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QUANDO O AMBIENTE É HOSTIL1

Prof.ª Dr.ª Lúcia Leitão


Arquiteta, Professora da Graduação e da Pós-graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.

A maneira como damos forma ao ambiente


que nos cerca
é uma expressão do que somos internamente.

Alexander Mitscherlich
(Psychanalyse et urbanisme, Gallimard, 1970)

Sob o foco do urbanismo, busca-se mostrar como e em que medida a cidade no


Brasil tem produzido, desde sempre, um espaço edificado claramente hostil. O mote para a
construção do argumento vem da escrita gilberteana, notadamente Sobrados e Mucambos,
texto no qual o autor oferece uma narrativa detalhada do desenvolvimento do urbano na vida
brasileira.
Da extensa narrativa produzida por Freyre destacam-se, em especial, dois aspectos
fundamentais para as idéias aqui expressas. O primeiro é que a paisagem social brasileira,
para usar uma expressão tão cara ao celebrado mestre de Santo Antônio de Apipucos, se
constituiu em torno da casa, do espaço privado, portanto. O segundo aspecto, conseqüência
direta dessa escolha socioambiental, é que nessa mesma paisagem não havia lugar para o não
familiar, donde possivelmente deriva o processo de profunda negação da rua, o espaço
público por excelência, na cidade brasileira ― da colônia aos nossos dias. É a partir desses
aspectos que se trabalha, neste texto, com a hipótese de que o modo como se organizou a vida
urbana no Brasil produziu, espacial e psiquicamente, um ambiente urbanístico de exclusão,
claramente hostil, portanto.
Na verdade, o ambiente urbano no Brasil se constituiu inteiramente em torno da casa
― aqui entendida como símbolo maior do espaço privado―, em especial do sobrado que, na
cidade então nascente, assumiu plenamente as funções, reais e simbólicas, da casa-grande
brasileira. Assim sendo, no tempo em que se deu o desenvolvimento do urbano em nossas
terras tropicais, reproduziram-se, tanto no desenho quanto no uso do espaço urbanístico, as
mesmas marcas de centralismo, de domesticidade, de privativismo, anotadas por Freyre,
características da organização social que deu forma à casa-grande patriarcal. Sobretudo,
expressou-se, com clareza invulgar, uma profunda rejeição à rua, espaço público fundamental
para a vida que se quer urbana, plena, citadina.

