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Pontos e Tramas nº 01 Ano 2011

A Construção do Sertão Cearense em “O Quinze”:


Um Estudo Léxico-Semântico

Rosimeire Moreira de JESUS (UFT)1


Greize Alves da SILVA-PORELI (Orientadora-UFT)2

Resumo: Este artigo tem por intento apresentar uma análise léxico-semântica da
obra “O Quinze”, de Raquel de Queiroz no que tange a construção do sertão
cearense pela autora. Para tanto, o corpus do trabalho constitui-se do
levantamento de algumas lexias e expressões utilizadas por Raquel em seu livro,
com a finalidade de construir as características do clima árido, cenário da obra. Os
dados foram agrupados por campo semântico e seus significados foram consultados
no dicionário Houaiss (2001).

Palavras-chave: Rachel de Queiroz; Regionalismo; Léxico.

INTRODUÇÃO

Atrelada à cultura humana está a atividade criadora em designar seres e


objetos. Essa atividade, a de nomear, é refletiva no léxico de uma língua, pois, é
por meio desse repertório existente numa determinada língua, que é expressa a
cultura e a visão de mundo de um povo.
Constituído de um sistema aberto, o léxico, diferentemente da fonética e da
sintaxe, expressa a recorrência do falante na busca por termos que designem seus
referentes. Tal fato, associado à atividade criadora do ser humano, nos possibilita
verificar a riqueza lingüística e cultural da humanidade apresentada em seu
vocabulário.
Neste sentido, o presente artigo tem por objetivo apresentar uma análise
léxico-semântica da Obra “O Quinze”, de Raquel de Queiroz. Para tanto, o trabalho
está dividido da seguinte forma: primeiramente apresentamos Vida e Obra de
Raquel, discutindo sua motivação para escrever “O Quinze”. Em um segundo

1
É graduada em Letras/Português pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de
Porto Nacional.
2
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina - UEL. Atualmente
é professora contratada da Universidade Federal do Tocantins – UFT, campus de Porto
Nacional. E-mail: greize_silva@yahoo.com.br

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momento, apresentamos o aparato teórico no que se refere à literatura


regionalista. Ainda dentro dos aspecto teórico, apresentamos uma discussão da
importância do estudo do léxico. Após essa discussão, adentramos os dados
coletados na obra em questão. Ao final, são apresentadas as nossas conclusões.

2. VIDA E OBRA DE RACHEL DE QUEIROZ

Rachel de Queiroz, nascida em Fortaleza, Ceará, em 1910. Ao longo de sua


vida deixou sete romances aclamados pela crítica, inúmeras traduções de autores
clássicos, peças teatrais, livros infantis, memorialismos, adaptações de suas obras
para cinema/TV e milhares de crônicas. Rachel foi a primeira escritora a integrar a
Academia Brasileira de Letras, em 1977. Foi também uma das poucas escritoras
que, desde cedo, conquistou sua independência financeira sendo jornalista,
romancista e tradutora.
Em 1939, Raquel mudou-se para o Rio de Janeiro para ampliar sua vida
política e literária. A partir daí, Rachel opta por um posicionamento estratégico
como uma autora da “periferia” marcada por um ethos sertanejo: imaginário,
costumes, religiosidades, crenças, línguas, símbolos, retratando uma temática
regionalista, em especial a busca pela oralidade, de um certo modo de falar de sua
gente (CUNHA, 2008, p.107). Raquel de Queiroz faleceu no Rio de Janeiro aos 92
anos, em 04 de novembro de 2003.
Na escrita de O Quinze podemos perceber que a autora faz um balanço
entre a realidade de sua vida e a ficção, pois mesmo depois de morar no Rio de
Janeiro nunca deixou de passar parte do ano em sua fazenda no Quixadá, agreste
cearense, que ela tanto exalta e que está tão presente em toda sua obra. A seca de
1915 foi um dos motivos que levou seus pais a morarem em diversos lugares (Pará
e Rio de Janeiro).
A leitura de ampla produção literária que já abordava o flagelado da seca,
observação e a imaginação foram alguns dos componentes para a elaboração
ficcional que garantiu reconhecimento imediato da crítica.
O plano de fundo da obra é o retrato da vida dos retirantes nordestinos
durante a Grande Seca de 1915. Os principais personagens são:

Conceição: uma jovem professora que passa suas férias na fazenda com avó.
Dona Inácia: Avó de Conceição. Conceição convence levá-la para a cidade com a
finalidade de afastá-la da seca e do sofrimento.

