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Política do tráfico negreiro: o Parlamento imperial

e a reabertura do comércio de escravos na década de 1830.

Tâmis Peixoto Parron (mestrando em História Social, FFLCH/USP).

I.
Na virada do século XVIII para o XIX, o sistema escravista atlântico passou por
transformações tão profundas quanto aquelas que fulminaram o Antigo Regime. No meio do
liberalismo político que sacudiu os antigos impérios coloniais e forjou a construção dos novos
Estados-nação, a escravidão foi paulatinamente desmontada nas repúblicas da América
Hispânica, tornou-se interdita nas unidades federativas do Norte dos Estados Unidos e entrou
em colapso nas colônias caribenhas francesas. Contudo, ao longo do século XIX, a instituição
prosperou com vigor em três áreas do continente: nos estados do Sul da federação americana,
em Cuba e no Império do Brasil. Em comparação com os demais casos, o episódio brasileiro
adquiriu traços particulares. Enquanto o cativeiro e o tráfico em Cuba se identificaram com a
manutenção do status colonial da Ilha, cujos atores locais aceitaram ser excluídos da cena
parlamentar em troca da proteção metropolitana ao sistema escravista, o Brasil (como os
Estados Unidos) deixou a condição colonial e fundou sua estrutura política sobre as novas
bases do liberalismo. Por outro lado, ao passo que a experiência congressista americana teve
lugar em um país com alguns territórios sem escravos e conviveu por décadas com um
movimento abolicionista organizado, o Parlamento brasileiro funcionou em um país
plenamente escravista e, até 1850, teve como interlocutor abolicionista direto um agente
externo, a Inglaterra.1

1
Para uma síntese das transformações políticas e do fim da escravidão na Era das Revoluções, cf.
BLACKBURN, Robin. The Overthrow of Colonial Slavery. London, New York: Verso, 1988, pp. 1-31; sobre o
caso cubano, cf. SCHMIDT-NOWARA, Christopher. Empire and Antislavery – Spain, Cuba and Puerto Rico.
Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1999, pp. 1-17; e BERBEL, M. e MARQUESE, R. “A escravidão nas

1
Apesar de o episódio ser excepcional – expansão da escravidão durante a formação de
um Estado liberal completamente escravista –, as relações entre defesas do cativeiro e os
novos espaços institucionais que o liberalismo criou para o exercício da política ainda não
foram exaustivamente estudadas. Eis então a pergunta: em que medida é possível relacionar
tráfico negreiro e escravidão com enunciação parlamentar, formação partidária, elaboração de
leis e articulação social? E, ao contrário, como a opinião pública e as alianças políticas
influenciaram a intensidade do tráfico negreiro e do crescimento do sistema escravista?
Noutras palavras, trata-se de examinar as interações entre a dinâmica da evolução
institucional do Império e a dinâmica do tráfico negreiro. Dados os limites do presente texto,
vou circunscrever a análise desse problema à década de 1830, quando foram estabelecidos os
acordos políticos que delinearam o esquadro institucional da monarquia brasileira até a
década de 1870 e silenciaram por décadas projetos que questionavam a escravidão negra.

II.
Para apreender a grade conceitual em que intervém os discursos políticos que trataram
da escravidão na década de 1830, é necessário rever o valor, a força e a extensão da primeira
lei brasileira que proibiu o tráfico negreiro (de 7 de novembro de 1831), muitas vezes
subestimada na historiografia. Um breve exercício comparativo mostra que seu texto
extrapola em muitos aspectos o teor da convenção anglo-brasileira de 1826, que estipulou a
supressão do comércio de escravos a partir de 1830. De fato, o tratado definiu como autores
criminais apenas tripulações contrabandistas, declarou livres somente africanos de
embarcações flagradas na ilegalidade e não exigiu, da parte do governo brasileiro, nenhuma
confecção de texto legal que expandisse suas disposições. Por sua vez, a lei de 7 de novembro
determinou que fossem livres todos os africanos ilegalmente introduzidos no Império,
independente de seu resgate por cruzeiros; previu que todos os infratores – desde tripulações
até fazendeiros – sofreriam processo criminal; e, por fim, permitiu a qualquer pessoa delatar à
polícia não apenas o desembarque, mas também a existência, fosse onde fosse, de plantéis
contrabandeados. Em síntese, ao deliberar sobre a clandestinidade em alto mar, na costa e no

experiências constitucionais ibéricas, 1810-1824”. Texto apresentado no Seminário Internacional Brasil: de um


Império a outro (1750-1850), realizado no depto. de História/FFLCH-USP, 05-09 de setembro de 2005; a
respeito dos EUA, cf. MASON, Matthew. Slavery and Politics in the Early American Republic. Chapel Hill: The
University of North Carolina Press, 2006; pp. 130-157 e pp. 177-212. A experiência abolicionista no caribe
inglês foi revisitada por DRESCHER, Seymour. The Mighty Experiment – Free Labor versus Slavery in British
Emancipation. New York: Oxford University Press, 2002; cf. discussão sobre emancipação na América
Hispânica em LOHSE, Russell. “Reconciling Freedom with the rights of Property, 1821-1852, with special
reference to La Plata.” The Journal of Negro Slavery, Vol. 81, N. 3 (Summer, 2001), pp. 203-227.

