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NOS CONFINS

Antropologia jurídica da modernidade


Norbert Rouland

• Tradução
MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVÃO

è Martins Fontes
São Paulo 2008



A François e Gauthier,
meus filhos.
ES/ÍT objYj foi yiiWcndn origimliiientL' cm francês rcm v titulo
AUX CONFINS DU DRO1T por Orf/fc Jacob, Paris.
Copyright © 2003, Livraria Martins Fontes Editora Uda,,
S/fo Panlo, para a presente ediçfio.

l' edição 2003


2» edição 200S

Tradução
MARIA ERMANTMA DE ALMEIDA PRADO GALVAO

Acompanhamento editorial
Luziu Aparecida dos Sn n l os
Revisões gráficas
Lettcia Braun
Helena Giiiinarfíes Biííejiconr/
Dinttrte Zorzanelli aã Silva
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Sturfio 3 Desemolmmenlo Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIF)


(Cantara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rouland, Norbert
Nos confins do direito: antropologia jurídica da moderni-
dade / Norbert Rouland ; tradução Maria Ermantlna de
Almeida Prado GalvSo. - 2" ed. - São Paulo: Martins Fontes,
2008. - (ColeçSo Justiça e direito)

Titulo original: Aux confins du droit


Bibliografia
ISBN 978-85-336-2410-8

1. Antropologia jurídica 2. Direito - História 3. Direito e


antropologia 4. Etnologia jurídica 1. Título. II. Série.

08-00964 CDD-340.12
índices para catálogo sistemático:
1. Antropologia jurídica: Direito 340.12

Torfos os direitos desta edição reservados à


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l-
'i
Suinano

l. As brumas do direito l
Hiperbóreo - Um direito muito cinzento - Flexível di-
reito - Volta às fontes - Uma expectativa de direito.
II. O direito tem histórias 31
O muro da escrita - A aurora do direito - A dinâmica
neolítica - A intensificação do direito - Os filhos de
Abraão e o direito - O nascimento da antropologia jurí-
dica - A África negra e a pluralidade do direito - A tra-
dição chinesa e a supressão do direito - Para que serve
a antropologia jurídica?
III. O Estado, a violência e o direito 95
O Estado pacificador? -A vingança e o Estado -A vingan-
ça "selvagem", um fenómeno moderno? - O espartilho do
direito à vingança - Nas raízes da vingança e da violência -
O tempo dos mediadores - As "soft justices" nos Estados
Unidos - A ordem negociada na França - Os riscos das
justiças alternativas - Nosso direito será tradicional?
IV. O direito no plural 155
Rumo às galáxias jurídicas - A paixão pelas leis - O Es-
tado, instituidor do social - A sociedade civil a desco-
berto - O Estado de direito e o direito do Estado - Vol-
ta à definição do direito - Uma breve história do plura-
lismo jurídico - Os direitos ocultos - A dinâmica dos
direitos oficiais e dos direitos ocultos - Dois casos de
pluralismo jurídico: a excisão e o véu islâmico - A opi-
nião pública e os intelectuais influentes diante do plu-
ralismo - Verdadeiros e falsos problemas do pluralismo
- Antropologia política do Estado.
Capítulo I
As brumas do direito
V. Direito e valores 223
Os antropólogos sob vigilância - Os juristas e as virgens O legislador não deve perder de vista que as leis são feitas
estéreis - O "todo económico" - O desenvolvimento, para os homens, e não os homens para as leis; que devem ser
urna noção etnocentrista? - Um desenvolvimento plu- adaptadas ao caráter, aos hábitos, à situação do povo para o qual
ralista - A catedral e as leis-fetiches - O setor jurídico são feitas; que cumpre ser sóbrio de novidades em matéria de le-
informal - Direito fantasma e maleabilidade do direito - gislação, porque, se é possível, numa instituição nova, calcular as
Os direitos do homem: um cavalo de Tróia? - O direito vantagens que a teoria nos oferece, não o é conhecer todos os in-
de resposta das culturas não ocidentais - A África: in- convenientes que apenas a prática pode descobrir.
ferno dos direitos do homem? -A Ásia: a civilização sem PORTAUS, Discours préliminaire prononcé lors de Ia
os direitos do homem? - A índia: direitos do homem ou présentation du projet du Code Civil, ano XI.
do Universo? - O Islã contra os direitos do homem? - O
arquipélago planetário - Uma pesquisa transcultural dos
direitos do homem - O século das minorias: aberturas Hiperbórèo
- A avalancha das minorias: alguns pontos de referên-
cia - A República contra as minorias: dos mitos às reali- O bimotor roçava as nuvens, levado pelo invisível rodo-
dades - Rumo ao reconhecimento de direitos coletivos.
pio de suas hélices. Eu estava voando para a América. Ne-
VI. Direito, natureza e sobrenatureza 319 nhuma saudade dos acontecimentos da primavera daquele
As sociedades tradicionais e a humanização da nature- ano de 1968 morava em mim; nada tendo compreendido
za - A ruptura da aliança - Com o risco de nos perder - dele, não concebera nenhuma esperança. Tinha 20 anos e
A nova aliança - O homem e o oceano das coisas - O di- era universitário.
reito será deste mundo? - O direito divino - As provas O voo já durava várias horas. A América estava se apro-
sobrenaturais - Os tribunais do invisível - O Ociden-
ximando, e eu acreditava amá-la. A do Empire State Building
te também - O direito órfão - O direito e as ciências
ocultas - O direito e o nada. e da Coca-Cola, da abundância e da liberdade, da embria-
guez da primeira grande viagem, O Bem estava no Oeste, o
Conclusão: A tumba deKelsen 403 Mau no Leste, haviam-me ensinado. Não me incomodava
em nada acreditar nisso. Mais ao sul, o tempo se acalma-
va em continentes manchados de desertos, a cujo redor
viviam, dispersos, povos miseráveis, numa eterna infância
da humanidade. Todo o resto era apenas palavras ocas.
O avião estremeceu ao entrar nas turbulências. Instinti-
vamente, lancei um olhar pela janela. Nesse instante, o céu
abriu-se. Sob a fratura das nuvens formaram-se as imagens
que deviam mudar toda a minha vida.
Estávamos voando acima de galáxias. As correntes orna-
vam com bordados de icebergs o azul duro do mar. Seu ná-
car gelado debruava a proa dos fiordes. Depois juntavam-se
em amontoados luminosos cujos braços espiralados os car-
regavam para a longa viagem que os suprimiria.
NOS CONFINS DO DIREITO
AS BRUMAS DO DIREITO
O avião perdeu altitude para escapar das turbulências
que o maltratavam. As nuvens haviam desaparecido. Mar- so direito iniciando-se no das sociedades tradicionais: essa
gens orgulhosas, com picos nevados, emergiram dos lon- é a aposta que me anima ainda hoje e me arrasta aos confins
ges do mar. Rebentando nas paredes de rochas cinzentas, a do direito.
longa espiral das geleiras se desprendia e semeava de estre- Uma ciência pode ajudar todos os que são atraídos por
las o céu marinho. Durante alguns minutos, conheci a eter- essa viagem: a antropologia jurídica. Objeto e meio deste livro,
nidade: o deserto acabava de apoderar-se de mim. ela ambiciona estudar os sistemas jurídicos gerados pelas so-
O piloto o apagou com um único movimento de asa, ciedades humanas, sem exclusividade. Postula que qualquer
tomando o rumo do sul. O hiperbóreo retornava ao seu mis- sociedade conhece o direito, mesmo que varie o conteúdo dele,
tério, dando lugar à monotonia das ondas. O mapa ensi- e que cada uma delas não concede a mesma importância à re-
nou-me mais tarde que havíamos sobrevoado a ponta sul gulação jurídica. Mas todos nós nascemos em algum lugar: o
da Groenlândia: uma grande ilha esmagada por uma gigan- porto de onde partimos, para a ele voltar, mudados. Daí as in-
tesca geleira. Homens viviam ali muito antes que os cavalos dagações desta obra sobre o direito positivo, aquele atualmen-
de Cortez abrissem o caminho aos soldados couraçados do te vigente na França. Ele está, pensa-se, encerrado nos códi-
Antigo Mundo. Vagas lembranças de escola: cumpria apren- gos. O aspecto deles é conhecido, o conteúdo muito menos.
der tudo e voltar, sobretudo voltar para essas terras subtraí- Como vender os códigos? Os encartes publicitários apa-
das depressa demais. Mas eu prosseguia meu curso de di- rentam a sobriedade. Sob um Código Civil, estas poucas pa-
reito, e nada me preparara para uma vida de explorador. lavras, "o direito de saber". Pois o direito gosta, para o profa-
Temia que o direito me entediasse. Há roupas mais no, de omar-se de certeza: um tom dubidativo não é de bom-
atraentes que o traje do magistrado, e os códigos de proces- tom em seus enunciados. Mas o jurista sabe bem que não é
so não figuram entre os livros interrogados pelas buscas ado- nada disso. Se quiser embaraçá-lo, peca-lhe para definir o
lescentes. O direito quase não suscita vocações. Mas certos direito. Um de nossos grandes mestres, o decano G. Vedei,
professores iluminam sua matéria. Encontrei um deles e optei confessava recentemente: "Faz semanas e até meses que
pela historia do direito, sem compreender realmente que já, eu 'gramo' laboriosamente sobre a questão, contudo apa-
deixando minha época, escolhia a viagem. Larguei assim os rentemente tão inocente [...]'O que é o direito?' Esse estado,
cargos de oficiais ministeriais que meus pais ocupavam. Sem já pouco glorioso, agrava-se com um sentimento de vergonha.
ruptura nem revolta: eles não estavam em meu temperamen- Ouvi minha primeira aula de direito faz mais de sessenta anos;
to. Mas sem esperança de volta para esses empregos, que dei meu primeiro curso em cátedra lá se vão mais de cinquen-
não me convinham. Viajava, portanto, na história de nosso ta; não parei de exercer ofício de jurista alternada ou simulta-
direito, mas também nos livros de etnologia: como não con- neamente como advogado, como professor, como autor, como
jugar os homens com as paisagens entrevistas? Abriam-se consultor e mesmo como juiz. E eis-me desconcertado co-
outros horizontes. Os da Groenlândia, em cuja terra pisei al- mo um estudante de primeiro ano entregando uma cópia em
guns anos mais tarde, antes de me voltar para o Ártico cana- branco, por não ter conseguido reunir migalhas de resposta
dense. Mas também para o seio do próprio direito. Apren- que façam escapar do zero."1
di arelativizaro nosso próprio direito, suas certezas e suas Aos professores, é sabido, falta bom senso. É melhor
desordens. Em geometria no espaço, a linha reta não é o interrogar um passante. Infelizmente, eis que ele se mete a
caminho mais curto entre dois pontos. Em geral devemos
entregar-nos à curva do desvio. Melhor compreender nos-
1. G. Vedei, Indéfinissable mais présent, Droits, 11,1990, 67.
4 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO J

lhe falar, de cambulhada, dos tribunais e de seus erros, da- papel organizador e preventivo, compartilhando nisso com
queles que sempre escapam deles, mas também da espe- a visão das categorias sociais mais abastadas. Isso conforta
rança dos direitos do homem e da vitória dos Estados de em suas nostalgias os partidários de uma idade de ouro que
direito sobre a opressão. Quanto aos profissionais do direito, associa o remado das mulheres, a ausência do direito e a
nosso Cândido os descreve à maneira de Balzac: sonolen- abundância relativa daqueles que renunciaram à sujeição
tos em escrivaninhas que o menor banqueiro não aceitaria, produtiva. Mas essa idade já não existe, e vivemos em sé-
usando uma linguagem hermética e às vezes gananciosos. culos de ferro. O direito deverá nos fechar mais nela, ou
Quadro passadista. No futuro, não serão os escritórios ameri- libertar-nos?
canos com ar-condicionado, aparelhados com todos os aper- O poeta Ovídio e Lênin estão de acordo em denunciá-
feiçoamentos informáticos, que empregam oitocentos lawyers lo. Para o primeiro, a idade do ouro do passado ignorava o
de grande desempenho, que trabalham às vezes cem horas direito, os tribunais e a repressão; então tudo se acertava
por semana... e tão estressados que a profissão conta com duas com a prática espontânea da virtude e da boa-fé. O segun-
vezes mais alcoólicos que a média nacional2? Para alívio de- do põe no futuro da sociedade comunista essa idade idílica
les, quase não ficam desempregados. Nos Estados Unidos, os em que "... os homens se habituarão gradualmente a respei-
consumidores já não hesitam em atacar os produtores, mes- tar as regras elementares da vida em sociedade [...] a respeitá-
las sem violência, sem coerção, sem submissão..." A tese de
mo quando o dano deveu-se a um mau uso manifesto do pro-
Ovídio, veremos, não é muito confirmada pelos ensinamen-
duto (por exemplo, o fato de apoiar uma escada metálica so- tos da arqueologia: o direito é uma invenção antiquíssima.
bre uma rede elétrica); os doentes citam sem hesitar seus mé- Quanto a Lênin, os acontecimentos recentes deixam cético
dicos diante dos tribunais. Hipertrofia dos litígios, inflação sobre o valor profético de suas palavras. Nossos contempo-
dos advogados: há l para 355 americanos. Entende-se que a râneos verão o direito sob cores mais atraentes?
alta tecnologia inerve esse mercado judiciário.
Portanto, visões contraditórias. Por um tempo poupa-
dos pelos divórcios, brigas de herança e outras bancarrotas, Um direito muito cinzento
os jovens teriam as ideias mais claras? Uma sondagem de
opinião recente, efetuada na França em 1987 sobre os ado- A severidade e a ameaça, o tédio muitas vezes, e a in-
lescentes de 11 a 18 anos3, traz uma resposta. Negativa. A felicidade às vezes. Não associamos esses termos quando
maioria (40%) pensa que o direito repousa na ameaça de pensamos no direito sem refletir muito nele? O direito do
punição; outros (30%) na educação, seguidos de perto pe- cotidiano se presta facilmente a isso. O Código de Trânsito
los 27% - os menos numerosos - que ligam o direito ao é que nos confronta com mais frequência com o universo
justo. O sexo e a posição social sugerem, contudo, algumas do direito4. Ordens, proibições e ameaças dominam nele. As
distinções. Os rapazes são apegados ao aspecto repressi- placas de trânsito são signos jurídicos que balizam nossos
vo do direito, ao passo que as moças percebem melhor seu itinerários diários, e as que ordenam prevalecem sobre as
que aconselham. E o que dizer do direito de transitar num
veículo? A obtenção da carta de motorista é um de nossos
2. Cf. J. S. Stehli, États-Unis-Stress: lês avocats lâchent lê barreau, Lê
Point, 918, abr. 1990,138.
3. Cf. C. Kourilsky, Que represente lê droit pour lês 11-18 ans?, Lê Cour- 4. Cf. J. P. Gridel, Lê signe et lê droit, Paris, LGDJ, 1979; N. Rouland,
rier du CNRS: Lês, Sciences du Droit, 75,1990, 61. Anthropologiejurídique, Paris, PUF, 1988,139-41.
6 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO

modernos ritos de iniciação à vida adulta. Outros avisos do Mas também o vermelho, a cor de que gosta o poder (pen-
direito, nos quais aparecem mais nitidamente o Estado e seu semos nos púrpuras imperial e cardinalício, nos diversos ta-
poder tutelar, os formulários de Seguridade Social, os da petes vermelhos): os magistrados das altas jurisdições se
URSSAF (Union de Recouvrement de Cotisations de Securi- revestem dele; ele colore a capa da maior parte dos códigos
té Sociale et d'Allocations Familiales) e os formulários de im- franceses; deu seu nome aos sinais de trânsito que prescre-
postos. Quer por intermédio deles demos ou recebamos, a vem parar. Ora, a história das cores mostra que o vermelho
exigência de formas e o hermetismo da linguagem nos de- foi a utilizada mais antigamente pelos homens. Já nossos
sanimam tanto quanto nos coagem. ancestrais do paleolítico salpicavam de ocre os cadáveres de
Um direito que comanda e reprime. Como espantar-se seus defuntos. Vermelho, cor do sangue, ou seja, da vida, ao
de que seja associado à ideia de processo? Para o passante de mesmo tempo que das grandes fontes luminosas: o sol da
há pouco, que provavelmente jamais entrou numa sala de aurora e o fogo do poente. Cor suprema, em geral símbolo do
audiências, o direito se confunde com os tribunais e os ad- combate, evoca também a ameaça da pena, que pode supri-
vogados. As jurisdições visadas são as da ordem repressiva: mir a vida. O direito se impõe até à nossa retina.
A causa parece, pois, entendida: o direito é na melhor hi-
a justiça é o penal. Õ grande advogado só poderia sustentar
pótese um mal necessário. E, no entanto... A realidade des-
uma causa no tribunal do júri. Rasga-se com menos facilida-
de uma vida do que uma letra de câmbio, e não será ama- mente essa visão.
nhã que o juiz cível arrebatará do juiz criminal seu lugar na
mídia. Quanto ao magistrado, por demais laxista, não convi-
ria cingi-lo, para as infrações particularmente graves, ao siste- Flexível direito
ma das penas fixas? Aí, também, os Estados Unidos mostram
Assim como a saúde não se define pela doença, o
o caminho. As mandatory sentences impõem ao juiz penas mí-
to não se reduz, ao contencioso. Vivemos a maioria das re-
nimas irredutíveis, notadamente em questão de drogas5. Aca-
lações pessoais e sociais às quais o direito dá uma estrutura
baram-se circunstâncias atenuantes, há somente agravantes,
sem necessitar recorrer aos tribunais. A maioria dos desa-
e uma severa tarefa penal. Cinco anos para cinco gramas de cordos conjugais ou das brigas de vizinhança se extingue
crack ou quinhentos gramas de cocaína ou cem quilos de ma- bem antes que o juiz seja solicitado a solucioná-los; a maior
conha ou um grama de LSD; dez anos no mínimo quando parte dos contratos é normalmente executada pelas partes.
essas quantidades são multiplicadas por dez. A instauração Isso quer dizer que o direito mais fornece modelos de con-
de uma espécie de lógica matemática aumenta a legitimidade duta do que pune comportamentos. E, se contencioso há, ele
da repressão: está de antemão inserida no ato delituoso. não é majoritariamente penal. Interrogue as pessoas de seu
O direito não chega até a solicitar as cores para tornar- círculo que recorreram à justiça: há poucas possibilidades
se mais imperativo? Preta é a roupa dos magistrados e dos que tenham comparecido perante o tribunal de júri, ou mes-
auxiliares de justiça, escura a das forças de polícia. Cores que mo em tribunal criminal. A maioria dos processos é civil
fazem eco ao preto do uniforme do árbitro e da batina do pa- ou comercial, o que tranquilizaria o grande público, se ele o
dre. Todas essas personagens estão aí para lembrar a regra e, soubesse. Nos pretórios, poucas portas abrem para o infer-
se preciso, forçar a sua observação. O fúnebre não está longe. no do penal. E, se devemos apesar de tudo penetrar nele, não
é forçosamente para perder toda iniciativa diante de um ine-
xorável castigo. No processo anglo-saxão, 90% dos proces-
5. Cf. A. L., La justice marteau-pilon, Lê Monde, IP abr. 1990, 8.
NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO

sos penais são acertados de modo negociado. É o plea bar- em alguns departamentos franceses, as forças da ordem
gaining; as partes chegam a uma solução amigável, subme- entregaram a certos motoristas que usavam o cinto de se-
tem-na ao juiz, que o mais das vezes se contenta em regis- gurança uma soma de dinheiro de um montante próximo
trá-la. Quanto à pena, a indulgência pode suprimi-la: graça da penalidade prevista pela falta do uso desse acessório. Em
presidencial, perdão da lei (anistia) ou do juiz (reabilitação 1987, a cidade de Lille aplicou o mesmo princípio a moto-
e indulto, que apagam a condenação). ristas que haviam respeitado as regras do estacionamento.
Enfim, o direito pode falar de maneira diferente que não Em abril de 1990, aos motoristas culpados de excesso de
por ordens e ameaças para poder aplicar-se. Parece mesmo velocidade na região de Isle-Jourdain (Gers) a comissão de
fazê-lo com cada vez maior frequência: é possível pergun- apreensão de carteiras de habilitação propôs a escolha entre
tar-se se seu futuro não está na atenuação de sua função re- uma multa e a apreensão imediata e uma sessão de forma-
pressiva em proveito de urn papel incitativo. ção que incluía a projeção de um vídeo sobre os danos da
Um direito que mais indica do que prescreve: tomemos alta velocidade, assim como a conferência de um médico so-
alguns exemplos. A definição de programas já não é mono- bre as consequências corporais dos acidentes de trânsito. Ex-
pólio dos partidos políticos. O direito adotou essa técnica ela- periência prenunciadora. A partir de 1992, os motoristas in-
borando leis-programa*, leis-cadres**, leis de orientação fratores terão a escolha entre perder alguns preciosos pontos
(lei de orientação agrícola, elementos do Código de Urba- de sua habilitação ou seguir estágios de reciclagem, promo-
nismo, planejamento dos equipamentos sanitários etc.). A vidos por psicólogos e especialistas da segurança de trânsito.
multiplicação dos "padrões" se insere numa lógica similar. Pensou-se mesmo em levar os autores de infrações graves
Entendem-se com isso normas técnicas, oriundas de um con- aos serviços hospitalares de traumatologia... Prevenção. Mas,
senso entre as partes interessadas, aprovadas por um orga- neste último caso, sem a menor dúvida, punição, ainda que
nismo qualificado, mas cuja observação não é estritamente seja de ordem essencialmente psicológica. O que também
obrigatória. Constituem referências, não regras de condu- poderia ser uma das vias da modernização do direito.
ta, nem uma regulamentação técnica. As biotecnologias são Quanto ao essencial, nossas penas consistiram por mui-
nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha um campo privile- to tempo na amputação do património (multas) ou na priva-
giado em que se exerce esse tipo de normalização. O próprio ção de liberdade (encarceramento). Poder-se-ia, em certos
direito de trânsito, entretanto altamente repressivo, come- casos, lançar mão de outros mecanismos. Por exemplo, as
ça a dar alguns sinais de adaptação. A substituição dos si- penas de substituição ou punições de ordem puramente psi-
nais de trânsito pela rotunda à inglesa repousa na autodis- cológica. Um exemplo bem divertido nos vem da Espanha6.
ciplina e no julgamento do motorista. Os guardas já não o Em 1989, foram criadas três empresas em diversas regiões
ameaçam com o bastão: as insígnias demasiado vistosas do para oferecer seus serviços aos credores. Sua originalidade
comando se fazem raras (os báculos de bispos e batutas de se deve à natureza dos meios empregados, baseados no te-
maestros tendem a tornar-se acessórios antiquados). Certas mor do ridículo sentido pelo devedor indelicado. Em Barce-
experiências também o tratam como mais adulto. Em 1986, lona, a sociedade "Pantera Cor-de-Rosa" manda-lhe uma em-
pregada vestida como o famoso felino e tendo na mão uma
maleta na qual figura a inscrição "Recebimento de dívidas em
* Lei que autoriza o governo a fazer certas'despesas cujo acerto é esca-
lonado em vários exercícios orçamentários anuais. (N. da T.)
* Lei que define certo princípio, deixando ao governo o cuidado de 6. Cf. M. C. Ayrne, Chasseurs de fric en frac, 1'Événement dit Jeudi, 26
precisar-lhe o alcance exato nos decretos de aplicação. (N. da T.) out.-l" nov. 1989, 46.
10 NOS CONFINS DO DIREITO
AS BRUMAS DO DIREITO 11

atraso". Na Andaluzia, é um personagem vestido de aristocra- se deve confundir o maleável não-lógico, ou o vago - que só
ta do século XVIII que faz esse papei desempenhado em Ma- seriam o caos - e a lógica maleável, que pode ser uma con-
dri por um homem usando casaca e cartola. Esses diversos dição de eficácia do direito. Esta pressupõe que existe no
figurantes não largam o devedor, seguem-no ao escritório, ao _
' i precisa e que_pode _ser espe-
_
restaurante e aos diversos lugares aonde vai, até que exas- cificada^a partir da qual são organizadas, num conjunto ma-
perado ou humilhado acabe cedendo. Essa versão moderna leável, margens depreciação que dão certa autonomia aos
do pelourinho (ou de outros usos: no direito celta, o credor atores. O principio de proximidade se substitui então ao de
vinha jejuar à porta do devedor) conhece uma taxa de êxito identidade, e o espaço normativo se torna pluralista. O di-
próxima de 80%... Isso é apenas um exemplo, decerto difi- reito europeu se estrutura, diante de nossos olhos, segundo
cilmente generalizável. Mas a perda de prestígio social é tais conceitos. As instâncias comunitárias editam normas.
uma punição que pode revelar-se terrível: muitos delin- Cada um dos Estados não é obrigado a aplicá-las tais quais,
quentes (nem todos são^ criminosos empedernidos)? supor- mas a aproximar-se delas, a fim de que se chegue conjunta-
tariam menos bem a publicação de^sua foto,'- corri os "motivos mente a uma harmonização entre práticas nacionais e nor-
de sua condenação (ou sua afixação no prédio onde moram mas europeias.
ou no local de trabalho, o que, aliás, o Código Penal permi- O espírito das leis está mudando. Dá-se o mesmo com
te), do que as clássicas penas de multa ou de encarceramento a Justiça. Em muitos casos, o juiz não é o todo-poderoso or-
com sursis. Aliás, é nítida a evolução que desvincula a pena denador do processo, que zela escrupulosamente pela ob-
da prisão. Esta é individualizada, graças a substitutos do en- servância do direito. Pode até ocorrer que este, ou terceiros,
carceramento: suspensão da carteira de motorista, confis- solucionem em toda legalidade conflitos fora das regras do
co de talão de cheque. Sua execução igualmente: sursis, pos- direito estrito. Penetra-se então num universo muito diferen-
tergação da pronunciação da pena (uma lei de 1975 permi- te daquele da justiça mediada, ávida de casos Gregory* de
te que decorra um ano entre a declaração de culpabilidade e toda espécie. Ô próprio jurisdicionado é, de fato, cada vez
o pronunciamento da pena), liberdade condicional. Por outro mais solicitado a colaborar na execução do direito e em sua
lado, a rede penal já não é a única a distribuir penas, sinal de sanção. Essa evolução fica muito sensível nas relações fami-
um pluralismo de fato: as penalidades podem ser distribuí- liares, em que o direito afirma sua neutralidade crescente
das pela administração pública ou pelo setor médico-social, para com escolhas pessoais na organização da vida privada
resultar de práticas de mediação e de arbitragem (esta é mui- e se torna, portanto, mais flexível, remetendo cada indivíduo
to difundida na vida dos negócios). à sua liberdade e à sua responsabilidade: a cada qual seu
Mas então não perderá o direito uma de suas qualidades direito. A necessária barreira entre o concubinato e o casa-
essenciais, a clareza? Ao deixá-lo flexível demais não se cor- mento não está derrubada. Mas o primeiro (já não se costu-
rerá o risco de deixá-lo distorcer impunemente? Este não é ma falar de "amancebamento") já não é objeto de opróbrio
decerto o objetivo dos teóricos do direito "maleável". Como e tem reconhecidos certos efeitos, notadamente pelo direi-
escreve Mireille Delmas-Marty, sua principal defensora7, não to da Seguridade Social e pela jurisprudência civil. Quanto
às pessoas casadas, elas podem organizar suas relações sob
7. Cf. M. Delmas-Marty, Lê fiou du droit, Paris, PUF, 1986; Politique cri-
minelle et droits de 1'homme: vers une logique floue, RIES, 24,1990,1-24. So- * Caso de um menino de quatro anos encontrado morto, de pés e mãos
bre as punições psicológicas, cf. R. Ogien, Sanctions diffuses. Sarcasmes, rires, atados, num rio. Foram muitos os acusados, de primos até a mãe, sendo grande
mépris, Revue Française de Sociologie, 4,1990, 591-607. a repercussão na imprensa. Até hoje não se sabe quem foi o culpado. (N. da T.)
12 NOS CONFINS DO DIREITO '~VO DIREITO^) 13
BRUMAS

Q signo da comunidade ou da autonomia em matéria patri- corrência de outras instituições de solucionamento de confli-
monial e dissolvê-las apoiando-se em suas faltas ou recal- tos ou é substituído por elas: vindas dos Estados Unidos (onde
cando-as no segredo de suas mágoas. A lei se despe aqui de trazem o rótulo de "Justiça informal"), as justiças alternati-
sua familiar imperatividade. Faz-se tolerante e chega a pre- vas estão se desenvolvendo na França. Centros de media-
ver sua própria negociação. ção, clínicas e lojas do direito se esforçam para minimizar
Vá lá na justiça civil, que não ameaça a ordem pública. os conflitos, encarados por um ângulo menos jurídico do
Mas observa-se o mesmo movimento no direito penal. Re- que terapêutico e psicológico.
fere-se particularmente aos menores. O texto fundamental Mais do que na prova da falta ou da culpa, os mediadores
da jurisdição deles (vim decreto de 1945) prevê que o juiz, - o mais das vezes não-juristas - se empenharão em restabe-
todas as vezes que tiver a possibilidade, deverá fazer a via lecer a paz entre as partes descobrindo com elas soluções de
educativa prevalecer sobre a via repressiva. Concretamente, acerto satisfatórias, em geral baseadas em arranjos que toma-
isso significa que o magistrado negociará a aplicação da lei rão inútil o recurso à justiça oficial (nos Estados Unidos, graças a
com o menor e tentará obter sua adesão às medidas pro- essas práticas, somente 5% a 10% das pendências chegam
postas. Concorre para isso a atenuação do formalismo judi- aos tribunais). Aqui, ainda, o sucesso desses procedimentos
ciário. O juiz recebe o menor em sua sala, e a oralidade, a in- requer certas condições. É preciso que as partes sejam rela-
terpessoalidade das relações de face-a-face prevalecem sobre tivamente próximas (laços de vizinhança, associativos ou pa-
o escrito. Pode-se admiti-lo para menores, cuja idade incita à rentais) e de um nível socioeconômico sensivelmente igual.
esperança. Mas os adultos também podem recorrer a um di- Além disso, as pendências não devem ser graves. Isso dei-
reito penal "maleável", que lhes permite, em certas circuns- xará modesto o campo de aplicação dessas justiças? Muito
tâncias, escapar de uma punição brutal8. O controle judiciário pelo contrário. Nossa vida cotidiana está cheia da poeira dos
que evita o encarceramento provisório; o sursis com coloca- pequenos litígios: não se vai todos os dias ao Tribunal do Júri,
ção à prova, em que o respeito de certas condições pelo con- perante a Corte de Cassação ou ao Conselho de Estado, di-
denado suspende a execução da pena; o trabalho de interes- vindades bem longínquas. O próprio Estado deseja a expan-
se geral, que só pode ser sentenciado com o consentimento são dessas justiças alternativas, para desobstruir as juris-
do réu. A própria vítima pode intervir no processo de corre- dições tradicionais, de que os franceses não gostam muito
ção e de reinserção do réu: foram realizadas experiências no (80% deles as acham lentas demais, demasiado complicadas
Canadá e por diversas associações de ajuda às vítimas (prin- e caras9). Mas elas também atendem a outras necessidades.
cipalmente em Lyon, Estrasburgo e Grenoble). Seu sucesso A decisão do direito, o julgamento não são procedimentos
fica ainda mais provável quando vítima e delinquente não indolores. Costumam deixar vestígios e, embora insiram a
mantinham relações antes do delito e quando este não é gra- norma nos fatos, nem sempre favorecem a reconciliação
ve demais (uma mulher estuprada pelo vizinho dificilmente (quantos incidentes domésticos se envenenam porque cada
aceitará ajudá-lo). qual está convencido de ter razão, de ter "o direito do seu
Ainda assim sempre há um juiz, mesmo que tenda a lado"?). Ora, às vezes se é forçado a viver junto: o custo da
perder a severidade do censor. Mas sofre cada vez mais a con- ruptura (divórcio, mudança, exclusão de um partido ou de