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Este texto é uma síntese do livro Quando o ambiente é hostil - uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e
Mucambos e outros ensaios gilbertianos. Recife: Ed. Universitária da UFPE, lançado em Portugal e no Brasil em 2009.
Afinal, coerente com os valores que essas marcas expressavam, a casa-grande
brasileira foi produzida e experienciada não apenas em sua função mais óbvia, espaço de
morar, mas também no sentido ampliado que lhe dá Freyre quando a ela se refere como “o
antigo bloco partido em muitas especializações — residência, igreja, colégio, botica, hospital,
hotel, banco”. Esse é um primeiro ponto digno de nota frente aos objetivos deste texto uma
vez que essa casa-bloco anunciava, desde então, um desenho espacial centrado no espaço
privado, voltado para dentro, de costas, portanto, para o ambiente público.
Uma análise sucinta do sobrado oitocentista permite que se compreenda melhor o
que se disse antes, em especial o império da casa face ao desprestígio da rua no nascedouro
da vida urbana no Brasil, conforme se busca mostrar com este texto.
O ponto de partida dessa análise é a planta baixa desse sobrado. Coerente com a
valorização do espaço privado, essa planta aparece totalmente voltada para o interior da
habitação. Denuncia, assim, uma perfeita harmonia entre o espaço edificado e a natureza
privativista da casa brasileira.
Logo à primeira vista, chama a atenção uma aparente contradição entre a localização
da sala de visitas, voltada para o exterior, para o que seria o espaço público, portanto, e o
papel absolutamente restrito, segregado, que lhe cabia no cotidiano da vida familiar. Ao
observador mais apressado, essa localização poderia sugerir uma aproximação do espaço
doméstico frente ao espaço público, uma vez que para ele se abria a sala de visitas em suas
múltiplas janelas e aberturas. No entanto, a função que essa sala devia desempenhar no espaço
doméstico contradiz, francamente, essa possível interpretação.
A sala de visitas, no sobrado, não se destinava ao estar da família. Muito pelo
contrário, era esse o espaço dedicado ao estranho, ao visitante, ao não-familiar. Essa natureza
não-familiar da sala de visitas fica clara quando se sabe que a ela tinha acesso tão-somente o
dono da casa no momento em que recebia seus visitantes. Vedada às mulheres, inclusive à
dona da casa, e às crianças, essas salas funcionavam como um elemento a mais a afastar a
vida doméstica do espaço público. Assim sendo, a localização dessa sala, bem como o uso
que lhe era destinado no contexto social em que esse espaço estava inserido, contribuíam para
manter a vida familiar afastada da rua. É como se um muro simbólico tivesse sido erguido
entre a cena doméstica e a vida no espaço público.
Nesse sentido, a sala de visitas menos mediava uma relação, que se mostrava difícil
entre a casa e a rua, do que consolidava, espacialmente, a separação entre o que era familiar e
o que lhe era estranho, aquele ou aquilo cuja proximidade deveria ser evitada a todo custo.
Assim, a vida em seu cotidiano tinha lugar mesmo em dois outros espaços ― a sala de viver e

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a cozinha ―, cuja localização no sobrado atestam, exemplarmente, a domesticidade que
caracterizou a casa brasileira.
Impedidas de sair à rua e de, sequer chegar perto do espaço que não o doméstico,
inclusive a sala de visitas que, a rigor, não lhes pertencia, era nas salas de viver que a dona da
casa e suas filhas passavam boa parte do seu tempo. Localizadas no interior da edificação,
coerentemente, portanto, com a idéia de espaços que “se fechavam contra a rua”, conforme
anotou Freyre, essas salas eram mais confortáveis do que outros espaços da casa porque
tinham aberturas que permitiam a entrada de luz e de ar, uma vez que se abriam para os
espaços livres existentes na parte posterior da edificação.
Diferentemente das alcovas, por exemplo, fechadas, escuras, quentes e insalubres, as
salas de viver favoreciam o estar, tornando assim o dia-a-dia mais agradável. Graças à
ventilação e aos raios solares que recebiam, diretamente, esses espaços eram muito mais
saudáveis e bem mais adequados à vida, portanto.
Nessas circunstâncias, a forma arquitetônica que o sobrado materializou ratificava,
naturalmente, a intenção patriarcal de manter a vida familiar fechada contra a rua (e não
apenas no que dizia respeito às mulheres) inteiramente afastada de tudo que pudesse significar
contato com o mundo exterior.
Mas além da forma espacial, o sobrado também herdou da casa-grande a sua marca
de distinção e de pretensa fidalguia. Habitar um sobrado era símbolo inequívoco de prestígio
social. Como conseqüência, a arquitetura que começa a definir o espaço edificado nas cidades
brasileiras vai refletir, naturalmente, o lugar social de cada morador, não apenas na forma, no
emprego de materiais nobres, mas também no volume edificado.
Edificações com vários pavimentos constituíam, assim como proclamavam, a
habitação dos senhores de engenhos quando esses se transformaram em moradores da cidade.
Hierarquizavam, portanto, por si mesmas, a posição social do morador, enunciado nitidamente
os valores sociais inerentes àquela sociedade. “Definiam-se com isso as relações entre os tipos
de habitação e os estratos sociais: habitar um sobrado significava riqueza e habitar casa de
“chão batido” caracterizava a pobreza, de acordo com 1
Nestor Goulart Reis Filho em seu
Quadro da arquitetura no Brasil.