2
interior do território, o texto brasileiro ampliou o âmbito de incidência do tratado; ao definir
também o proprietário como criminoso, criou novas condutas puníveis.2
Essas considerações dão maior complexidade à lei brasileira que leituras veiculadas na
historiografia. De fato, muitos historiadores a vêem como resultado direto de compromissos
internacionais, ou como expressão de interesses de fazendeiros ou ainda como “letra morta”
feita apenas “para inglês ver”.3 Trabalhos recentes, porém, têm reconhecido que a lei teve a
função de reafirmar a soberania do legislativo (ignorado quando do tratado de 1826) e de criar
esquema próprio de repressão para esvaziar os trabalhos das comissões mistas.4 Com efeito,
se for admitido que a macro-política do século XIX é, em geral, marcada por um aprendizado
constante e errático dos limites entre o Executivo e o Legislativo, essa lei pode ser entendida
como um exercício probatório de soberania dos órgãos representativos.
Uma última observação. Durante os debates no Senado, chegou-se a propor que o
primeiro artigo (sobre a liberdade dos africanos) beneficiasse também aqueles introduzidos
entre o início da validade do tratado (set./1830) e o início da vigência da lei (final de 1831). O
valor retroativo da proposta acalorou as discussões e despertou, entre os senadores, receio de
grande instabilidade social. Um deles (Rodrigues de Carvalho) afirmou mesmo que todos os
negros entrariam “em uma Revolução, porque basta um que saiba ler para que, vendo esta
disposição, cita [a] todos os outros”.5
O artigo que libertava africanos ilegais era realmente explosivo: criava instabilidade
jurídica no direito de propriedade, instigava escravos a enfrentar a autoridade dos senhores e,
por fim, minava a base legal com que o Estado e proprietários exerciam controle social sobre
os cativos. Ora, a convicção no Senado de que 20 mil escravos poderiam provocar caos

2
Sobre o caso espanhol, cf. MURRAY, David. Odious Commerce. – Britain, Spain, and the Abolition of the
Cuban Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1980; a respeito do tratado de 1826, cf.
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil (1ªed., 1970, trad. port.). Rio de Janeiro:
Expressão e Cultura/Edusp, 1976, pp. 38-94; vide texto do tratado em PINTO, Antônio Pereira. Apontamentos
para o direito internacional ou collecção completa dos tratados celebrados pelo Brasil com differentes nações,
acompanhada de uma notícia histórica e documentada sobre as convenções mais importantes. Rio de Janeiro: F.
L. Pinto e Cia., 1864, vol. 1, pp. 344 e ss; a lei de 1831 foi integralmente republicada em MOURA, Clóvis.
Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2004, pp. 18-19.
3
PRADO Jr., C. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1945, p. 157; COSTA, E. V. da. Da
Monarquia à república – momentos decisivos [7ª ed.]. São Paulo: Unesp, 1999, p. 282; CARVALHO, J. M. de.
A construção da ordem. Teatro de sombras [1ª ed., respectivamente, 1980 e 1988]. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 294; MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra..., verbete “lei para inglês ver”, pp.
240-241.
4
Cf. RODRIGUES, J. O infame comércio – propostas e experiências no final do tráfico de africanos no Brasil.
Campinas/SP: Ed. da Unicamp/Cecult, 2000, p. 87; MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. To be a liberated African
in Brazil – labour and citizenship in the nineteenth century. Tese de Doutorado. Waterloo, Ontario, Canada,
2002, p.21.
5
Cf. Anais do Senado do Império (col. anônimo). Rio de Janeiro: s. ed., 1914, 16 de junho de 1831, pp. 378,
379; cf. tb. sessão de 21 de junho de 1831, p 409. Daqui por diante, as remissões aos Anais da Câmara dos
Deputados serão abreviadas por ACD e as referências aos Anais do Senado por AS.