8. Cf. A. Garapon, La notioii d'engagement dans Ia justice française 9. Cf. G. Picard e A. Morin, Petits litiges: zero pour lês tribunaux, 50 Mil •
contemporaine, Droits et Cultores, 13,1987, 51-7. linns de Consommateurs, 221, out. 1989, 26-32.
AS BRUMAS DO DIREITO 15
14 NOS CONFINS DO DIREITO
dadeiros" direitos e denunciou-se o direito penal "maleá-
outra forma de associação) é julgado superior ao da manu-
vel")- Vêem na atenuação do formalismo um perigo mortal
tenção das relações. Em todos esses casos, decerto é preferí- para as garantias do jurisdicionado. Não os ataquemos pre-
vel um dkeito negociado ao imposto. Aliás, faz muito tempo cipitadamente: o direito não deve diluir-se excessivamente,
que se compreendeu isso em outros campos da vida jurídica. sob pena de já não poder cumprir a função de modelo a
No mundo do trabalho, o do direito "social", grande parte que almejamos. Assim também, as formas não são vãos ar-
das relações é auto-regulada (as partes estabelecem con- tifícios, mas pontos de referência (a audiência informal, en-
venções coletivas que lhes organizam as relações); os confli- trevista na sala do juiz, é mais tranquilizante que o pretório:
tos são mais solucionados pela negociação, pela mediação aqueles que são convocados a ela correm o risco de esque-
(todo conflito social de certa gravidade tem a nomeação pelo cer que se trata não de uma sessão de psicoterapia, mas de
Estado de um mediador encarregado de neutralizá-lo), do uma reunião que terminará com uma decisão judiciária). Re-
que pelo recurso ao juiz. Pois a empresa é uma comunidade conheçamos mesmo que, se não provoca o sentimento de
de vida, que não é fácil de deixar, e todo conflito social grave obrigação, o direito se evapora. Mas não podemos superes-
pode estender-se e adquirir uma dimensão nacional. Portan- timar a eficácia das ameaças e das punições, que o deixam
to, é melhor (ré) conciliar do que tomar providências enérgi- por demais cinzento. Para devolvê-lo à sociedade civil, em
cas. E o que dizer das relações internacionais? Nelas a ten- toda parte onde for possível, dever-se-ia visar que recomen-
dência do direito a estimular em vez de punir se manifesta de mais do que ordene. O direito deve ser efetivo. Mas não
com muito maior frequência do que em direito interno: de- se aplicará melhor e mais depressa quando sua observância
clarações dos órgãos da ONU, planos da Unesco, progra- proceder antes da adesão do que da coerção? Carbonnier,
mas para o desenvolvimento etc. Aqui, é a relativa pobreza urn de nossos maiores juristas, escreveu: "Solução de um lití-
dos meios de punição que leva a buscar o consenso. gio, apaziguamento de um conflito: fazer a paz reinar entre
Qual será o sentido de todas essas experiências? Uma os homens é a finalidade suprema do direito, e as pacificações,
aposta as inspira. A de que a colaboração do jurisdicionado as conciliações, as transações pertencem ao direito, bem mais
assegurará, mais do que a punição, a eficácia do direito. Com certamente do que tantas normas ambiciosas."10 O direito po-
o risco de permitir que se obscureçam nossas concepções fa- de precisar da força. Não pode ser reduzido a ela. A evolução
miliares do direito e da justiça: a lei já não dita um texto úni- que se inicia diante de nossos olhos leva a que ele se desligue
co, o juiz penal usa o castigo sem necessariamente aplicá-lo. cada vez mais dela, sem nunca provavelmente poder renun-
Guardemos esses pontos: o juiz às vezes ganha em se fa- ciar a ela completamente. Nessa via, muitas sociedades tra-
zer flexível, a harmonia social não passa forçosamente pelo dicionais parecem ter-nos precedido.
que denominamos a marcha da justiça.
Assim, vamos ao encontro das experiências antigas. A
leitura das coletâneas dos costumes medievais franceses mos- Volta às fontes
tra que, ao menos até o século XII, o desejo do restabele-
cimento da paz social está na frente daquele da justiça. Nas Celebes, arquipélago próximo de Bornéu, os torad-
Os juristas clássicos não deixam de ser reticentes aos fe- jas valorizam no mais alto grau a harmonia: deve-se a qual-
nómenos que acabei de evocar. Temem que haja uma perda
de substância pelo direito (acusou-se muitas vezes o direi-
10. J. Carbonnier, Droit civil - Introductíon, Paris, PUF, 1988, 35.
to internacional e o direito do trabalho de não serem "ver-
16 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO 17

quer preço evitar as discussões e a anarquia. Em caso de quando prevalece o desejo de harmonia, as distâncias po-
briga séria - de modo muito especial a conjugal - impõe-se a dem diminuir...
conciliação, exercida pela assembleia da aldeia. Eis as exor- Vamos transpor as que separam essas regiões equatoriais
tações ouvidas (em 1974) por um etnologista: "A fala é um das grandes extensões geladas do Ártico. Detenhamo-nos na
remédio, como dizem os antigos. Falem, abram seu coração e costa leste da Groenlândia, em Ammassalik.
o abcesso rebentará... Sim, a fala é um remédio, reconciliem- Ali os esquimós viviam em grupos de algumas dezenas,
se, expliquem-se claramente para que cada um de vocês pos- ao longo de uma costa hostil. Todo conflito de certa impor-
sa endireitar o que está entortado, para que detenham o que tância podia tornar-se depressa um perigo grave para a co-
mutuamente vocês não amam para que não se pense mais munidade, daí a necessidade de resolvê-lo pacificamente.
em divórcio."" Mas a conciliação pode fracassar. Nesse caso, Um dos meios em geral utilizados eram as competições de
os esposos podem escolher entre dois procedimentos de sepa- .cantos12. Diante da comunidade reunida, os adversários se
ração. A "má ruptura", que exige a prova de uma falta diante dedicavam a esses duelos. Um de cada vez, eles entoavam
dos juizes consuetudinários, muito malvista pela opinião pú- cantos satíricos que punham em cena seu protagonista. Com
blica. O "divórcio de ouro", separação amigável, na qual não é seus risos, a assembleia os desempatava e acabava designan-
formulada nenhuma pergunta aos cônjuges sobre os seus mo- do um vencedor. Este podia ser a vítima do ato preceden-
tivos: à míngua de se entender, é melhor separar-se, contanto temente cometido por seu rival mais hábil na sátira: pouco
que seja sem choques. A assembleia zela pela partilha dos importava, o conflito era considerado encerrado e devia se-
guir-se a reconciliação.
bens, depois pronunciam-se estas palavras: "Que se abando-
Voemos agora para mais a oeste, para o Labrador: os
nem pacificamente, que voltem assim a ser solteiro e solteira."
primos dos ammassalimiuts partilham sua busca. O estudo
Um pedaço de pau é partido em dois: a união partiu-se. Antes
de seu vocabulário13 mostra que também atribuem ao seu di-
de se separar, os ex-cônjuges convidam os participantes para reito a missão da harmonia. Todo comportamento excessivo
uma refeição em cujo decorrer distribuem presentes aos juizes ou inconveniente é interpretado pelos que são suas vítimas
e às testemunhas para agradecer-lhes a colaboração. como uma ofensa que perturba a ordem social. Os termos
Foi preciso esperar 1975, na França, para que o proces- que hoje significam bom ou mau eram antigamente sinóni-
so de divórcio por solicitação conjunta permitisse aos espo- mos de o que existe e o que não existe, sinal do perigo que todo
sos desejosos de romper fazê-lo sem ter de invocar falta e conflito continha para eles. O equilíbrio social primava sobre
organizando sozinhos as condições da ruptura, com a restri- a determinação das responsabilidades: nenhum juízo era feito
ção do controle a posteriori de suas convenções pelo juiz. Esse sobre o valor intrínseco dos indivíduos e de seus atos, fossem
procedimento conheceu um sucesso certo: é o escolhido em eles punidos ou não (a palavra que traduzimos por ofensa - ou
cerca da metade dos casos. As pesquisas sociológicas per- mesmo pecado, como os missionários - significa, antes, in-
mitem aperfeiçoar essa estatística: quanto mais se situa em correto, desconfortável).
zonas urbanas e quanto mais se eleva nas categorias socio-
profissionais, mais prevalece o divórcio por solicitação con-
junta sobre o divórcio ligitioso. Não somos toradjas. Mas 12. Cf. N. Rouland, Lês modes juridiques de solution dês conflits chez
lês Inuit, Études Inuit, 3,1979, 80-102.
13. Cf. L. J. Dorais, Humiliation et harmonie. L'expression du droit cou-
11. Cf. J. Koubi, En quête d'harmonie. Lê divorce chez lês Toradja, Droits tumier chez lês Inuit du Labrador, Recherches Améríndiennes au Québec, XIV-4,
et Cultures, 15-6,1988, 5-45. 1984-85, 3-8.
AS BRUMAS DO DISE1TO 19
18 NOS CONFINS DO DIREITO
meio do caminho. Não se trata aí de devaneios jurídicos.
Quanto às punições psicológicas, todos os esquimós, Existem técnicas que permitem a prática do direito-modelo:
do estreito de Behring à Groenlândia, as usam: designam o adjunção às leis novas de um considerável quinhão de me-
ladrão pelo nome do objeto que ele furtou; dirigem-se ao didas transitórias; planejamento jurídico do direito legisla-
culpado omitindo designá-lo com termos de parentesco (o tivo, acompanhado de medidas educativas e de campanhas
parentesco, nessas sociedades, é tão importante quanto para de informação; reconhecimento aos administrados de pos-
nós a profissão: reconhece-se alguém por seus parentes, sibilidades de opção entre diferentes estatutos jurídicos e ju-
como em nosso país situa-se um recém-chegado perguntan- risdições; outorga pelo legislador ao juiz e à autoridade ad-
do "o que ele faz na vida"); enchem-no de apelidos. Mais ministrativa de amplos poderes de interpretação da lei para
grave, podem submetê-lo a sessões de repreensão pública, adaptá-la às necessidades e aos desejos das populações.
ou a períodos de ostracismo, espécie de aprisionamento in- Rigidez e imperatividade, esses caracteres do direito que
verso, que pode chegar ao banimento. Voltamos a penas ba- acreditávamos intangíveis, começam a se atenuar. Portanto,
seadas nesse tipo de isolamento. No Canadá, para evitar a o direito está menos sombrio do que achávamos. Mas, ao
delinquentes os inconvenientes do encarceramento privan- contrário, as esperanças que, parece, em alguns lugares ele
do-os ao mesmo tempo de liberdade, intimam-nos a ficar faz nascer serão bem justificadas?
em casa, sob o controle de chamadas telefónicas e de emis-
sores que eles devem trazer constantemente consigo, assi-
nalando a presença deles... Uma expectativa de direito
Vamos parar aqui com esses exemplos. Haveria muitos
outros e provavelmente o mesmo tanto em sentido contrário. Um direito róseo demais. Vivemos, parece, a volta da ética.
Pois nem todas as sociedades tradicionais são não-violentas, Não faltam razões para isso. Mesmo que tenham sido a oca-
propensas às especulações metafísicas e transbordantes de sião de indiscutíveis avanços do conhecimento, os grandes
generosidade: não devemos ressuscitar o Bom Selvagem. sistemas explicativos do século decorrido não cumpriram to-
Importa-me apenas constatar que algumas delas parecem das as suas promessas. Psicanálise e marxismo perderam
buscar objetivos que começamos a nos atribuir e utilizam muitos de seus adeptos. Uma prometia demais, ou pouco de-
para tanto meios nos quais poderíamos refletir. Não, cla- mais, e foi prejudicada pelo hermetismo, pelo exagero e pela
ro, para transpô-los mecanicamente para nossas sociedades, arrogância de alguns de seus intelectuais e luminares. O ou-
mas para inspirar-nos neles. NPSSP spnt-idn. Inrige de repre- tro vê hoje suas encarnações (funestas ou necessárias?) se de-
<->g vpgfrígins de um passado remoto ou de exotismos comporem, ao passo que o economismo mostra claramente
abolidos, essas sociedades tradicionais poderiam contribuir seus limites e as ideologias políticas parecem ter esgotado
para a elaboração dq pns-mrvWnirladp pm que entramos. suas esperanças salvadoras. Alguns ingénuos concluem daí
Alguns Estados do Terceiro Mundo tomaram, aliás, cons- "o firn da História". É tomar o entroncamento pelo fim da li-
ciência disso, depois de ter sucumbido nos anos 1960 à ver- nha. O todo-cultural agora tem tendência a prevalecer sobre
tigem das codificações à ocidental. Sua política legislativa o económico e o político: diferenças culturais, encontros en-
repousa na ideia de que as novas leis não podem de ime- tre as; culturas, integração, assimilação... A frequência dos
diato aplicar-se integralmente: elas representam menos uma termos traduz o sucesso das ideias. Acrescem-se a esse su-
obrigação imperativa do que um modelo do que poderia ser cesso a volta do sujeito e a do sentido. Infeliz sujeito, tritura-
a sociedade futura e são suscetíveis de remanejamentos no
20 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO 21

do por tantos determinismos desde os mestres da suspeita; tra, precisando logo em seguida que o direito pode ser não
miserável homem que, segundo Claude Lévi-Strauss, as ciên- equitativo (o Código Civil obriga o autor de uma falta, mes-
cias sociais tinham por objeto dissolver... Ele parece ter reco- mo leve, a reparar inteiramente o prejuízo causado, ainda
brado hoje algumas forças: o "eu" já não é ilusório, e, uma vez que seja pobre e sua vítima infinitamente mais abastada).
enumeradas as forças que tentam manipulá-lo, ele afirma sua Hoje multiplicam-se os pedidos de ajuda lançados ao direi-
existência, velado pela sentinela da consciência. Ele se deter- to e aos juristas a fim de que consolidem as escolhas morais
mina, tendo, para conferir um sentido à sua vida, tracejado li- de nossas sociedades. Não será essa uma ocasião inespera-
mites, ainda que pontilhados, entre um bem e um mal. da para eles de sair do gueto onde negras miragens os fe-
Que terão que ver o direito e os juristas com tudo isso? chavam? Falando como os economistas, a demanda global
Mais do que se acredita. Em primeiro lugar, o direito já não de direito está crescendo. Portanto, vamos fabricar mais dele,
r e do melhor.
"^ i- CAxL-V ojxjol. se acha reduzido a uma superestrutura trazida pela agitação
da produção económica, ou formada pelas mentiras e mean- As recentes descobertas em matéria médica aumentam
dros da psique. Em segundo, remata a ressurreição do sujei- nosso domínio do vivo. Inquietos, certos cientistas se inter-
to. Porque, propondo ou impondo normas, inspirando (quan- rogam: até onde ir longe demais? E pedem aos juristas (que
do preciso pela rejeição que suas regras suscitam) condutas, em geral participam de diversas comissões de ética) que re-
fundamentando ou utilizando representações (o bom pai de gulamentem. O direito deixou de ser, evidentemente, essa
família, o interesse geral etc.), ele manifesta que o homem arte da chicana: esquecidos Daumier e Balzac. Torna-se, ao
permanece capaz de determinar opções e efetuar escolhas, contrário, o protetor da liberdade e da razão. Outro tema, o
mesmo que estas sejam largamente influenciadas pela cul- Estado de direito: a expressão conhece, faz alguns anos, um
tura na qual vive. Sujeito e cultura: não haveria aí.antino- belo sucesso. Ela significa que o Estado aceita ver seu poder
mia? É modo de ver. For certo pode-se ter esperança em um limitado pelo direito, expressão de uma ordem preexistente
Homem que^depois de se ter libertado do económico e do que encontra sua fonte na sociedade civil. Feliz período o
político, atingiria pela fnrra da Razão o Universal, quebrando nosso: como cem flores, despontam à nossa volta Estados
seus derradeiros entraves, os do cultural. Veio mais no su- de direito que substituem Estados autoritários tornados for-
jeito e sua cultura um par necessário, ainda que esses dois talezas vazias. O Estado de direito, aliás, não poderia existir
parceiros possam renegociar suas relações. Esse casal tem sem os direitos do Homem. Na América Latina, nos países
dois filhos. A ética, conjunto de proposições e de regras de da Europa Central hoje libertados, em inúmeros locais do
conduta nascidas do compromisso que os dois esposos de- planeta, eles foram ou permanecem a arma jurídica da luta
vem firmar para continuar a viver juntos (toda sociedade tem .- contra a opressão. Um homem, sejam quais forem sua raça,
sua ideia sobre o Bem e o Mal: o que não impede que alguns f sua classe e sua cultura, possui certo número de direitos que
de seus membros tenham outras e que as outras sociedades todo regime, toda legislação devem respeitar e garantir. Não
não compartilhem necessariamente a sua). Odireito, por ser será essa a maior mensagem do direito, a que contém suas
em geral escolha, e decisão sobre o essencial, não pode por mais belas conquistas?
essa razão ser totalmente desvinculado da ética. Os próprios intelectuais hoje se preocupam com ele. An-
O direito e a moral... Um velho par que veste roupas no- tes tinham tendência a ignorá-lo: "Mas como se pode fazer
vas. Por ocasião das primeiras horas de aula na faculdade, pesquisa em direito?" Esta frase, ouvi-a muitas vezes... Há que
nossos professores nos diziam que um era a sombra da ou- dizer que, entre os grandes mestres, os que cursaram direi-

.,,
22 NOS CONFINS DO DIREITO
AS BRUMAS DO DIREITO 23
to na juventude não se lembravam de ter sido iluminados tados de direito às ditaduras por eles derrubadas. Mas qual
por ele. Eis o que diz Claude Lévi-Strauss: "... inscrevi-me será o principal produtor desse direito que se supõe limitar
em Direito ao mesmo tempo que preparei minha licença de fi- os apetites estatais? O próprio Estado. O poder regulamen-
losofia; simplesmente porque era muito fácil. Uma curiosa fa- tar recuou incessantemente os limites de seu território; a
talidade pesa sobre o ensino de Direito. Preso entre a teologia administração pública, receando poucas jurisdições adminis-
da qual, naquela época [os anos 1930], seu espírito o aproxi- trativas com poderes de punição amiúde ilusórias, libertou-
mava, e o jornalismo para o qual a recente reforma o está fa- se cada vez mais do respeito às leis. Saber-se-á, aliás, que
zendo inclinar-se, dir-se-ia que lhe é impossível situar-se num 90% delas não provêm da iniciativa dos deputados france-
plano ao mesmo tempo sólido e objetivo: ele perde uma de ses, mas são concebidas e apresentadas pelo governo, ou
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suas virtudes quando tenta conquistar ou reter o outro. Objeto A dExir\t)<u>seja, concretamente, pela burocracia dos ministérios? A lei,
de estudo para o cientista, o jurista fazia-me pensar num ani- ..P expressão da vontade popular: um mito necessário, mas mês -
mal que pretenderia mostrar a lanterna mágica ao zoólogo. Na mo assim um mito. Quanto aos direitos do Homem, antes
época, felizmente, estudava-se quinze dias para os exames de àx**j o expressar reservas a seu respeito. No entanto,
direito, graças a manuais práticos aprendidos de cor. Mais ain- distanciando-se demais o homem das culturas às quais
da que sua esterilidade, a clientela do direito me repugnava"14.
l - pertence, não se correrá de fato o risco de forjar um Homem
Sejamos honestos: cerca de quarenta anos depois de ele ter pretensamente universal, que seja apenas o reflexo de nos-
escrito essas linhas, encontrei Claude Lévi-Strauss. Interro- sa cultura e um instrumento de sua expansão? Cuidemos
guei-o sobre essa passagem: reconheceu de bom grado que as para não cometer de novo os erros do século XIX.
coisas poderiam ter mudado. Cada vez mais intelectuais têm Existem outros perigos. Deveremos aquiescer ao cres-
consciência disso: o direito não é só o advogado da ordem es- cimento da demanda de direito?
tabelecida e o cão de guarda dos patrimónios. O filósofo M. Em 1789, a Revolução foi feita por juristas que adulavam
Serres propõe ao homem firmar um contrato natural com seu a Lei, mas pensavam que bastariam algumas para ordenar o
meio ambiente e pede socorro aos juristas15. O Centro Nacio- novo corpo social. Portalis, que presidiu à redação do Códi-
nal de Pesquisas Científicas reconhece - afinal! - que o direito go Civil, acreditava nisso: "... o curso da justiça seria interrom-
tem seu lugar entre as ciências humanas e promete dar-lhe pido se não fosse permitido ao juiz se pronunciar quando a
mais que um assento de segunda classe16. lei falou. Poucas causas são suscetíveis de ser decididas por
Deveremos nós, os juristas, cantar vitória? Alegremo- um texto preciso; é pelos princípios gerais, pela doutrina,
nos, por certo, mas sem fazer muito alarde. Pois a estrada pela ciência do direito que sempre se pronunciou sobre a
que nos é aberta está minada. Voltarei mais adiante sobre o maioria das contestações [...] O ofício da lei é fixar com gran-
Estado de direito e os direitos do Homem17. Mas devo for- des vistas máximas gerais do direito, estabelecer princípios
mular de imediato algumas advertências. É preferível os Es- fecundos como convém e não descer ao detalhe das questões
que podem nascer sobre cada matéria". Nessas condições,
14. C. Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris, Plon, 1955, 57-8.
poder-se-ia esperar que a maior parte das leis fosse familiar
15. Cf. M. Serres, Lê contrai nattirel, F. Bourin, 1990. a todos, ainda mais porque muitas delas retomavam costumes
16. Cf. o editorial de J. Lautman, no dossiê científico do Courrier du ancestrais. A continuação do século não arranhou muito esse
CNRS recentemente consagrado ao direito (op. cit. supra, n. 3). otimismo. Durante grande parte do século XIX, acreditou-se
1 7 . C f . infra, p p . 173-8; 265-98. . i ainda na permanência de alguns grandes princípios imutáveis,
24 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIREITO 25

aqueles legados pela Escola do direito natural, então bem es- Afinal, o que restará do direito? Muitas regras, claro,
tagnada (a natureza humana se exprime nos direitos univer- aguentam firme. Mas acumulam-se os sinais inquietantes18.
sais: reencontramos hoje essa ideia nos direitos do homem). ' u Ocorre frequentemente que o direito já não passe de
As leis se modificavam pouco; não eram muito numerosas. uma película colada sobre outras normas. Acode uma com-
Era tranquilizador. Mas o ídolo familiar ia mudar de cara no paração ao espírito: a das falsificações de grandes marcas.
século XX: o direito teve sua parte na ascensão da angústia, Se o olhar fica superficial, acredita-se nelas. Mas, com o uso,
que foi uma das características de nossa época, Cortado da fica-se desencantado. O mesmo fenómeno se dá quando,
religião, submetido ao fogo das ciências positivas que insis- como acontece atualmente na França, o direito de filiação se
tiam na determinação do homem por forças que o superavam, pauta pelos fatos biológicos, com muita frequência confun-
ele perdeu seu ancoramento e enveredou por uma longa didos com a "verdade", como se não houvesse algo "cons-
deriva, ainda que hoje brilhe mais forte o farol da ética^ke- truído" - noutras palavras, uma atividade cultural - em todas
fletindo as transformações cada vez mais rápidas da sociedade as nossas percepções. A união dos gametas é um meio, den-
e da economia, instrumento da dominação estatal crescente,jp tre outros, de "construir" uma criança (veremos que, nesse
jireito viu seu conteúdo modificar-se num ritmo desconheci- ponto, as sociedades tradicionais têm muito a nos ensinar).
do de nossas sociedades (que resta do direito de família que O direito aqui tende a já não passar de eco da biologia, o que
aprendi há apenas vinte anos, sem falar do direito europeu, não é sua função. A medicina um dia poderá especificar-me
que então não era ensinado). Hoje, a metade do direito posi- quantos genes me são próprios nos de meu filho; cabe ao di-
tivo tem menos de trinta anosy Todos os anos, o aumento do reito, e eventualmente ao juiz, reconhecer que meu compor-
direito aplicável se traduz por quatro quilos de textos suple- tamento para com ele é tal que sou digno de ser dito seu pai.
mentares - por baixo - na biblioteca do advogado, e é de se O mesmo perigo pode resultar do instrumento infor-
temer que a miniaturização do armazenamento permitida mático. Este facilita como nunca antes a elaboração de per-
pelos bancos de dados informatizados facilite ainda mais fis estatísticos, que fazem das médias os novos limiares do
o embalo da máquina. A título de exemplo pontual, o ano Bem e do Mal. Teremos assim números que definem o bom
de 1978 viu a proliferação de 1250 leis e de 1308 decretos. O e o mau motorista (as companhias de seguros os usam todos
indivíduo é forçado a ignorar quase tudo do direito. É por os dias); o bom e o mau contribuinte (o computador assina-
isso que, nos grandes cotidianos de informação, ao lado das la automaticamente à vigilância do fisco as declarações que
não correspondem, para cada categoria socioprofissional, à
sessões dedicadas aos problemas sexuais, vemos corrente-
média das rendas declaradas); o bom e o mau médico (aque-
mente se abrirem colunas consagradas aos conselhos jurí-
les cujo montante das prescrições ultrapassa em 50% a
dicos. As revistas de consumidores publicam também guias
média das prescrições do conjunto dos médicos do Esta-
desse tipo. É muito natural, a inflação do direito reclama a dos
do estão sujeitos a ser descredenciados pela caixa de se-
juristas. Quanto mais direito se produz, mais se necessita de
pessoas capazes de interpretá-lo (os advogados, os notários,
mas também os assistentes sociais ou os secretários de sindi- is. Sobre o que vai seguir, cf. as luminosas análises de }. Carbonnier,
catos). O aumento quantitativo do direito é acompanhado de fíexible droit, Paris, LGDJ, 1988, 24-63,167-77; do mesmo autor: Essais sur lês
sua fragmentação. Vemos multiplicar-se as regras específicas, bis, Répertoire du Notariat Defrénois, 1979, 271-7. Cf. igualmente B. Opperit,
os estatutos particulares (o direito da Seguridade Social e o L/hypothèse du déclin du droit, Droits, 4,1986, 9-20; D. Lochak, Droit, normali-
té et norrnalisation, in: Lê droit en procès, org. J. Chevalier, Paris, PUF, 1983,51-77.
direito tributário constituem belos exemplos).
26 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS DO DIRErrO

guro-doença). Além de esses mecanismos de avaliação po- O jurista hoje se sente lisonjeado de que o solicitem para
derem legitimar o conformismo, operam uma transferência defender causas que - enfim - o arrancam dos aspectos sór-
do poder de decisão do direito para outras ciências, cuja com- didos de nossas existências. Promessas não cumpridas, vidas
petência não é essa. Uma média é um fato matemático, não partidas por uma falência ou um divórcio, falsas declarações,
uma qualificação jurídica e ainda menos uma sentença. Em pequenos furtos e grandes crimes: esse é o quinhão dos ju-
suma, isso se assemelha ao direito, mas não é. ristas especializados no contencioso. Mas ele hesita um pou-
Ao lado desses efeitos de maquiagem, a falta de efeti- co diante dessa nova demanda de direito. Cumprirá legislar
vidade do direito. Constatou-se que, numa estrada, se ob- ainda mais? Não haverá o risco de agravar o mal? E, se a re-
servam tanto menos as placas de sinalização quanto mais cusa se impõe, Ovídio e Lênin é que têm razão: deverá o
de perto se sucedem. Quando as leis são demasiado nume- jurista sonhar com uma sociedade sem direito? Seria um
rosas ou demasiado obscuras, afastamo-nos delas. Ficaría- singular paradoxo. De fato, em seu princípio, a resposta é
mos surpresos se procurássemos saber em que medida os simples. O jurista deve aprender a pensar o direito de ou-
atos da prática (ou seja, os atos jurídicos efetivamente con- tra maneira se quer ter uma chance de responder às legítimas
cluídos) são conformes ao direito oficial. Decerto muito me- questões que a sociedade lhe apresenta. .Um direito ainda
nos do que se crê, sobretudo no direito dos negócios. Mas mak vinculado à moral, menos imperativo, mais maleável e
não nos apercebemos disso, pois o revelador são as verifica- menos espesso: essas são algumas direções que cumpriria
ções suscitadas pelo contencioso ou por sua ameaça. Ora, a abrir. Aliás, elas parecem iniciar-se. Há muitas maneiras de
maioria dos atos jurídicos vive e morre de modo natural: alcançá-las. As linhas que se seguem não pretendem em ab-
não se relê o contrato de casamento senão quando se anun- soluto ilustrar todas. Limitar-se-ão mesmo a empregar uma
cia a infelicidade... Aliás, não se deveria responder aos que única: verificar, com a ajuda da antropologia, se as experiên-
reclamam do direito que em muitos casos o homem parece cias jurídicas das sociedades tradicionais valem o rodeio.
feliz de passar sem ele? Não só, veremos, nas sociedades Recorrer às sociedades ditas "primitivas" para compreen-
que, por tradição cultural, o valorizam menos que as nossas, der melhor a nossa não é tão estranho. Em 1928, o grande
mas até em nossas casas. Há lugares e tempos em que se antropólogo F. Boas (1858-1942) já o tentou, não sem acerto,
afrouxa a pressão do direito: o domicílio, o porta-malas dos numa obra intitulada A antropologia e a vida moderna™. Os
automóveis (não os abre quem quer); os domingos, os fe- títulos dos capítulos são surpreendentemente atuais: a raça,
riados, as noites, o âmago do inverno (nem todos os atos de o nacionalismo, o eugenismo etc. E certas conclusões, para
execução são autorizados nessa época). Há relações das a época, repletas de audácia: a continência antes do casa-
quais, quando elas seguem um curso normal, escolhemos a mento é pouco desejável, a mulher é tão criativa quanto o
maior parte do tempo excluir o direito. Aquelas que man- homem, a raça não determina a cultura, a mescla das raças
temos com nossa família, salvo em momentos excepcionais nada tem de nocivo, o meio á mais crimínógeno do que a l
(criação de uma empresa, preparação de uma sucessão), ou heredttanedade^o eugenismo pode levar a selecionar tipos
com nossos amigos (hesitamos em fazer a afronta de exigir Tiumanos a partir de critérios limitados a uma cultura ou uma
um escrito ou outra garantia se nos pedem emprestar-lhes
algum dinheiro). Por que se recorreria ao direito para reger
essas relações que outros princípios (essencialmente de afe- 19. Cf. F. Boas, Anthropology and Modem Life, Westport, Connecticut,
Greenwood Press, 1928, reimp. 1984.
to) supostamente regem?
28 NOS CONFINS DO DIREITO AS BRUMAS 29
época; a cultura não é um produto dos fatores económicos. comunidade, não poderia haver amizade [...] tu não me pa-
Vamos parar aqui esta enumeração: ela prova que as socie- reces atento a essas considerações: escapou-te, ao contrário,
dades tradicionais podem ser boas professoras. Os livros de que a igualdade geométrica possui um grande poder, entre os
Boas serão, aliás, queimados pelos nazistas, o que é bom si- deuses bem como entre os homens."20
nal. É nossa vez de formular essas questões, acrescentando- Cálicles não está errado quando afirma que o direito
lhes algumas outras. Como proceder? conduz o homem a distanciar-se da natureza; é isso mesmo
Veremos de início que o encaminhamento que nos con- o que o distingue das outras espécies vivas. Por vezes para
duziu às dificuldades atuais provém de causas históricas que o pior, mas também para o melhor, e é aí que Sócrates está cer-
nos são próprias: o direito tem histórias, que não são em toda to. Pois, embora o direito possa precisar da coerção, não está
parte as mesmas. Depois cotejaremos essas experiências em sua essência consagrar a lei do mais forte, mesmo que
com os problemas que sentimos mais vivamente hoje e que, lhe aconteça fazê-lo. Ele procede muito mais dessa geome-
todos eles, implicam o direito. tria particular que se empenha em conceder a ordem à jus-
Uma velha, velhíssima história para ilustrar essas ques- tiça, sem o conseguir sempre. E, se nos empenhamos, há
tões. É Platão quem a conta, fazendo Cálicles e Sócrates dia- tantos séculos, em descobrir suas regras, é porque ela cor-
logarem. responde em nós a uma necessidade que, provavelmente,
Cálicles caçoa das leis, inventadas segundo ele para os nunca se esgotará, opondo-se continuamente a essa lei do
poltrões e aduladas pelos tolos. A força deve prevalecer so- mais forte, nossa parte maldita.
bre o direito: "A infelicidade é que são, acho eu, os fracos e
o grande número aos quais é dura a instituição das leis [...]
Aqueles a quem seus semelhantes, que são mais fortes ou
capazes de levar vantagem, conseguem espantá-los, a fim
de os impedir de levar essa vantagem, e dizem que é feio e
injusto prevalecer sobre os outros [..,] pois, como são infe-
riores, basta-lhes, penso eu, ter a igualdade. Ora, por si só a
natureza, às avessas, revela, penso eu, que o que é justo é que
aquele que vale mais leve vantagem sobre aquele que vale
menos, e aquele que tem uma capacidade superior, sobre
aquele que é mais desprovido de capacidade. Que assim é,
aliás, o que ela mostra em muitos campos: no resto do reino
animal como na sociedade dos homens e em suas.famílias,
em que se vê que o sinal distintivo do justo é que o superior
mande no inferior e tenha mais do que ele."
Cálicles e Sócrates argumentam durante um bom tempo.
Finalmente, Sócrates lança ao seu interlocutor: "O homem
que é desse jeito [o que não limita seus desejos] não poderia
ser querido por nenhum outro homem, nem por um deus,
incapaz que é de participar de uma comunidade; ora, sem 20. Platão, Górgias, 114-6; 208-11.
Capítulo II
O direito tem histórias
Se conduzirmos o povo por meio das leis e realizarmos a re-
gra uniforme com a ajuda dos castigos, o povo procurará evitar os
castigos, mas não terá o sentimento da vergonha. Se conduzir-
mos o povo por meio da virtude e realizarmos a regra uniforme
com a ajuda dos ritos, o povo adquirirá o senso da vergonha e
além disso se tornará melhor.
CONFÚCIO (551-479 a.C).