A força dessa hierarquização explícita no desprezo pelo rés-do-chão e pela rua,


conseqüentemente, era tamanha que o uso dado a cada nível de piso do sobrado denunciava o
desprestígio que marcava a edificação térrea. Destarte, [...] os pavimentos térreos dos
sobrados, quando não eram utilizados como loja, deixavam-se para acomodação de escravos e

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animais, ou ficavam quase vazios, mas não eram utilizados pelas famílias dos proprietários,
ainda nas palavras de Reis Filho.

Assim, na arquitetura do sobrado a “fidalguia” brasileira se expressou no gosto pela


construção verticalizada erguida bem acima do nível da rua. Esse é, pois, um outro ponto a
considerar quando se aponta para o desprestígio da rua, para a sua negação no ambiente
construído que o Brasil fez surgir. A verticalização e com ela o distanciamento da rua era,
pois, em si mesma, na realidade brasileira, um modo de distinção social, à medida que
afastava os moradores assobradados do espaço desprestigiado da rua.
É interessante observar a marca de brasilidade ― decorrente da casa-grande ―
expressa nesse modo de construir. Afinal, também a casa-grande se erguia acima do rés-do-
chão. Ao fazê-lo, anunciava distinção e pretensa nobreza. Anunciava principalmente que ali
existiam senhores ― a expressão é de Vauthier nas suas famosas cartas conhecidas como
Casas de residência no Brasil ― que se queriam distinguir da “plebe” escrava que habitava o
rés-do-chão.
A idéia de que o afastamento do nível do chão pode ser vista, também, como uma
marca da casa brasileira em seu afã de distinção, fica mais nítida quando se sabe que, em
outros arranjos sociais, a casa, por mais nobre que seja, se abre à rua sem nenhum problema
aparente.
Um exemplo desse outro modo de edificar é a residência oficial do primeiro ministro
britânico (10, Downing Street, Londres), um dos endereços mais prestigiados do mundo
ocidental, edificada no nível da rua, diretamente aberta para o espaço público. Esse exemplo
permite considerar que o afastamento da rua, na realidade brasileira, mais do expressar uma
possível escassez de terras, como no caso do Recife, ou a superação dos problemas gerados
por uma topografia acidentada, a exemplo de Salvador, indica, também, a permanência dos
valores patriarcais na produção da paisagem edificada da cidade brasileira.
Nesse contexto não surpreende que a rua brasileira, o espaço de todos, tenha nascido
feia, suja, fétida, desprestigiada, concebida como mero caminho em direção a casa, ao espaço
que se queria nobre, distinto.
Do ponto de vista urbanístico, o desprestígio da rua brasileira em seu nascedouro, e
ainda em nossos dias, o seu não reconhecimento como espaço fundamental da vida urbana,
pode ser apreendido a partir de três pontos principais. O primeiro vem à tona quando se
observa o uso plebeu (destinado ao escravo, ao pobre, ao negro) que lhe foi dado. O segundo
evidencia-se na função de circulação (de animais de águas servidas, etc.) que marcou o seu
nascedouro e, finalmente, na forma residual, quase ao acaso, sugerida em muitos arranjos