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Vicente: Jovem rapaz que quer ficar na fazenda para salvar o gado da família.
Apaixonado por Conceição, durante todo romance o destino afasta um do outro.
Dona Maroca: Outra fazendeira que devido à seca e miséria manda soltar o gado.
Chico Bento e Cordulina: Casal retirante que passam fome e sede. Alguns de
seus filhos morrem de fome e outro é dado à madrinha Conceição.O último destino
do casal Chico Bento e Cordulina é a Amazônia.
Há duas ações paralelas em “O Quinze”: O destino incerto do casal Chico
Bento e Cordulina e o amor irrealizado entre Conceição e Vicente.

3. LITERATURA REGIONALISTA

De acordo com Lúcia Miguel Pereira (1973, p.179), a literatura regionalista


estuda as particularidades linguísticas de uma determinada obra, em uma região
geográfica específica, decorrentes da cultura lá existente. Isso indica que uma das
características de uma obra tida como regional é o próprio dialeto retratado no
livro.
Logo, Lúcia Miguel-Pereira (1973), afirma que:

Se considerarmos regionalista qualquer livro que,


intencionalmente ou não, traduza peculiaridades locais,
teremos que classificar desse modo a maior parte da nossa
ficção. A haver, com efeito, uma constante na nossa
literatura, será a da predominância da observação sobre a
invenção; pouco inclinados às abstrações, os nossos
escritores, ainda os românticos, lidaram de preferência, mais
ou menos fielmente, mais ou menos livremente, com a
realidade. O seu poder criador precisou sempre, como célula
máter, das sugestões do meio. [...]

Para estudar, pois o regionalismo é míster delimitar-lhe o


alcance: só lhe pertencem pelo direito as obras cujo fim
primordial for a fixação de tipos, costumes e linguagens
locais, cujo conteúdo perderia a significação sem esses
elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde
os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a
civilização niveladora. (p. 179)

A citação acima, nos leva a entender que a literatura regionalista tem como
objetivo mostrar as inúmeras expressões ou dialeto de diversas regiões brasileiras.
Outros autores já se dedicaram a temática regionalista e suas obras têm como alvo
principal retratar a realidade de cada região descrevendo os vários dialetos da

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cultura brasileira, a saber, Guimarães Rosa, Euclides da cunha, José de Alencar


dentre outros.
Sobre a própria temática da literatura regional e o objetivo dessa
literatura, são oportunas as palavras de Rachel de Queiroz.

A região nordestina flagelada pelas secas é bem grande.


Compreende vastas zonas de diversos estados, e, segundo a
natureza do local afetado, varia a “interpretação” que a terra
dá ao flagelo. Nas zonas mais úmidas do litoral, nos “brejos”,
que são a propriedade literária dos meus ilustres colegas
José Américo e José Lins do Rego, a seca bate apenas de
ricochete; eles vêem somente os bandos de retirantes
pedindo esmola, o preço do feijão e da carne que sobe, as
soledades magrinhas e líricas que dão pasto à fome
amorosas dos moços brancos, servem de modelo dos
romancistas.” ( QUEIROZ, 1994, p.20)

O excerto acima demonstra o clima de sofrimento da região nordestina


relatada na obra “O Quinze” de Rachel de Queiroz, trazendo a tona, de forma
explícita, a realidade e o sofrimento de uma região bastante massacrada pela seca.

4. O LÉXICO

Léxico é o acervo de palavras de um determinado idioma, ou seja, é todo o


conjunto de palavras que os falantes de uma determinada região possuem à sua
disposição para expressarem oralmente ou por escrito. Assim, podemos afirmar que
uma das características marcantes do léxico é sua mutabilidade, posto que em
constante variação de acordo com cada região do país. Em outras palavras, o léxico
está atrelado a cultura de determinada comunidade. A esse respeito, Preti assim
refere:

O léxico representa para a lingüística um campo de difícil


análise, pelas implicações culturais que possui e porque nele,
mais do que nenhum outro, se observa melhor a condição
dinâmica da língua, sua contínua renovação para atender às
necessidades de comunicação, fato que reflete a mobilidade
das estruturas sociais, que também se renovam
incessantemente. (PRETI, 1984, p.59)

É notável a importância do estudo léxico geral de uma língua, ou seja, dos


signos linguísticos por meio dos quais, o homem se expressa e se comunica.
Biderman (2001, p. 27) pondera que a realidade lexical da comunidade

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demonstrada pelos signos lingüísticos é decorrente da influência do extralingüístico.