As leis romanas foram estabelecidas a partir de razões natu-


rais e dos princípios de equidade... É um raio da divindade que
Deus transmitiu aos homens.
FEKRIERE (1639-1715 d.C).

O aventureiro tem a incerteza como companheira: nem


sempre é sua bem-amada. Na hora em que se obscurece a
imagem do direito, ficamos tentados a interrogar o futuro
solicitando o passado. O direito sempre caminhou ao lado do
homem? Dócil servidor, ou mestre cada vez mais exigente?
Perguntas a um só tempo ingénuas e infinitamente com-
plexas. São contudo legítimas. Se o direito é um fenómeno
sem espessura histórica ou um instrumento de alienação,
pode-se considerar seu desaparecimento sem temor e mes-
mo com prazer, No caso contrário, não acabamos de refle-
tir a seu respeito.
Podemos também prestar atenção a outros lugares na
esperança de algum lampejo: menos no passado do que no
espaço. A maior parte da humanidade não compartilha a vi-
são ocidental do direito e de sua sanção. O recurso aos advo-
gados e aos juizes para solucionar um conflito é tão natural
para um americano quanto parece incongruente a um chi-
nês; o muçulmano junta o direito à religião com tanta resolu-
ção quanto o ocidental tem de afastá-lo dela. Essas experiên-
cias valem que nos detenhamos nelas. Em nossos tempos
em que aumenta a lassidão dos jurisdicionados em relação
aos tribunais, em que redobram as indagações sobre a éti-
ca e a religião, o desvio pode ser frutuoso.
32 NOS CONFINS DO DIREITO
0 DIREITO TEM HISTÓRIAS 33
O direito possui um longo passado; obedece no presen-
te a tradições culturais diferentes. Em suma, ele tem histórias. trumentos depoder. Há que insistir neste ponto: a escrita não
*é um mero substituto da fala. Ela instala o discurso na soli-
dão dando-lhe uma autonomia. De fato, o texto se separa de
muro da escrita seu autor: podemos ver nele sentidos que este não quis, ou
mesmo suspeitou; interpretações diferentes podem ser feitas
Muitas pessoas formulam a equação direito = civiliza- conforme as épocas ou os públicos. Escrito, o texto "fala"
ção e só o associam a certas ocorrências históricas: os direitos tanto no modo como o recebe quem o lê como na intenção
antigos (a Babilónia, a Grécia, sobretudo o direito romano), de seu autor. Daí o papel do comentário, da exegese, funda-
o direito ocidental moderno, os direitos hindu e muçulma- mental em direito... e a importância do controle operado pe-
no, limitando-nos aos principais ._Eles têm em comum o re- los juristas sobre o direito. (Naturalmente, não é só no es-
£urso ao escrito, critério tão claro quanto enganador. Pri- crito que podemos encontrar as características da escrita:
meiro porque a forma escrita do direito não é em absoluto também nos discursos orais gravados.) A tendência dos es-
o penhor de sua difusão. Pois ainda cumpre saber ler e escre- cribas e dos letrados sempre foi, aliás, deixar mais comple-
ver, o que não era o quinhão da maioria no passado, como xos os signos que utilizavam. Daí a dificuldade para o resto
nos países em desenvolvimento atualmente. O direito escri- da população de ter acesso ao saber. A primeira escrita apa-
to apresenta, portanto, o risco de ser apenas o instrumento receu na Suméria por volta de 3300 a.C. Foi preciso esperar
de uma minoria, próxima do poder, ou que o detém. Na Ida- mais de dois mil anos (por volta de 1100 a.C.) para que, com
de Média, qualificam-se de "direitos eruditos" o direito ca- o alfabeto fenício e seus 22 signos fonéticos, ocorresse a sim-
nónico e o direito romano (este se aplicava ainda naquela plificação decisiva da escrita (mas nos Estados Unidos, atual-
época): apenas as elites os conheciam. O resto são costumes, mente, 25% da população é incapaz de usar textos escritos
que a monarquia ordena redigir (em 1454) para melhor con- para as mais cotidianas necessidades).
trolá-los, quando se firmam com mais força suas ambições A escrita modifica portanto o direito. Mas não o cria.
centralizadoras (a França e outras potências europeias fize- Pois mesmo nas civilizações em que não é desconhe-
ram o mesmo em suas colónias da África negra no início do cida, largas frações da população, até mesmo a maioria,
século XX). Ademais, nem sempre é suficiente ler para com- continuam a ignorá-la, sem por isso viver sem o direito. Em
preender. Atualmente, quem redigiria um contrato, uma de- compensação, está claro que a escrita é um dos sintomas de
claração fiscal de alguma importância ou se envolveria num que uma sociedade está mais complexa. Entendamos com
processo sem consultar juristas e auxiliares da justiça? Con- isso a multiplicação de suas divisões, a acentuação das po-
trariamente ao preconceito difundido, as civilizações do es- tehdalidades de conflitos, a especialização do poder político.
crito não são necessariamente as mais jurídicas. A escrita A maior parte das cidades e dos impérios conheceu a escri-
permite uma memorização superior à oralidade (conquanto ta, e os que a ignoraram duraram menos que os outros (im-
atrofie também nossas faculdades: a agenda, acessório indis- périos africanos, império inça da América pré-colombiana).
pensável do homem moderno, é um sinal dessa enfermida- No mesmo sentido, notar-se-á que a escrita aparece depois
"cie). Entretanto, mais numerosos, esses conhecimentos são do início das grandes mutações neolíticas, assentadas num
também menns arpssfvpjp, Seu domínio exige uma tecnici- aumento das capacidades de armazenamento das econo-
dade crescente- j-nrnam-sp cada vez mais do que antes ins.- mias. A acumulação das reservas resultante foi uma das cau-
sas principais do crescimento da hierarquização social. É ten-
34 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 35

tador pensar que a escrita é seu prolongamento, na medida formular a seguinte pergunta: se o exemplo das sociedades
em que também ela permite um armazenamento, mas in- tradicionais mostra que o direito não é ligado à escrita, po-
telectual. der-se-á afirmar que as sociedades humanas do paleolítico
A contrario, existem poucas razões para que nasça a es- já o conheciam? Se a resposta for positiva, então saberemos
crita em sociedades menos divididas, com efetivos mais ré- que a existência do direito, no essencial, se confunde com a
duzidos, e onde as relações têm um caráter comunitário e do homem. Se for negativa, deveremos reconhecer que se
são mais imediatas, como é o caso das sociedades tradicio- trata de uma conquista recente.
nais, ou daquelas que precederam a transição neolítica. Mas Mas diante de nós ergue-se o muro da escrita. Sua altu-
também as nossas sociedades modernas podem ilustrar esse ra é menor no que concerne às sociedades tradicionais. De-
mecanismo: o oral tem tendência a prevalecer sobre o escri- certo largas fatias de seu passado nos escapam para sempre,
to nos grupos que obedecem a características vizinhas (asso- à míngua de arquivos escritos. No entanto, dispomos de tes-
ciações locais, associações profissionais, comunidades in- temunhos de fontes diversas: relatos de viagens, escritos de
terioranas, grupos de jovens etc.). Inversamente, o escrito missionários e comerciantes, relatórios administrativos, tra-
prevalece quando crescem as distâncias sociais e/ou geo- balhos de etnologistas etc. Mas, para o paleolítico, toda a nos-
gráficas. O que prova que as culturas antigas ou longínquas sa reflexão parece encerrada: nem arquivos, nem testemu-
não são necessariamente menos inventivas, menos inteli- nhas podem ser solicitados. Tentemos, não obstante, alargar
gentes porque não recorrem à escrita. Basta confrontar-se pequenas aberturas.
com os sistemas de parentesco dos aborígenes da Austrália A arqueologia em primeiro lugar. Ela torna visível os
para voltar muito depressa à humildade. Entretanto, mais únicos documentos que nos sejam ainda acessíveis. Mas tra-
simplesmente, a escrita tal como a conhecemos (pois exis- ta-se apenas de vestígios materiais (hábitats, ossadas, afres-
tem proto-escritas em certas sociedades tradicionais) não cos, sepulturas, restos alimentares): devemos interpretar tudo,
lhes é necessária.
e nossa inserção em culturas industriais, os valores delas de-
Há pouco tempo, eram qualificadas de "primitivas".
Muitos juristas ainda são reticentes em lhes reconhecer a correntes não constituem certamente os melhores observa-
existência do direito, de tanto que continuam a estreitar os tórios. Também podemos pensar em comparar os homens do
laços entre direito e escrita. A antropologia jurídica felizmen- paleolítico com os caçadores-apanhadores do século XX: afi-
te refuta esses preconceitos. Hoje está amplamente demons- nal 4e contas, não se diz que são "os últimos homens da
trado que as sociedades tradicionais podem, sem ser nem um idade da pedra"? Veremos que o caminho está salpicado de
pouco atrapalhadas pela oralidade, construir sistemas ju- ciladas. Enfim, resta a especulação intelectual, cuja parte cres-
rídicos tão perfeitos quanto os das civilizações da escrita. ce quando os indícios são raros. Recorreremos largamente a
Mas elas não são as únicas a ter praticado a oralidade. Sabe- ela, empenhando-nos, porém, em grudar-nos ao máximo aos
mos hoje que as primeiras espécies humanas apareceram há fragmentos de realidade que chegaram até nós.
pelo menos dois milhões de anos; a transição neolítica co-
meça por volta de 9000 a.C; a escrita aparece no quarto mi-
lénio antes de nossa era; codificações locais nascem na Me- A aurora do direito
sopotâmia em cerca de 2500 a.C., e o primeiro Código é o de
Hammurabi (1728-1686 a.C.). Isso mostra o peso esmagador O segundo milénio está terminando e os juristas nem
da oralidade na aventura humana. Por conseguinte, pode-se sempre conseguem acordar-se sobre uma definição do direi-
36 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 37

to. Nos redemoinhos de ideias que sua busca suscita1, sub- inventar regras que não lhes eram dadas e sancioná-las. Mas
sistem certos elementos, sem que se faça o acordo sobre eles: o homem se distingue para sempre do animal pela amplitu-
regras e práticas de conduta obrigatórias, que correspondem de do que constrói.
a um sistema; cultural e a uma autoridade legítima, assegu- Essa preeminência da cultura foi facilitada por certos
ram a produção e a reprodução de uma sociedade ou de um traços bem conhecidos: posição vertical, utilização da fer-
grupo social e podem ser sancionados por coerções diversas. ramenta, linguagem. Certos animais também as conhecem,
Esses caracteres são por demais gerais para constituir real- mas a genialidade do homem foi desenvolvê-las a um pon-
mente uma definição. Por essa razão, pode-se pôr numa to inigualável.
enorme sacola fenómenos que qualificamos sem dificulda- Deve-se salientar a importância extrema da linguagem
de de jurídicos porque correspondem à nossa ideia do direi- articulada: as séries de sons codificadas que ela emprega
to (obrigação de reparar um prejuízo qualquer, pagamento podem transmitir o pensamento a uma velocidade ao menos
de uma pensão alimentar, ação de investigação de paterni- dez vezes superior a qualquer outro código de sinais. A ela-
dade), e outros que ele nos parece excluir; enquanto muitas boração e o aperfeiçoamento do direito são ligados ao apa-
sociedades os incorporam nele (obrigação de prestar culto recimento e aumento de complexidade da linguagem: para
aos ancestrais, de recorrer à vingança sangrenta etc.). Nes- criar, observar ou contestar as regras, cumpre poder comu-
o/o
sas condições, pode-se ser cético a respeito de qualquer des- nicar a respeito delas e graças a elas. Daí a necessidade de
crição do despertar do direito na consciência dos homens conseguir determinar quando o homem pôde falar uma lin-
que povoaram a imensidade paleolítica. Para dizer a verda- guagem do tipo daquela que utilizamos. Desse momento não
de, jamais saberemos qual ideia do direito própria da cultu- data o direito, mas emerge de modo por certo decisivo sua
ra deles podiam ter, assim como as palavras que usavam importância na regulação social. Para melhor analisá-lo, lem-
para eventualmente explicitá-lo: nada nos chegou direta- bremos algumas etapas.
mente das línguas daquele tempo. Nesse silêncio eterno, so- O primeiro tipo de homem (Homo habilis) aparece há
mos portanto forçados a formular nossas perguntas em nos- 2 milhões de anos, na África, de onde é oriunda nossa es-
sa linguagem e segundo nossos próprios conceitos, a projetar pécie. Um milhão de anos mais tarde, o cérebro humano
ao longe nossas próprias ideias do direito. Uma coisa, pelo dobrou, atingindo 1000 cm3. Nessa data, ele parte então da
menos, é certa. Ó direito pertence ao que os antropólogos África (talvez fugindo da mosca tsé-tsé) para a Ásia, onde se
denominam a cultura: o que o homem constrói a partir do extingue, por não poder adaptar-se à degradação das con-
dado natural, que lhe é imposto/\ssim a espécie humana dições climáticas durante as fases interglaciais. Há 400 mil
Tsubmetida a um modo de reprodução sexuada, com o qual anos, um novo tipo de homem, chamado de Neanderthal,
todas as sociedades tiveram de se virar. Mas as arquiteturas aparece na África, a qual ele deixa por sua vez 20 mil anos
dos sistemas familiares erguidas sobre esse fundamento são mais tarde para ir à Europa da era glacial, Seu cérebro atinge
extremamente diversas, O recurso ao cultural não é próprio 1800 cm3 (o nosso é de 1500 cm3), sinal de um aumento con-
do homem: as sociedades animais, também elas, souberam siderável de seu potencial intelectual. Mas sua laringe se situa
alto demais em sua garganta para que possa falar de modo
muito satisfatório. Sua elocução devia ser lenta, suas frases ru-
1. Para um último balanço, cf. os dois tomos da revista Droits consagra-
dos a esta questão, à qual tentaram responder uns quarenta autores: Definir lê
dimentares: o órgão não estava à altura do cérebro. Ele tam-
droit, Droits, 10,1989; 11,1990. bém desapareceu há 30 mil anos, por não poder ter-se adapta-
38 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 39

do às modificações climáticas do fim da era glacial que pro- Não c nada, se situamos a dois milhões de anos as primei-
vocou a rarefação da caça. O caráter rudimentar de sua lin- ras espécies que podemos anatomicanicnte considerar apa-
guagem decerto foi determinante em sua falta de adaptação: rentadas ao homem. Contudo, nada impede de imaginar que
quando o meio muda, aumenta.a necessidade de comunica- o pensamento metafísico nasceu bem antes: pode-se acre-
ção. Durante esse tempo aparecera, 150 mil anos antes de ditar na sobrevida ou esperá-la mesmo abandonando o cor-
nós, sempre na África, o Homo sapiens sapiens, o homem mo- po de um defunto. Em todo caso, quando se inicia a mutação
derno. Seu cérebro era menor (1500 cm3) que o de Neander- neolítica, o homem já é religioso faz muito tempo. (E igual-
thal, mas a laringe descera em sua garganta. Há 70 mil anos, mente artista: as primeiras imagens do corpo, sobretudo se-
abandona por sua vez a África e vai coexistir durante milha- xuais e femininas, aparecem há 35 mil anos.)
res de anos com o homem de Neanderthal. Mas sobrevive a Simples rememoração de dados conhecidos. Mas, da
ele, pois a relação entre o órgão que produz o pensamento e ferramenta à metafísica, o direito é o grande esquecido no
o que o expressa tem melhor desempenho nele. processo de hominização. Ora, também ele parece ter con-
Estima-se, de fato, que há cerca de 100 mil anos o Homo tribuído para o nascimento do homem, talvez até antes da
sapiens sapiens tinha os meios de falar uma linguagem arti- religião. Os cosmólogos nos dizem que nosso universo, ve-
culada de tipo moderno, o que lhe permitiu adaptar-se às rá- lho de 15 bilhões de anos, tornou-se transparente 300 mil
pidas modificações climáticas do fim da era glacial, há 12 mil anos depois de seu começo, com a separação da matéria e
anos. Decerto recorreu ao que chamamos o direito para in- da radiação. Portanto, podem ter esperança de vê-lo em sua
ventar as novas regras necessárias à sua vida social e eco- infância. Os observadores das sociedades humanas não têm
nómica, de um lado, quando deixou a África e, depois, quan- essa sorte: o muro da escrita se ergue a somente 5 mil anos
do os gelos e a caça recuaram nas terras onde se instalara. de distância. Mas uma coisa é segura: quando, por volta de
Com o direito e a religião, entramos nos campos em que 3000 a.C., começa para nós a História, a família existe e
parece aumentar ainda mais a diferença com os animais. suas formas já atingiram um grau de organização e de com-
Digo "parece" pois, salvo nos mitos, reflexos de sua nostal- plexidade que desde então não superaram. Duas novas ca-
gia, o homem só pode comunicar-se muito imperfeitamente tegorias de documentos nos permitem dizê-lo. De um lado, o
com os animais. Nunca saberemos o que eles podem pen- aparecimento de sepulturas coletivas (as mais antigas da-
sar das regras de conduta próprias de suas sociedades, nem tam do quinto milénio antes de nossa era) onde a disposição
se a dor que alguns sentem com a morte de seus próximos dos mortos e as características físicas de suas ossadas ates-
pode aproximar-se de uma reflexão de natureza metafísica. tam agrupamentos por família. De outro lado, dados forne-
Com o risco de nos enganar, concluamos, pois, que nem o cidos pela linguística. A partir de línguas conhecidas, esta
direito nem a religião existem entre os animais. Muitos pré- permite reconstituir a língua comum de que podem ser oriun-
historiadores concordam em considerar que a inquietude das. Ora, o estudo de línguas indo-européias tais como o hi-
metafísica e a formação das atitudes religiosas dela resul- tita, o grego e o sânscrito permite supor a existência de uma
tante constituem uma etapa essencial no processo de homi- língua original, que data do quinto ou do quarto milénio. Os
nização. A inumação dos mortos em sepulturas (em geral termos de parentesco que ela utiliza confirmam, precisan-
em posição fetal) e o depósito de oferendas ao lado delas do-os singularmente, os ensinamentos das tumbas: graças a
constituem um dos sinais que atestam essas indagações. eles, sabemos muito mais sobre a estrutura interna das famí-
Manifestam-se apenas bem tarde, há somente 80 mil anos. lias às quais pertenciam os homens que os empregavam. Ob-
40 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 41

servamos que o sexo masculino é privilegiado em compara- talvez centenas de milhares de anos antes de nós. Muito lon-
ção ao feminino: uma mulher dispõe de muitos termos para ae da transição neolítica. Certamente foram precisos mui-
designar os membros da família do marido (sogro, sogra, o tos tateamentos, a exploração de muitos impasses antes que
que é óbvio, mas também: irmão do marido, irmã do marido, essas fórmulas e a eficácia delas fossem descobertas. Essa
mulher de um irmão do marido), ao passo que o vocabulário muito lenta e muito precoce organização da família em tor-
do homem referente aos parentes de sua mulher é muito no das relações de parentesco foi o berço do direito. Este criou
mais reduzido. Sinal de que a esposa é agregada à família do o homem, e o homem o criou. Pois, como essas normas de-
marido, e não o inverso. Aliás, quando um homem se casa, terminam a orientação das alianças matrimoniais, a escolha
diz-se que "conduz a mulher à casa". Trata-se, pois, provavel- dos critérios de filiação e a fixação do lugar de residência dos
mente de uma sociedade patriarcal, estruturada em clãs pa- esposos, são muitas regras que possuem os atributos das
trilineares, com casamento virilocal. Outros dados termino- normas jurídicas enunciadas acima. Impondo-se sem neces-
lógicos, mais técnicos, permitem ir ainda mais longe e supor sidade natural de preferência a outras, elas correspondiam a
que os casamentos se efetuavam preferivelmente entre pri- valores culturais (por exemplo, preeminência de um sexo so-
mos cruzados: um homem esposará prioritariamente a filha bre o outro), visavam coerência e perpetuação do grupo e de-
da irmã de seu pai, uma mulher, o filho do irmão de sua mãe. certo eram sancionadas por meios que ignoramos.
Estrutura muito complexa, da qual só dou o arcabouço: en- Eis que chegamos a um primeiro resultado: é no paleo-
contramo-la em grande número de sociedades tradicionais. lítico que se deve procurar a origem de relações de parentes-
Ora, nem tudo isso é evidente: nada, na natureza, se opõe co que constatamos no limiar da História: a invenção dessas
a que se espose de preferência o primo paralelo (filho do ir- relações supõe o emprego de raciocínios e de mecanismos
mão do pai) ao primo cruzado (filho da irmã do pai). Noutras que hoje qualificamos de jurídicos.
palavras, embora a família não seja peculiar ao homem (cer- Outros fatos, de uma antiguidade pelo menos igual,
tos animais vivem em família), foi ele que inventou as re- inclinam a concluir pela precocidade do direito na história
lações de parentesco, de essência jurídica. Estas permitem humana: a invenção da proibição do incesto, a regulariza-
confirmar a base natural, biológica, da família, ou afastar- ção da fecundidade, a domesticação do fogo e a divisão se-
se dela. Pode-se assim quer consagrar um vínculo biológi- xual do trabalho.
co (declarando que uma criança é filha de seus genitores), A maioria dos sistemas jurídicos proíbe as uniões entre
quer instituir um vínculo parental entre dois indivíduos que parentes considerados próximos demais, mesmo que a de-
não possuem nenhum por natureza (em direito francês, uma finição do grau de proximidade varie muito. Explica-se co-
filha não pode casar-se com o pai adotivo). A maleabilidade mumente isso afirmando que, contrária à natureza, a união
e a variedade das escolhas permitidas são consideráveis. Es- incestuosa aumentaria os riscos de aparecimento de defeitos
ses princípios foram descobertos por certas sociedades para genéticos. Muitos antropólogos duvidam disso. Apóiam-se
estruturar os edifícios familiares que escolheram erguer. Aqui nos argumentos de Claude Lévi-Strauss. Se "o horror do in-
só pude dar um apanhado muito breve deles, mas sua tecni- cesto" fosse tão profundamente arraigado na natureza hu-
cidade é tal que o antropólogo recorre aos modelos matemá- mana, por que os diferentes direitos tomariam a precaução
ticos e à informática para descobrir-lhes todos os aspectos. de proibi-lo com tanta constância? Observa-se, aliás, que nas
Isto deixa supor que a formação dessas regras é muito ante- sociedades pouco numerosas (como muitas sociedades tra-
rior à data em que lhes localizamos a existência: dezenas e dicionais, ou as do paleolítico), a proibição das uniões entre
42 NOS CONFINS DO DIREITO
O DIREITO TEM HISTÓRIAS 43

parentes próximos só tem efeitos muito limitados sobre a o déficit em homens ou em mulheres pode ficar tal em dado
transmissão das taras genéticas. Numa população de oitenta momento que o grupo, para se reproduzir, só pode recorrer à
pessoas, essa proibição (que visa até os primos de primeiro poliginia ou à poliandria; empenhar-se na busca dos cônjuges
grau) só diminui de 10% a 15% o número dos portadores faltantes mediante rapto noutros grupos ou na institucionali-
de caracteres raros. Enfim, nota-se que o recurso à explica- zação da troca, a solução mais satisfatória. Quando foi adora-
ção biológica aparece apenas no século XVI d.C.: não pode da? Trocaram-se primeiro homens ou mulheres? Não o sabe-
fundamentar muito os raciocínios que conduziram as pri- mos. Nosso único ponto de referência se situa há 4 milhões
meiras sociedades humanas a proibir o incesto. de anos, quando se separam hominídeos e chimpanzés. A
Logo, cumpre procurar noutras direções, que não são as perda do estro pela mulher humana (enquanto a fêmea chim-
da natureza. A primeira hipótese é de ordem puramente so- panzé está sujeita ao ciclo dos cios) sucede-lhe num momen-
cial. Para Claude Lévi-Strauss, a proibição do incesto é a con- to indeterminado, mas provavelmente muito antigo.
dição de toda vida em sociedade. Renuncia-se a esposar os Data-se o outro índice com mais facilidade: trata-se do
parentes próximos e aceita-se dá-los em casamento a ou- controle da fecundidade. Os pré-historiadores situam entre
tros grupos familiares, dos quais se receberão por sua vez côn- dois e um milhão e meio de anos antes de nossa época a
juges. Sem essas trocas, cada grupo viveria fechado em si data em que os hominídeos encontraram os meios próprios
mesmo, condenado a mais ou menos longo prazo à implo- de se defender eficazmente dos ataques dos animais. Essas
são. Tudo isso nos leva de novo a tempos extremamente datas correspondem ao aparecimento doHomo habilis, pri-
antigos: a arqueologia só nos mostra o homem em socie- meira espécie verdadeiramente humana. É um onívoro, com
dade, mesmo que essa sociedade se reduza a algumas de- l,40m de altura, cuja bipedia é praticamente a nossa. Suas
zenas de indivíduos. A proibição do incesto deve, portanto, ferramentas são numerosas e variadas, suas modalidades de
situar-se muito remotamente em nossa história. Talvez até ocupação do solo (construção de abrigos, especialização do
bem no começo. Pois, sem excluir a explicação de Claude espaço em áreas de retalhamento de árvores, de talhe de pe-
Lévi-Strauss, certos autores põem a ênfase em outros fenó- dras e de habitais) constituem os primeiros traços indiscu-
menos. Por exemplo, o fato de a mulher humana ser a única tíveis da consciência reflexiva, da vida social. Datado de 1,6
de todas as primatas que não tem "cios" e fica sexualmen- milhões de anos, o Homo erectus, nosso ancestral direto, se-
te atraente de modo quase permanente. Se acrescentarmos gue-o relativamente de perto (aliás, os diversos géneros coe-
que, na espécie humana, a maturidade tardia das crianças xistem certo tempo). Tendo-se protegido das feras, esses ho-
faz que coexistam indivíduos de gerações diferentes capa- mens tiveram de enfrentar outras dificuldades, menos brutais
zes de relações sexuais, compreenderemos que os antagonis- mas também preocupantes: o aumento dos eferivos demográ-
mos nascidos da competição pelas mulheres poderiam ter ficos além do nível dos recursos disponíveis, gerado pela vi-
conduzido à desagregação das primeiras sociedades humanas tória sobre os predadores. Cálculos precisos mostram que,
se a regulação nascida da proibição do incesto não tivesse sido sem medida corretiva, isto seria insuportável. Tomemos uma
instituída. Graças a ela, havia desde então dois grupos de mu- população pré-histórica de 35 indivíduos, cuja taxa de natali-
lheres: as que se podiam esposar e aquelas a que se devia re- dade fica igual a 3,5% ao ano. Suponhamos que as medi-
nunciar, por conseguinte suscetíveis de trocas. Outras necessi- das de proteção contra os animais tenham feito a taxa de
dades, de ordem demográfica, tomavam aliás indispensável o mortalidade cair de 3,5% para 3%: daí resulta um crescimen-
recurso à troca. No seio de um pequeno grupo, as flutuações to de 0,5% ao ano. Cinco mil anos mais tarde, os descenden-
aleatórias da divisão dos sexos podem ser muito importantes: tes dos 35 indivíduos atingiriam 1600 bilhões, ou seja, qua-
44 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 45

trocentas vezes a população atual do planeta... Inútil preci- os primeiros Homo erectus. Os locais de corte de árvores, de
sar que, se a ,transição neolítica - de qualquer modo muito retalhamento, de fabricação de ferramentas agora são sepa-
tardia - vê engrossar os fluxos demográficos (sobre o terri- rados do lugar de estar. Não é impossível - nada sabemos
tório atual da França, a população passa de 100 mil indiví- sobre isso - que essa especialização do espaço tenha acom-
duos em 4000 a.C. para l milhão, mil anos mais tarde), os panhado a territorialização dos direitos assimiláveis aos que
ritmos observados não têm medida em comum com esses chamamos de propriedade ou uso: a multiplicação e a di-
cálculos. Como a guerra parece ausente no paleolítico, não visão da localização das atividades conduzem fatalmente à
se lhe pode atribuir o papel de substituto aos ataques das sua regulamentação. Pois elas implicam que certas ativida-
feras. Logo, somos levados a supor que foi instituída uma des em certos lugares são lícitas e outras não; podem acos-
regulação da fecundidade. Por quais meios? O infanticídio tumar com a ideia de que tal grupo mais que outro tem o
certamente, mas também outros, mais sutis: atraso da ida- direito de utilizar tal espaço.
de do casamento, tabus que limitavam os períodos durante Mesmo não sendo a causa primeira disso, a domestica -
os quais eram lícitas as relações sexuais. ção do fogo também acentuou um mecanismo cujos efeitos
Outras tantas portas do reino do direito abertas nos pri- sentimos ainda: a divisão sexual do trabalho. Esta existe em
mórdios da história humana. Pouco importa que se escolha todas as sociedades que conhecemos, ainda que as socieda-
qualificar de usos, costumes ou leis essas diversas práticas. É des ocidentais modernas a tenham enfraquecido, notada-
o direito, na medida em que essas normas trazem os carac- mente por meios jurídicos (os empregos legalmente "reser-
teres que lhe atribuímos e já que jamais saberemos como os vados" aos homens são pouco numerosos, mesmo que na
homens daquele tempo as conceituavam. prática ocorra diferentemente). Ela encontra provavelmente
O derradeiro indício capital faz-nos dar um grande sal- sua origem histórica nas modalidades de procura da alimen-
to no tempo: de 2 milhões de anos, passamos a 500 mil anos tação. Na espécie humana, as necessidades alimentares dife-
antes de nós, data aproximada do domínio do fogo. O ho- rem conforme o sexo. A mulher se encarrega, de modo mui-
mem de Neanderthal ainda está longe, e só no aurigna- to importante no plano energético, do desenvolvimento do
ciano é que aparecem as primeiras manifestações daquilo feto. Deve absorver muitos protídeos e fósforo (ainda mais
que denominamos a arte, levadas ao auge pelos magdale- porque o fósforo foi o elemento indispensável para a triplica-
nianos (foram eles que decoraram as paredes de Lascaux). ção do volume do cérebro no decorrer do processo evolutivo).
Estes se situam muito perto de nós (entre 15 e 13000 anos Portanto o homem caça para ela e traz-lhe carne, bem como
antes de nossa época): quase contemporâneos. A utiliza- o tutano dos ossos. Este tem, em compensação, sobretudo ne-
ção do fogo era para eles uma técnica imemorial. Em seu cessidade de gorduras e de hidratos de carbono para a perse-
tempo, porém, esta produzira ou acelerara mutações so- guição da caça. A mulher lhe proverá procurando tubérculos
ciais e jurídicas de um alcance considerável. Antes de tudo, ricos de amido, ou cultivando uma horta. Essa combinação
a especialização do espaço. Iniciada pelo Homo habilis, ela era mais eficaz do que a hipótese em que cada sexo teria pro-
se acentuou: a possibilidade de reproduzir à vontade luz e ca- vido às próprias necessidades: é difícil imaginar uma mulher
lor, a mobilidade daí recorrente implicam uma divisão sem- grávida perseguindo a caça grande em longas marchas.
pre mais marcada da localização das atividades. Já não se O aperfeiçoamento da caça (há 200 mil anos, o Homo
encontra nas jazidas a mistura íntima de resíduos de carniças, erectus pôde vencer auroques e elefantes) deve ter acen-
de ferramentas e de arranjos domésticos rudimentares aos tuado a divisão do trabalho: atividade perigosa e cada vez
quais estavam acostumados os australopitecos, ou mesmo mais técnica, não permitia que a ela fossem levadas crianças