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espaciais. Vê-se, assim, que estavam postas as bases que determinariam a configuração
urbanística da cidade brasileira tal como a conhecemos hoje.
Desse modo, à sombra da herança cultural da casa-grande, a cidade brasileira
produziu, e continua a fazê-lo, um espaço de exclusão, centrado no espaço privado, com todas
as conseqüências sociourbanísticas decorrentes desse fato, mesmo que disso não pareça se dar
conta, ainda, a sociedade brasileira.
Em sua expressão atual, a primazia do espaço privado, exclusivo e excludente,
materializa-se, por exemplo, na construção, cada vez mais intensa, de condomínios fechados
nas principais cidades brasileiras, cuja característica marcante é o fato de se constituírem em
espaços que se fecham em si mesmos.
Nesses espaços, não é apenas o modo de habitação condominial, isto é, um espaço
partilhado entre co-proprietários que está sendo difundido, mas, também, um estilo de vida,
um modo de morar onde o espaço privado afastado do ambiente que lhe é externo se faz mais
e mais valorizado. Assim sendo, especialmente nos condomínios horizontais, o marketing
feito para atrair potenciais moradores especifica, claramente, a oferta de diversos serviços a
serem prestados dentro dos condomínios, de modo a que seus habitantes possam usufruir o
conforto de vivenciar o espaço da casa, mantendo-se ao mesmo tempo o mais distante
possível do espaço da rua.
Esses ambientes são espaços que se fecham contra a rua, num
processo claro e explícito de reafirmação dos valores, devidamente atualizados na vida
contemporânea, que definiram o reinado da casa em tempos patriarcais, tanto e em tal
proporção que a comercialização desses condomínios anuncia, abertamente, como uma
vantagem a mais a se juntar à compra do espaço de morar, a possibilidade de se viver nesses
ambientes, sem sair à rua, ou saindo o mínimo possível, exatamente como queriam os
moradores dos sobrados urbanos do Brasil oitocentista.
Assim sendo, os moradores desses ambientes não utilizam esses espaços para a
diversão ou para o encontro. As crianças brincam no playground enquanto os adultos se
divertem no salão para festas ou em ambientes assemelhados, espaços onde efetivamente se
dá a convivência. Do ponto de vista social, constituem-se, pois, no espaço dos iguais
(vizinhos com hábitos, costumes, renda, etc., assemelhados), o que lhe tira qualquer
característica ou função pública.
É evidente que a violência urbana, nos níveis absolutamente alarmantes e
intoleráveis a que chegou o Brasil atual, oferece uma ótima justificativa, plenamente apoiada
na racionalidade, para que as pessoas se fechem contra a rua. No entanto, a opção por esse

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modo de morar (na verdade uma escolha por um modo de viver) expressa apenas a face
racional, declarada da questão. Consideradas as marcas de brasilidade que caracterizam a
construção da paisagem edificada no país, é lícito levantar a hipótese de que a preferência por
esse modo de vida em ambientes que se fecham contra a rua manifesta, de fato, a
permanência de valores caros a casa quando essa se fez brasileira.
Na verdade, um olhar mais acurado sobre essa questão pode revelar que, embutida
na realidade da insegurança urbana, a preferência pela moradia em condomínios fechados
manifesta, também, o desejo de se fazer distinto, quer social, quer espacialmente, de se manter
longe “das vulgaridades da rua” como anotou Freyre, identificada, ainda hoje, como o
espaço do pobre, do moleque, do socialmente marginalizado, enfim.
Nesse sentido, o argumento da insegurança urbana usado como justificativa para
esse modo de habitar expressa apenas uma meia verdade. Se é fato que nesses espaços se
dispõe de maior segurança, aquela que se pode comprar, não é verdade que neles se possa
estar verdadeiramente a salvo de qualquer ação criminosa, conforme atestam, exemplarmente,
os crimes praticados em condomínios “altamente seguros”, divulgados pela mídia com
assustadora freqüência.
A questão da violência urbana em sua expressão urbanística é, assim, um dos
pontos para o qual os construtores da cidade, notadamente os herdeiros da casa-grande
assobradada, não deram ainda a devida importância. Talvez por isso continuem a repetir, na
cidade atual, alguns dos equívocos que marcaram a forma de edificar no Brasil oitocentista.
Gilberto Freyre, no texto que norteia estas reflexões, chamou a atenção para a
hostilidade, ou a inimizade, em suas palavras, presente na relação do sobrado com a rua, ao
anotar a raiva dos que, na rua, se sabiam excluídos dos espaços nobres assobradados. Se se
tem em mente que os que estavam na rua naquele momento específico da história brasileira
eram os escravos libertos e seus pares sociais, é fácil perceber o sentimento de exclusão que
explodia na raiva incontida contra o sobrado e tudo aquilo que ele simbolizava.
Para aqueles que vivenciavam a rua, os escravos e depois os trabalhadores mais
pobres, moradores do mocambo ou da casa construída ao rés-do-chão, o sobrado, o espaço
privado, representava pelo menos dois momentos de exclusão: o primeiro referia-se à vida
familiar na qual os escravos eram, no desempenho da sua função servil, meros apêndices. O
segundo dizia respeito à exclusão da vida urbana uma vez que fora do sobrado não havia
nenhum tipo de reconhecimento social.
A maneira encontrada para mediar essa relação dá bem a medida da tensão que a
permeava. Do lado dos moradores dos sobrados, a solução para “defender a casa da rua” foi a