Assim, o léxico de cada comunidade depende do grau de escolaridade, do sexo, e
da formação cultural de cada indivíduo.
Para isso, Vilela afirma que:

O léxico é a parte que primeiramente configura a realidade


extralingüística e arquiva o saber lingüística de uma
comunidade. A língua fornece elementos para a leitura da
sociedade. Por meio do sistema lexical, os membros de um
grupo social trocam experiências entre si e, de forma ampla,
com o mundo. Toda sociedade dispõe de uma soma de
palavras, cujo inventário pode estabelecer o seu inventário
pode estabelecer o seu universo cultural. (VILELA, 1995 p.6)

Com esta citação acima, podemos destacar que o léxico traduz a cultura de
um povo e que por tal razão seu estudo é de suma importância, principalmente no
que tange a análise de vocábulos de caráter sertanejo, pois eles descrevem, por
meio de palavras, a realidade linguistica e cultural de dada localidade.

5. METODOLOGIA

Para este trabalho, inicialmente, levantamos as expressões utilizadas por


Raquel de Queiroz n’O Quinze para retratar o sertão nordestino. A lexias levantadas
foram analisadas à luz de conceitos da Lexicologia e de obras afins.
Para tanto, o estabelecimento dos corpora obedeceram as seguintes etapas
para sua descrição e análise: primeiramente, levantamos as principais palavras que
descrevem o sertão nordestino em O Quinze. Após este levantamento, consultamos
o dicionário Houaiss (2001) a fim de descobrir o significado atribuído a cada
palavra. Com os significados das palavras levantadas, separamos essas lexias em
campos semânticos.

6. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS

Logo nas primeiras páginas do livro, Raquel de Queiroz descreve o terreno e


o clima do sertão nordestino por meio dos seguintes excertos:

[...] Estrada vermelha e pedregosa [...]

[...] Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima


das folhas secas do chão que estavam como papel queimado
[...]

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[...] A água do riacho afina [...]

[...] O céu transparente que doía, vibrava, tremendo feito


gaze repuxada. [...]

Nesses exemplos destacados, a autora narra um cenário desolador por meio


do uso de algumas palavras que denotam calor e falta d’água. São oportunas as
palavras de Nóbrega a esse respeito:

acentua a agressividade do ambiente / situação, à medida


que orienta para outras considerações do cenário da seca: o
clima é semi-árido, seco; a temperatura elevadíssima é,
também, absorvida pelo vento; a chuva não cai – o céu
transparente, sem nuvens densas, “carregadas”, enquanto
prenúncio de chuva –; e o ambiente torna-se inóspito a todas
as criaturas. Neste caso, podemos, ainda, estender o sentido
de transparente a toda a paisagem que, por conta da seca,
se torna sem cor e sem vida (FURTADO, 2006 p.18).

Há também o uso dos substantivos que descrevem a fauna e a folha


resistentes ao clima cearense, dentre eles podemos citar “Jurema: árvore de tronco
e galhos com espinhos e flores esbranquiçadas, fornece madeira de lei (HOUAISS,
2001)”, Coivara: pilha de gravetos ou galhos queimados para adubo.

[...] encostado a uma jurema seca [...]

[...] Enquanto houver juazeiro e mandacaru em pé e água no


açude, trato do que é meu! Aquela velha é doida! Mal
empregado tanto gado bom!” [...]

O juazeiro e o mandacaru são árvores muito conhecidas no nordeste pela


sua resistência a altas temperaturas e climas desérticos. As árvores em questão
alimentam e dão sombra ao gado no período mais crítico da seca. O excerto
supracitado evidencia o caráter afetivo do sertanejo para com as duas árvores em
questão, pois, enquanto houver essas duas espécies, o sertanejo não abandonará a
sua terra.
Raquel também descreve os animais que suportam esse clima sertanejo, por
meio do campo semântico do gado, como podemos evidenciar em: reses: gado;
mourão: estaca para amarrar o gado; cangalha: armação que se coloca no dorso
do animal pra sustentar a carga dos dois lados

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[...] o animal que todo se pontilhava de verrugas pretas,


encaroçando-lhe o úbere, as pernas, o corpo inteiro [...]

[...] os cascos do animal pareciam tirar fogo nos seixos do


caminho

[...] reses magras, com grandes ossos [...].