46 NOS CONFINS DO DIREITO EffO TEM HISTÓRIAS 47

muito pequenas. Estas eram, pois, entregues à guarda da o incesto e o controle da fecundidade: eles advêm entre
mãe, também encarregada da manutenção do fogo (a ima- um e dois milhões de anos antes de nós. A domestícação do
gem da "mulher do lar" é decerto a representação mais anti- fogo é mais tardia (- 500 mil anos), porém muito anterior ao
ga que nos tenha vindo dessas épocas). Essa divisão apro- neolítico.
fundou-se no decorrer do tempo. Em toda sociedade, e de Há 100 mil anos, o aparecimento da linguagem arti-
modo mais especial nas comunidades tradicionais, ela mar- culada de tipo moderno permite à inventividade do homem
ca profundamente o conteúdo do direito. Há tarefas masculi- aperfeiçoar, de modo decerto decisivo, as inovações jurídi-
nas e outras femininas, diversamente situadas na escala dos cas realizadas anteriormente e proceder a outras descober-
valores culturais. Nos sistemas de aliança, são principalmen- ta*; nesse campo. Infelizmente quase nada podemos dizer
te as mulheres que são trocadas. Ademais, se as sociedades sobre elas até que seja transposto o muro da escrita. Mas
devemos constatar que, no total, dispomos de um feixe de
modernas se caracterizam por uma filiação indiferenciada
datações muito altas referente às inovações decisivas na his-
(é-se parente, de maneira igual, de seus descendentes e as-
tória da humanidade. Observemos em seguida que todos
cendentes masculinos e femininos), as sociedades tradicio-
esses indícios atestam, nas mesmas altitudes, a existência
nais e as do passado são muito mais unilineares (em geral daquilo a que chamamos o direito: Ovídio estava errado, a
patrilineares, com menos frequência matrilineares). Enfim, humanidade conheceu muito cedo o direito e o utilizou para
os efeitos dessa divisão estendem-se à propriedade mobi- se perpetuar. Sua existência não pode ser provada da mesma
liária. Certos objetos (jóias, enfeites) são mais femininos, ou- maneira que a das pontas de flecha. Contudo, sua invenção
tros (armas de caça), masculinos. (Há pouco tempo ainda, o não deixou de determinar o fato de que, tanto tempo depois,
automóvel do marido era mais importante e prestigioso que estejamos aqui para falar dela.
o da mulher.) Fica-se ainda mais irritado de não saber mais sobre o
Todos esses exemplos atestam a complexidade das re- assunto. Já que os arqueólogos nada mais nos podem dizer,
lações que o homem das origens mantém com a natureza. por que não nos dirigir aos etnologistas? Em astronomia,
Apré-história do direito no-lo mostra, de fato, ora confirman- olhar longe é olhar dentro do passado: as sociedades tradi-
do-a, ora se distanciando dela. Mas anuncia-se outra época: cionais do presente ou do passado recente não serão a luz
estamos às vésperas das grandes revoluções do neolítico. que nos vem do paleolítico, e a etnologia não será um mara-
Depois desse longo caminho, que a indigência das fon- vilhoso telescópio? A ideia é tentadora. Os caçadores-apa-
tes nos obrigou a percorrer tão depressa, façamos a conta nhadores modernos e os da pré -história parecem apresentar
de nossos achados2. Em primeiro lugar, os ensinamentos muitos traços em comum: mesmos modos de subsistência,
das sepulturas coletivas e da linguística: as estruturas com- efetivos demográficos modestos, preeminência da família,
plexas que revelam se formaram no paleolítico. A proibição ausência de escrita etc. Os aborígenes da Austrália seriam
em suma mousterianos, os bushmen, aurignacianos e os es-
quimós, magdalenianos: as folhas de arquivos vivos. E é exato
2. Encontraremos um excelente panorama dessas questões em C. Mas- que, tudo considerado, um esquimó do início do século XX
set, Préhistoire de Ia famille, m: Lafamille, A. Burguière etalii, orgs., I, Paris, A. tem mais pontos em comum com um magdaleniano do que
Colin, 1986, 79-97; e J. Reichholf, L'émergence de 1'homme, Paris, Flammarion, corn um parisiense ou um nova-iorquino de 1991.
1991. Leremos com muito mais prudência, tão grande é a parte da hipótese, J.
Dauvillier, Problèmes juridiques de 1'époque paléolithique, in: Mélanges H.
Nem toda correlação é proibida. O raciocínio por analo-
Léoy-Brííhl, Paris, Sirey, 1959, 351-9. gia pode fundamentar uma intuição ou hipóteses. Vimos que,
f
O DIREITO TEM HISTÓRIAS 49
48 NOS CONFINS DO DIREITO
cuja demanda condiciona-lhes a produção. Essa subordina-
como muitas sociedades tradicionais, o homem pré-históri- ção tende a ficar cultural: os caçadores-apanhadores adotam
co pôde conhecer o casamento de preferência entre primos progressivamente elementos linguísticos, sistemas de paren-
cruzados. Mas não o sabemos. Noutras palavras, não se deve tesco e classificações sociais próprias de seus vizinhos. Quan-
confundir a hipótese com a prova. A constatação de tal insti- do trocas tão intensas ocorrem, a persistência de um modo
tuição entre caçadores-apanhadores modernos não permite, de vida baseado na caça e na colheita se aparenta não a uma
por si só, estendê-la a determinada sociedade pré-histórica. perpetuação dos tempos paleolíticos, mas à emergência de
Pois há diferenças capitais3, Podemos resumi-las facilmente.
uma economia pós-neolítica mista, em que grupos étnicos
No paleolítico, todas as sociedades humanas são cons-
diversos exploram de maneira diferente e complementar uma
tituídas de caçadores-apanhadores. Desde o neolítico até os
área territorial onde coexistem. Essa mistura tecnológica só
nossos dias, os caçadores-apanhadores avizinham-se das
pode prolongar-se no campo cultural e torna aleatórias as
sociedades de pastores e de agricultores: seu modo de vida
comparações que podemos ficar tentados a fazer com a Pré-
não é o único; mantém-se em contraposição ou colaboração
História. Seriam evidentemente menos ilegítimas no caso da
com outros. Ora, manutenção não significa reprodução idên-
descoberta de caçadores-apanhadores isolados pelas condi-
tica durante cerca de dez milénios. Para preservar seu modo
ções geográficas ou por sua recusa do contato. Descobrimos
de vida, os caçadores-apanhadores, no decorrer da história,
ainda uns assim de quando em quando, como foi o caso dos
foram forçados a modificá-lo consoante sua inserção num
mundo tornado largamente agrícola e pastoral e, mais tarde, tasadays, em 1971, um grupo de cerca de 25 indivíduos que
industrial e urbanizado. Essa manutenção pôde necessitar de viviam na selva da ilha de Mindanao (Filipinas), em condi-
guerras com as sociedades vizinhas. Ora, se entendemos por ções decerto bem próximas às do Homo erectus.
guerra uma organização coletiva e a utilização de armas mi- São exceções. Na maioria dos casos, a luz que nos en-
litares, o erguimento de fortificações com o objetivo de ven- viam do passado os caçadores-apanhadores modernos é
cer um gaipo inimigo ou resistir a ele, esta parece desconhe- muito enfraquecida pela aculturação por que passaram bem
cida ao paleolítico. (Os primeiros indícios certos de conflitos antes da colonização. A transição neolítica foi para essas so-
armados são encontrados na necrópole de Jebel Sahaba, no ciedades um momento capital. Chegou o tempo de dizer em
alto vale do Nilo, que data de 10000 a.C.) Portanto, ela deve que ela afetou tão profundamente as estruturas jurídicas pa-
ter exigido importantes transformações das estruturas sociais 'r cientemente elaboradas no decorrer do paleolítico.
e jurídicas. Com mais frequência, teceram-se relações de tro- i
ca entre caçadores-apanhadores e críadores-agricultores, As-
sim, diferentemente dos homens pré-históricos, muitos ca- Á dinâmica neolítica
çadores-apanhadores modernos não têm a indústria da pedra,
pois o ferro lhes é fornecido por sociedades metalúrgicas vi- Gordon Childe inventou em 1936 a expressão "Revolu-
zinhas. Mas os empréstimos não se limitam apenas à tecno- ção neolítica". É enganadora. Evoca a ideia de um corte bru-
logia. Em muitos casos, os caçadores-apanhadores entraram tal e nos faz pensar numa outra revolução, industrial, que se
numa forma de dependência económica de seus vizinhos, efetuou em algumas décadas. A transição neolítica por cer-
to é revolucionária em seus resultados, mas se espraia em
vários milhares de anos, e sua cronologia não é, aliás, a mes-
3. Cf. J. Testart, Lês chasseurs-cueilleurs entre Ia préhistoire et ma conforme as áreas consideradas. Dois mil anos depois do
l'etnoiogie, m: Dossicrs Histoire et Archéologie, 115,1987, 8-17.
f.

50 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 51

grande refluxo das geleiras e da reviravolta do clima, os na- economia pode realizar-se quando existe um ciclo sazonal
tufianos da Palestina e da Síria são os primeiros povos que acentuado, que permite uma distância entre o momento da
vemos reunir-se em aldeias sedentárias. Tratava-se de caça- produção e o do consumo. Tais sistemas sazonais caracteri-
dores-pescadores-apanhadores e não de agricultores. Dois zam evidentemente certas sociedades agrícolas, em geral as
mil anos mais tarde, aparecem a agricultura (trigo e cevada) que se dedicam à cultura dos cereais. Socialmente divididas
e a criação de animais. Ainda dois mil anos e inicia-se a in- e dotadas de estruturas estatais centralizadas, as mais anti-
dústria com a cozedura das cerâmicas. Na América, dá-se a gas civilizações são desse tipo (Egito, Mesopotâmia, Estados
mesma sequência um pouco mais tarde e o solo começa a da América Central e dos Andes, civilizações do vale do In-
produzir milho e tomate. Na China do sul é o arroz, na Áfri- do e do rio Amarelo). Em compensação, não se encontra
ca, o sorgo. No território da França atual, a transição neo- esse tipo de divisões (até a colonização) nas sociedades mais
lítica se efetua de 6300 a 3700 a.C. (ou seja, uma duração igualitárias, cuja agricultura, muito mais sazonal, se baseia
igual à que nos separa das origens da Roma antiga...). na produção de tubérculos (zonas equatoriais, região flores-
Essas importantes modificações dos modos de produ- tal da África central, floresta amazônica, Nova Guiné e Me-
ção vão de par com as da cultura intelectual: já não se pensa lanésia). A influência dos ciclos sazonais marca do mesmo
da mesma maneira que os antigos caçadores-apanhadores. modo as sociedades de caçadores-pescadores-apanhadores
A título de exemplo, o animal, onipresente nas figurações armazenadores. Estes só aparecem no final do paleolítico.
antigas, some em proveito dos seres humanos, sobretudo das Logo, não são representativos da maioria das sociedades des-
mulheres. Não se trata de negar a importância das mudan- sa idade. Em compensação, representam uma boa metade
ças advindas, cujos produtos somos nós. Trata-se, antes, de dos caçadores-apanhadores observados pelos etnologistas.
deixá-las mais relativas. Os homens do neolítico não desco- São sedentários, pois a existência de reservas alimentares
briram o culto dos mortos, nem a religião, nem a arte, nem constituídas pelos estoques suprime a possibilidade e a ne-
a linguagem, nem as relações de parentesco, nem o direito. cessidade da mobilidade. Sua densidade demográfica au-
Mas desenharam novas configurações na maior parte des- menta, o espaçamento entre nascimentos decresce com a
sas áreas. Aumentaram a distância criada pelo homem entre mobilidade e a população cresce com o aumento dos recur-
a natureza e ele. sos disponíveis durante os períodos de penúria. Ora, esses
Costuma-se resumir a transição neolítica à passagem da armazenadores (em geral pescadores) apresentam caracteres
caça e da colheita para a agricultura via criação de animais. vizinhos daqueles dos agricultores cerealistas: desigualdade
Isso é ver apenas um aspecto do problema. Na realidade, a social entre ricos e pobres, presença da escravidão. Nessas
verdadeira mudança consiste no crescimento das capacida- condições, por que as primeiras grandes cidades, os impérios
des de armazenamento, resultado de uma atividade agrí- não foram fundados por caçadores-pescadores-apanhado-
cola, mas que também certas sociedades de caçadores-pes- res armazenadores? Provavelmente porque a agricultura era
cadores-apanhadores, sedentários e hierarquizados, conhe- prenhe de outras possibilidades, permitia um crescimento da
ceram. Estes estão, assim como os primeiros agricultores, na produção de uma amplitude totalmente diferente. Os agri-
origem da transição neolítica: as desigualdades sociais apa- cultores levaram mais longe a montagem da máquina com-
recem entre eles antes da invenção da agricultura, pois a pos- plexa, baseada na especialização do poder político e na divi-
sibilidade de armazenamento favorece a constituição de ex- são social, que nos rege hoje mais do que nunca. Acontece
cedentes e seu controle por certos grupos sociais. Esse tipo de que a transição neolítica é, no campo económico, o fruto de
52 NOS CONFINS DO DIREITO Ó DIREITO TEM HISTÓRIAS 53

mutações (diversificação aumentada dos recursos explora- mortos já existia no paleolítico: deitavam-nos em tumbas às
dos, intensificação da exploração dos recursos aquáticos e ve- vezes rodeadas de pedras e providas de alimentos e de ar-
getais, invenção do arco e da flecha etc.) que apareceram de mas. Mas fica mais complexo no neolítico, sinal de uma aten-
início entre os últimos caçadores-apanhadores-pescadores do ção crescente com a sorte dos defuntos. Na Síria-Palestina, do
paleolítico, antes de produzir todos os seus efeitos nas socie- fim do oitavo ao sétimo milénio, o crânio dos defuntos é con-
dades agrícolas no neolítico4. servado bem perto do habitat dos vivos. Multiplicam-se as
Tiveram uma incidência não menos importante nas cren- duplas inumações. A primeira sepultura é o lugar de decom-
ças5. A articulação da vida social segundo uma periodização posição do cadáver; quando este está reduzido ao estado de
económica sazonal produz de fato representações mentais e esqueleto, transportam-no para outro lugar: o morto se tor-
práticas sociais novas. Os agricultores tiveram de conceituar nou um ancestral6, com o qual é possível ter relações.
uma realidade a priori desnorteante: a passagem de um tra- Quanto ao essencial, nosso direito ignora os mortos, a
balho com efeito instantâneo (caça-pesca-apanha) para um não ser nas manifestações de vontade que fizeram em vida7.
trabalho com efeito retardado de vários meses (agricultura). Para muitas sociedades antigas e tradicionais, o relaciona-
Certos mitos foram inventados para atender a essa necessi- mento com os mortos faz parte do direito vivo. Os ancestrais
dade. Por exemplo, o da Terra-Mãe, estuprada ou lesada em ossificam as linhagens e balizam as redes de parentesco;
seus afetos ou em seu orgulho, que se irrita com os homens, caucionam a ordem social e colaboram para a sua reprodu-
antes de se acalmar e permitir à vegetação reaparecer. A aten- ção, quando necessário intervindo no mundo dos vivos (o
ção dada às estações também inclina o homem, através da morto que não é vingado volta para assombrar os seus até
contemplação do céu (o tema da união entre o Céu e a Terra que seja feita a justiça). Ora, a elaboração de tais mecanis-
domina o pensamento dos agricultores), a desenvolver mais mos pressupõe não só que se creia na sobrevida (provavel-
do que antes sua reflexão sobre o significado do universo, mente é fato consumado no paleolítico), mas também que
que o mito reveste de uma forma teogônica. Os primeiros essa sobrevida seja ativa e pessoal e que se elabore uma co-
grandes impérios despóticos vêem constituir-se vastas su- dificação das relações dos defuntos com os vivos. As diversas
mas teológicas. Na mesma ordem de ideias, as especulações formas de culto dos ancestrais fazem parte disso: ora, o aper-
sobre a sobrevida intensificam-se em comparação com o pa- feiçoamento delas é inseparável das novas especulações so-
leolítico. Projetada para o nível metafísico, a ideia de ciclo bre o universo surgidas nas sociedades sedentarizadas.
sazonal se toma para o homem o penhor de sua ressurreição: Ritos e práticas também se ancoram nos ciclos sazonais.
como a terra, ele deve morrer para renascer. Todas as esca- Assim como a multiplicação das oferendas. Os homens do
tologias da Idade do Bronze (3000 a. C.) comportam a crença paleolítico sacrificavam às potências superiores e pensavam
numa reduplicação da vida terrestre no além. O culto dos que o mundo terrestre e o universo sobrenatural eram uni-
dos por laços de dependência, até mesmo de reciprocidade.
Mas essa dialética acentua-se no neolítico. A distância entre
4. Sobre todos esses problemas será proveitoso ler A. Testart, Pourquoi o trabalho da terra e o aparecimento de seus frutos sempre é
lês sociétés de chasseurs-cueilleurs sont-elles sans classe, Anthropologie et So- gerador de inquietude. Para agradecer aos deuses por terem
ciétés, 3-1,1979,181-9. Para uma tipologia dos caçadores-apanhadores, ibid.,
5-2,1981,177-221.
5. Cf. o belíssimo artigo de P. Levesque, Contribution à une théorie his-
6. Cf. N. Rouland, Lês morts et lê droit, in: Mélanges G. Duby.
torique de Ia production de Ia pensée religieuse dans lês sociétés du paléoli-
thique et du néolithique, Dialogues d'histoire ancienne, 1981,53-92. 7. Cf. supra, n. 6, e infra, pp. 394 ss.
54 NOS CONFINS DO DIREITO
0 DIREITO TEM HISTÓRIAS 55

permitido à vida renascer e assegurar-se de futuras germina- ro que o pensamento preenche nada mais é senão o lugar
ções, o homem multiplica as oferendas. Premissas: uma par- onde o homem, interpretando o visível, tenta dar um senti-
te das colheitas é extraída do consumo usual; sacrifício: ma- do à vida. Apesar da obscuridade desse passado infinito na
tam-se animais recém-nascidos. Firmam-se então mecanis- escala de nossas existências, enxergamos fracos sinais - in-
mos fundamentais do pensamento jurídico, que utilizamos diquei-os - que mostram que praticamente desde os primór-
ainda hoje. Como a noção de obrigação contratual. Para nos- p dios o homem recorre ao direito. Mas, no neolítico, produz-se
so direito positivo, a obrigação é um vínculo de direito que uma espécie de big-bang: o processo de aumento de comple-
nos obriga a uma prestação a outrem. A vida em sociedade é \e se acelera num ritmo até então desconhecido8. O di-
tecida disso: devemos reparar o dano causado intencional- I reito participa dessa expansão.
mente ou não a outrem e temos de respeitar as promessas
feitas nos termos de um contrato. Certos antropólogos, como U
M. Malinowski, querem mesmo ver na noção de reciproci- A intensificação do direito
dade a própria essência do fenómeno jurídico: a força que
liga grupos e indivíduos e permite a vida social resulta de re- Sedentarização, aumento da produtividade e dos es-
lações recíprocas de obrigações. O direito é mais fundamen- toques de recursos disponíveis, crescimento da população:
tado na reciprocidade do que na punição. Ora, a.oferenda • o que percebemos como progressos poderia ter sido para as
que o sacrifício realiza provém de um pensamento do tipo do sociedades humanas os sinais precursores de sua extinção.
ut dês, ou quia dedisti. Ela se insere num sistema de trocas Pois a amplitude dos problemas novos apresentados por
formado pela sucessão de doações e contradoações. Quando essas transformações forçou o homem a cada vez maior in-
os homens pensam o céu, põem-lhe muito da terra: logo, ventividade sociológica. Poderia não ter mostrado inven-
pode-se supor que também inserem essa lógica de recipro- tividade suficiente para sobreviver à inflação neolítica. Te-
cidade entre os mortais. mos demasiados exemplos de sociedades tradicionais que,
Transição para modos de produção com efeito posterga- confrontadas com a modernidade pelo contato com as so-
do no mundo concreto; elaboração no imaginário de um vas- ciedades ocidentais complexas, não puderam adaptar-se e
to sistema de representações em que deuses e defuntos se desabaram. Os ameríndios, mais que os africanos ou os asiá-
desvelam aos mortais e interagem com eles: tais inovações ticos, sofreram essa maldição. O etnocídio delas pode ser
são de um alcance decisivo. Costumamos imaginar os ho- brutal, como para os índios da América do Norte no século
mens da Pré-História como brutos errantes, unicamente sub- XIX e para os da Amazónia de nossos dias, ou mais ameno,
O
metidos a seus instintos. O que realizaram equivale, porém, como para os esquimós atualmente: de todo modo, a morte
largamente aos progressos da Revolução Industrial. Longe de se encontra no termo do processo. Uma diferença essencial
manifestar uma cega submissão às coerções do meio, não vem do espraiamento cronológico das transições. O mais das
cessaram de operar um distanciamento com relação à natureza,
que vivifica os milénios neolíticos. Ora, como vimos, o direi- 8. As sociedades dos caçadores-apanhadores do paleolítico provavel-
to é obra de cultura: leva em conta dados da natureza, mas mente também conheceram processos de aumento de complexidade, princi-
qualificando-os e ordenando-os, recorrendo às ficções para palmente por volta de 40 000 anos antes de nossa era (cf. Prehistoric Hunters-
preencher-lhes as lacunas ou quando necessário contradi- Gatherers, The Emergence of Cultural Compkxity, T. D. Price e J. A. Brown, orgs.,
zê-los, Ele cava entre eles e ele uma distância. E esse espa- Nova \ork-Londres, Academic Press, 1985). Mas não chegaram a efeitos tão
decisivos e irreversíveis quanto os produzidos pela transição neolítica,
6" ) NOS CONFINS DO DIREITO
O DIREITO TEM HISTÓRIAS 57
vezes, as sociedades tradicionais só têm algumas décadas
lera! e indiferenciado (têm-se certas relações com os paren-
para se adaptar. Os homens do neolítico dispuseram de vá- tes pelo lado masculino e outras com os parentes pelo lado
rios milhares de anos. Seus ancestrais, como sabemos, já ha- feminino; ou, como em nossas sociedades, as mesmas com
viam recorrido ao direito. Mas a herança já não era suficiente os dois) reproduziam de bem perto os dados naturais: somos
para administrar os problemas novos9.
todos oriundos de um homem e de uma mulher. Ora, os mo-
Ac lado da família e das relações de parentesco, a no- dos unilineares tendem a suplantá-los, trate-se da patrili-
ção de territorialidade tinha um peso mais importante. Os nearidade (um indivíduo só é parente de seus ascendentes
homens do paleolítico também tinham uma relação com o ou descendentes pelos homens) ou da matrilinearidade (pa-
espaço, mas o nomadismo deles a deixava diferente. Corn a rentesco pelas mulheres). Afastam-se assim da natureza para
sedentarização, o vínculo entre o homem e a terra se inten- fazer frente às consequências sociais do crescimento demo-
sifica: tal família se identifica a tal lugar e desenvolve a seu gráfico. Com efeito, pondo fora do parentesco a metade dos
respeito direitos que pode opor aos outros grupos. Daí nas- indivíduos aos quais cada qual é ligado pelo sangue, previ -
cerá toda a hierarquia dos direitos que conhecemos: proprie- ne-se o efeito dissolvente que poderia ter sobre a identidade
dade, uso, sucessão, legado, definidos inicialmente de modo do grupo sua expansão demográfica muito forte. Ora, a vita-
sobretudo comunitário. lidade do clã é essencial numa economia agrícola sedentária:
Embora a arqueologia não tenha descoberto muitos tra- ficando comunitária a sociedade, é o clã que, através de seus
ços de atividades guerreiras anteriores ao neolítico, não se representantes, fixa e controla a determinação e o uso dos di-
pode excluir a hipótese de que estas possam ter existido. Pois reitos imobiliários.
a territorialização de direitos não implica necessariamente Indagou-se também se a mudança de modo de produ-
a sedentarização do modo de vida: caçadores podem ter de ção não influenciara o estatuto das mulheres. No século XIX,
defender os direitos do grupo em seus percursos de caça costumava-se associar a primeira idade da agricultura ao
contra eventuais invasões de origem externa. No entanto, matriarcado, ideia posta de novo na moda um século mais
a sedentarização deve ter aumentado extraordinariamente a tarde pelos movimentos feministas. Inclina-se hoje a certo
frequência desse tipo de atividade. ceticismo, pois os contra-exemplos são numerosos. Conhe-
Mais tarde, os juristas virão a fazer do território um dos cem-se sociedades de caçadores-apanhadores (por exemplo,
atributos do Estado. A ênfase posta nessa noção fará, aliás, os kung sans) em que as mulheres tinham um estatuto mais
a infelicidade de muitas das sociedades tradicionais nóma- elevado e o perderam quando essas sociedades se converte-
des submetidas à colonização: reputado bem sem dono por- ram à agricultura. De fato, bem naturalmente, o estatuto da

que explorado diferentemente dos sedentários, o solo e suas mulher parece ligado a seu grau de participação direta no
riquezas são açambarcados pelo colonizador. processo de produção das riquezas. Nas sociedades hortíco-
A família, por sua vez, evidentemente não desaparece. las, em que elas assumem uma larga parte do trabalho, sua
Mas elaboram-se novas formas. Os modos de filiação bila- posição é forte. Enfraquece-se com a intensificação da agri-
cultura, sobretudo quando esta utiliza a charrua (geralmente
dirigida pelos homens). E poder-se-ia dizer o mesmo, claro,
9. Cf. P. E. L, Smith, L'archéologie d'une transformation sociale: lê pas- da evolução do estatuto jurídico da mulher nas sociedades
sage de Ia chasse-cueillette à 1'agriculture, Anthropologie et Sociétés, 8-1,1984, ocidentais no decorrer do século XX.
45-61, E. Adamson e Hoebel, The Law of Primitive Man, Harvard University Mas, mesmo transformada, a família já não é a única or-
Press, 1967, 288-333.
ganizadora das relações sociais que, essa é uma lei observa-
O DIREITO TEM HISTÓRIAS
58 NOS CONFINS DO DIREITO
tais como os duelos de heróis (ainda frequentes em Homero),
da em toda parte, se ramificam à medida que vão crescendo económicos em vidas humanas; os sacrifícios de animais, as
população e sedentarismo. Desenha-se uma especialização competições de cantos, que as poupam completamente; a
entre grupos de natureza diferente (alguns são familiares, regulamentação em toda parte atestada da vingança10, que
outros não: sociedades secretas, fraternidades, grupos de limitava as perdas. Nada disso teria sido possível sem o re-
ajuda mútua económica, classes de idade, castas etc.). Nes- curso a mecanismos de essência jurídica.
se sentido, notar-se-á que os ritos de iniciação dos jovens, Há que citar enfim um derradeiro impulso, que nos con-
atestados já no paleolítico superior, parecem multiplicar-se duz ao âmago de nossas indagações atuais sobre o direito:
no neolítico. Seu significado é sempre o mesmo, através dos a especialização do poder político. Ela acompanha o aumen-
diversos rituais. Matam-se simbolicamente jovens tirados to de complexidade e a hierarquização social. Toda sociedade,
de sua família; estes são de fato escondidos na mata ou na simples ou complexa, conhece o poder político. Se é simples,
floresta onde passam por certo número de provas; depois esse poder é exercido pelos grupos familiares e no âmbito das
renascem, transformados, como membros da sociedade. Per- relações de parentesco, como atesta certo número de socie-
tencem ainda à família, mas não mais somente a ela (en- dades tradicionais (nem todas possuem essa configuração).
contramos alguns desses traços na prática atual do trote dos A multiplicação de grupos fundamentados noutros critérios
calouros). Sempre no sentido de aumento da complexidade, diferentes do parentesco quase só oferece escolha entre duas
a divisão do trabalho se enriquece de critérios suplementa- possibilidades: a fragmentação da sociedade por dispersão
res ao sexo e à idade: o nascimento, o estatuto social pesam ou implosão; o mais das vezes, seu fortalecimento ao redor
cada vez mais. Certas tarefas são consideradas indignas em de um organismo investido, em graus variáveis, do poder po-
relação à posição social do grupo ao qual se pertence. lítico. Por diversos processos, os grupos pouco a pouco são
A divisão social também aumenta a potencialidade dos substituídos por tribos e unidades territoriais comandadas
conflitos. Sabe-se que a guerra só aparece tardiamente. Nos- por um chefe: aparece um novo tipo de direito, que deno-
sos ancestrais não eram melhores que nós. Mas os conflitos minamos público e regulamenta as atividades políticas e ad-
tiveram tendência a generalizar-se no neolítico por causa da ministrativas, ao passo que família e parentesco vêem suas
redução do espaço disponível ligada ao sedentarismo e ao funções limitadas aos assuntos domésticos, sem no entanto
aumento da pressão demográfica. A guerra opõe grupos ni- desaparecer. Assistimos desde então a um fenómeno capi-
tidamente diferenciados (etnias, Estado, nações etc.). Mas tal: o nascimento do Estado, condicionado pela criação de
os conflitos também podem ser internos a uma sociedade e um aparelho especializado de governo.
aniquilá-la se ela não encontra os meios de preveni-los e de E a aurora das cidades e dos impérios, que saem da Pré-
regulá-los (muitas sociedades desapareceram misteriosa- História e se dotam da escrita. Nesses vastos conjuntos hu-
mente). Entre os caçadores-apanhadores nómades, os confli- manos, prenunciadores, a longo prazo, das megalópoles e dos
tos não são muito destaiidores, pois em geral são soluciona- Estados contemporâneos, diminuem as relações de face a
face, aumentam as distâncias entre os homens que habitam
dos pela fissão e pelo evitamento: um dos grupos antagonis-
um mesmo território e são sujeitos a uma mesma autoridade.
tas vai embora ou dá fim às suas relações com o outro, o que
Cumpre-lhes inventai" uma nova forma de comunicação, me-
evita os enfrentamentos diretos. Tais recursos não são mui-
to possíveis a agricultores sedentários. Precisaram inovar
para sobreviver. Foi decerto no laboratório neolítico que io. Cf. La vengeance, org. R. Verdíer, 4 vols., Paris, Cujas, 1981-84.
foram aperfeiçoadas fórmulas de ritualização dos combates
60 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 61

morizar acontecimentos de que já não são testemunhas di- quais a escrita, as cidades e os Estados ainda não existiam,
retas; os dirigentes devem fazer-se obedecer a distância: o devem ter sido o resultado de experiências realizadas em
escrito atenderá a todas essas necessidades. Quanto às regras tempos e lugares diferentes, tentativas de interpretação do
de direito, elas se tornaram tão numerosas e imperativas que inundo dentre as quais muitas abortaram e algumas tiveram
nasce a necessidade de fixá-las: começam-se a compor com- sucesso e se perpetuaram. Da maioria delas nunca sabere-
pilações e codificações. As primeiras Cidades-Estados vêem mos nada, assim como não conheceremos os numerosos
aparecer também um recém-chegado: o indivíduo, até então Einstein do maquinário social e jurídico que nos geraram,
dissimulado na sombra dos grupos. Pois a urbanização afrou- Provavelmente não temos o privilégio da diversidade das ex-
xa os laços familiares. Para impor-se, o Estado tende a redu- periências do direito. Cumpre lembrar-se disso no momento
zir a autoridade e as competêndas dos grupos que lhe são em que me apronto para abrir o mapa do mundo que melhor
anteriores. À sua maneira, Lênin o dizia quando proclama- conhecemos, aquele cercado pelo muro da escrita.
va após a vitória dos bolcheviques: "O direito privado deixou Três continentes jurídicos emergem do oceano das cos-
de existir. Já não há, entre nós, senão direito público." (Porta- mogonias e das práticas sociais: as tradições ocidental, orien-
lis o constatava já a propósito dos tempos revolucionários.) tal e africana. Eu as delinearei apenas em grandes traços.
No final do século XX, os fatos venceram seu entusiasmo. Suas cores bastam para encantar o espírito. Pois a ideia que
Mas muitas sociedades não ocidentais muito tempo antes o homem se faz do direito depende do sentido que dá ao
desvincularam o direito e o Estado. mundo. Os filhos de Abraão e os africanos acreditam num
Embora a escrita não seja portadora apenas de benefí- mundo criado; os orientais, num universo cíclico e eterno11.
cios, pelo menos projeta uma luz nova sobre essa penínsu-
la da aventura humana a que chamamos a História. Os ar-
quivos realmente exploráveis de que dispomos não cobrem Os filhos de Abraão e o direito
muito mais que 3000 anos: cerca de 0,15% da duração atual
da aventura humana. É muito pouco. No entanto, em al- As religiões do Livro - hebreus, cristãos, muçulma-
guns instantes, assistimos a um florescimento de conjun- nos - são monoteístas. Para seus fiéis, o Criador é único e
tos jurídicos, lemos em torno do tema de direito partituras não há outra história senão a de sua criação e de suas rela-
escritas em um número de vozes com que nunca teriam so- ções com essa criação à qual ele se revelou por etapas e que
nhado os mais experientes contrapontistas, e os sons que aos poucos traz de volta ao seu seio. A História é orientada,
nascem delas vão do réquiem à marcha nupcial, passando evolutiva, transcendida pela vinda do Messias, erguida em
pelo acalanto. Conservamos vestígios de cerca de dez mil sis- sua espera, ou inaugurada pela mensagem do Profeta. Ade-
temas de direito: alguns estão muito mutilados, quase inde- mais, essa orientação lhe vem do exterior, de uma vontade
cifráveis: podemos ainda virar as páginas dos códigos em que divina que penetra no mundo mas lhe é radicalmente distin-
outros estão consignados. A exuberância parece, pois, suce- ta. O próprio Deus dá a Moisés no monte Sinai as Tábuas da
der à monotonia. Contudo, nada é menos seguro. Nossa vi-
são, uma vez mais, é cerceada pelo muro da escrita. Podemos ; 11. As linhas a seguir são largamente inspiradas em M. Alliot, A antro-
apenas adivinhar os espaços que ele nos encobre, entrever pologia jurídica e o direito dos manuais, Archivfur Rechts und-socialphilosophie,
os relevos cujas linhas tentei esboçar. Ora, as descobertas do 23,1983, 71-81. Cf. também N. Rouland, Anthropologie juridique, Paris, PUF,
paleolítico e as inovações dos milénios neolíticos durante os : 1988, 399-407.
62 NOS CONFINS DO DIREITO
O DIREITO TEM HISTÓRIAS