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utilização de “cacos de garrafas nos muros; as lanças pontudas de seus portões e das suas
grades de ferro, a grossura das paredes [...]”. O outro lado, o lado dos “mulecotes”, a isso
respondia “pulando o muro para roubar frutas” ou, numa clara expressão da hostilidade
alimentada por essa relação desigual, se dedicava a fazer “dos umbrais de portões ilustres, das
esquinas de sobrados ricos, dos cantos de muros patriarcais, mictórios e às vezes, latrinas” ou
“simplesmente sujá-lo com palavras ou figuras obscenas”, ainda de acordo com Gilberto
Freyre no texto citado.
Alheia aos registros da escrita gilberteana a sociedade brasileira não se deu conta,
ainda, da repercussão social, e mesmo urbanística, da produção indiscriminada de espaços de
exclusão manifestos na construção de muros altos, de espaços vedados até mesmo ao olhar do
outro, na cena urbana contemporânea. Não se deu conta, portanto, da hostilidade que esse
ambiente expressa, nem tampouco dos efeitos desse modo de edificar nas relações sociais,
urbanas ― no sentido próprio do termo, isto é, de favorecer ou de dificultar a prática da
urbanidade ― da reação, por parte dos excluídos, que esse modo de construir pode produzir.
Não perceberam, principalmente, que a negação da rua, materializada na
construção de muros altos, de guaritas eletrônicas hermeticamente fechadas, de espaços que
se fecham para o convívio social, pode ser um elemento a mais na incitação da violência
urbana na medida em que reforça o sentimento de exclusão, e o ódio que o acompanha, de
todos e de tudo que esteja alijado do espaço privilegiado da casa, do espaço privado, portanto.
Um outro tipo de espaço edificado a indicar a opção brasileira por um modo de vida
privado e privativista tão ao gosto do Brasil patriarcal aparece na cidade contemporânea sob a
forma de shopping centers. Também eles se têm reproduzido sem medida na cidade brasileira.
À semelhança da casa e de seu ajustamento ― a expressão é de Freyre, uma vez mais ― à
vida nacional, também esses espaços logo manifestaram a marca de brasilidade que distingue
a paisagem edificada no Brasil.
Assim, entre nós, esses espaços não desempenham apenas a função de centros de
compra que os caracteriza em outros contextos sociais. Aqui, os shopping centers
rapidamente se abrasileiraram, transformando-se, precisamente, em espaços-bloco, tal como
o foi a casa-grande brasileira em seu nascedouro. São espaços em que, além de centro de
compras, toda uma gama enorme de serviços e atividades é oferecida e neles desenvolvida:
escolas de línguas, cinemas, espaços para festa, consultórios médicos, unidades laboratoriais e
mesmo hospitalares, mercearias, agências bancárias, cabeleireiros, livrarias, cafés, etc.
Eminentemente privados, posto que de uso coletivo, esses ambientes deixam
extremamente claro o papel que pretendem desempenhar na vida social brasileira. Assim, são