O gado é descrito por Raquel como os animais que mais sofrem dentro do
sertão, passam fome e sede. Porém, o termo gado em Raquel é empregado com
sentido de vida, pois a manutenção do gado é requisito e garantia de sobrevivência
do proprietário.
Assim como o gado, há o sofrimento constates dos personagens retirantes
Cordulina e Chico Bento com os filhos, que durante a retirada passam por vários
locais abandonados, e é assim que Rachel descreve estes lugares:

Taipa - Parede feita de barro amassado jogado contra uma


armação de varas finas e bambu.

Tipóia - Rede em que os índios traziam os filhos às costas,


tira de pano ou lenço preso ao pescoço para sustentar o
braço do doente.

Tapera - Casa velha, arruinada e abandonada

Trempe - arco de ferro de três pés para colocar a panela

Jirau - Estrado de varas sobre forquilha preso a parede,


para guardar panelas ou outros Pertences domésticos.

Lamparina - Pequeno disco com pavio atravessado que bóia


sobre o óleo querosene, produzindo luz fraca.

Borralho - Braseiro coberto de cinzas, borralha.

Também podemos analisar as moradias nos exemplos a seguir:

[...] E Cordulina deu o exemplo, deitando-se com o Duquinha


na tipóia muito velha e remendada.

[...] A velha casa de taipa negrejava ao sol o telhado de


jirau. Na latada, coberta de folhas secas, o cachorro
cochilava ao calor do mormaço.

Por meio do campo semântico “moradia”, Raquel recorre a palavras que


evidenciem certa “simplicidade e pobreza” para descrever os locais habitados pelos

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retirantes. Casa de taipa, também conhecida como pau-a-pique, são construções de


paredes que utilizam barro amassado para preencher os espaços criados; é tida
como símbolo de miséria.
Podemos averiguar, por meio dos dados que o léxico de Rachel apresenta
um universo de significação condizente com a seca cearense e com o impacto social
que ela acarreta. Nesse sentido, observamos que tais elementos remetem a uma
situação de desolação espaço geo-físico, com desfiguração das pessoas e animais
castigados pela ação da seca.
Assim se posiciona Furtado:

No que se refere aos termos e expressões, estes compõem


um léxico regional / popular caracterizador dos aspectos
socioculturais da região Nordeste, particularmente, do sertão
cearense contextualizado na obra num quadro de
degradação, cujos efeitos refletem-se de forma diferenciada
entre as camadas sociais, fato verificado pela análise léxico-
semântica, então, realizada. (FURTADO, 2006, p. 98)

CONCLUSÃO

Por meio das análises do universo léxico-semântico nordestino pudemos


averiguar que Raquel descreve, de maneira bastante natural e por vezes “seca” a
situação das personagens de sua obra. As expressões encontradas no livro
atribuem à obra o caráter regional. Podemos concluir que estudar o léxico
regionalista é analisar a cultura de dada época, uma vez que as palavras são o
microcosmo da cultura, que são expressas por intermédio da língua.
Esperamos ter contribuído para o crescimento dos estudos lexicais da língua
portuguesa, bem como servirmos como base para professores e alunos tanto de
literatura quanto de língua portuguesa, para melhor compreenderem a linguagem
regionalista cearense e o universo de Raquel de Queiroz.

REFERÊNCIAS

BIDERMAN,Maria Tereza Camargo. Teorias linguísticas: teoria lexical e


computacional. São Paulo : Martins Fontes, 2001b.

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CUNHA, Cecília Maria. Rachel antes do ‘Quinze’. Jornal O Povo. Rev.


Humanidades, Fortaleza, 2008 V.23,n, p.107-119.

FURTADO, Clecia Maria Nóbrega. Expressões de fala em O Quinze, de Raquel


de Queiroz: uma análise léxico-semântica. Universidade Federal da Paraíba.
Programa de Pós-graduação em Letras. João Pessoa: 2006.

HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua Portuguesa, versão 1 , Rio de Janeiro:


2001.

MIGUEL- PEREIRA, Lúcia. História da literatura brasileira: prosa e ficção-1870-


1920.3.ed. Rio de Janeiro:1973.

PRETI, Dino. A Linguagem proibida: um estudo sobre a linguagem. São Paulo:


Queiroz, 1994.

QUEIROZ, Rachel. A donzela e a moura torta: 45 crônicas escolhidas. 2.ed. São


Paulo: Siciliano, 1994.

VILELA, Mário. Ensino da Língua Portuguesa: Léxico, dicionário, gramática.


Coimbra: Almeida, 1995.

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