3
irreversível no Império bem evidencia que, se os parlamentares tivessem previsto o
contrabando das próximas duas décadas (que montou a quase 600 mil indivíduos), teriam
razões ainda mais persuasivas para não conceber artigo de tal natureza. Eles sabiam que
extrapolavam o conteúdo do tratado de 1826. Como lembrou o senador Matta Bacelar, a
convenção previa penas aos infratores; a lei de 1831 dava liberdade a todos africanos ilegais.
Na opinião geral, essa liberdade, porém, devia ser projetada para o futuro, jamais para o
passado.6
Com essas observações em mente, entende-se por que a lei de 7 de novembro de 1831
se revestirá de importância enorme ao longo do século XIX, não apenas para propostas
antiescravistas e ações de pessoas ilegalmente escravizadas, mas também para interesses
escravistas e articulações políticas. Assim, essa lei não poderá ser entendida meramente nem
como simulação retórica nem como prescrição normativa, mas antes como extraordinário
ponto de articulação, na história brasileira, entre ação legal e interação social.

III.
Os discursos políticos do começo da Regência operaram dentro do quadro conceitual
estabelecido pela lei de 1831. Denúncias contra resíduos do tráfico apareceram na Câmara dos
Deputados, durante discussões da fixação das forças navais, no Senado, quando de propostas
complementares para abafar o contrabando residual, e, por fim, em relatórios ministeriais.7
Em circular de 1832, D. A. Feijó (na Pasta da Justiça) pediu distribuição de cartazes com
multas, penas e riscos a que estavam sujeitos os traficantes e, vale sublinhar, os proprietários;
a palavra de ordem era denunciar “o horrível crime de vender ou comprar homens livres”.8 A
melhor síntese dessa orientação pode ser encontrada em uma circular de 1833 contra alguns
fazendeiros que Aureliano de Souza Coutinho (Justiça) expediu ao Juiz de Paz de Vassouras:
“Além de cometerem um crime com tal comércio, eles [os proprietários] promovem e cavam
um abismo no futuro para si mesmos [...], porque os africanos, quando ladinos e
conhecedores de que são livres, não desistirão da luta para escapar desse cativeiro que é

6
Cf. AS, 16 de junho, 1831, p. 377-8 e 21 de junho de 1831, p. 410. Sobre os receios dos africanos livres, cf.
MAMIGONIAN, B. G. To be a liberated...., pp. 24 e ss.
7
ACD, 4 de junho de 1832, pp. 71-72; ACD, 10 de maio de 1833, p. 116; AS, 25 de junho de 1834, pp. 316;
Jornal do Comércio, 29.02.1832 apud YOUSSEF, Alain El. O problema da escravidão em periódicos
brasileiros da década de 1830: Jornal do Comércio, Diário da Bahia, O Justiceiro, O Sete d’Abril e O Catão.
FAPESP. Relatório de Iniciação Científica. São Paulo, 2006, p. 19; cf. citações de Relatórios em CONRAD, R.
Tumbeiros – o tráfico de escravos. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 93-103.
8
Declaração de Diogo Antônio Feijó em nome do Imperador dirigida ao Presidente da Província da Bahia que
não se processe mais o tráfico de pretos africanos, para que não se realize a compra de tais escravos e outras
questões relativas à proibição. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1832, apud CONRAD, R. Tumbeiros..., p. 101.

4
condenado por lei.” Daí extraiu a conclusão lógica de que nem “a lei nem o governo, em tais
casos, garantirão aos senhores sua propriedade”.9 De fato, entre 1831 a 1835, o contrabando
operou à revelia do centro de decisões do Estado nacional.
Contudo, esse enquadramento começou a ser reorientado em 1834. A primeira
manifestação partiu da sociedade civil, quando a câmara de Bananal (São Paulo) enviou
representação ao Parlamento pedindo, não a execução da lei, mas sua pura e simples
revogação. Essa iniciativa logo seria encampada pelo primeiro escalão da política imperial.
Durante a corrida eleitoral para o cargo de Regente, em 1834, Feijó publicou em O Justiceiro
um requisitório contra a lei de 1831. Sabendo que inseria novas tópicas na esfera pública
brasileira, o padre escreveu um artigo sinuoso: quase até a metade, refletiu sobre “costumes
bárbaros” e reputou a escravidão um mal em abstrato e na prática – o que permitiu a
interpretação de seu texto como antiescravista e pura continuação das advertências de Souza
Coutinho.10 Porém, na segunda parte do artigo, o padre inverteu dois lugares-comuns: propôs
a manutenção no cativeiro dos africanos irregulares, ao invés de sua liberdade; e inocentou
proprietários, supostamente levados ao contrabando por mera necessidade de trabalhadores:
“Centenas de escravos [note-se que ele não diz “homens livres”, como anteriormente] enchem
todos os dias as fazendas dos nossos lavradores, e, crescendo o mal, como cresce, inevitável é
que a lei caia e que as autoridades cedam.”11
Na proposição final do texto, Feijó relembrou que a lei de 1831 precisava ser revogada
e que o embaraço do tráfico negreiro assistia apenas aos vasos de guerra ingleses. Na prática,
o candidato a Regente defendeu que a luta contra o comércio negreiro voltasse ao status do
tratado de 1826 – em outros termos, o Brasil deveria seguir o exemplo espanhol, que, a
despeito dos acordos antitráfico de 1817 de 1835 com a Inglaterra, só decretou leis
complementares para libertar africanos contrabandeados em 1855, após o pronunciamento
militar dos Progressistas.12

