico
A denúncia que faz E. Dussel no presente
Dessa maneira, partindo da crítica de texto trata-se do fato que esse sujeito, em
Enrique Dussel às concepções emanci- sua “outridade”, não fez parte da comu-
patórias da modernidade e da pós-mo- nidade de comunicação emancipatória
dernidade, compreendidas como im- senão apenas como parte receptiva do
possibilidade para a realidade periférica acordo. Logo, como poderia ser integra-
(Dussel, 2005, p. 74) continental, afinal do? Sob a fórmula da igualdade e seu
a: “América Latina, en cambio, nació al binômio “diferença”! Caso seja essa a
resposta, algumas observações abaixo
mismo tiempo que la Modernidad, pero
devem ser esclarecidas.
su ‘otra cara’ necesaria, silenciada, ex-
plotada, dominada” (Dussel, 2005, p. 75);
O relevante da proposta reflexiva é a
por esse ângulo, põe em crise a proposta indagação a respeito de se esse mesmo
da racionalidade emancipatória moderna sujeito não pode construir suas próprias
vinculada ao pensamento da comunidade possibilidades e ignorar o consenso glo-
de comunicação ou mesmo da sociedade bal e hegemônico, bem como as alter-
cosmopolita de Boaventura Santos (com nativas advindas do centro que irradia
seu viés inclusivo). possibilidades, princípios e racionalida-
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des; a questão do Outro não se apresenta ção de outras expectativas. Não se está
meramente como transcendentalidade ao pensando em probabilidades renovadas,
Nós: “[...] sino transcendental a la misma mas probabilidades de outro projeto,
comunidad. Sin embargo, de hecho, en um projeto de libertação que está além
la comunidad de comunicación ‘real’, ‘el da emancipação (Dussel, 2005, p. 104).
Otro’ es ignorado, desconocido —no re- A insuficiência de somente denunciar a
conocido— como momento ético de una exterioridade da América Latina e a ori-
estructura vigente de injusticia” (Dussel, ginalidade encoberta dos seus povos e
2005, p. 101). culturas se encontra na abertura da pos-
sibilidade de mera inclusão no processo
Nesse sentido, a questão explícita da ex- racional moderno, e a questão se trata de:
clusão do outro se traduz não somente
como afetada pelos efeitos do sistema, Os excluídos não devem ser in-
mas também pelos efeitos da impossi- cluídos (seria como introduzir o
bilidade de participar efetivamente da Outro no mesmo) no antigo siste-
comunidade de comunicação “real”, ou ma, mas devem participar como
iguais em um novo momento
seja, participar como membro e não mero
institucional (a nova ordem políti-
expectador passivo. Essa condição se dá ca). Não se luta pela inclusão, mas
por conta da historicidade silenciada: “[...] sim pela transformação — contra
para América Latina, cultura periférica no Iris Young, J. Habermas e tantos
es un tema solamente teórico, es ante outros que falam de “inclusão”.
todo una experiencia fática, ético-prác- (Dussel, 2007, p. 110)
tica, que cumplió ya medio milenio en
1992” (Dussel, 2005, p. 101). A interpelação ética do oprimido supera a
exigibilidade política do direito emancipa-
Assim, só a afirmação da exterioridade tório, pois a exigência das necessidades
do outro pode irromper na totalidade; fundamentais para seguir vivendo, como
entenda-se “totalidade” como sistema no caso da fome, já configura um pedido
fetichizado da própria modernidade, en- de justiça que denuncia algum tipo de
clausurada em suas próprias promessas injustiça perpetrado (Dussel, 2007, p. 119).
de futuro infalível8, e que não se abre para Na maioria das vezes, essa injustiça é um
além das possibilidades que, pelo seu elemento histórico e que se manifesta
âmago, pode oferecer como alternativas. hegemonicamente nas zonas periféricas
Acontece que, na intempérie do projeto em torno dos centros de poder ou como
totalizador, encontram-se as possibili- efeito do exercício hegemônico deste últi-
dades aventadas e elaboradas na condi- mo. Afinal, que tipo de comunidade pode
ser pensada pelos arquétipos centrais,
8
Sobre o assunto, verificar o artigo intitulado que ignoram a dor dos povos oprimidos?
“Pluralismo jurídico e justiça comunitária na Seria perpetrar o mito tutelar de um Ginés
A mérica Latina: potencialidades a partir da
sociologia das ausências e das emergências (Leal de Sepúlveda ao creditar apenas ao locus
e Machado, 2013). da solidariedade liberal em detrimento de
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que: “[o] consenso crítico dos dominados a da política. Ainda, cabe referir que essa
é o momento do nascimento de um exer- proposta não se limita apenas a esses
cício crítico da democracia” (Dussel, 2007, elementos, pois é possível constatar que
p. 109); logo, libertar significa: comporta uma abordagem pedagógica,
ética e também uma expansão da dimen-
[c]onstruir una “comunidad de são política do espaço público (reinven-
comunicación y de vida histórico- tado), que prioriza um sujeito histórico
posible” más justa, más racional concreto com capacidade de produzir
(como realización del “proyecto
uma forma jurídica.
utópico-concreto” de liberación).
“Liberar” parte de una “comu-
nidad de vida real” gracias a una Ademais, essa tipologia de pluralismo
praxis reformista o revolucionaria jurídico também apresenta uma raciona-
(ninguna de las dos puede ser lidade que guarda uma capacidade eman-
descartada a priori), y desde la cipatória, elemento que, problematizado
“interpelación del Otro”, es decir, acima, revelou suas limitações quando
como exigencia ética de la “co- analisado dentro da realidade histórica
munidad de comunicación y de
concreta dos sujeitos na América Latina.
vida ideal”. (Dussel, 2005, p. 124).
Tais limitações representam a abertura
para a reflexão crítica, evidenciando as
Em síntese, ficou expresso no desenvol-
possibilidades e condições reais de liber-
vimento desta discussão uma abertura
tação daquilo que foi pensado por meio
de perspectiva teórica e crítica que pri-
de uma prática histórico-concreta e um
vilegiou avaliar o pluralismo jurídico não pensamento situado, capaz de subsidiar
mais por transplantes da centralidade do elementos para assentar outro viés de
Norte global, mas agora de forma incisi- racionalidade, renovando as fontes da
va e comprometida com a produção de pluralidade normativa.
conhecimento gerada pela Filosofia da
Libertação latino-americana (originária Portanto, se a proposta inicial era explorar
e proveniente do Sul global) e mediada criticamente a capacidade da racionalida-
por ela. de emancipatória do direito no fenômeno
do pluralismo jurídico, em especial aquele
CONSIDERAÇÕES visualizado desde o cenário latino-ame-
ricano, é possível concluir que os limites
A temática do PJCP tem a potencialidade foram expostos, refletidos e questionados
de apresentar uma concepção material por meio de uma renovada mirada libera-
do direito (embasando-se nas necessida- dora, como horizonte racionalizado que
des humanas fundamentais), verificá-la e se propõe ir além dos limites da moder-
fortalecê-la conciliando as experiências nidade e de sua condição periférica; uma
normativas das comunidades com a ló- racionalidade propositiva, protagonista
gica participativa (democrática), fazendo e que emerge desde a condição do ou-
uma junção entre a esfera do direito com tro, que não é marginal no sistema, mas
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