Lei; o arcanjo Gabriel dita o Alcorão ao Profeta e, se Jesus sai


sa (pois existe sagrado não religioso: as ditaduras moder-
do túmulo vencedor da morte, é para subir de novo ao Céu
nas usam-no correntemente).
pouco tempo depois (a partir da Ressurreição, seu corpo glo-
O direito ocidental, também ele, apoiou-se muito tem-
rioso é, aliás, subtraído ao mundo físico). Portanto, uma ideia
po na lei divina. O antigo direito romano é essencialmente
se encontra no centro das crenças dos filhos de Abraão: sua
religioso, e os primeiros juristas são sacerdotes. Depois o di-
relação com Deus, os direitos e deveres que os unem en-
reito romano clássico se separa da religião, antes de voltar a
trem si são regidos por normas impostas do exterior pela
ela sob o império cristão. A história do direito francês tam-
potência criadora; o mundo teve um começo, terá um fim;
bém conhece essas oscilações. Durante a alta Idade Média, o
o homem será julgado pelo que fizer. Preeminência das nor-
direito oficial se inspira em preceitos cristãos; a Igreja, que va-
mas sobre as práticas; direito imposto, imperativo, sancio-
cila menos do que o poder laico, obedece a um direito canó-
nado; caráter inelutável do julgamento: esses caracteres nos
nico cujas competências ela estende através de suas jurisdi-
são familiares. São eles que começam a vacilar hoje nos paí-
ções. Quanto ao direito prático, aquele concretamente aplica-
ses ocidentais.
do e que conhecemos tão pouco, não há dúvida que crenças
No entanto, a partir dessa base em comum, as tradições
religiosas não cristãs (ditas "pagãs", de pagani, camponeses)
monoteístas divergem. Mais exatamente, o direito ocidental
continuam a inspirá-lo (os ordálios, que o alto clero reprova,
moderno se singulariza em relação às tradições hebraica_e_
são uma maquiagem cristã delas). Depois, no curso de uma
islâmica.
lentíssima evolução, a Razão aparece como fundamento do
Para os hebreus, a lei, dada por Deus, é imutável: ape-
direito. No século XE, Santo Tomás se empenha em demons-
nas Deus pode modificá-la. Sua adaptação às necessida-
trar que, baseada na razão, a filosofia pré-cristã é em larga
des novas só pode ser feita pela interpretação dos doutores.
medida conforme à lei divina, o que contribui para o renas-
Quando Davi (1010-970 a.C.) organizar a monarquia israe-
cimento do direito romano. A partir do Renascimento, o di-
lita, esses princípios mudarão pouco: sagrado, o rei deve agir
reito sofrerá cada vez mais a força de atração da Razão e
segundo a lei divina; sua interpretação compete aos sacerdo-
se afastará da fonte divina que tantos séculos passados lhe
tes, e ainda mais aos profetas, guardiões da moral e censores
atribuíram. Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, todos os teó-
da ação política.
ricos do contrato social preparam e consagram a eliminação
No universo islâmico, a lei também se confunde com de Deus antes que, mais tarde, outros filósofos proclamem
a vontade de Deus, revelada aos homens no Alcorão, ma- - sua morte. Forjam um novo mito, o de indivíduos livres no
nifestada pelo exemplo do Profeta e de seus companheiros estado de natureza que, para proteger melhor sua liberdade,
(Suna), ou pelo acordo unânime dos doutores (Idjma). Esta
se reúnem em sociedade e, conformes à razão, definem por
é ainda mais imperativa porque no século XI de nossa era
um contrato leis e liberdades às quais renunciam, e as que
"fechou-se a porta do esforço": entendamos com isso que,
conservam a título de direitos subjetivos. Do estado de na-
em princípio, não se deveriam acrescentar mais tentativas
tureza aos direitos individuais, o universo jurídico é funda-
de interpretação da Lei divina àquelas elaboradas durante
mentado racionalmente e possui sua coerência fora de qual-
os quatro primeiros séculos da Hégira. A lei se impõe a to-
quer referência religiosa. Outros autores (Bentham, Jhering)
dos os detentores do poder, a começar pelo Califa, vigário
eliminam igualmente Deus, mas descartam o mito do con-
de Deus na terra. Logo, a lei é sagrada: situa-se num nível
trato que fundamenta a sociedade somente na consciência
distinto das realidades comuns. Essa sacralidade é religio-
individual do útil.
64 NOS CONFINS DO DIREITO 0 DIREITO TEM HISTÓRIAS 65

A Revolução Francesa consagrará essa progressão. A fiação, desconhecida do maior número. O que confirma, ao
Declaração dos Direitos do Homem de 1789 faz alusão à pre- contrário, a máxima: "Supõe-se que ninguém ignora a lei."
sença e aos auspícios do Ser supremo. Mas a prova de sua Nos planos dos revolucionários, a parte dos homens na gé-
inexistência nada mudaria nos dezassete artigos que se se- nese do direito seria reduzida em proveito daquela do Esta-
guem. O Código Civil de 1804 é, por sua vez, a-religioso. do. Os tribunais deveriam ater-se à aplicação da lei, a doutri-
Não toma partido sobre questões religiosas, o que é ainda na, a comentá-la. Isso era ir longe demais. Já em meados do
atualmente sua atitude: o direito é deste mundo. Mas os ho- século XX, a jurisprudência retoma seu papel criador e re-
mens de 1789 o crêem do mundo inteiro. A Declaração dos modela partes inteiras de nosso direito civil: permanece a
Direitos do Homem é universalista. Laico, idêntico para to- principal fonte do direito administrativo. A doutrina, por sua
dos porque fundamentado na Natureza e na Razão univer- vez, no começo do século XX, já não aceita ver-se confinada
sal, o direito que ela inspira tem vocação para a exportação. à exegese dos textos oficiais e adota uma atitude mais pros-
Primeiro na Europa, graças às conquistas napoleônicas; pectiva, de legeferenda, que expressa sua opinião sobre refor-
mais tarde muito mais longe, pela colonização (ainda hoje, mas vindouras do direito existente.
legislações inteiras de Estados da África negra são calcadas No entanto, essas reações parecem ter desacelerado
no Código Civil, e para dizer a verdade pouco aplicadas). apenas um pouco a corrida para o abismo: a ignorância do
Mas o lugar de Deus não ficará vago: muito depressa, o direito, sua volatilidade, a desconfiança para com os tribu-
Estado o. ocupará e pretenderá, também ele, dominar o di- nais são muitos males de nosso tempo. A conciliação e a
reito. Na verdade, foi já em suas origens (em meados da equidade só têm um papel subsidiário: basta, para conven-
Idade Média) que o Estado francês perseguiu essa meta, cer-se disso, abrir manuais de direito. Se hoje cada vez mais
através da identificação do poder legislativo à soberania ré- juristas se voltam para a filosofia é em parte por angústia.
gia e prescrevendo que se escrevessem oficialmente costumes Pois podemos perguntar-nos se a espada que separou o di-
(1454). O corte fundamental ocorreu, porém, no século XVIII: reito da religião não tinha gume duplo. Embora esse corte
depois da Revolução, Deus desaparece do palco jurídico. Mas possa evitar certos excessos, é suscetível de favorecer outros.
este muda menos do que se crê. Na realidade, o Estado ten- Como observa J. Carbonnier12, o direito compartilha com a
ta transferir em seu proveito os atributos divinos (ao que se religião e a moral um poder tremendo: a neutralidade. Não,
recusa categoricamente o Islã). Por vezes denominado Pro- é claro, que nunca decidam: é mesmo o contrário. Mas a re-
vidência, ele se apropria do modelo do Deus criador único gra de direito pode apropriar-se de qualquer outra regra so-
e todo-poderoso, que governa o mundo com seus decretos, cial, enquanto o inverso não é verdadeiro. Aberta em todos
um mundo que ele acha ter o mandato de transformar uti- os sentidos, a regra de direito pode abocanhar técnicas de fa-
lizando a Lei, cujo culto a Revolução fundou. Desde então bricação, receitas de cozinha, regras de composição literária.
inicia-se o processo de inflação das normas jurídicas, sob o Tudo é jurisdicizável: as relações de amizade (o depósito; o
qual parecemos hoje estar perto de sucumbir. A utilização e que os juristas denominam a ajuda mútua agrícola, ou seja,
a difusão crescentes da escrita reforçam-lhe a expansão, as- a mão que se dá entre vizinhos no campo, que uma lei de
segurada por uma burocracia prolífera: de 1800 a 1980, o 1962 fez entrar em parte no campo do direito); o trânsito
número de servidores públicos civis passa de 140 mil para
2,5 milhões. Paradoxalmente, esse sistema concebido para
incrustar o direito na sociedade leva à sua ineficácia: a regu- 12. Sobre a internormatividade do direito, cf. J. Carbonnier, Essais sur lês
lamentação de que é portador é, em razão de sua própria in- lois, Répertoire du Notariat Defrénois, 1979, 251-70.
66 NOS CONFINS DO DIREITO
O D/KE/TO TEM HISTÓRIAS 67
(habituamo-nos ao direito regendo a movimentação dos veí-
culos automóveis; em certos casos, o direito também se en- tes (em 1824), um magistrado da Corte de Cassação emprega-
durece para os pedestres, por exemplo em Veneza, onde, du- va sua ciência em qualificar juridicamente os escravos dos co-
rante os meses de verão, a afluência dos turistas necessita da lonos franceses: "O escravo é uma propriedade de que se dis-
instauração de contramãos); a saúde (certas vacinações são põe como quiser [...] essa propriedade é mobiliária, todas as
obrigatórias; atos cirúrgicos - ligadura de trompas ou circun- vezes que o escravo não é ligado à cultura, mas [...] neste últi-
cisão - proibidos; interrogamo-nos sobre o direito para um mo caso, fica imóvel por destinação..." Os infelizes objetos
empregador de recusar-se a contratar um indivíduo soro- dessas exegeses a maior parte do tempo só tinham cometido
positivo etc.). Em muitos casos, não há o que criticar nesses o delito de serem judeus ou escravos. As vezes até a onipotên-
processos, que antes parecem protetores. Mas, em outros, cia do direito se torna tal que a pena se afasta do delito, ou
essa faculdade do direito de se aplicar a tudo pode ser temí- mesmo se desvincula dele14. Sob o império romano, a avidez
de alguns imperadores faz que superabundem os crimes
vel. Como o estatuto dos judeus sob Vichy. Recentemente
punidos com confisco. Mais perto de nós, Michel Charasse,
estudado13, este exemplo é particularmente significativo. Cer-
tos juristas, favoráveis à colaboração com os nazistas, apro- o secretário de Estado de orçamento, ameaça de controle fis-
cal os jornalistas cujos artigos o haviam desagradado. Sob o
vam quanto ao mérito as medidas discriminatórias. Outros,
.Antigo Regime, as necessidades da Marinha em remadores
animados por ideais diferentes, as reprovam. Ambas atitu-
são tamanhas que vários éditos endurecem as penas, não para
des lógicas, que poucos indivíduos adotaram. Muito mais
acentuar a repressão de delitos puníveis pelas galeras, mas
interessantes são as reações de inúmeros autores. Uma vez
para assegurar os efetivos remadores. Depois da guerra, vis-
promulgadas as leis antijudaicas e estando a jurisprudên-
to a amplitude das reconstruções necessárias, Stálin adota
cia referente a elas em via de constituição, estes se empe-
o mesmo procedimento: o Glospan fornece aos comissários
nham em comentá-las como se se tratasse de dissertar sobre
militares o estado numérico dos homens que devem ser apri-
a oponibilidade dos fundos de comércio ou sobre as condi-
sionados a fim de encontrar uma mão-de-obra barata para
ções da inscrição hipotecária. O direito anti-semita se torna
a execução dos trabalhos. O esquema clássico se vê invertido:
uma disciplina oficial, com seus especialistas, seus debates
é a pena que faz nascer o crime, e não o inverso.
doutrinais e suas soluções jurisprudenciais. Em sumários
Paremos aqui com esses exemplos maléficos do poder
do Recueil Dalloz, uma rubrica "judeus" se intercala entre
e da perversão do direito. Eles mostram que este nem sem-
"julgamento de recurso" e "égua de corrida". Em 1943, o res-
pre tem a ganhar em se separar da moral e da religião, duas
peitável Semaine Juridique publica um artigo de E. Bertrand
rédeas que às vezes uma montaria, pronta para desembes-
intitulado "Du controle judiciaire du dessaisissement dês
tar, precisa sentir. Concedamos que se trata de casos extre-
juifs et de Ia liquidation de leurs biens. Étude critique de juris-
mos; esqueçamos que foram a causa de tantas vidas parti-
prudence". O pior é que nem todos os autores que entram
das ou ceifadas, de corpos supliciados; conjuremos o perigo
nesse jogo são necessariamente anti-semitas: reagem como
persuadindo-nos de que o excepcional não pode tornar-se
técnicos de direito. Na mesma linha, cerca de um século an- a regra. Resta esse sentimento de um peso grande demais
do direito, do monopólio dele exercido pelo Estado, de nos-
is. Cf. D. Lochak, La doctrine sous Vichy ou lês mésaventures du posi-
tivisme, in: Lês usages sociaux du droit, org. D. Lochak et alii, Paris, PUF, 1989,
252-85. 14. Cf. J. Carbonnier, La peine décrochée du délit, m: Mélanges R. Legros,
Bruxelas, F,d. da Universidade de Bruxelas, 1985, 23-34.
68 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 69

sa impotência para compreendê-lo, da inacessibilidade da a frase célebre do Conde de Qermont-Tonnerre a propósito


máquina judiciária. Será culpa de Voltaire, o apóstolo da to- dos judeus: "Cumpre recusar tudo aos judeus como nação e
lerância e o defensor de Calas? Será culpa de Jean-Jacques conceder tudo aos judeus como indivíduos; [...] cumpre recu-
Rousseau, que escreve no entanto que: "Todo Estado onde sar a proteção legal à manutenção das pretensas leis da corpo-
há mais leis do que a memória de cada cidadão pode conter ração judaica deles; cumpre que deixem de fazer dentro do Es-
é um Estado mal constituído." tado corpo jurídico ou ordem; cumpre que sejam individual-
Em parte sim. É mesmo com base nas ideias de Nature- mente cidadãos."
za/ de Razão e de soberania da Lei que se desenvolveram os Mas a atitude do poder político para com o direito tam-
males de que sofre o nosso direito. Mas essas mesmas ideias bém depende de condições de ordem cultural A esse respei-
estão na origem de incontestáveis progressos: a democracia, to, o monoteísmo gera muitas representações, atitudes fa-
a tolerância, o progresso científico... A contrario, os Estados voráveis a uma monopolização do direito, desde que este
teocráticos existentes atualmente ou almejados por certas se separou da religião, como foi consumado nos países oci-
pessoas, nos quais o corte entre Estado, direito e religião não dentais. Pois as mentes se habituaram à ideia de um direi-
existe, estão em muitos aspectos ainda longe da Idade do to imperativo. Emanante de Deus no Islã ou do Estado, seu
Ouro. Podemos de fato perguntar-nos se as patologias do di- avatar, no Ocidente, o direito dos filhos de Abraão se caracte-
reito, das quais estamos bem conscientes hoje, não são uma riza por uma objetivização da lei, que existe independente-
doença - provavelmente curável - do aumento de complexi- mente dos homens e lhes é imposta do exterior (a contrario, é
dade social e política. Com efeito, vimos que o aumento de interessante constatar que, segundo uma pesquisa efetuada
complexidade social era em geral acompanhado da especia- em 1990, as aspirações a um direito e a uma justiça mais
lização do poder político, contrapeso do perigo de fragmen- consensuais coincidem com uma mutação da imagem de
tação que podia resultar dessa diversificação. Consumada Deus para os cristãos: o Deus-Juiz, o Deus-Providência se
essa especialização (realizada ou não sob forma estatal), o apagam em proveito de um Deus próximo dos homens e
poder político pode ficar tentado a monopolizar a produção acima de tudo definido pelo amor que sente por eles15).
do direito, com as consequências que conhecemos. São-lhe Os males resultantes desses processos são curáveis. Cer-
necessárias certas condições, que se encontram no caso fran- tos temas atuais, tais como o Estado de direito (apesar de suas
cês. Sociológicas: o enfraquecimento das comunidades inter- ambiguidades16), a distinção entre o Estado e a sociedade ci-
mediárias, contrapesos para a centralização do poder. Elas vil, o favor concedido às justiças alternativas indicam antído-
contiveram as aspirações do absolutismo: a monarquia fran- tos possíveis.
cesa tocou apenas com prudência nos privilégios (privilégios
aqui deve ser tomado em seu sentido antigo, que não é o de
injustiça, mas de estatuto particular). A Revolução quis abo- O nascimento da antropologia jurídica
li-los. Comentando o Decreto de 14 de junho de 1791 refe-
rente à supressão das corporações de ofícios (maitrises et ju- Não somos os primeiros a usá-la. A antropologia jurí-
randes), Lê Chapelier declarava: "Já não há corporações no dica nos mostra que outras culturas, africanas ou orientais,
Estado; há apenas o interesse particular de cada indivíduo e o descobriram antes de nós suas direções. Entretanto, cum-
interesse geral. Não é permitido a ninguém inspirar aos cida-
dãos um interesse intermediário, separá-los da coisa pública 15. Cf. H. Tinq, Dieu n'est plus cê qu'il était, Lê Monde, 2 nov. 1990,10.
por um espírito de corporação." Na mesma veia, conhece-se 16. Cf. infra, pp. 173-8.
O DIREITO TEM HISTÓRIAS . 71
70 NOS CONFINS DO DIREITO
G e a colonização se estende na África e na Ásia. Os europeus
pría inteiessar-se pelas experiências delas. Existe em prin-
cípio uma disciplina jurídica consagrada ao estudo dos di- daquele tempo acreditam no progresso, na civilização cujo es-
^x^duloa-
reitos estrangeiros: o direito comparado. De fato, este se tádio mais avançado estimam ser representado pelo Ociden-
empenha sobretudo em comparar... os sistemas ocidentais te; gevolucionismo domina as ideias comuns e as ciências
entre eles, ainda que há alguns anos se assista, por razões sodais, O próprio marxismo, inventado naquela época, o ma-
evidentes, a uma abertura para o direito islâmico. A antro- "nífestabem em sua concepção de uma história marcada por
pologia jurídica se propõe estudar os direitos de culturas uma sucessão de modos e relações de produção inclinada
não ocidentais e voltar em seguida, com um olhar novo, aos para a instauração da sociedade sem classes. Os primeiros
das sociedades ocidentais. Pois, contrariamente ao que se " r|o Hn-pii-o18 postulam que todas as socieda-
acredita, não é necessariamente mais fácil estudar sua pró- des são submetidas a leis de evolução de rigidez variável,
pria sociedade do que a dos pigmeus ou dos esquimós. Es- l d? selva ppjia à civilização: passar-se-ia as-

c^ o~j tamos tão imersos em nossa própria cultura que muitas ma- sim do oral ao escrito, da família ampla l família nuclear^
neiras de pensar, muitas normas e comportamentos nos da propriedade coletiva à propriedade privada, do estatuto
parecem ser evidentes. A originalidade ou a contingência ao contrato etc.
deles nos escapam, não vemos que se trata de outras tantas O primeiro autor dessa linhagem é um homem pres-
chaves para virar em suas fechaduras. Em compensação, fi- tigiado, SirH. Sumner-Maine (1822-1888). Professor de di-
caremos imediatamente surpresos com a estranheza das reito em Cambridge, Oxford e Londres, é apaixonado pela
competições de canto ou das trocas de mulheres entre os cultura indiana. Torna-se vice -chanceler da Universidade de
esquimós, sem falar dos casamentos com os mortos entre Calcutá, conselheiro do Governador-Geral da índia e contri-
os quicuius. E, no entanto, nossos beijos e apertos de mão, bui para a codificação do direito indiano empreendida pelos
' nossa maneira de colocar os convivas ao redor de uma mesa, britânicos. Em 1861, publica uma obra que o torna célebre, O
a circulação dentro do metro, os dizeres dos anúncios imobi- antigo direito. Nessa época são fascinados pelos indo-euro-
liários17, a importância da detenção carcerária na escala das peus. Maine busca nos direitos indiano, irlandês e germâni-
penas, nossa definição do direito de propriedade pareceriam co os traços de sua filiação comum. Suas pesquisas o condu-
OU do mesmo modo estranhos, até mesmo "primitivos", a gran- zem a formular hipóteses gerais sobre a maneira pela qual
/^y9C de número dessas sociedades tradicionais. Já há muito tem-
; evoluíram as sociedades que ele conhece. Passam de um es-
po, Montaigne escrevia que cada qual chama de barbárie o
que não é de seu uso... tádio arcaico, desprovido de direito, a um estado tribal, que
vê seu nascimento. Depois aparece a noção de pertencer a
A própria antropologia jurídica não escapou dessa visão
redutora. Podemos encontrar-lhe precedentes na Antigui- um território, o direito se aperfeiçoa com as primeiras codifi-
dade e na época moderna, assim como entre os autores e os cações. A partir daí, devem-se distinguir dois tipos de socieda-
viajantes árabes da Idade Média. Mas ela nasce realmente de: as "estacionárias", que, como a índia, pararam de evoluir
no final do século XIX, em pleno triunfo tecnológico e cultu- em dado momento; as "progressivas", pouco numerosas e
ral do Ocidente: a Revolução Industrial se propaga na Europa,
18. Cf. J. Costa, Trois fondateurs de l'ethnologie juridique: Bachhofen,
Maine, Engels, Nomos, í, 1974,15-42; R. Verdier, Dossier H. Sumner-Maine,
17. Sobre estes dois últimos pontos, cf. M. Auge, Un ethnologue dans lê Droits et Cultores, \ 1990,149-90.
metro, Paris, Hachette, 1986; Domaines et châteaux, Paris, Lê Seuil, 1989.

Vw
72 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 73

quase confundindo-se com as sociedades ocidentais, que va- utilizados por nossos autores já eram o resultado de uma fil-
lorizam o indivíduo e constituem a ponta extrema da civi- tragem: aquela operada, mesmo inconscientemente, pelos
lização. Isso era dar a palma às potências europeias e legiti- olhos e mente dos viajantes, comerciantes, missionários e
mar deThodo científico e elegante a colonizaçãã administradores públicos que os haviam redigido.
Mais tarde, a chama passa por muito tempo às mãos dos R. Thurnwald decide perceber as coisas por si mesmo.
autores alemães. Os da Revista de Direito Comparado (cujo pri- De 1906 a 1915, permanece na Micronésia e na Melanésia,
^^meiro número é publicado em 1878), dirigida por J. Kohler, depois na Nova Guiné, B. Malinowski o segue de perto nes-
um famoso especialista de direito comercial e sobretudo um sa parte do mundo. Brilhante físico e matemático, usufruin-
homem profundamente original, de uma curiosidade incrí- do uma reputação de excêntrico, converteu-se à antropo-
vel19. Sob seu impulso aparecem os primeiros estudos sobre logia ao ler Prazer. De nacionalidade austríaca (nasceu em
os direitos africanos, até então deixados de lado em razão da Cracóvia, que então fazia parte do Império Austro-Húngaro),
fascinação pelo Oriente. Na mesma época, H. E. Post, outro é surpreendido pela guerra na Austrália... onde as autori-
erudito alemão, começa uma longa série de livros, que cul- dades querem encarcerar esse súdito inimigo. Malinowski
mina com a publicação da Jurisprudência etnológica (1893), consegue convencê-los de fazê-lo passar seu tempo de iso-
obra prometéica na qual ele se esforça por ordenar todos os lamento entre os indígenas australianos em Mailu (1915) e
sistemas jurídicos conhecidos segundo os princípios de um nas ilhas Trobriand (até 1918), lugares considerados então
;<=UxotR evolucionismo rígido. R. Thurnwald (1869-1954) pertence à como os mais "primitivos" possíveis. Voltará de lá com mate-
geração seguinte. É também, com B. Malinowski (1884-1942), riais que lhe servirão para escrever toda uma série de obras
o primeiro antropólogo "moderno". Até então, os autores tornadas clássicas da literatura antropológica.
trabalhavam largamente como historiadores, a partir de do- Desde então, a pesquisa in loco ê com razão uma fase
cumentos, na calma de seus escritórios. Uma anedota, a res- essencial da formação de um antropólogo. \Mão que o conta-
peito de Sir James Prazer (1854-1941), o grande especialista to direto permita escapar a todo subjetivismounão pode ha-""
das religiões tradicionais: a um interlocutor que lhe pergun- ver visão imparcial dos fenómenos sociais. Mas aproximan-
tava no fim de sua vida se havia um dia encontrado um des- do-se da fonte de informação do observador, ele lhe dá os
ses "primitivos" cujas crenças conhecia tão bem, respondeu: meios de interpretá-los com mais fidelidade. A antropologia
"Nunca, graças a Deus!" Ir ao local teria parecido incongruen- se edifica, pois, no século XX, sobre bases mais sólidas. Repu-
te e teria acarretado uma perda de tempo que fora poupado dia principalmente as teorias evolucionistas unilineares do
pelo recurso aos documentos e aos relatórios de correspon- século precedente e se torna ao mesmo tempo mais rigorosa
dentes nos países que esses cientistas estudavam. Infeliz- e mais modesta. Longe de insistir na superioridade das cultu-
mente, era também privar-se de informações insubstituíveis: ras ocidentais, os antropólogos contestam a noção de pro-
C*. oJL ^*u3_ f-0~'"'vv'vas fontes de primeira mão. Qual especialista da Antiguidade gresso, mostrando que foi definida segundo critérios que,
<!*_ 4 ç^r^^è&yytfornana, hoje, hesitaria em utilizar a máquina para retro- de antemão, as beneficiavam. Nos anos 1970, os mais avan-
çados entre eles inverterão completamente o processo ten-
ceder no tempo se ela lhe fosse oferecida? Pois os arquivos
tando mostrar que o progresso se acha mais entre os "pri-
jTutivos" do que entre nos, tendo aqueles conseguido (no-
19. Cf. G. Spendel, Josef Kohler- Bildeines universalJuristen, Heidelberg, tadamente na Amazónia) brecar o fatal encadeamento
Decker-C. F. Miiller Verlag,, 1983. que leva à divisão política e social, fonte de muitos ma1pg_
C\*_CXXA_