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espaços que acolhem apenas os iguais ― rejeitando claramente aqueles que não pertencem ao
mesmo grupo social ― à semelhança do que fazia a casa patriarcal. Agora, a natureza privada
e privativista do espaço que na casa-grande se expressava em sua domesticidade se revelam,
nos shopping centers, na seleção “natural” dos que são convidados a freqüentá-los, definida
pelo poder aquisitivo de cada um.
Nos shopping centers brasileiros a idéia de um espaço destinado apenas aos iguais e,
nesse sentido, familiares, exatamente como ocorria na casa-grande, fica clara quando se
observa o perfil dos usuários desses espaços especiais. Nas cidades maiores, essa distinção é
tão nítida que é possível saber de antemão que grupo social se vai encontrar em cada shopping
center da cidade.
Mas, não apenas no que diz respeito à segregação social os shopping centers se
abrasileiraram. No que se refere à função social que esses espaços desempenham na
sociedade, também é possível ver a marca de brasilidade que lhes foi transmitida. Os
shopping centers brasileiros transformaram-se em ponto de encontro, exatamente o papel que
compete ao espaço público em qualquer sociedade onde esse espaço tenha efetivamente
surgido, tanto e em tal medida que muitos se apressaram em defini-los como o novo espaço
público, esquecendo-se de que nos shopping centers estão ausentes algumas das condições
fundamentais para que um espaço possa ser reconhecido e usufruído como espaço público.
Além de ser necessariamente aberto, isto é, sem qualquer limitação ou condição para
que a ele se tenha acesso, o espaço público, em sua expressão urbanística, é também o espaço
da pluralidade, do encontro e do convívio com o diferente, bem ao contrário de um espaço
onde renda e classe social são condições imprescindíveis para que nele se seja acolhido.
Poucos espaços, no Brasil, explicitam, pois, tão claramente, os valores patriarcais
quanto esses centros de compra e de prestação de serviços. Ao se abrasileirarem, esses
espaços mostraram que também eles se produziram à imagem e semelhança da sociedade
brasileira. Caíram, portanto, como uma luva numa sociedade excludente como poucas. Assim,
diferente do que acontece em outros arranjos sociais, o shopping center nacional tem função e
uso próprios. Não é, pois, um simples centro de compras, aberto a todo e qualquer
consumidor. É, sim, um espaço-bloco produzido precisamente com a intenção de tirar as
pessoas da rua, fazendo-as ficar o maior tempo possível no seu interior, no espaço privado.
É para afastar as pessoas da rua e do seu desprestígio que o shopping center se fez
bloco, isto é, agregou à função de centro de compras quase todas as outras atividades que
antes tinham lugar no espaço urbano: ir ao banco, consultar o médico, freqüentar a escola,
arrumar o cabelo, ir ao cinema, encontrar os amigos, etc. Assim, atividades antes