9
Cf. Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho ao Juiz de Paz da Vila de Vassouras, 05.12.1833 apud
MAMIGONIAN, B. To be a liberated African..., p. 71; trecho do ofício é reproduzido também por GERSON,
Brasil. A escravidão no Império. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 50.
10
Cf. CALDEIRA, J. (org. e introd.). Diogo Antônio Feijó. São Paulo: Editora 34, pp. 11-41; cf. tb.
MAMIGONIAN, B. “O direito de ser africano livre – os escravos e as interpretações da lei de 1831.” In LARA,
Silvia Hunold & MENDONÇA, Joseli M. N. (org.). Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006, p.
135.
11
Cf. FEIJÓ, D. A. “O tráfico dos pretos africanos”, O Justiceiro, n. 8, 25 de dezembro de 1834. O artigo foi
reproduzido em CALDEIRA, J. Diogo Antônio Feijó, pp. 151-154.
12
Cf. SCHIMIDT-NOWARA, Christopher. Empire and Antislavery..., pp. 50 e ss; SALMORAL, Manuel
Lucena. “Le projet espagnol de transfert en Afrique des esclaves affranquis cubains.” In HENRIQUES, Isabel
Castro & SALA-MOLINS, Louis (orgs.). Déraison, esclavage et droit – les fondements ideologiques et
juridiques de la traite négrière et de l’esclavage. Paris: Editions Unesco, 2002 p. 370.

5
As pressões pró-escravistas a partir de 1834 podem ser ligadas a três condicionantes.
A primeira, econômica, resultou de duas medidas dos Estados Unidos tomadas na década de
1830: a suspensão de tarifas sobre o café importado (1832) e a condução de uma “guerra
tarifária” contra a Espanha (1834). Assim, entre 1832 e 1835, enquanto as exportações
cubanas caiu de 23.000 para 15.000 toneladas, a brasileira saltou de 43.000 para 60.000.13 O
segundo fator é político. Até 1834, a figura de D. Pedro I catalisou grupos políticos contrários
à Regência, e é provável que estadistas brasileiros tenham decidido não desafiar abertamente
a ordem britânica para evitar, em eventual conflito de Restauração, o apoio da Inglaterra ao
partido do ex-Imperador. Após a morte de D. Pedro I, em 1834, esse perigo desapareceu. Por
fim, o fator institucional: apenas depois da promulgação do Ato Adicional em 1834 é que as
engrenagens do novo arranjo constitucional brasileiro entraram em movimento, com as
eleições para a Regência e o estabelecimento de Assembléias Provinciais. Não tardou para
que o tráfico virasse pauta durante as divergências entre os estadistas, nem para que os novos
canais de fazer política fossem empregados para sua defesa. Já vimos que Feijó utilizou o
tráfico na corrida eleitoral à Regência. Agora, vamos ver como esse problema se manifestou
no Parlamento, nas Assembléias e nas câmaras municipais.

IV.
Entre 1834 e 1836, deputados no Parlamento perceberam que o contrabando poderia
contar com o apoio do Estado e passaram a propor inúmeros projetos antiescravistas.
Impulsionados pela emancipação do Caribe Inglês (1833) e pela Revolta dos Malês (1835),
propuseram onze textos para aplacar a revivescência do comércio ou mesmo para acabar com
o cativeiro. Paralelamente, o ministro dos Estrangeiros, Alves Branco, assinou os Artigos
Adicionais (1835) com a Inglaterra, a fim de facilitar a captura de navios engajados no
contrabando.14
É nesse cenário (de indefinição do futuro do tráfico negreiro) que alguns políticos –
capitaneados por Bernardo Pereira de Vasconcelos, o chefe do Regresso conservador –
começaram a questionar constantemente a validade da lei de 1831 e a sugerir sua revogação.