74 NOS CONFINS DO DIREITO


O DIREITO TEM HISTÓRIAS 75
Essas hipóteses, hoje, convencem menos, e fala-se mais
dos direitos do homem do que da filosofia política dos iano- A África negra e a pluralidade do direito
mâmis. Compreende-se melhor essas tentativas quando se
A África negra não tem o monopólio das sociedades
rememoram os pressupostos evolucionistas aos quais elas
tradicionais. Estas existem em toda parte, e o próprio Oci-
queriam responder. O século XX vê também outras mudan-
dente contou com muitas delas até um passado recente. Que
ças. A escola de antropologia jurídica alemã desaba: o Trata-
se entende exatamente com isso e por que temos de distin-
do de Versalhes priva a Alemanha de suas poucas colónias,
gui-las das sociedades modernas? Observemos logo de início
onde poderia ter continuado o trabalho in loco; sua escola de
que estas não são necessariamente as mais recentes: a Roma
antropologia jurídica esvanece, em parte por causa do na-
de Augusto, estatal, urbanizada, centralizada, utilizando cor-
zismo, pouco inclinado ao estudo das culturas de "sub-ho- rentemente o instrumento monetário, é certamente mais mo-
mens". Os anglo-saxões tomam-lhe o lugar e dominam todo derna do que a sociedade feudal, que ela precede em nove
esse século com os trabalhos que empreendem na África séculos. O critério geográfico tampouco é determinante. A
negra, na Ásia e na própria América (em 1941 é publicado África, a América pré-colombiana tiveram seus impérios, e,
Cheyenne Way, o primeiro livro escrito conjuntamente por um em sentido inverso, o feudalismo europeu oferece aos antro-
antropólogo, E. Adamson-Hoebel, e um jurista, K. Llewellyn). pólogos partituras das quais conhecem muitas notas. É antes
A antropologia norte-americana reina soberana em toda a pelo grau de aumento de complexidade que passa o corte da
área, primordial, do solucionamento dos conflitos. distinção. Não devemos confundi-lo sobretudo com o grau
Embora a França conte com grandes antropólogos, so- de evolução, noção muito mais subjetiva. Uma sociedade
bretudo africanistas (M. Griaulefoi um dos mais conheci- menos complexa não é mais simples ou mais rudimentar do~
dos) e possa orgulhar-sé da obra de Claude Lévi-Strauss, que uma sociedade com estratificação sociopolítica apurada.
ela sobressaiu muito tempo sobretudo por seu silêncio em Corresponde simplesmente a condições e a escolhas dejjutra
matéria de antropologia jurídica^ Durkheim recorre com bas- natureza. Em suma, podemos considerar em vários níveis
tante frequência aos direitos "primitivos", mas temos de es- esse aumento de complexidade. Económico: as sociedades
perar meados do século para que alguns historiadores do tradicionais se inspiram num ideal de autarcia, mesmo que
direito (H. Lévy-Briihl20, M. Alliot, R. Verdier, E. Lê Roy; J. certas formas de trocas comerciais com base no escambo ou
Poirier faz figura de outsider) fundem realmente a disciplina. mesmo de para-moedas não lhes sejam desconhecidas. So-
Embora desenvolvida muito desigualmente conforme os paí- ciológico: a divisão social existe (ainda que consoante a idade
ses, ela continua, nesta hora, fundamentalmente um luxo ou o sexo), porém menos acurada do que nas sociedades
de países ricos. No entanto, acumulou bastantes materiais modernas: ademais,Jí concebida mais em termos de comple-
para que possamos comparar a experiência ocidental do di- mentaridade do que de oposição. Político: o poder político
reito com as realizadas em outros lugares. Detenhamo-nos sempre existe, mesmo nas sociedades em que sua organiza-
na África negra e no Oriente. ção é menos diferenciada (índios da Amazónia, esquimós).
Ele repousa nas mãos de líderes cujos poderes são limitados,
não hereditários e fundamentados mais no prestígio e na
persuasão do que na coação. Mas não reveste uma forma es-
20. Q. N. Rouland, H. Lévy-Briihl et l'avenir du droit, Revue de Ia Recher- tatal (existem entretanto Estados tradicionais). Cultural: as
chejuridique et Droit Prospectif, 2,1985, 510-30.
sociedades tradicionais vêem a mudança diferentemente das
76
NOS CONFINS DO DIREITO

nossas. Seu. ideal consiste em reproduzir, adaptando-o, o mo- homem encontra-se portanto em perigo, mas tem os meios
do original que presidiu à fundação da sociedade, legiti- fa fala, os ritos, a adivinhação), se o desejar, de auxiliar as for-
mado e transmitido pelos ancestrais. Daí a importância do cas positivas. Por outro lado, a existência do indivíduo não
costume. Mas este não é somente repetição, como se cos- é pontual, não se resume, como entre nós, a esse lampejo no
tuma acreditar. Ao contrário, sua flexibilidade permite as ino- infinito da História. Os elementos que o compõem, após sua
vações que podem revelar-se necessárias- para combinar o morte, se associarão de modo diferente, e ele já é uni outro
modelo tradicional com as condições presentes. Nesse sen- ser em potencial, assim como a árvore é a um só tempo a ár-
tido o conflito entre o costume e a modernidade não é em vore de hoje, o fogo, o tambor de comando ou a estatueta de
oluto inevitável. Assim também, o costume não está in- adivinhação de amanhã. Encontraremos esses diferentes tra-
eiro do lado das sociedades tradicionais: ele rege sempre ços na organização sociojurídica.
muitos setores de nossa vida jurídica. Quanto à lei, que nos- A criação por diferenciação progressiva acarreta o reco-
sas sociedades adoram, encontramo-la também nas socieda- nhecimento oficial da pluralidade do direito. Nas religiões
es tradicionais, em geral sob forma dos mitos. Estes tam- abraâmicas, Deus tira do nada todos os elementos da Cria-
pouco constituem corpus imóveis para a eternidade: os mitos ção e os submete à sua Lei (cf. o mito da Génese). Nas cos-_
são frequentemente inventados ou transformados para aten- mogonias africanas, diferenciação contínua e coerência da
der às necessidades da mudança. criação vão de par: as diferenças tornam solidárias^ a divisão
Portanto, semelhanças e diferenças se associam. Ve- social é concebida em termos de complementaridade. Fer-
mo-las igualmente ativas no modo pelo qual essas socieda- "fêlros, caçadores, guerreiros ou feiticeiros vivem uns^pelos
des pensam o direito. Qual visão as sociedades da África outros. Também o poder político conhece esses tipos de di-
negra têm dele? visões, separações dos poderes anteriores às de Âristóteles
Essa visão depende largamente de suas crenças reli- e Montesquieu: pouco a pouco apareceram o senhor da ter-
giosas: o invisível deve explicar o visível. Antes da criação era ra, os da chuva, das colheitas, do invisível e o chefe político.
o caos, que não se confundia com o nada. Continha em po- Ninguém pode exercer seu poder sem o apoio dos outros.,
tencial a criação e o criador. Pois o deus primordial existe 'isto não quer dizerque os conflitos estão ausentes dessas so-
mesmo, ainda que se preocupe pouco com homens: dele se ciedades. Mas são previstos, amortecidos por esse sistema
ferenciam progressivamente outras divindades, que são de representações que formula de outra maneira o problema
menos entidades independentes do que pares complemen- da Justiça: esta se situa menos no plano dos indivíduos (al-
tares que manifestam as virtualidades de que é rico o deus guns podem ser as vítimas dessas estruturas, protetoras mas
primordial. As potências superiores tiram do caos o mundo também, pelo menos para nós, alienantes) do que dos equi-
visível e a humanidade, muito amiúde à custa de várias ten- líbrios globais, sempre frágeis, em que tudo é feito para que
tativas mfrutíferas. Às vezes é mesmo necessária uma res- se mantenha a ordem. A divisão entre o Bem e o Mal se efe-
surreição, como a de Nommo entre os dogons ou de Osíris tua nessa altura, o que pode não satisfazer a nossas mentes
no Egito. Cada homem traz em si os princípios que animam ocidentais, mais marcadas pelo individualismo, jissa preo-
os deuses e o mundo: a ordem e a desordem, o bem e o mal, cupação com a ordem leva a outra construção, igualmente,
o justo e o injusto. Nada é ganho nem prometido de ante- desnorteante para o jurista ocidental: o menor peso das nor-
mão, tudo é possível, inclusive a derrocada desse universo mas, entendidas no spntidn de regras gerais e abstratas, que
frágil onde forças contrárias interagem constantemente. O enchem nossos códigos. Com efeito, a aplicação do direito,
i DIREITO TEM HISTÓRIAS 79
78 NOS CONFINS DO DIREITO
e irradia para mais além. Uma pessoa pode ser também sua
embora satisfaça a razão e em geral a justiça, pode engendrar
família, seus amigos, alguns de seus bens (presentes) ou mes-
feridas que demoram a fechar: uma falência, um divórcio em
mo certos lugares. Estende-se também no tempo: o homem
geral não são algo fácil. Se podejn evitá-lns tornando mais
africano traz em si seus ancestrais e já é sua descendência.
leve o peso da regra, ou mesmo deixando-a inoperante, os
Daí a importância das linhagens que condensam num eixo
aíricanos não hesitarão: ao julgamento costumam preferir a
oriundo do fundador do clã (que não é necessariamente um
conciliação. A crença num deus primordial, criador, mas que
humano, mas um animal ou, mais raramente, um vegetal)
não se preocupa muito em impor sua vontade aos homens,
todos os indivíduos que delas fazem parte e lhes assegura
explica igualmente esse relativo desinteresse pela produção
uma imortalidade coletiva. O pertencer a uma linhagem é
normativa.
um dos pilares dos direitos africanos: estrutura a relação
No plano jurídico, o conceito de diferenciação explica a
do homem com a terra (esta normalmente só pode ser alie-
desconfiança sentida por essas sociedades pelas legislações
nada entre membros da mesma linhagem), com seus reba-
uniformizadoras. Nada está mais distante de suas ideias do
nhos, assim como as diversas modalidades de aliança ma-
que a famosa frase do padre Siéyès: "Imagino a lei no centro
trimonial. É por isso que as legislações ocidentais, introdu-
de um globo imenso; todos os cidadãos, sem exceção, estão à
zindo a filiação indiferenciada, contribuíram em geral para
mesma distância e ocupam apenas lugares iguais." A diversi-
a fragmentação das sociedades tradicionais. Com menos
dade dos estatutos jurídicos é, pois, a regra. Varia quase ao in-
frequência por intenção de lhes prejudicar do que por ig-
finito, conforme o sexo, a idade, a filiação, a casta etc. Essa di-
norância. Como vimos, muitas crenças e os costumes delas
versidade contém um perigo implícito: o da desagregação. É
decorrentes eram muitos difíceis de ser compreendidos por
evitado com o estabelecimento incessante de alianças, notada-
um europeu. O espaço que o separa das tradições orientais
mente matrimoniais. Atualmente, a maioria dos Estados da é ainda maior.
África negra vive em situação de pluralismo jurídico. O direi-
to oficial, o das codificações calcadas nos modelos europeus,
é o dos grupos dirigentes, a maioria da população vive se-
A tradição chinesa e a supressão do direito
gundo outros direitos, ora consuetudinários, ora recentes,
ignorados ou parcialmente reconhecidos pelo direito oficial.
Podemos tomar o exemplo da China e do Japão. Mas
Os juristas europeus costumam qualificar de anárquica essa
praticamente todos os povos do Extremo Oriente partilham
situação. Nada é menos verdadeiro: os ajustes entre esses di- uma atitude assombrosa para o eurnpeu:j]ãn t-pm confían-
ferentes sistemas de direito, por vezes vividos simultanea-
ja no direito para assegurar a ordem social e a justiça, ainda
mente pelas populações, requerem muito cuidado. Ademais,
que tenharruujotado, sob a influência estrangeira, codifica-
correspondem a essa tradição de pluralidade do direito.
jões c.alcadasnos modelos ocidentais. Apesar de uma apa-
Por fim, as concepções da duração, associadas à da vida
rente diversidade, certa unidade filosófica os caracteriza. A
e da morte. Duração mais vasta, amortecimento do efeito de Indochina crê nos ensinamentos de Buda, o Japão lhe sobre-
corte da morte encontram-se igualmente no direito. O indi- põe os do xintoísmo e a China associa o confucionismo a
víduo, tal como o concebe o Ocidente moderno, não existe.
essas correntes. O xintoísmo foi na origem uma religião ani-
Seria melhor empregar anoção de pessoa para compreender mista e, ao evoluir, o taoísmo não foi hostil à ideia de imorta-
os conceitos africanos. tA pessoa repousa nas relações que lidade. Mas parece que o budismo e o confucionismo mar-
ultrapassam a unidade abstrata representada pelo indivíduo
80 81
NOS CONFINS DO DIREITO 0 Dl•REITO TEM HISTÓRIAS

caram mais largamente a Ásia, a ponto de mesclar-se por trangeiros, os criminosos incorrigíveis (o direito chinês é aci-
sincretismo com essas crenças. Do ponto de vista ocidental, nia (je tudo penal). Isso explica a pouca estima de que go-
todas essas correntes estão bem distantes daquilo que costu- zam os juristas, ao contrário da sociedade americana, onde
mamos associar à ideia de religião: mundo sobrenatural di- o lawyer é uma personagem prestigiada. Ao direito e ao jul-
fuso ou inexistente, ausência de revelação etc Seu relativo gamento, prefere-se de longe o acordo e a conciliação. jZurrv-
sucesso em nossos países está, aliás, ligado ao enfraqueci- pre jTiais suprimir do que resolver as contestações, o que os
mento de nossas religiões tradicionais. O confudonismo de- juristas correm o risco de impedir se se recorre a eles. Refe-
certo ilustra melhor as diferenças que os separam. Tmdo-se aregras abstratas, eles podem obstruir a via dos1"
A narrativa da Génese deve ter parecido à primeira vista •SrnrcfõsTazoáveis. Em nome da justiça, podem acarretarei
incompreensível aos letrados da China antiga/Não podiam esordem: por exemplo, fazendo o devedor arcar, em nome
admitir a existência de um deus que tirava o mundo e os ho- 3ã7ésponsabilidade civil, ^orn^pjgagai^erttpjie perdas e da-
mens do nada, preocupado em governá-los e até em amá- nosTncompatíveis com a extensão de seusjrecursos oucom
los a ponto de lhes sacrificar o próprio filho. Pois a tradição sua nosÍ£ãpjocíãl7No entanto, as íeis não são completa-

chinesa pensa outro universo. O mundo é infinito no tempo. mente "banidas. Mas não têm o caráter imperativo que assu-
Embora procurem-lhe em vão uma origem de tipo abraâmi- mem no Ocidente. Ilustram modelos de conduta dos quais
ca, ele não é estacionário; faz-se e desfaz-se sem cessar no se deve pacientemente procurar aproximar-se sem lhes obe-
decorrer de períodos cósmicos vastos demais para serem decer ao pé da letra. Elas também formulam ameaças cujo
apreendidos pelo entendimento humano. O mundo e o ho- objetivo é menos serem executadas do que dissuadir aque-
mem são os únicos a poder governar-se. Aqui não há deus les que ficariam tentados a adotar uma conduta anti-social.
dos monoteístas, nem deus primordial e remoto de tipo afri- Os contratos se situam no oposto exato da concepção ame-
cano: o mundo e o homem devem governar a si mesmos, jnranaM-gdigidos em termos evasivos, têm a finalidade de
respeitando a harmonia do universo^ssa harmonia deve afirmar a vontade de entendimento das partes, não de enu-
reger as relações entre os homens e a natureza: para reger os merar as causas de litígios vindouros.
acontecimentos da vida pública e privada, cumpre reportar-se O odclèntal tem rfvuitã^ificuídãcíe em conceber que
ao ciclo das estações, à posição dos astros (daí a importân- concretamente as coisas possam funcionar assim. Isso é es-
cia social da astrologia, ainda atualmente). Deve igualmente quecer a importância da educação e dos ritos. A conciliação
estabelecer-se nas relações entre os homens:j?stes devem, é facilitada pelo fato de que a educação habitua cada qual a
acima de tudo buscar o consenso, evitar tanto quanto o pos- perguntar-se se os conflitos nos quais se encontra envolvi-
~sivel a idéiaje punição, que a tradição clássica no Ocidente. do não se originaram por culpa sua. Ademais, segundo Con-
Tfazjerradamente) ser o critério decisivo do direito. Enfim, o fúcio, cada qual deve viver segundo os ritos decorrentes do
mundo encontra sua coerência na conjunção dos contrários estatuto que é o seu nas comunidades às quais pertence. O
(o que lembra o pensamento africano): não_se pode pensar aprendizado do acordo e da conciliação é, pois, tão exigen-
a matéria sem o espírito, o racional sem o sensível, a ordem te quanto o das normas jurídicas. A competição pode existir,
sem a desordem, o bem sem o mal, o yin sem o yang. mas não deve exprimir-se abertamente. Exemplo: o sistema
Dentro desse universo de pensamento, o direito não está dos ringi. Nas empresas japonesas, os relatórios são como
excluído, mas constitui um modo extremamente rudimentar nos outros lugares lidos e corrigidos pelos responsáveis.
de regulação social. É, de fato, bom para os bárbaros: os es- Cada qual lhe aplica seu carimbo (ringi). Os ringi não são dis-
82 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 83

nas pelos serviços especializados das coletividades lo-


postos um em cima do outro, nem sequer lado a lado, mas
a^is) A família continua a formar um inundo largamente im-
em roda: impossível distinguir uma hierarquia, ver quem de-
C ermeável ao direito: o uso opõe-se à conclusão de contra-
cidiu e, portanto, contestar. Como na África, mas expresso
íós de casamento e à redação de testamentos, persiste-se às
de modo diferente, transparece aqui o medo da desordem.
vezes em não declarar as uniões maritais. Nota-se enfim' que,
Aí, também, pode não corresponder ao nosso ideal de jus-
tiça. No extremo, poder-se-ia até pensar que as práticas de embora desde a guerra a noção de direitos subjetivos tenha
lavagem cerebral, de reeducação, a pena de morte com sursis progredido, as tradições ainda estão muito vivas. O indivi-
dualismo nem sempre é de bom-tom, como prova a concep-
não deixam de ter relação com a exacerbação dessa exigên-
cia de conformismo. ção das liberdades fundamentais. Os japoneses as percebem
menos como possibilidades reconhecidas ao indivíduo do
Pois, se Confúcio morreu há quinze séculos, se sob Mão
que aos membros de grupos categoriais (o consumidor, o
foram desencadeadas campanhas contra seus ensinamentos,
usuário, o doente, o habitante) que aparecem como réplicas
se, já no início do século XX, a China se dotou de códigos
modernas dos antigos grupos estatutários. Aliás, segundo
inspirados no Ocidente, se, no Japão, o papel do direito fi-
uma pesquisa de opinião realizada em 1983, a piedade filial
cou capital na formação das elites desde a era Meiji, nota-se
e as relações de giri (benevolência e reconhecimento) sem-
sempre o mesmo acolhimento do acordo e uma descon-
pre prevalecem .sobre as liberdades.
fiança persistente para com o direito e os juristas. Em 1957, o
próprio Mão pronuncia um discurso -em que se discerne fa-
cilmente, sob a maquilagem marxista, as categorias do pen-
Para que serve a antropologia jurídica?
samento tradicional. Para ele, existem dois tipos de contra-
dições. As internas ao povo, que podem resolver-se pela
O direito tem histórias: a do Ocidente o dota de um sis-
reeducação, pela discussão e pela persuasão. As existentes
tema de representações específico. Como o Decálogo, o di-
entre o povo e seus inimigos, que se devem esclarecer re-
reito vem de alhures, de uma entidade superior que o dota
correndo ao direito e às suas punições pela ditadura. Atual-
de sua onipotência. O esquecimento de Deus provoca sua
mente, há na China menos de 5 mil advogados para mais de
dependência crescente para com o Estado, que o ornamenta
um bilhão de habitantes (...e 723 mil nos Estados Unidos).
ao mesmo tempo com sua majestade. As diferenças são ne-
Os adversários do marxismo responderão que isso se deve
gadas em nome da justiça e da igualdade, a unidade tende
aos "particularismos" da justiça nos países comunistas. A
a confundir-se com a uniformidade. Alguns mitos o atestam,
objeção parece inoperante, na medida em que se constatam
os das Luzes ou a escatologia da sociedade sem classes: to-
os mesmos fenómenos no Japão. Embora o contencioso te-
dos fazem um ideal da similitude dos membros do corpo so-
nha explodido na França (o número de litígios levados ao
cial. A regra moderna e democrática da maioria aritmética se
conjunto das jurisdições dobrou de 1976 a 1986), o número
apoia nisso. A minoria, mesmo considerável, deve curvar-
de processos continua estagnado nesse país (350 mil por ano
se a isso, com o risco, em certos casos, de recorrer à ficção de
para mais de 120 milhões de habitantes, o que é pouco). O
um consenso que a realidade desmente: assim que eleito,
efetivo das profissões judiciárias é muito pequeno (menos
o presidente da República, chefe de uma facção durante a
de 21 mil pessoas). A esses números opõe-se outra realida-
campanha, é suposto tornar-se o totem de todos os franceses.
de. Os procedimentos não contenciosos de conciliação são
Esseiprocesso, que, quando ganha força, pode conduzir ao Es-
muito numerosos (250 mil casos são tratados todos os anos
84 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO TEM HISTÓRIAS 85

tado totalitário, inspira também experiências menos extre- n Estado já não é o único intérprete dessa moral: confia-se
madas, tais como o Estado dirigista ou Providência. de bom grado sua definição à sociedade e às suas emana-
Há uma década, pensadores liberais e economistas neo- ções (daí a constituição de diversas comissões), ao passo que
clássicos fazem-lhe o cerco, não sem algum sucesso: costu- se insiste no fato de que também o Estado deve submeter-se
meiramente estatizante, a esquerda francesa instalada no po- ao direito (deveríamos acrescentar: a administração públi-
der teve de renunciar a muitos de seus modelos anteriores ca, pois os especialistas concordam em reconhecer que esta
(nacionalizações, acentuação da preeminência do ensino pú- se liberta cada vez mais do respeito ao direito). Todos esses
blico sobre o privado, crescimento do número dos servidores fenómenos explicam que o direito fique menos claro e estão
públicos etc.) para levar em conta a pressão de uma parte na origem dos caracteres às vezes contraditórios que se lhe
considerável da opinião pública, correndo o risco de ver al- atribuem. Vivemos a cobertura de modelos uns pelos outros,
guns de seus ex-turiferários lhe reprovarem "suas genufle- sem ainda poder discernir o que resultará disso. A alguns
xões diante da empresa" (R. Debray). Por certo o debate não desses modelos, largamente oriundos do passado e inspira-
está dirimido. A desregulamentação, a liberdade crescente dos por nossa tradição cultural, correspondem muitos aspec-
dada ao mercado, os ensinamentos dos Chicago boys não de- tos do direito vividos como negativos. Outros inspiram as
ram aos Estados Unidos apenas bons resultados. Quanto aos esperanças em um direito mais humano.
franceses, as pesquisas de opinião mostram que estes não Mas para que pode servir a antropologia jurídica nisso
estão decididos a liquidar tudo do Estado-Providência, prin- tudo? Não será, na pior das hipóteses, um catálogo de recei-
cipalmente a proteção social. No entanto, seja qual for seu tas em que os juristas atacados de impotência viriam bicar?
resultado, está em curso uma evolução das mentalidades, Na melhor, uma diversão de esteta enamorado de exotismo?
fundamental. De um lado, a busca do consenso ganhou ter- Mil vezes não.
reno em relação ao recurso ao confronto. Dois exemplos. O Acima de tudo, porque encontramos ativos em nossa
tema da França unida: esteve no centro dá campanha efe- própria sociedade modelos observados alhures ou outrora.
tuada por Mitterrand nas eleições à presidência em 1988 e Não por um efeito de "persistência", que nos levaria de volta
contribuiu largamente para seu sucesso, ainda que tenha à ideia de evolução, deixando supor que tudo pode explicar-
sido seguido de poucos efeitos concretos; permaneceu a re- se pela história, mas em razão da simultaneidade das lógicas
gra seguida por seu antigo primeiro-ministro, Rocard, na segundo as quais funcionam a maior parte dos indivíduos e
gestão dos conflitos sociais. As modificações dos procedi- das sociedades. Os autores evolucionistas costumavam pen-
mentos de divórcio em seguida: o divórcio por solicitação sar que os "primitivos" eram dominados por um pensamento
conjunta (de fato, consensual), criado em 1975, é escolhi- pré-lógico (assim como alguns juristas falaram do pré-direi-
do pela metade dos casais que se separam. Sem falar dos che- to), caracterizado pelo raciocínio analógico, pela intuição,
fes de empresa que, como Calvet na Peugeot, adoram o mo- pela mescla irracional das categorias, pela crença na magia
delo "japonês", também ele fundamentado na conciliação. De etc. Enquanto os civilizados teriam descoberto o pensamen-
outro lado, o novo interesse dirigido à ética confirma igual- to lógico. Grave erro. Na verdade os dois pensamentos coe-
mente a obsolescência dos antigos modelos e do positivis- xistem em cada indivíduo, "primitivo" ou civilizado. O esqui-
mo jurídico. Admite-se cada vez menos que uma norma pre- mó será extremamente lógico para caçar a foca e o caribu, o
tenda impor-se sem se justificar; a moral é solicitada quando que não o impedirá de acreditar que seus xamãs viajavam
se pretende criar algumas normas em certas áreas (biologia). na Lua e no fundo do mar; o empresário pode apelar simulta-
86 NOS CONFINS DO DIREITO
O DIREITO TEM HISTÓRIAS 87
neamente aos mais sofisticados modelos previsionais no
plano económico... e às ciências ocultas para recrutar seu com as quais temos relações diretas. Quantas serão? O mais
pessoal, sem falar do extraordinário desenvolvimento na Hás vezes umas cinquenta: ou seja, menos do que os efetivos
França dessas "ciências" no decorrer destes últimos anos21. de um gmp0 de caçadores paleolíticos. Reflitamos em segui-
Dá-se o mesmo nas sociedades, Muitos países do Terceiro da nas formas e na natureza das relações que mantemos
Mundo tentaram o enxerto de modelos jurídicos de tipo so- com elas. Logo perceberemos que a oralidade e a reciproci-
cialista ou liberal vindos do Ocidente que não impediram as dade representam um grande papel, que qualificamos de
populações de seguir comportamentos inspirados por regras "diretas" as relações que nos ligam: os antropólogos cha-
que têm pouco a ver com os direitos oficiais. A França não mariam isso de relações "face a face", as que dão aos direitos
escapa a essa tendência: o direito ensinado nas faculdades, das sociedades tradicionais uma boa parte de seus caracteres
oriundo do Estado, não é observado por todos. Nós também específicos.
vivemos várias lógicas jurídicas. Em certos casos, recorremos De fato, cada vez que o indivíduo age no âmbito de uma
ao modelo jurídico estatal ou somos forçados a segui-lo: atos das comunidades às quais pertence, vemos reaparecer os
importantes da vida civil ou comercial (redação de um con- modelos familiares aos antropólogos. Os exemplos pululam:
trato de casamento ou de um testamento, criação de uma citemos alguns. A família em primeiro lugar: o direito oficial
empresa), código de trânsito, declarações fiscais, infrações pe- só raramente penetra nela. Por ocasião da formação da união,
nais graves etc. O que não é nada. Mas nem todos os nossos sob forma de um aviso das principais disposições legais diri-
procedimentos, felizmente, são enquadrados pelas diretrizes gido aos esposos pelo oficial de estado civil. Ninguém dentre
do Estado. Como nas sociedades tradicionais, pertencemos nós se preocupará em aplicá-los ao pé da letra: quando mui-
a grande quantidade de grupos, nos quais ocupamos estatu- to os gravará como vagos modelos. Mas, em caso de desen-
tos diversos, e que têm seus sistemas jurídicos próprios, re- tendimento sério, o direito se aproxima. Começa-se a pensar
conhecidos ou não pelo direito estatal. Embora vivamos sem seus comportamentos e os do outro em termos jurídicos (o
muita dificuldade essas pertenças múltiplas, não nos aper- que lhe censuro constituirá ou não uma "falta grave" no
cumprimento nascido das obrigações do casamento?); e,
cebemos muito disso, de tão forte que é a influência do di-
quando a união acaba, o direito retoma seus direitos, sobre-
reito oficial e das representações nas quais ele se apoia: as
tudo no caso do divórcio litigioso. No intervalo, a maior par-
de uma sociedade juridicamente indiferenciada, em que to-
te dos casais vive segundo modelos diferentes: divisão sexual
dos os cidadãos estão unidos no respeito a um mesmo direi-
do trabalho (a lei não o obriga), partilha dos recursos confor-
to. Esse mito é fecundo e sem dúvida necessário: ele é que
me modalidades que não são forçosamente as de seu regime
permite às nações e aos Estados edificar-se e persistir. Mas
oculta muitos aspectos da realidade. matrimonial e, para os mais sensatos, procedimentos de so-
lucionamento dos conflitos (transação, conciliação) em que a
Um exemplo muito simples, para começar. Abramos justiça por vezes é sacrificada ao retorno da paz dos casais.
nossa caderneta de endereços. A príorí, a maioria dos nomes Podemos também pensar nos grupos de amigos. Sua
que nela figuram é o das pessoas, amigos ou conhecidos, coesão desaparece certamente à medida que seus membros
vão-se organizando em células familiares. Mas em sua idade
de ouro, elas costumam funcionar segundo modelos que re-
21. Cf. M. Bruschi, Lê droit et lês sciences occultes, Revue de Ia Recherche
Jurídíque et Droit Prospectif, l, 1991, 183-261; e 2, 1991, 491-530. C. Brun, gem as sociedades elementares (pigmeus, esquimós): exis-
Uirrationnel dans 1'entreprise, Paris, Balland, 1989. tem líderes, mas seus poderes são condicionais, fortemente
limitados pela influência do grupo; quando se impõem de-
oo NOS CONFINS DO DIREITO ODlREnVTEMMSTÔSIAS

cisões importantes, busca-se antes de tudo o consenso e a -íã a divisão do trabalho (o engenheiro civil não cumprirá as
unanimidade. Em graus diversos, as mesmas tendências mesmas tarefas de quem é formado em administração públi-
perpassam as diferentes formas de vida associativa. O direi- ca), mas cada corpo deve respeitar os privilégios do outro:
to interno às diferentes profissões (médicos, advogados ou em caso de infração (quando uma direção passa indevida-
outras), dito "disciplinar", recorre amplamente, como as so- mente de um corpo para outro), o clã perdedor trava uma
ciedades tradicionais, às punições de essência psicológica, batalha que o mais das vezes leva a acordos de compensa-
tais como a repreensão ou o ostracismo (proibição de exer- ção. Mas é raro que as oposições degenerem em conflitos
cer, que evidentemente também tem consequências econó- abertos: as normas fundamentais são a busca do consenso
micas). Nas aldeias, ainda hoje, muitos conflitos são solu- (as comissões interministeriais trabalham nesse sentido) e
cionados de modos diferentes do recurso aos tribunais do da unanimidade, ao menos aparente. Dos casais aos mais
Estado. Mas essas diferentes comunidades coexistem no in- prestigiosos corpos, permanece a regra: lava-se a roupa suja
terior de uma mesma sociedade global. Certas normas o per- em família. Mas existe uma grande diferença entre esses dois
mitem.. Por exemplo, as regras de polidez, fundamentadas tipos de comunidades. Um casal pode, à custa de sua disso-
no respeito aos estatutos sociais, a reprodução da hierar- lução, incumbir da solução de seu conflito uma instância ex-
quia existente e a circulação de bens simbólicos (presentes) terna, o juiz de família, que está muito acima dele com toda
que obedecem ao tríplice imperativo dar-receber-devolver a autoridade de que é investido. Tal saída é muito mais difí-
(dar um presente de uma importância tal que seu destina- cil para os grandes corpos, na medida em que se situam na
tário não poderá fornecer a contrapartida é uma falta, ou ponta extrema do poder de Estado: é-lhes muito dificultoso
mesmo um comportamento agressivo). Mas também o di- encontrar uma autoridade exterior suscetível de lhes sancio-
reito estatal, que formula princípios comuns ou intervém
nar as contendas. Quanto mais se aproxima do poder e da
quando o direito interno é insuficiente para resolver as di- fonte do direito, mais difícil é sair dele.
ficuldades experimentadas (regras do divórcio, envolvimento
Tudo isto mostra que a antropologia jurídica nos permi-
das responsabilidades civil ou penal em caso de falta profis-
te compreender melhor as nossas próprias sociedades: ter
sional, intervenção nos conflitos do trabalho etc.).
visto funcionar alhures certos modelos permite reconhe-
É surpreendente constatar que as próprias elites buro-
cê-los melhor em nosso país. Sua primeira utilidade é, por-
cráticas, que contudo são mais próximas do poder de Estado
e diretamente à fonte do direito por ele gerado, funcionam tanto, descritiva. Possui uma outra, de ordem prospectiva.
em geral segundo esses mesmos modelos "tradicionais". Os exemplos dados acima provêm de microanálises,
Claro, supõe-;se que um código as rege: as regras do direi- realizadas a partir do estudo de grupos específicos. Mas, no
to constitucional e administrativo. Mas a prática é outra, e plano global, as diferenças entre as diversas tradições cul-
dominada, como na África tradicional, pelos princípios de turais retornam toda a sua força: um chinês, um europeu e
diversificação e de complementaridade, verdadeiros funda- um iraniano não fazem a mesma ideia do direito (o que, aliás,
mentos das regras não escritas que cada membro dessas eli- começam a compreender os homens de negócios, que recor-
tes toma cuidado de observar. Os ministros podem passar, rem aos antropólogos22). Já que sentimos bem que nossos
mas os grandes corpos (a expressão não é inocente e expres-
sa o forte sentimento de identidade de cada uma dessas co- 22. Dois deles editaram um guia para o uso dos managers internacionais,
munidades) conservam cada um deles seus representantes cf. Edward T. Hall e Mildred Reed Hall, Cuide du comportement dans lês affaires
nos ministérios e à frente das administrações centrais. Rei- intemationales, Paris, Lê Seuil, 1990, que se refere aos países europeus.
90 O DIRE'TO TEM HISTÓRIAS 91
NOS CONFINS DO DIREITO