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desenvolvidas em espaços diversos passam a ter lugar num espaço único, o espaço-bloco,
outra vez materializado no ambiente construído brasileiro.
Como conseqüência, nitidamente ancorado no modo patriarcal de conceber a vida
social, esse novo espaço livra os herdeiros da casa-patriarcal, os brasileiros de antiga
linhagem como diria Vauthier, das vulgaridades da rua, do espaço sujo, feio, tantas vezes mal
cuidado da cidade brasileira. Socialmente, garante que cada um se sinta em casa uma vez que
ao seu redor estão apenas aqueles que lhe são familiares, aqueles com os quais há uma
perfeita identificação, pois pertencem ao mesmo agrupamento social.
Do ponto de vista da produção da paisagem edificada da cidade brasileira, a
distinção que esses ambientes, segregados e segregadores como poucos, perseguem se
expressa em espaços que não se integram com o entorno onde estão fisicamente inseridos, que
não se misturam com o resto da cidade. No que diz respeito à configuração urbanística
constituem-se, portanto, em espaços guetos, em enormes bolsões edificados, apartados dos
espaços que os circunda, assentados, muitas vezes, no ambiente construído, como elefantes
em lojas de louça.
Ao seu redor, tudo se transforma de modo a acolhê-los, independentemente da
destruição que possam trazer a outros espaços da cidade, a exemplo de centros históricos,
plenos em valor simbólico e por isso mesmo fundamentais para a construção e a manutenção
da memória coletiva de qualquer ajuntamento humano.
Na realidade brasileira, com as exceções de praxe, a implantação de espaços-bloco,
quer sejam condomínios habitacionais quer sejam shopping centers, favorece,
freqüentemente, a exclusão dos demais espaços da cidade, notadamente quando a vizinhança
não lhes é conveniente social e economicamente falando.
Mas, nada disso decorre do acaso. Afinal, à luz do que se disse antes, o espaço
urbanístico da cidade brasileira é uma expressão eloqüente dos valores mais caros da
sociedade que o tem edificado. Valores com os quais essa sociedade se identifica desde
sempre, sem, no entanto, se mostrar capaz de refletir sobre eles de modo a construir uma outra
história, a produzir outros valores, desta feita mais adequados à vida na polis.
Como conseqüência, do ponto de vista do ambiente construído, produz-se um espaço
em tudo distinto da função primeira da arquitetura em seu papel de prover o espaço do
acolhimento do humano em seu desamparo frente às intempéries da natureza, de oferecer
abrigo, de favorecer o desenvolvimento do sentimento de pertencimento presente na relação
das pessoas com o ambiente onde vivem.

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Muito ao contrário. Em sua face excludente, a configuração urbanística da cidade
brasileira expressa a hostilidade de uma sociedade segregadora como poucas, que para se
fazer distinta exclui o outro, o diferente, o pobre, o negro, negando-lhes os mais elementares
direitos humanos. Alienada, inebriada pela obsessiva busca de privilégios, de distinção de
ambientes privés, espera daqueles que exclui, paradoxalmente, um comportamento afável,
próprio da urbanidade que essa cidade está longe de proporcionar.
O resultado mais evidente dessa prática é o surgimento de um ambiente construído
marcadamente hostil, exatamente o oposto da função maior da cidade compreendida como
espaço privilegiado do exercício da urbanidade, do convívio com o outro, do reconhecimento
e do respeito às diferenças pessoais e coletivas num ambiente público que se quer urbano, isto
é, citadino.
A questão que se traz à luz e à discussão com este texto é que, na verdade, nada
disso surge do acaso como foi dito antes, mas, sim, como produto de uma construção social
centrada na casa, no espaço privado, portanto. Um construção social manifesta e ratificada,
materialmente, no espaço arquitetônico em sua configuração urbanística, reafirme-se, tecido
ao longo dos anos.
Em outras palavras, surge como conseqüência direta do modo como se organizou a
paisagem social no Brasil patriarcal. Nesse sentido, tanto a forma que o espaço público
materializa quanto a função que ele tem desempenhado ao longo do tempo na cidade
brasileira expressam, claramente, quer consciente, quer inconscientemente, valores, crenças,
atitudes, comportamentos, etc., em tudo compatíveis com a organização social da qual
derivam.
Para a cidade do Brasil contemporâneo e seus habitantes, quer urbanistas, quer
usuários, a questão a refletir é: Quais são as implicações desse fato no modo de viver urbano
que tem lugar no Brasil atual? O que a construção da cidade expressa dos valores que a
sociedade brasileira defende e desse modo enuncia? Em que direção social, política, humana,
essa opção sociourbanística nos está levando?
À luz do conceito de identificação em sua formulação freudiana, muito bem
explorado por Alexander Mitscherlich quando nos alerta que “o homem se torna o que a
cidade é e vice versa”, uma vez que “o homem e seu entorno são inseparáveis,” é hora de
mudar o foco e olhar para nós mesmos quando o ambiente é hostil.

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