13
Dados da exportação mundial de café em CLARENCE-SMITH, W. G. & TOPIK, Steven. The Global Coffee
Economy in Africa, Asia and Latin America, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 428
e 432.
14
Cf. as sessões ACD, 6 e 7 de maio de 1834, pp. 20-25; ACD, 6 de junho de 1835, pp. 154 e 156; ACD, 27 de
junho de 1835, p. 216; ACD, 20 de julho de 1834, pp. 91-92; ACD, 23 de julho de 1834, p. 105; ACD, 24 de
julho de 1834, p. 109; ACD, 18 de agosto de 1835, pp. 176-177; ACD, 29 de agosto de 1835, pp. 218-225; 7 de
maio de 1836, p. 24; ACD, 9 de julho de 1836, p. 55; ACD, 26 de julho de 1836, p. 115; ACD, 15 de julho de
1837, p. 112. Os Artigos Adicionais de 1835 estão reproduzidos em Cf. PINTO, Antônio Pereira. Apontamentos
para o direito internacional..., pp. 394-398.

6
Como disse Vasconcelos em 1835, “a escravidão dos africanos não era tão odiosa como a
representavam alguns outros Srs. [...]; era acomodada aos nossos costumes, conveniente aos
nossos interesses e incontestavelmente proveitosa aos mesmos africanos que melhoravam de
condição”. Em seguida, sentenciou que “a abolição deste tráfico não era objeto de lei, mas
que se devia deixar ao tempo e ao progresso do país”.15 No ano seguinte, a Assembléia do Rio
de Janeiro (15 de abril de 1836) e o município de Valença (25 de junho de 1836) usaram seus
direitos de petição para pressionar pelo fim da lei de 1831. Durante as eleições para a próxima
legislatura, ainda em 1836, Vasconcelos fez questão de formalizar o pedido de invalidação da
lei que libertava os africanos. Ele desejava:
“mostrar que esta lei de 1831, isto é, os seus seis primeiros artigos só servem para opressão
dos cidadãos e interesse de alguns especuladores sem consciência; que tem observado fatos que não
podem continuar a praticar-se sem grave prejuízo da moral e do interesse público e particular; que um
dos artigos cuja revogação propõe autoriza a qualquer pessoa para prender a todo africano, sem
mandado especial da autoridade, do que tem resultado graves inconvenientes e muitos vexames a
imensas pessoas.”16

Propugnador de grandes reformas (como a interpretação do Ato Adicional e do Código


do Processo), Vasconcelos começou a unir defesas da escravidão a seu programa político.
Ainda em 1836, ele escreveu: “Dos Ingleses é a Instituição do Júri, e de tal modo a ela nos
lançamos [...] que, em vez de colhermos o fruto que essa Nação poderosa tem colhido,
desmoralizamos a Instituição [...]. Dos Ingleses é a bela Instituição dos Juízes de Paz: e o que
tem ela produzido entre nós? Que longa enfiada de males [...] de ignorâncias, de fraudes e de
vexações!”. No mesmo texto, concluiu: “Faz-se uma lei dez vezes mais dura, mais fatal
mesmo que o famoso Tratado”, reclamou, “lei que passou na efervescência das paixões, no
delírio da Revolução, na exaltação dos Partidos, na deslocação de todas as coisas e no
devaneio de todas as idéias”. Finalmente, repisou as arbitrariedades da lei de 1831: o ladrão
não era nem o traficante nem o fazendeiro que infringiam prescrições do Estado, mas o
delator de contrabandos autorizado pela lei.17
Em 1837, Vasconcelos voltou a proferir que o tratado de 1826 era fruto da “violência”
dos ingleses; que não era “coerente querer tolher a vinda de africanos” para o Brasil; e que o
governo imperial não deveria coadjuvar no aperto aos negreiros. Fora do Parlamento, é
possível perceber a geografia do contrabando e da aliança política em torno do Regresso a
partir da origem das petições secundando as propostas de Vasconcelos: de 1837 a 1839, as

15
Cf. ACD, 24 de julho, 1835, p. 109; cf. tb. O Sete d’Abril, 01/08/1835, citado em YOUSSEF, Alain El. O
problema da escravidão em periódicos..., p. 43.
16
Cf. ACD, 25 de junho, 1836, p. 224.
17
Cf. O Sete de Abril, 27.07.1836. Agradeço a Alain Youssef a disposição desse número do periódico.