arte do tempo anónimos para nós; uma lei, que lhes im-
_ próprios modelos jurídicos estão em crise, o fato de que mu '. '- trazer em suas roupas urna insígnia onde estaria in-
trás sociedades possam ter vivido segundo princígios muito dicada sua identidade, nunca foi aplicada). Portanto, o con-
afastados dos nossos, mesmo sendo portadoralTcteumalilIã texto é diferente. Uma parte considerável do trabalho dos
^cultura, é, ao contrário/ muito animador. Alguns dos mecanis- antropólogos do direito consiste, pois, em determinar as
mos aos quais elas recorrem com maior frequência do que
condições segundo as quais modelos inspirados em socie-
nós são ainda mais tentadores porque parecem correspon- dades tradicionais podem ser eventualmente aclimatados
der aos nossos desejos atuais: mediação23, pluralismo jurídi-
co, consensualismo, descentralização etc. Todos esses ele- na França.
Melhor conhecimento de nosso sistema, proposições de
mentos poderiam contribuir para a elaboração dê uma nova reformas: a antropologia jurídica aplicada existe na França
democracia, menos primária do que a que repousa no princí- há uns dez anos. O Laboratório de Antropologia Jurídica
jjioaritmético majoritário. Mis bastara sentar o chefe com de Paris (dirigido por M. Alliot, depois por E. Lê Roy) se em-
pele dêleopardo dos nueres na cadeira do presidente do tri- penha nisso e já efetuou uma pesquisa muito completa so-
bunal de grande instância para transformar nossa justiça no bre acústica dos menores,- mostrando o quanto sua prática
sentido almejado?
a aproxima daquela das sociedades tradicionais (lei-modelo,
~Crãbsurdo da^questão nos conduz a enfatizar uma di- parte importante da oralidade etc.). Trabalha atualmente so-
ficuldade capital: as condições de recepção das experiências bre a aplicação do modelo da ordem negociada (com base
vindas de fora em nosso próprio sistema. Os transplantes de consensualista e por oposição à ordem imposta) às relações
nossos órgãos jurídicos nas outras sociedades com demasia- entre a administração pública francesa e seus usuários.
da frequência terminaram em fracassos (ineficácia na Áfri- Se pode contribuir para as mutações necessárias, a an-
ca negra, rejeição brutal cada vez mais frequente nos países tropologia atual permite-nos igualmente tomar melhor a
muçulmanos) para que não sejamos muito prudentes. Mes- medida de nossos desejos. Consenso, conciliação, moral, plu-
mo que elas o critiquem, nossas sociedades estão habituadas ralismo, respeito ao sagrado e à Natureza, qual homem de
ao Estado e a seus modos de intervenção: o antropólogo boa vontade não sonharia com isso? Mas Lúcifer era o mais
pode propor organizá-lo, não o suprimir. Elas também estão belo dos anjos de Deus. Pois a antropologia nos mostra tam-
profundamente divididas no plano social e económico, a des- bém, através de muitos dos exemplos longínquos, que esses
peito das medidas corretivas (10% dos franceses possuem almejos podem coincidir com realidades menos irênicas. Por
50% do património privado); enfim, embora diminua a im- trás da busca do consenso podem delinear-se a harmonia
portância do escrito em face de outros modos de comuni- assim como a ordem. Se a primeira é desejável, a segunda
cação (televisuais e radiofónicos), as relações que temos com pode ser injusta (não é muito fácil, mesmo para um antropó-
o Estado e o poder não são de face a face (assistir, em casa, logo, pleitear o dossiê das castas indianas, ou o do estatuto
diante da televisão, a uma entrevista coletiva do presiden- das mulheres ou dos órfãos em grande número de socieda-
te da República não permite conversar com ele; os repre- des tradicionais). Alguns temem que "a Franca p
sentantes da administração pública permanecem a maior lismo político-social que está na moda resulte na instaura-
ção de urnasociedade com duas velocidades, ainda mais dura_
com os excluídos porqup estes ficariam ainda mais margi-
23. Uma obra recente constata sua expansão na França no decorrer da nalizados e quase fariam figura de intocáveis modernos. A_
última década: cf. J. F. Six, Lê temps dês médiateurs, Paris, Lê Seuil, 1990.
92 NOS CONFINS DO DIREITO ODIREITO TEM HISTÓRIAS 93

aproximação do direito^com a ética não se dá tampoucosem deverá tomar nela, ou esse projeto estará de antemão conde-
jigcos. pois tudo depende do conteúdo dessa ética. Houve, nado pela irredutível multiplicidade das culturas? O antro-
acima de tudo, morais nazista e stalinista, que geraram os di- pólogo do direito não pode nem deve furtar-se à questão que
reitos que conhecemos^Compete à ética definir alguns mo^ cada vez mais lhe é exposta25.
delosjje comportamento oriundos de ideais, o que a Outras são de todas as idades. Que seremos nós em re-
opera num grau de intensificação superior, pois fundajnen- lação ao mundo vivo e inanimado que nos rodeia, o da natu-
_ta esses ideais na transcendência. Se escolhemos modelar o reza: quais serão nossas finalidades derradeiras, e existirá um
direito por ela, cumprirá antecipar uma consequência im- mundo invisível, o da sobrenatureza?
portante, a de sua imperatividade maior: quem não recea- Para tudo isso, o direito tem respostas.
ria jTajsjjtTjpp uma regra puramente positiva, a norma tri-^
pÍamente_sanciQnada pelo direito, pela moral e pela religião?
Medimos isso bem, nos Estados teocráticos. Inversamente, a
responsabilidade puramente jurídica é em geral mais branda
do que a de ordem moral: "A responsabilidade moral deixa-
va em nós o remorso. A responsabilidade civil põe em nós o
esquecimento: é uma grande libertadora."24
E, no entanto, o que será um direito, que uma moral
ou crenças não irriguem? Um galho morto.
A antropologia jurídica, como vernos, não oferece solu-
ções muito simples. Instrumento de conhecimento, ela mos-
tra que o direito tem histórias, que às vezes se encontram,
onde menos se esperava. Mas, dilatando o campo de nossa
liberdade, sublima-lhe o exercício.
Dentre as numerosas pistas de pesquisa que ela suge-
re, três parecem-me solicitar de maneira mais premente o
homem de nosso tempo. A primeira questão concerne às re-
lações entre o direito e o Estado. O direito do Estado será a
melhor muralha contra a violência? A quais mutações o força
o reconhecimento do pluralismo jurídico? Depois enfrenta-
remos a questão das relações entre o direito e os valores. Pois
as mídias modernas e a antropologia têm em comum facili-
tar o confronto de culturas outrora separadas pela distância,
e o mais das vezes ignorantes umas das outras. A construção
do Homem se achará facilitada por ela, qual parte o direito
25. Cf. N. Rouland e J.-L. Harouel, L'anthropologie juridique face au
jugement de valeur, Revue de Ia Recherche Juridique et Droit Prospectíf, l, 1991,
24. É o que observa com perspicácia J. Carbonnier, op. rít. supra, n. 12,263. 177-81.
Capítulo III
O Estado, a violência e o direito
Nós que nos achamos instruídos, teríamos necessidade de ir
até os povos mais ignorantes, para aprender com eles o começo
de nossas descobertas: pois é sobretudo desse começo que preci-
saríamos; ignoramo-lo porque faz muito tempo que já não so-
mos discípulos da natureza.
CONDILLAC, La langue dês calcais (1760).

Ninguém pode ser seu próprio juiz. Força não é direito. Vias
de fato são proibidas. Ninguém pode enforcar quem o roubou...
Desfiados desde a Antiguidade, esses adágios do direito pe-
nal proíbem às vítimas reparar elas próprias os danos que so-
freram, missão reservada às autoridades judiciárias. A maio-
ria das sociedades estatais condena o que é, aliás, dever sa-
grado. A privação das vítimas de sua vingança é operada em
nome do interesse público que impõe um acerto pacífico e
mediado dos conflitos. No cível, a parte lesada obterá o paga-
mento de perdas e danos ou a reparação do bem; no penal, o
réu se verá infligir multas, tributos pagos à sociedade, ou
mesmo encarcerado. De fato, esses modos de acerto nãtLex^
^luenrcertas formas de violência. A amputação, às vezes im-
portante, de uma parte de seu capital ou de suas rendas (em
geral amortecida, é verdade, pelos contratos de seguro), a
'detenção (o indivíduo recém^encarcerado sofre os primeiros
"Hiãs^que os psiquiatras denominam o "choque carcerário")
não são, para quem os sofre, procedimentos muito bran-
dos. Mas parecem ser os que melhor preservam a sociedade1.

O Estado pacificador?

O senso comum e os juristas opõem a esses métodos


modernos as épocas felizmente passadas em que o primiti-

1. A obra de referência para o estudo da vingança nas sociedades ociden-


tais e não ocidentais é La vmgeance, org. R. Verdier, 4 vols., Paris, Cujas, 1981-84.
96 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 97

vismo dos costumes, a agressividade não contida dizima- Sociedades antigas e remotas: nem todas, longe disso,
vam as famílias em intermináveis vendetas. A construção proclamaram a inutilidade do Estado. Há sociedades tradi-
do Estado, a multiplicação de suas intervenções pacificado- cionais estatais (monarquias e impérios africanos). Nossa
ras garantem o triunfo da civilização sobre a barbárie: o di- própria Antiguidade desenvolve muitas variações sobre o
reito à vingança está extinto, um sistema de penas legais o tema da Vingança e do Estado. Assim, encontramos já emjSê^
substitui. De modo que a crítica atual do Estado deveria ao neca, |}á vinte séculos, o raciocínio que condena a primeira
menos reconhecer-lhe um mérito inegável: o de ter feito di- em nome do segundo2. Para o autor de A cólera, a vingança
minuir a violência interna. Logo, a angústia de segurança se fundamenta apenas no ódio, na pura violência, e conduz
deveria levar a um fortalecimento de seus poderes e do ar- as cidades à sua perda. É negação da vida em sociedade.
senal repressivo: o bom senso o exige, e com ele a maior par- Bárbara, é também absurda: seu efeito igualador não passa
te da opinião pública francesa, sendo o coro comandado pela de uma leria para os espíritos fracos. Apenas conta a pena,
direita. que depende menos da gravidade do dano do que da curabi-
No entanto, nem tudo é tão simples. As sociedades tra- lidade de seu autor. No limite, se se estivesse seguro da au-
dicionais oferecem numerosos exemplos em que a ausência :ia_de recidiva, não se deveria aplicar pena alguma ao
do Estado não tem como corolário a anarquia e o reinado da culpado. Nosso filósofo desconfia muito que as vítimas ou
violência cega. Nossas próprias sociedades vêem hoje o Es- sua famífiã~sejam a priori pouco inclinadas a tamanha man-
tado favorecer certos tipos de solucionamento dos conflitos suetude. É por isso que preconiza uma estatização da justi-
administrados por instituições "alternativas7 jque se distan- ça penal e a redução do papel da vítima nas ações judiciais.
ciam das jurisdições de direito comum. O bom senso talvez Essas visões ilustram uma concepção possível da ordem ju-
fique lesado, mas é um fato: atualmente, na França bem dicial assegurada por uma autoridade central que refreia os
comot\ América do Norte, a justiça pertence cada vezjme^ impulsos destrutivos dos indivíduos ou dos grupos, ao que
nós aos tribunais, enquanto se desenvõlvê~contudoc) Bsta- parece para o bem de todos. Acrescentar um mal a outro
cfo de direito" mal não o transforma em bem; é preferível tentar emendar o
SinguIãTpãradoxo, no qual esbarra a equação aparen- culpado para impedi-lo de prejudicar de novo. Além do mais,
temente tão evidente: Estado = monopólio público da puni- as palavras de Sêneca parecem responder aos ensinamentos
ção jurídica dos litígios, que supostamente expressa um dos da História.
dados do estado de civilização. Mas não será dar a palma ao Ele mesmo escreveu no primeiro século de nossa era,
Estado? Acima de tudo, o essencial não é que os conflitos se- período durante o qual um império centralizador se substi-
. jam solucionados de tal maneira que se ajustem as forças que tui ao regime da Cidade; é além disso o conselheiro do prín-
representam a ordem e aquelas que a contestam, com ou sem cipe. O Estado tem, portanto, sua preferência. A história da
o Estado? jm geral necessária, sua intervenção não é ine- França também parece marcada pela recusa da vingança. Tra-
vitável, e casos há em que a sociedade sofre rnenos com sua balhando em concerto, a Igreja e a monarquia começam por
ausência do que com sua imisção. O estudo das sociedades circunscrevê-la no tempo e no espaço: é proibido vingar-se
antigas ou remotas mostra-nos que a sociedade não espe- durante certos períodos (trégua de Deus), não se pode sub-
rou o Estado para regular vingança e violência. A análise de
nossas próprias sociedades inclina a pensar que o redesco- 2. Cf. G. Courtois, Lê sens et Ia valeur de Ia vengeance chez Aristote et
brimos de modo empírico. Sénèque, Má., t. IV, 137-51.
98
NOS CONFINS DO DIREITO
O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO
meter qualquer um à vingança, o apelo ao rei dá-lhe um fim. peito. A guerra externa seria o reflexo da harmonia interna: a
Os tribunais e ligas da paz zelam por isso. Depois, no final
identificação do outro ao inimigo reforça a coesão social. E
da Idade Média/ o Estado extingue todo direito à vingança: encontramos sem dificuldade na literatura etnográfica con-
o direito de guerra torna-se monopólio do rei. Mais perto
firmações dos ardores guerreiros dos "primitivos". Na Ocea-
de nós, a ação realizada na Córsega pelo poder central ates-
ta uma preocupação idêntica. Um edito de 1768 estipula que, nia, a metade dos velhos arapeshes, interrogados pelo etno-
quando um indivíduo tiver cometido um homicídio preme- logista Fortune, confessavam ter matado pelo menos um
ditado com emboscada em razão de "vingança ou briga de inimigo na guerra durante a vida deles. W. Thesiger relata
família, em ódio transmitido", ele será não só supliciado na que os danakils da Etiópia tinham na mais alta considera-
roda, mas também terá sua casa derrubada e sua posterida- ção o assassínio dos inimigos, previamente castrados por
de impedida para sempre de postular um emprego público. seus cuidados: certos elementos de suas roupas exibiam a
Bohaparte institui, por sua vez, uma jurisdição criminal ex- contabilidade desses fatos. Entre os mousseys (Camarões-
traordinária com o objetivo de "mudar os costumes da ilha". Chade), a tumba assumia a forma de um túmulo rodeado
Durante todo o século XIX, o Estado se esforça por diversos de troncos de árvores que representavam o número de ho-
meios para lutar contra a violência, cuja taxa é efetivamen- mens e de animais mortos pelo defunto: um morto a quem
te muito mais elevada que no continente. Com a repressão, não se podia creditar essas façanhas devia contentar-se com
mas também com a prevenção (extensão da educação, aju- a mesma sepultura que as mulheres e as crianças. O homicí-
da à agricultura). Os resultados não se fazem esperar: no fi- dio pode até ser uma condição do casamento entre os ossetos
nal do século, a ordem pública está no essencial assegurada. (Cáucaso). O sogro fazia sempre ao futuro genro a pergunta
O Estado venceu a vingança, quando não a violência. ritual: "Quem mataste para pretender a mão de minha fi-
A função pacificadora do Estado moderno aparece ain- lha?" Não longe de lá, os abkhazes se recusavam a esquecer
da mais nitidamente se o compararmos com a violência e a a vingança pronunciando uma frase lapidar: "O sangue não
paixão guerreira de que dão provas muitas sociedades tra- envelhece." Entre os papuas da Nova Guiné reinava um esta-
dicionais desprovidas de forma estatal. Não se pode suspei- do de tensão e de suspeição permanente entre os homens e
tar que P. Clastres queira depreciar as sociedades tradicio- as mulheres. Cada sexo se identificava ao inverso do outro,
nais: toda a sua obra é um hino à inteligência política delas. essencialmente sentido como um perigo; homens e mulheres
Contudo, ele denuncia a cegueira da maioria dos etnolo- residiam e comiam à parte. As guerras eram incessantes, os
gistas diante da frequência das guerras nas sociedades tra- cativos, a maior parte do tempo, mortos e comidos; nas mar-
dicionais, notadamente do Novo Mundo. Para ele, a guerra gens do Sepik, um moço deveria trazer uma cabeça de inimigo
está ligada à força do sentimento identitário3: para toda so- cortada para poder passar pelos ritos de iniciação que fariam
ciedade tradicional, o outro é a priorí um inimigo. A guerra é dele um adulto. A extrema diversidade linguística da Nova
primeira em comparação à aliança. É um efeito da lógica plu- Guiné confirma a força dos sentimentos identitários que ins-
ral: a cada qual seus valores, mas os dos outros, se diferem, piravam essas atitudes guerreiras. Encontramo-la entre os es-
provocam com maior frequência a agressão do que o res- quimós no estreito de Behring: reputados sorridentes, não des-
toam nesse quadro. No Alasca, dividem-se em mais de vinte
grupos incapazes de compreender-se de uma etnia para outra,
3. Cf. P. Clastres, Recherches d'anthropologie politique, Paris, Lê Seuil,
1980,171-207.
que se matavam reciprocamente com uma grande facilidade.
A sorte dos vencidos não era nem um pouco invejável: "Ven-
100 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 101

cederes, montamos no adversário, o que é um modo sim- tender à ruptura das relações internas de uma sociedade,
bólico de sodomizá-lo. Antes de cortar a cabeça, urinamos no redundando em atos descontrolados (delinquência) ou regu-
rosto do vencido, arrancamos seus olhos e os costuramos, lados (vingança). Comecemos pela guerra. Existirá entre ela
amarramos sua língua, depois cortamos seus intestinos, fon- e o Estado uma antinomia tão radical? As pesquisas recen-
te de vida interna, da vida em suma; jogamos aos cachorros tes5 no-la mostram como um fenómeno geral, comum a to-
seu coração, seu fígado (ou os comemos), empalamos pela das as sociedades históricas, estatais ou não. Certos exemplos
vagina as mulheres recalcitrantes ou velhas demais; castramos fazem pensar que os Estados podem mostrar-se tão belico-
os homens e exibimos, na volta à aldeia, os trofeus sexuais sos quanto as sociedades tradicionais. Estimam-se em mais
ou as cabeças."4 de 3,5 bilhões as perdas humanas devidas aos diferentes
O Bom Selvagem sai em estado lastimável dessas des- conflitos desde o início da humanidade (para uma popu-
crições de uma violência desmedida, que só representam lação total compreendida entre 60 bilhões e 100 bilhões).
uma pequena amostra dos materiais disponíveis. Elas pare- Mas a construção dos Estados não parece ter freado as he-
cem em todo caso confirmar as teorias de Clastres: o Esta- catombes. Apenas na Europa, o volume dos indivíduos afe-
do impede a guerra. Os partidários da modernidade e o et- tados pela guerra passa de 0,2% nos séculos XII e XE para
nologista estarão afinal de acordo? Nem um pouco. Pois, in- 8,2 na primeira metade do século XX, segundo conflito mun-
versamente, a guerra impede o Estado, enorme vantagem dial não incluído. A guerra tampouco é um invariante do
para Clastres, ainda que seu preço seja elevado. Com efeito, nascimento do Estado. Em certos casos, este aparece fora de
a guerra permite a cada comunidade ficar unida em torno qualquer contexto guerreiro (Cidade romana antiga, Méxi-
de seus valores e prevenir o processo fatal de divisão social. co pré-colombiano); noutros, ela é um fator determinante
Q Estado, ao contrário, é o produto dessa divisão, que rnn- de seu crescimento (Guerra dos Cem Anos e Estado fran-
duz à especialização do poder polítiçc^ciue^ele, maximiza. cês). Ademais, se para as sociedades tradicionais a guerra
_ que n P.sraHn o qlurio pode ser um efeito de seu projeto de unidade social, a ana-
admirador dos índios guaranis, o Estado é um falso pacifica- logia dessa orientação com o comportamento dos Estados
dor: extingue uma violência dirigida para o exterior pela guer- " é fácil de provar: a História pulula de casos nos quais estes
rã em proveito de uma outra, interna, que põe em movimen- utilizam a guerra para preservar a manutenção da ordem so-
to as engrenagens da dominação e da exploração no interior cial ameaçada por divisões internas. Enfim, ela é apenas uma
das sociedades. O Marx da luta de classes não podia ser gua- invenção recente na história da humanidade: podemos es-
rani, mas Bakunin teria se sentido à vontade entre esses índios/ perar outros meios de afirmar sua identidade.
Tentemos pôr um pouco de ordem nessas ideias ator- Portanto, o Estado não é guerreiro por essência, ainda
doantes. Lembrando primeiramente que a agressividade é que não repugne servir-se dos conflitos externos. Será, por
um componente da natureza biológica do homem e que nem isso, no plano interno, o pacificador tutelar que seus partidários
todos os seus aspectos são negativos: dominada, sublimada, se comprazem em pintar e, se não um benefício, pelo menos
ela é criadora. O perigo reside na violência de que é prenhe, um rnal menor? (Falo aqui do Estado liberal, pois, para as di-
que pode conduzir à guerra (confronto externo), ou às vezes

5. Cf. J. Pestieau, Guerres et paíx sans État, Montreal, 1'Hexagone, 1985.


4. J. Malaurie, Raids et esclavage dans lês sociétés autochtones de détroit Os números citados aqui são dados por L. V. Thomas, Anthropologie de Ia mort,
de Behring, Inter-Nord, 13-4,1974, 9. Paris, Payot, 1975,107.
102 NOS CONFINS DO DIREITO Q ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 103

taduras e regimes autoritários, a causa está entendida.) Nou- O direito positivo da Antiguidade concorda com essas
tras palavras, o Estado moderno impedirá a violência e a opções filosóficas. Na Atenas clássica, a ação por homicídio,
vingança das sociedades tradicionais, emparedadas em seu a ação por ferimentos com a intenção de matar são ações
primitivismo? Devemo-lhe um avanço da civilização? privadas, cabendo a iniciativa às famílias. Os crimes públi-
cos se resumem à insubmissão militar e aos atos sacrílegos:
o excepcional.
A vingança e o Estado Mais juristas do que filósofos, os romanos nem por isso
deixavam de obedecer às mesmas concepções8. Até o fim da
Sêneca odeia a vingança e retoma os argumentos de República, o direito penal ignora o estupro e o rapto. Sob
Platão sobre a função terapêutica do castigo. Aristóteles, cla- õ, iniciador do Estado imperial,d, -eíes são submetidos
ro, já os conhecia: não o convenciam. Para ele, a justiça con- à apreciação do juiz, porém trata-se mais de uma organiza-
siste sobretudo em corrigir a relação desigual que une aque- ção dá vingança do que de seu confisco pelo tribunal. O rap-
le que adquiriu uma vantagem àquele que sofreu uma perda, tor, sua vítima e seu pai dialogam na frente do juiz; o primei-
em restaurar o direito da vítima. Ela pode ser o agente dessa ro de joelhos, suplicando à ofendida e à sua família que o
retificação. A Ética a Nicômaco diz claramente que respon- perdoem. Cabe ao pai decidir se exige a pena capital, ou acei-
der a uma violência com outra não é cometer uma injustiça: ta a compensação de um casamento em que a filha será dis-
"Quando, contrariamente à lei, um homem causa um dano pensada de trazer um dote: um verniz de público sobre um
- sem que ele próprio responda a um dano - ele age injus- acerto de ordem privada. O caso de adultério é ainda mais
tamente [...] um ato de injustiça é um ato feito de plena von- surpreendente. Há pouco tempo (até 1975), o direito francês
tade, com escolha e em primeiro lugar, pois, conforme todos fazia dele uma infração penal. Em Roma, durante todo o pe-
declaram, aquele que, porque ele mesmo sofreu, devolve o ríodo republicano (quatro séculos), o direito penal, o que vem
que recebeu não comete injustiça."6 O recurso ao juiz, órgão do Estado, fica silencioso: reina a vingança. E sob formas que
da Qdade, não fica excluído se as partes o desejam. Mas o tri- nada têm de benignas: flagelação, nariz ou orelha cortados,
bunal não condena o próprio princípio de vingança; atém-se enucleação, castração e até sodomização (uma fantasia?) são
a examinar com os pleiteantes de qual lado se situa a justiça. reservados ao amante culpado pelo marido ultrajado, que
Por outro lado, Aristóteles não se contenta em legitimar a vin- pode matar pessoalmente a esposa surpreendida. Nenhuma
gança. Limita também, de uma maneira que escandalizaria o mediação judiciária assinalada. Apenas um pacto de resga-
jurista atual, o campo da ordem pública. Ao lê-lo, poucos de- te pode deter a vingança: o adúltero oferece uma compensa-
litos dizem respeito ao interesse geral, o essencial continua do ção pecuniária ao marido, que a aceita, a priorí por fraqueza
campo privado: "Podemos realizar dois tipos de atos injustos (não se atreve a vingar) ou cupidez (juristas o assimilam en-
e de atos justos, quer contra um membro único e determina- tão a um proxeneta). Mas o homem de honra tem de recusá-
do da comunidade, quer contra a comunidade; por exemplo, la. Mais espantoso ainda: os crimes de sangue, em pleno regi-
quem comete um adultério ou dá surras comete um delito me da Cidade-Estado, por muito tempo são resolvidos ape-
contra um membro determinado; quem recusa fazer campa- nas pela vingança. Até os anos 130 a.C. (a época dos Gracos,
nha [militar] comete um delito contra a comunidade."7

6. Aristóteles, Ética a Nicômaco, V, 15,1138, a, 7 ss.; a, 20 ss. 8. Cf. Y. Thomas, Se venger au Fórum. Solidarité familiale et procès cri-
7. Aristóteles, Retórica, l, 13,1373, b, 20 ss. minei à Rome, in: La vengeance, op. cif., III, 75 ss.
104 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 105

os tribunos reformadores) funciona um duplo procedimento: putsdis militares, nascerá o Estado autoritário e dirigista do
um, público, aplica-se às conspirações criminosas contra a Baixo Império: o imperador se tornará "a lei viva sobre a ter-
Cidade; o outro, privado, no qual a ação é executada pelas ra". Muito mais tarde, os juristas franceses da Idade Média
famílias, intervém no caso geral em que o homicídio opõe empregados pela monarquia se apoiarão no direito romano
particulares entre si (salvo para os parricidas, passíveis de imperial para dizer que "Toda justiça emana do rei". (7\ que retirar des
uma ação pública).
Queda do Bom Selvagem, dei a entender. Devemos con- ideia de que a vingança não é inconciliável com a moderni-
fessar que os civilizados da Antiguidade não sé saíram mui- dade, de que pode coexistir com formas estatais de organi-
to melhor da prova. Aristóteles decerto é o maior pensador zação do poder (inclusive com regimes democráticos), e de
da Antiguidade, e a modernidade de muitas de suas análises que a filosofia não é indigna quando empreende explicá-la
filosóficas é atestada ainda hoje. Quanto aos romanos, quem sem que nem sempre a condene. Em segund^éfue sua extin-
ousaria contestar-lhes qualidades de juristas? Portanto, não ção está menos ligada aos progressos da civilização do que
se trata de invocar aqui um "primitivismo" qualquer para ex- ao aumento da dominação estatal sobre a vida privada, a qual
plicar a persistência da vingança nas sociedades que atingi- pode na extremo redundar em regimes autoritários ou dita-
ram, e brilhantemente, o regime da Cidade. Logo, a vingan- toriajÉSy)bservemos também que a supressão da vingança
ça pode muito bem coexistir com formas modernas de vida. como instituição não é em absoluto sinónimo da supressão
política e social. Mas, então, por que o famoso adágio Nin- da violência.
guém pode ser o seu próprío juiz, e quando ele se forma? En- Tomemos exemplos mais contemporâneos. Os Estados
contramo-lo muitos séculos mais tarde, no código do impe- Unidos: este é um país que tem a religião do direito e dos
rador Justiniano (este data de 529 depois de Cristo). É a.bern processos. Algumas lawsfirms empregam uns mil advoga-
jjizer-no. início doJmpfirio-que_O- Estado entra no campo da dos e organizam um verdadeiro marketing judiciário, incenti-
resolução dos conflitos. Augusto confere à punição do es- vando a inflação da demanda de litígios a fim de desenvolver
tupro e do~rãp~follrrrcãrater público; regulamenta também a oferta... e os lucros. A luta ficou ainda mais áspera porque,
as punições do adultério, deixando ao mesmo tempo ao pai faz uma década, a Corte suprema autorizou a publicidade
profissional. Resultado: florescem os cartazes onde se reco-
da mulher leviana uma larga iniciativa na punição. Um pou- menda aos cidadãos não hesitarem em entrar com um pro-
co mais tarde, Sêneca condenará a vingança, enquanto cres- cesso, entregando-se aos bons cuidados deste ou daquele
ce a concentração do poder nas mãos do Imperador. escritório. Os conflitos são exacerbados. Os advogados de-
Poisjudo está aí. na invasão da esfera privada pelo Es- vem incessantemente ser agressivos, desagradáveis. Com a
tado, que muito tempo se manteve em sua beirada. A evo- ajuda do estresse, o alcoolismo faz devastações na profissão.
lução das representações o atesta. O Estado confisca em seu Trinta e cinco por cento deles almejariam abandoná-la (5,5%
proveito o poder familiar, o poder paterno. O imperador se faz a deixam a cada ano)/Portanto, a violência aparece no âma-
nomear pater patrise; procedimentos novos (apelo ao prínci- go do mundo dos junstas, numa sociedade economicamen-
pe, remissão de pena, graça) acostumam as mentes à ideia te desenvolvida, dotada de um Estado e de uma tradição cris-
de que ele é fonte de qualquer justiça. O enfrentamento no tã/Manifesta-se também sob outras formas, bem conhecidas:
Fórum, típico do período republicano, é substituído por me- um assalto a cada dez segundos, um estupro a cada seis mi-
canismos de integração e de submissão: a vingança deve de- nutos, um homicídio a cada meia hora. A angústia de segu-
saparecer. Dois séculos depois, em meio às convulsões dos rança,, amplamente fundamentada, transparece em algumas
106 N"OS CONFINS DO DIREITO Q ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 107
urbanizações, ainda exóticas para os franceses. Existe na Ca- nem todos os casos de vingança sobem necessariamente ao
lifórnia um povoado inteiramente construído para os apo- nível judiciário. Uma parte deles permanece desconhecida,
sentados, o Rossmore Leisure World. Vendo-o, pensamos ir- ou seus autores não são encontrados. Mas, quanto aos ca-
resistivelmente numa cidade fortificada do Baixo Império, sos menos graves, o princípio de oportunidade das ações
escondida dentro de muralhas erguidas contra os assaltos judiciais pode impedir que os tribunais os conheçam: o Mi-
dos bárbaros. Quatrocentos e cinquenta hectares de terre- nistério Público é juiz da destinação que se dará às queixas
no ocupados por construções individuais, cercadas por um apresentadas.
muro que separa a cidade dos perigos externos, onde uma E as vítimas? Sêneca lhes prescrevia retrair-se para que
polícia privada patrulha dia e noite... A violência é tal entre os esforços da sociedade se concentrassem na correção do
os delinquentes que as autoridades penitenciárias, em Nova culpado. Sua mensagem ainda inspira nossa dramaturgia
York, elaboraram um petprograms: trazem aos detentos ani- judiciária. Observemos a disposição dos atores num processo
mais (cachorros, gatos ou tartarugas), incentivando-os a aca- de júri10. O réu fica sozinho, longe de seus parentes ou amigos
riciá-los, para que possam aprender a ter uma atitude mais eventualmente presentes, isolado dentro de um pequeno cer-
meiga com os outros e abrir-se a relações que não sejam as cado mais alto em relação ao público. É a única personagem
de hostilidade9. Mas a opinião pública só raramente é levada permanente do processo que não usa toga ou beca. Na fren-
a tal mansuetude: os anos Reagan popularizaram o slogan te, o público contido por uma barreira, o tribunal, as testemu-
"Fechem-nos e joguem a chave". Quanto à vingança, estaria nhas, o júri, a defesa e a acusação: os verdadeiros donos do
ao contrário em pleno desenvolvimento: cada grande cidade processo, ficando esquecida dentro desse espaço a vítima (ou
americana (Los Angeles é um bom exemplo) tem bairros on- sua família). Ela dispõe por certo de um lugar reservado num
de se enfrentam de modo sangrento bandos rivais, e onde banco que a distingue do espectador anónimo; um advoga-
os homicídios de crianças não são excepcionais. Desta vez, do - dito da parte civil - a representa nos debates. A posição,
é antes o Mau Selvagem que se delineia sob os traços do ho- os gestos do Ministério Público, que age em nome do Estado
mem moderno... e da sociedade, expressam toda a autoridade de que dispõe
A França parece mais bem aquinhoada. Contudo, em re- sobre eles. Vestido de uma toga vermelha (a dos advogados é
gistros mais discretos, o tema da vingança se faz ouvir. Pas- de uma negra monotonia), ele fica instalado sobre um estra-
semos pela imprensa popular especializada em processos do, no mesmo nível que os juizes, superior àquele onde fica
penais, na qual ele é onipresente e combina com a sexuali- a vítima. Deve levantar-se para requerer, mas pode formular
dade (os "dramas da vingança"). A ideia de autodefesa pro- suas perguntas sentado. Para pedir a aplicação da lei, certos
gride e os seguranças particulares são mais numerosos do que substitutos se contentam em bater a mão sobre seu código
antes. Segundo uma pesquisa efetuada em 1984, 60% dos penal sem nem sequer esboçar o gesto de se levantar. Sím-
franceses dizem que se vingariam pessoalmente em caso de bolos perfeitamente legíveis.
assassínio de um de seus próximos. E, quando isso acontece, Comoveram-se com esse retraimento das vítimas. Faz
os tribunais são em geral muito indulgentes e prolatam pe- uma década, multiplicaram-se estudos referentes a elas, cria-
nas de princípio (aprisionamento com sursis). Por outro lado, ram-se serviços destinados a dar-lhes uma ajuda, e o Minis-