7
invectivas partiram de Valença, Vassouras e Paraíba do Sul – coração da cafeicultura na
Província do Rio de Janeiro, em processo de franca expansão desde a década anterior – ,
assim como das Assembléias Provinciais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.
Quando o programa das reformas conservadoras começou a ser aprovado na Câmara e no
Senado, as assembléias de Minas e da Bahia peticionaram mais quatro vezes: ao mesmo
tempo, reivindicaram a reformulação do Código de Processo Criminal e do Ato Adicional,
bem como revogação da lei de 1831. Aos poucos, a política saquarema encontrava ecos nos
redutos de maior expressão econômica no Império.
De fato, foi justamente em 1837 que o grupo de Vasconcelos substituiu Feijó na
Regência. Aninhados no poder, os regressistas continuaram a favorecer o tráfico com medidas
administrativas: como ministro do Império, Vasconcelos invalidou uma nova e arrochada
regulamentação da lei de 1831 feita sob Feijó; Rodrigues Torres (na Pasta da Marinha)
afirmou expressamente que a marinha imperial não deveria perseguir contrabandistas
negreiros, mas apenas pacificar as províncias sublevadas (no Sul e no Pará); Carneiro Leão
elogiou a perseguição de abolicionistas nos Estados Unidos, sugerindo uma Gag Rule
semelhante no Brasil.18 O sinal era plenamente claro: sob o comando dos estadistas do
Regresso, o governo imperial tinha dado luz verde para o prosseguimento do contrabando.
Enquanto estivessem no poder, a lei de 1831 seria letra morta, as propriedades dos
fazendeiros gozariam de perfeita segurança jurídica e nenhum escravo ilegal teria apoio do
Estado para reclamar sua liberdade.

V.
Quais conclusões podem ser tiradas desse esboço? A Regência começou com a
incriminação de traficantes e de senhores de escravos ilegais; terminou com a condenação
moral dos que os delatassem a serviço da lei. A Regência principiou também com a
advertência de que novos plantéis africanos constituiriam propriedade ilegal, portanto,
perigosa e precária; terminou com fazendeiros e políticos pedindo que, então, ela se tornasse
legal, pacífica e absoluta. Tais inversões mostram que a mera existência de um lugar-comum
(africano contrabandeado = perigo social, p. ex.) pode remeter tanto à rejeição do cativeiro
como a interesses escravistas que o reforçavam. Coletar topoi como “receios” e “medos” de

18
Cf., respectivamente, ACD, 3 de julho de 1838, p. 33; ACD, 7 de julho de 1840, pp. 106-107; ACD, 17 de
julho de 1839, pp. 336-337.

8
escravos ou de africanos livres e ligá-los diretamente ao enfraquecimento da escravidão é, de
fato, um esforço heurístico incompleto.19
Volto à pergunta inicial: como equacionar as defesas do tráfico negreiro com a
dinâmica da evolução institucional do Império? Com freqüência, estudiosos interpretaram a
descentralização política no começo da Regência (Código do Processo Criminal e Ato
Adicional) como um assalto dos proprietários à máquina do Estado, sobretudo ao braço
judiciário. Alguns entendem que os grupos provinciais ascendentes após a Abdicação
desejaram todo e qualquer tipo de reforma, menos nos “fundamentos da sociedade
escravista”; outros pretendem que a lei de 1831 trouxe o julgamento de presas para a alçada
de tribunais brasileiros e que tais tribunais, por sua vez, tinham sido entregues às mãos dos
negreiros. Logo, o liberalismo da década de 1830 foi francamente pró-escravista.20
Essas afirmações perdem força explicativa perante duas observações: se
descentralização judiciária significa efetivamente apoio ao pró-escravismo, então por que nos
Estados Unidos, onde júris populares também inocentaram sistematicamente os envolvidos no
tráfico transatlântico para o Brasil ou Cuba, não houve renascimento estrutural do
contrabando? Finalmente, como explicar que, entre 1831 e 1835, foram introduzidos no
Império cerca de 10 mil africanos, enquanto a escalada é impressionante justamente durante
as reformas de centralização do Regresso? Foram 41 mil em 1837; no ano seguinte, 47 mil; e
em 1839, 61 mil – um volume assustador.
Com efeito, o período de ilegalidade do tráfico negreiro pode ser dividido em duas
fases: a do contrabando residual (1831-1835), quando atividades do comércio não contaram
com apoio explícito ou maciço de parlamentares e o discurso a respeito do tráfico o repelia
fortemente; e a do contrabando sistêmico (1836-1850), quando o tráfico atingiu níveis de
inédita intensidade e vislumbrou o suporte de parlamentares engajados na defesa da
escravidão. É perfeitamente possível perceber, no Parlamento e fora dele, transformações
radicais em tendências discursivas, alianças políticas e articulações sociais em torno do
assunto. A primeira dessas duas fases tem sido menosprezada pela historiografia por causa da
segunda e, por isso, entendida teleologicamente como encenação pirotécnica e cínica do

19
A respeito da análise de lugares-comuns, cf. SKINNER, Quentin & TULLY, James (eds). Meaning and
Context: Quentin Skinner and his critics. Cambridge: Polity Press, 1988, pp. 29-67.
20
Cf. CARVALHO, J. M. de. “Federalismo e centralização no Império brasileiro: História e argumento.” In
IDEM. Pontos e bordados – escritos de História e de política. Belo Horizonte: Editora, 1998, pp. 155-188;
DOHLNIKOFF, Miriam. O pacto federal – origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p. 35;
ALENCASTRO, L. F. de. Le commerce..., pp. 471 e 484.

9
Estado ou simples período de recuo do mercado.21 Às vezes, chega-se a ignorar o declínio do
contrabando no início dos anos trinta e a escrever que o resultado dos acordos contra o tráfico
“não foi uma redução ou limitação do tráfico de escravos, mas sim um súbito surto no seu
volume”. A década teria apresentado “as mais altas médias históricas” – o que procede
somente se forem embutidos os volumes do final do decênio naqueles de seu início.22
A narrativa historiográfica tem definido mal o papel que os estadistas brasileiros
desempenharam para o sucesso do contrabando negreiro. Diante das inúmeras revoltas
provinciais – Farroupilha, Balaiada, Cabanagem, Sabinada etc. –, tanto os liberais moderados
como os regressistas procuraram limitar as funções do juiz de paz e do júri, pois o governo
não vinha conseguindo condenar os rebeldes por ter entregue o judiciário às localidades.23 Os
moderados pretendiam criar a figura do Prefeito, instituída pelas províncias; os conservadores
procuravam centralizar toda a polícia e o judiciário em um único posto, o Ministro da Justiça.
Ora, a enorme concentração do judiciário e da polícia nas mãos de apenas uma pessoa poderia
perfeitamente implicar combate sem quartel não apenas a revoltas provinciais, mas também
ao trato negreiro. É exatamente nesse ponto que é possível articular a evolução do quadro
institucional brasileiro à dinâmica do contrabando: quer no discurso quer na prática, os
regressistas darão toda prova aos fazendeiros e a seus representantes de que não vão lutar
jamais pelo fim do tráfico ilegal. Se é verossímil a hipótese de J. M. de Carvalho – de que as
reformas do Regresso só foram aprovadas por causa do corporativismo dos magistrados – não
deixa de ser verossímil também que tampouco haveria reforma, se os saquaremas não
afiançassem à sociedade que a nova justiça daquele Estado jamais atentaria contra sua
propriedade ilegal, fruto de pirataria, nascida do roubo mesmo.24
Não por acaso, a pressão contra a lei de 1831 ganhou força renovada em 1836, quando
os regressistas propuseram a interpretação do Ato Adicional e, fora do Parlamento, correram
as eleições para a legislatura que aprovou toda a centralização do judiciário. Durante as
reformas, continuaram a propaganda pró-escravista, e o número de africanos contrabandeados
saltou de 4.000, em 1836, para cerca de 60.000, em 1839. Depois delas, por fim, os

21
Cf. BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico..., p. 80; CARVALHO, A construção da ordem. Teatro de
sombras..., p. 294; e ALENCASTRO, Le commerce des vivants: traite d’esclaves et “paix lusitana” dans
l’Atlantique sud. Tese de doutorado. Paris. Universidade de Paris, X. 1985/6, p. 484.
22
Cf. CONRAD, Robert. A abolição da escravatura..., p. 31; cf. ALENCASTRO, L. F. de. Le commerce..., pp.
471-2.
23
FLORY, Thomas. Judge and Jury in Imperial Brazil, 1808-1850 – Social Control and Political Stability in the
New State. Texas: University of Texas Press, 1981.
24
CARVALHO, J. M. A construção da ordem. Teatro de sombras..., pp. 98-117 e 222.

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saquaremas consolidarão uma espécie de hegemonia que impedirá, fosse qual fosse o
ministério, o exercício de qualquer política antiescravista.25
É exatamente esse processo, tão intimamente ligado às origens do Partido
Conservador, que pode ser chamado de “política do tráfico negreiro”. Oposta à atitude dos
liberais moderados do Sete de Abril – que se dividiram quanto ao tráfico e, inclusive Feijó,
não abandonaram o campo discursivo filantrópico e emancipacionista de 1831 –, a política do
contrabando negreiro se fundou no silenciamento de vozes antiescravistas, na justificativa
pública do tráfico e na garantia da posse ilegal dos fazendeiros como estratégia de amealhar
apoio político entre variados grupos economicamente importantes do Império, durante
momentos cruciais de reforma do Estado brasileiro.26 Como deplorava Montezuma na Câmara
dos Deputados, os regressistas contavam com ampla maioria na legislatura de 1838-1841
graças às defesas do contrabando: “Antes de 19 de Setembro, toda a câmara se recordará de
que se fazia da lei de 7 de novembro [...] uma alavanca política O partido que subiu ao poder
em 19 de Setembro, é uma verdade constante, fez disso sua alavanca política; e [...] prometeu
que essa lei [de 1831] havia de ser revogada”.27
De fato, a estratégia surtiu efeito na política. A proteção do contrabando estreitou os
laços de algumas bancadas regionais com o Partido do Regresso, radicado no centro diretor
do Estado-nação. No Rio de Janeiro, esse apoio foi tão manifesto, que mesmo as conhecidas
“eleições do cacete”, sob controle ferrenho do ministério liberal da Maioridade, resultaram na
escolha de seis saquaremas, contra apenas quatro oponentes.28 Após a queda de seu gabinete,
o campeão liberal Martim Francisco escreveu a Rebouças em tom sardônico: “venceu o

25
Sobre a hegemonia do projeto saquarema de direção estatal, a despeito das trocas de gabinete do Império, cf.
MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo saquarema. 1ªed., 1986. São Paulo: Hucitec, 2004, pp. 13-19 e 142-204. No
que toca ao tráfico negreiro em particular, durante a década de quarenta, cf. PARRON, Tâmis P. “A política do
tráfico negreiro no Império do Brasil, 1826-1850”. FAPESP. Iniciação Científica. “ Relatório de Iniciação
Científica, 2006, pp. 116-152.
26
O historiador William Cooper Jr. cunhou o termo “política da escravidão” para designar o conjunto de valores
e práticas que direcionava os eleitores sulistas dos EUA a escolher apenas candidatos que não pusessem em
questão, na esfera das discussões nacionais, a existência do sistema escravista. COOPER Jr., William. Liberty
and slavery – southern politics to 1860 (1ª ed., 1983). Columbia, University of South Caroline Press, 2000. A
adaptação do termo pode ser aplicada ao período da Regência, feitas algumas modificações semânticas: aqui,
designaria não o conjunto de práticas políticas do eleitorado, mas sim de um grupo político (o do Regresso,
depois Partido Conservador) que se servia, na esfera pública, da crítica à lei de 1831 e da defesa de interesses
escravistas para fundamentar uma estratégia de cooptação dos mais fortes grupos econômicos do Império. Nesse
sentido, não bastaria ser simplesmente conivente com o tráfico negreiro - o que, de resto, ocorrera eventualmente
desde o primeiro dia após a aprovação da lei de 1831 –, senão lutar, na imprensa e no Parlamento, por sua
preservação.
27
ACD, 23 de maio de 1840, pp. 445-446.
28
Cf. FLORY, T. Judge and Jury…, pp. 169-170.

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partido português e africanista: Deus queira que seja para a felicidade do Brasil”. A segunda
oração é incerta. A primeira não podia ser mais precisa.29
Na economia, as conseqüências não foram menores. O deputado pernambucano
Henriques de Rezende fez disso um arrazoado perfeitamente certeiro: “no norte, na sua
província, era raríssima esta importação”, disse ele, “mas, desde que apareceu a indicação
para derrogar a lei de 1831, houve quem fizesse espalhar que a lei estava abolida, e a
importação de africanos já não causava admiração.”30 A análise do deputado procede: quando
políticos brasileiros apoiaram a derrogação da lei de 1831, ninguém teve receio de comprar,
como escravos, homens livres por lei, na esperança de que, cedo ou tarde, plantéis pirateados
se tornassem legais. Maquinações pró-escravistas deixaram a “ilegalidade em suspensão” e
abriram enorme campo para a especulação de traficantes e de fazendeiros – acaso os africanos
requeressem seus direitos, os proprietários seriam assegurados pelo Estado imperial, os
homens livres seriam de iure re-escravizados.
Nesse sentido, a lei de 1831 não se revestiu de importância apenas nas décadas de
1860 em diante, como suporte legal para iniciativas antiescravistas, mas foi peça fundamental
para que grupos políticos construíssem identidade partidária e impusessem sua agenda de
funcionamento do Estado nacional em detrimento de outras opções ainda em aberto na
metade da década de 1830. De fato, a lei de 7 de novembro de 1831 não foi mera iniciativa
“para inglês ver”, mas os projetos de sua revogação foram feitos especialmente para os
brasileiros ver – ver e aproveitar.

29
Carta de Martim Francisco Ribeiro de Andrada e Silva, 06.04.1841. Seção de manuscritos, Biblioteca
nacional, doc. I-3, 24, 39, apud GRINBERG, K. O fiador dos brasileiros – cidadania, escravidão e direito civil
no tempo de Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 175 e 190.
30
ACD, 2 de setembro de 1837, p. 453.

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