9. Cf. A. Logeart, Lês prisons américaines, Vietnam intérieur: New York 10. Cf. a obra apaixonante de A. Garapon, Uâne portant dês reliques. Essai
rançonnée par sés peurs, Lê Monde, 2 ago. 1990, 8. surle rituel judiciaire, Paris, Lê Centurion, 1985.
108 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 109

tério da Justiça ficou muito sensibilizado com seus proble- A vingança, um confronto sangrento e desmedido con-
mas. As experiências de conciliação desenvolvidas nos casos trário à civilização? É o que pensam os esquimós da costa les-
civis e comerciais começam a ser tentadas com prudência no te da Groenlândia. Acreditam lembrar-se de velhas narrativas
campo penal. Sem que se possa falar de uma privatização do que atestam essas devastações, a obrigação de matar inde-
conflito penal, e menos ainda de uma institucionalização da finidamente transmitida de geração em geração. Mas, curio-
vingança, esses diversos sinais atestam urna reação contra a samente, os dados etnográficos não correspondem a essas
sua neutralização. tradições12. A colonização dinamarquesa inicia-se em Am-
Persistência da violência e de certas formas de vingança massalik em 1884. Durante a década seguinte, percebem que
nas sociedades estatais e nos regimes democráticos, atenção a frequência dos atos de vingança sangrenta só atinge 0,76%
crescente dada às vítimas, indulgência frequente para com da população com idade para praticá-la. Por outro lado, a
seus atos de vingança: a modernidade talvez seja menos ra- maior parte do tempo, a vingança detinha-se no primeiro
dical do que se gosta de dizer. E, sobretudo, não se situa onde homicídio de desforra e não tinha, portanto, caráter heredi-
se pensa. O que o Estado moderno erradicou não foi a violên- tário. A contradição é apenas aparente. Mostraram que os
ríg nem a vingança, mas o sistema vindicativo. que ao menos missionários dinamarqueses haviam transmitido suas pró-
tinha a vantagem de canalizá-las, encerrando-as numa estri- prias fantasias aos groenlandeses que começaram a batizar
ta regulação de ordem jurídica. no final do século XIX. Estes se tornaram no século XX os
"antigos" veículos da tradição. Ora, foi a mensagem do colo-
nizador que transmitiram: o cristianismo e os administrado-
A vingança "selvagem", um fenómeno moderno? res dinamarqueses vieram trazer a civilização à Groenlân-
dia, salvando seus habitantes do desfecho fatal ao qual os
Sistema vindicativo: a expressão parece pedante. Mas condenavam a vendeta e outros costumes bárbaros. Na rea-
lidade, a vingança não era em absoluto esse flagelo de que
permite distinguir a vingança nas sociedades tradicionais
falavam os dinamarqueses. Em muitos dos casos suscetíveis
das caricaturas modernas. Sêneca já via na vingança um
de provocá-la, ela não se desencadeava. Podia ser pelo pro-
sentimento desmedido, quase animal. Mais perto de nós,
cedimento da cisão, corrente entre os caçadores-pescadores-
R. Girard repete o lugar-comum da vingança sangrenta que apanhadores: o grupo que pode temer ã vingança muda-se
- acorrenta as gerações umas às outras nas sociedades despro- por um tempo variável. Ou ainda recorrendo a forças rituais
vidas de sistemas judiciários dignos desse nome11. A maior
.pAJuo- parte dos juristas faz coro contrapondo a vingança imediata, " e pacíficas de solução do conflito, tais como a competição de_
"canto, praticada na costa leste da Groenlândia, mas
desmedida, cega, das sociedades primitivas, à pena estatal, bem noutros lugares do Ártico13. O ganhador é o cantor mais
mediada, comedida, personalizada. A vingança seria o avesso inventivo, o que encontra os traços mais mordazes. jSfatural-
negativo da pena. Por sorte, os depoimentos etnográficos são mente, o perdedor pode ser quem está com a razão. Solução
extremamente abundantes: portanto, é fácil pôr à prova es- "injusta? 'falvêz7mas tem um custo social inferior à vingança,
sas ideias simples.

12. Cf. B. Sonne, The Ideology and Practice of Blood Feuds in East and
11. Cf. R. Girard, Dês choses cachées depuis lafondation de monde, Paris, West Greenland, Études Inuit, 6-2,1982, 21-50.
Grasset, ,1978, 20, Em resposta, cf. R. Verdier, Lê système vindicatoire, in: La 13. Cf. N. Rouland, Lês modes juridiques de solution dês conflits chez
vengecmce, op. cif., 1.1,13-42. lês Inuit, Études Inuit, 3,1979, 80-101.
110 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 111

pois ela vive maldizendo,


e, de outro lado, a habilidade dos advogados não é determi-
pois ela vive fazendo escândalo,
nante nos processos? a tal ponto que não posso suportar.
Escutemos um desses cantos. No decorrer de uma vio- Não penso que vão ignorar, que vão ignorar
lenta briga, Tusarpua fere com uma facada a esposa de Uper- teu canto,
nâq. Este pretende vingá-la. O caso se agrava: decide-se so- teu poema,
lucioná-lo com uma competição de cantos. Chegado o dia, os contra mim, homem isolado
dois protagonistas se enfrentam, cada qual acompanhado de contra mim, que sou solteiro,
seu tambor: Sim, é verdade
que sou sozinho,
Upernâq Porque não posso esquecer, que sou solteiro.
Vou cantar um canto com o tambor. Pois não gostaria de ter uma mulher como
Porque não posso esquecer, atua!
quero ter uma desforra,
porque ele quase me matou cantando, E assim por diante, tudo podendo durar horas e horas
esse asqueroso, esse impudente indivíduo. quando os adversários são hábeis.
Mas eu agradeço Deixemos o litoral da Groenlândia para abordar o da
a certos xamãs Córsega, terra dileta da vingança. Decerto aqui não se pode
que me ajudaram até o mais fundo de minh'alma. duvidar de seu caráter hereditário. Mas costuma-se insistir
Porque não posso esquecer, nesse traço, esquecendo de mencionar que um desfecho pa-
vou agora cantar contra ti. cífico não está de modo algum excluído, graças à intervenção
Vou fazer um canto satírico a teu respeito & um mediador voluntário, figura importante es:
pois estou morrendo de pena de minha esposa
e gostaria de proteger ^ s, que se interpõe e propõe soluções pací-
minha pobre esposa, ' ricas que os~ãdversários são obrigados a aplicar quando as
minha pobre companheira. negociações termmarenL Soluções variadas: banimento, ca-
Quase acabaste com ela, bicho selvagem. samentos com constituições de dote entre membros de fa-
Quase a dilaceraste a facadas, bicho selvagem. mílias inimigas, compensações materiais (mas, em princípio,
os crimes de sangue não são resgatáveis pelo pagamento em
Tusarpua Mesmo aqueles que vivem longe disseram, dinheiro, o que lembra o provérbio caucasiano: "Não fazemos
aqueles que estão muito longe a oeste disseram comércio com o sangue de nossos irmãos/Q. A sentença do_
que esse miserável Upernâq, jmceru fica consignada num tratado de paz. Se uma das par-
para a gente do leste, tes viola-lhe as cláusulas, o paceni entra em vendeta com toda
para esse pequeno número de homens, ITsãa família contra o mmpitore ai pace. Antes, para marcar a
organizaria um festival de cantos. Infâmia do contraventor, ele podia queimar-lhe a casa ou
Pois dizia que estava com dó,
pois dizia que queria proteger sua pobre mulher, proceder ao escorchamento de suas castanheiras ou de suas
sua mulher, que é muito mais velha que ele. oliveiras14. Mas a ação do Estado vai modificar esses meca-
Ele diz que sua pobre mulher,
Eu quase a matei apunhalando.
É, é verdade, eu gostaria de fazê-lo, 14. Para mais detalhes, cf. J. Busquei, Lê droit de Ia vendetta et lês Paci cor-
ses, Paris, Pedone, 1920.
eu gostaria de tê-la matado,
112 NOS CONFINS DO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 113

nismos tradicionais. Desde o século XVIII, este se esforça em • é o principal objetivo para o qual deve tender a òrgani-
dar um fim na vendeta, em nome da ordem pública. Não n 'rão social; entre os índios zunhis (América do Norte) ou
sem sucesso. Mas à custa de certas "escorregadas" da ven- Za 'rnbutis (caçadores-apanhadores do Congo), o homem

deta, Assim, o banditismo de honra vira pilhagem. Quando, erdadeiro é aquele que sabe evitar as brigas. Dá-se o mes-
no início do século XIX, um homem comete um crime por o com a vingança: certas sociedades são mais inclinadas a
questões de honra, é obrigado a ir para o mato para escapar ela do que outras. Mas todas a praticam observando uma
dos guardas, mas sua única preocupação continua defender- reeulaçã° que possui os atributos do direito. Mesmo aque-
se contra seus adversários. No decorrer do século XIX, for- las que hesitam menos em derramar o sangue para preservar
talece-se a repressão; as vítimas se apoiam com frequência honra. Portanto, tomarei dois exemplos entre elas.
cada vez maior nas forças da ordem; as regras tradicionais Volta à Córsega tradicional. A entrada em vendeta inau-
que limitavam o exercício da violência tendem a apagar-se gura uma série de ritos: a alimentação fica mais frugal, su-
a vendeta adquire um caráter "selvagem", primitivo, que é, primem-se o vinho, a toalha, os guardanapos, a carne se faz
na realidade, recente. rara. Em caso de homicídio, a camisa ensanguentada do de-
Esses exemplos (haveria outros) reclamam uma interro- funto fica exposta na sala comum para manter vivo o desejo
gação. A imagem que fazemos comumente da vingança nas de lavar a ofensa. No decorrer de um velório, os parentes pró-
sociedades tradicionais não será largamente falsa? E sobre- ximos do morto entoam exortações à vingança, dançando
tudo não se teria de ver nisso o produto de uma manipulação (caracolu) ao redor do morto, enquanto os homens batem no
destinada a valorizar a coerção estatal, apresentada como chão com a coronha de seus fuzis. Mas essa vingança é se-
um progresso em comparação com os arcaísmos das socieda- letiva: apenas podem ser submetidos a ela os parentes varões
des desprovidas de Estado? Em suma, um quadro das origens do ofensor, até o terceiro grau inclusive. Escapam dela as mu-
que só seria uma visão moderna, posterior à instauração do lheres, as crianças, os velhos, os parentes por aliança e os pa-
Estado, quando este se arroga o monopólio da coerção e da dres regulares. Assim como aqueles que desejam ficar neu-
punição. Devemos refletir seriamente sobre isso. Ainda mais tros: intenção que manifestam deixando crescer cabelos e
que, em todas as sociedades que praticam a vingança, esta barba e abstendo-se do porte de qualquer arma. A vingança
não se mostra em absoluto como um encadeamento anárqui- só pode iniciar-se uma vez cumpridos certos atos de adver-
co de atos sangrentos. Muito pelo contrário, o direito a aper- tência: os juramentos de vingança (terribili ghiuramenti) e
ta como um espartilho. a declaração de cautela ("Acautela-te, se o sol te toca, meu
chumbo te atingirá"). Depois disso, podem começar as em-
boscadas. O tempo da vingança constitui uma pausa entre
O espartilho do direito à vingança comportamentos comuns: os homens deixam de barbear-se,
as mulheres se vedam qualquer riso, fecham-se portas e ja-
Nem todas as sociedades tradicionais adotam a mes- nelas, cobrem-se os espelhos. Os justiceiros se tomam em ge-
ma atitude para com a violência. Se algumas a valorizam15, ral banditu (banidos): vão para o mato, moram fora do espaço
outras, ao contrário, fazem da paz seu ideal. Para os esqui- comum da aldeia. Enfim, a vingança se estende ao mundo
mós do Labrador ou para os toradjas das Celebes, a harmo- invisível: pois o homicídio realiza uma amputação intolerá-
vel do "capital de ancestralidade". Com efeito, a alma do as-
15. Cf. supra, pp. 102-3. sassinado é maldita, não encontra descanso: é uma "alma
114 NOS CONFINS DO DIREITO A VIOLÊNCIA E O DIREITO 115

penada", presa ao local onde a vítima do homicídio tombou. A r-se-á atingir o chefe da família ou mesmo um adulto en-
A assombração vem assombrar os vivos reclamando seu dé- ° s agnatos até o quinto grau. Mas nem todos esses paren-
bito. Esses defuntos infelizes e ameaçadores se opõem aos \o igualmente ameaçados. De fato, são divididos se-
ancestrais, mortos normalmente ou corretamente vingados, l£í>ido uma ordem de vingança que deve ser rigorosamente

que desempenham um papel benéfico para com os vivos. Os ^ouida. Esse mecanismo vale ser descrito: "Em princípio, a
mortos não vingados reclamam a proteção dos vivos para ada do vingador pode atingir um adulto no seguinte grupo:
tornar-se por sua vez ancestrais. Logo, estes têm todo o inte- 1) avô do assassino
resse em satisfazê-los. Não só para pôr fim às assombrações, 2) pai e tios paternos
mas também porque um clã se estende a além da morte e 3) o próprio assassino, seus irmãos e primos irmãos
necessita para seu prestígio de dispor de linhagens contínuas, 4) filhos varões e os de seus irmãos
de um "capital" de ancestrais. A família vítima de um homi- 5) netos
cídio vê seu capital diminuído: deve fazer o clã ofensor so- [...] Para nos permitir seguirmos o raciocínio do direito
consueíudinário, convém especificar primeiro que a respon-
frer uma amputação equivalente.
Os beduínos da Jordânia também querem o descanso de sabilidade dos khamsa [os cinco graus de parentesco] é sim-
seus mortos. A alma do desaparecido, separando-se do corpo kolizado por uma mão fechada brandindo um punhal. Os
cinco graus de parentesco são representados pelos dedos
por causa de uma morte violenta, transforma-se em coruja
que reclama sem parar beber o sangue de seu inimigo. Ma- da mão, que são afastados sucessivamente quando se faz o
nifestam igualmente, até a obsessão, a preocupação de pa- cômputo. Os parentes do primeiro grau são atingidos com
toda a força do braço. Afasta-se então um dedo, para signifi-
ridade: trata-se menos de destruir uma ordem social e mo-
car que se trata agora daqueles de segundo grau. A terceira
ral do que, ao contrário, restaurá-la. Uma regulamentação geração é, pois, ameaçada por uma faca segura por três dedos,
jurídica minuciosa zela por isso16. Em primeiro lugar, o re- o que é assim mesmo suficiente para dar a morte. O perigo
curso à vingança só ocorre em caso de atentado grave e vo- que pesa sobre a quarta geração é nitidamente menos gra-
luntário à integridade física da pessoa (o estupro lhe é assi- ve, pois, utilizando dois dedos somente, pode-se quando
milado): em todos os outros casos, o acordo é de regra. Quan- muito infligir algumas feridas. Por isso oferecem-lhe a pos-
do se impõe a vingança, deve ser feita dentro do respeito ao sibilidade de escapar à vingança, indenizando os parentes
direito. Paridade social: se um escravo mata um homem li- da vítima. Para tanto, deverá dar o "camelo do sono", ba'ir
vre, não é ele que se tentará matar, mas seu dono. Por vezes al-naum, ou seu contravalor em dinheiro (ou seja, trinta di-
a qualidade social da vítima torna esse imperativo difícil de nares na Jordânia), mediante o que poderá "dormir em paz".
cumprir: "O sangue de um emir não tem preço", diz o provér- A quinta geração não é diretamente ameaçada, pois, com um
bio. O quantitativo vem então em socorro do qualitativo: se- único dedo, o representante do sangue está quase desarma-
rão predsos vários homens de uma posição inferior para ex- do. Mas deve assim mesmo seguir o assassino em seu exílio,
tinguir a dívida de sangue. O direito modula igualmente a vin- como, aliás, todos os membros do grupo dos khamsa. Quan-
gança segundo as relações de parentesco. À míngua de poder do a mão está inteiramente aberta, o instrumento de justiça
espalhar o sangue do próprio homicida (a fuga é frequente), cai e, com ele, o direito de se vingar. Por isso não se deve ir
além do quinto grau. Assim, portanto, entre os khamsa, ape-
nas os três primeiros graus de parentesco caem sob a lei de
16. Cf. J. Chelhod, Equilibre et parité dans Ia vengeance du sang chez lês
Bédouins de Jordanie, in: La vengeance, op. cit, supra, 1.1,124-43. vingança. Mas no próprio interior desse grupo que o perigo
116 NOS CONFINS DO DIREITO 117

espreita, a regra dos "cinco graus" seguida no cômputo per- acenas o clã tem o poder de dominar: a terra por onde ele se
mite a parentes mais ou menos afastados escapar à espada espalhou fica má, os génios do lugar pedem reparação. Em
do justiceiro. O cálculo se faz de início a partir do homicida raso de homicídio, o clã da vítima dispõe de somente dois
remontando a um ancestral em comum, al-jadd al-jâmi. De- dias para matar o culpado ou um de seus irmãos. A soli-
pois, por via descendente, conta-se para cada ramo o número dariedade entre irmãos (o termo é classificatório: por irmão,
de gerações desde o topo até a base. A linha direta do homici- pode-se tanto designar o tio paterno como o primo-irmão)
da sempre é designada ao braço do vingador mesmo que seu é relativamente fraca: aquele que quer evitar pagar pelo pa-
último rebento seja um bisneto. Em compensação, um ramo rente pode legitimamente fugir deixando a aldeia, ou ins-
colateral é poupado se, do topo da linhagem ao último a nas- talar-se junto a famílias aliadas,, donde os frequentes fluxos
cer, existem cinco graus de parentesco. Se há apenas quatro, migratórios entre os moundangs. Em geral é entre os paren-
ele paga o "camelo do sono". É nesse sentido que os beduínos tes maternos que se encontra refúgio. Diz um provérbio: "O
dizem: "um neto pode libertar o avô"17. parentesco da vara separa, o da vagina reúne." Ou ainda:
Poderíamos continuar por muito tempo ainda a expo- "Teus irmãos, é a morte; teu tio materno, é o verdadeiro [o
sição do direito beduíno. Constatemos que nada aqui con- bom] parente." Como os clãs moundangs são patrilineares,
firma a apresentação caricatural da vingança em geral atri- as relações de competição pelas mulheres e pelos bens opõem
buída às sociedades tradicionais. os parentes do lado masculino, enquanto as ocasiões de con-
Um outro exemplo, tirado de uma sociedade diferen- flitos com os uterinos são muito mais raras. Que se passa se,
te das precedentes, os moundangs do Chade18. Embora os ao cabo de 48 horas, o vingador não conseguiu exercer seu
moundangs considerem que o ofendido deva "pegar a lança direito? Impõe-se o recurso à adivinhação: os anciãos vão
com seus irmãos", eles associam menos que as sociedades consultar o adivinho, que pode designar-lhes um homem do
mediterrâneas a noção de virilidade a valores tais como a clã do assassino como objeto de vingança. De fato, trata-se de
honra e o desprezo do perigo. Tentar escapar à engrenagem uma medida de prevenção: evita-se assim que, na falta de ví-
das represálias nada tem de vergonhoso, buscar a concilia- tima, a vingança degenere em guerra geral. Mas aí, também,
ção não é prova de covardia. Pois aqueles que a lança sepa- os prazos são curtos: se nada se passa durante os dois dias
rou já não são irmãos, já não podem herdar uns dos outros; que seguiram a consulta, os idosos dos dois clãs em questão
a vingança veda os intercasamentos, o que é fonte de tor- devem chegar à conciliação. (Desde a época colonial, o rei ou
mentos nessa sociedade composta de clãs exógenos. O pres- seus representantes também participam dos rituais.) Pois o
tígio vem mais da idade e de uma numerosa progenitura. Por sangue derramado "esquentou" a terra: o sacrifício do "boi
outro lado, esses clãs não são os únicos detentores do po- da chaga" vai esfriá-la. A família do assassino traz um boi à
der. O sistema político moundang é o de uma realeza sacra: beira do rio, no local onde as esposas do rei vêm tirar a água.
o rei é ao mesmo tempo chefe político hereditário e detentor Um escravo do rei faz o animal beber um veneno do qual se
de funções rituais e de poderes mágicos. Pode desempenhar diz que "paralisa a mão" dos antagonistas, tomando a vio-
certo papel em relação à vingança clânica, mas este perma- lência impossível. Depois o boi é morto, e seu sangue recolhi-
nece menor. O sangue derramado libera forças perigosas que do num pote. Os grandes de cada um dos clãs rivais molham
nele as mãos, o representante do rei indica o número de ca-
17. Md., 130-1.
beças de gado que os ofensores deverão fornecer aos ofendi-
18. Cf. A. Adler, La vengeance du sang chez lês Moundang du Tchad,
dos. No entanto, o direito à vingança ainda não está extin-
Md., 75-89. to. O ritual vai dar- lhe uma última ocasião de se manifestar.
118 NOS CONFINS DO DIREITO
O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 119

Com efeito, o boi sacrificado é esquartejado no local, e uma


lírica gamo. As vizinhanças comportam raramente mais de
parte de sua carne, cozida. Apresentam uma bolinha des- cem familiares. São federados em países, territórios que pos-
sa carne a uma criança escolhida entre os sobrinhos uteri- suem fronteiras e um nome específicos. Esse vínculo terri-
nos da vítima. Sua recusa é sinal de que os génios não aceitam torial prevalece sobre as relações de parentesco, o que con-
a reparação: a vingança vai recomeçar. Se aceita, um dos pa- tribui para explicar o descrédito dado à vingança.JP solucio-
rentes do defunto recebe os bois da compensação e os usa namento do conflito deve ser pacífico. Os homens honrados'
para pagar o dote necessário à escolha de uma esposa. Cons- ' _ pacificar as brigas: esta arte é um dos prin-
tatação importante: o preço do sangue equivale ao do dote. No rínios fundamentais da educagão gamo. A reparação e a
lugar do defunto, uma esperança de procriação. Observemos pena são meios rudimentares de dar fim a um conflito: cum-
também que a intervenção régia no ritual, de data recente, fica pre sobretudo eliminar suas causas e os rancores que ocasio-
modesta: o direito da vingança é clânico. No entanto, o assas- nou (aliás, expulsam-nos do ventre por vómitos simulados).
sino pode refugiar-se na casa do rei, onde escapará da vingan- Em caso de homicídio, tudo é feito para prevenir as oca-
ça. Apesar das aparências, isso nada tem que ver com o direito siões de vingança. Os membros das linhagens envolvidas
de asilo medieval. O criminoso não é julgado nem desculpado devem evitar-se, o homicida é desterrado. Mas o banimento
pelo rei; somente passa para sua dominação, tomando-se seu não é definitivo. Prima a reconciliação, e os parentes da víti-
servidor. E no entanto a realeza moundang já constitui um sis- ma participam dêlãTO homicida e sua linhagem tomam a
tema estatal: essa monarquia hereditária opera uma especiali- " pnviando seus anciães acTclã da~vítíma para saber
zação do poder político, que é exterior ao conjunto das unida- se culpado. Quando a resposta é afir-
des de linhagem sobre as quais se exerce. Osjnoundangs con- marca a extinçagjdo conflifoJJm animal
seguiram elabgrar_um modelo que conjuga sistema vindi- iacrificado, depois o cortam ernpedaços e praticam uma
j^Hyo^estruturãestataf e inexistência do direito penal. incisão em sua pele. O homicida e o parente mais próximo
Os gamos da Etiópia realizam outro feito, em sentido da vítima passam então por esse buraco, para marcar seu re-
inverso. Todo o aparelho social deles visa reprimir a vingan- nascimento para uma ordem nova.
ça, falta grave para com as potências sobrenaturais e sobre- Todos esses exemplos mostram o caráter rudimentar, e
tudo ameaça mortal para a unidade de sua sociedade polí- às vezes erróneo, dos vínculos classicamente estabelecidos
tica19. Sabe-se que os juristas europeus creditam ao Estado entre o Estado, a pena e a vingança. O sistema vindícativo
essa condenação da vingança e lhe atribuem a invenção da atua com mais facilidade nas sociedades não estatais. Mas
justiça penal. Contudo os gamos não conhecem o Estado, certas formas de Estado coexistem com ele e pouco inter-
não são dotados de uma organização política fortemente di- vêm em seu funcionamento: é o caso das cidades ateniense
e romana e de inúmeras monarquias nas sociedades tradi-
ferenciada nem de um aparelho judiciário especializado. Or-
cionais. Outro desmentido de um lugar-comum: aquele
ganizam-se, pelo contrário, em pequenas federações sob a
que vincula Estado e direito penal. Por certo essa associação
autoridade de assembleias nas quais todo homem adulto
é de regra nos Estados modernos, ainda que a vejamos es-
pode participar ativamente. Não é o Estado, mas a ideia de
boroar-se diante de nossos olhos20. No entanto os moun-
uma comunidade territorial que fundamenta a unidade po- dangs (não são os únicos) têm um Estado, mas não direito
penal. Em outras numerosas sociedades, encontramos do
19. Cf. J. Bureau, Une société sans vengeance: lê cãs dês Gamo d'Éthiopie,
ibid., 213-24.
20. Cf. infra, pp. 140 ss.
120 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A DOLÊNCIA E O DIREITO 121

mesmo modo direito penal, mas não Estado. Entre os esqui jos casos, as vítimas aceitaram colaborar na correção dos
-os, referência obrigatória das sociedades sem Estado 0 culpados. Depois da pena, o perdão poderia entrar mais profun-
homicida recidivista é subtraído ao sistema vindicativo, pois damente nas categorias jurídicas. A etnografia das sociedades
isideram que sua obstinação o toma um perigo para a so- tradicionais mostra suficientemente que a reconciliação faz
ciedade inteira. A comunidade decide então sua liquidação parte do bom funcionamento do sistema vindicativo.
tísica, sempre efetuada por seus parentes mais próximos De outro lado, a monopolização pelo Estado da sanção
o por sadismo, mas para marcar bem que não se trata de penal atesta uma atitude mais geral: a ignorância da socie-
um ato de desforra: estamos mesmo no reino da pena. dade civil. Ora, esta reage. Os especialistas de direito penal
Tudo muda não com o Estado em geral, mas com uma dão com toda razão ênfase à diversificação em curso dos
torma particular de Estado, característica o mais das vezes modos de controle social, resultante numa retomada pela
das sociedades modernas: a do Estado unificado e centra- sociedade civil do papel do Estado e numa atenuação dos
lizado, onde o poder político, muito especializado, arroga-se caracteres imperativo e punitivo de nosso direito. Dá-se cada
o monopólio da violência lícita. O direito penal então é de- vez mais importância à prevenção; o estilo das recomenda-
finido apenas a partir de seu impulso. O sistema vindicativo ções feitas aos usuários se ameniza (as menções do género "É
desagrega, a vingança perde seus ritos: deixa de ser um formalmente proibido..." são mais raras do que antes). Assis-
o de relação entre grupos complementares e antago- timos a uma desjudiciarização dos conflitos: a mediação está
nistas e se torna o mais das vezes, numa metamorfose mo- na moda; o apelo à colaboração voluntária dos indivíduos
terna, sinónimo de pura violência. Haverá progresso? Sim, progride em nossas instituições judiciárias21. Ao lado dos
na medida em que o direito penal moderno, quando proíbe serviços organizados pelo Estado, os circuitos paralelos de
a pena de morte, impede o sangue de correr (está longe de ajuda às vítimas se multiplicarp^Énfim, podemos observar
o caso em toda parte, notadamente nos Estados Unidos, que o Estado moderno e seus louvadores construíram um
>nde em certos estados, podem-se executar menores ou sistema de representações eficaz mas erróneo para justifi-
Imduos que não gozam de todas as faculdades mentais) .-...
car-lhe a inflação. À justiça civilizada, da qual ele seria o úni-
co fiador, se oporia a barbárie sangrenta das sociedades pri-
e, suprimindo a responsabilidade penal objetiva, impede mitivas, submetidas ao reinado cego da vingança, que igno-
que aqueles que não estão na origem do crime ou do delito ra tudo da noção de interesse público. Penso ter mostrado
paguem pelos que o cometeram. Mas não em muitos ou- que não é nada disso. Essas sociedades souberam, ao contrá-
tros aspectos.
rio, inventar mecanismos jurídicos de resolução dos confli-
De um lado, negando toda legitimidade à vingança, o tos que, ainda que com defeitos, não deixam de constituir
tado aumenta a mutilação que o crime ou o delito infli- inovações tão estimáveis quanto muitos achados das socieda-
gem a vitima e aos seus próximos, entretanto os primeiros des modernas. (O enclausuramento carcerário se generaliza
a sofrerem. Portanto, não é de espantar a ascensão dos mo- no século XIX, as punições físicas com grande espetáculo de-
vimentos de autodefesa, nem as acusações de laxismo lan- saparecem com o Antigo Regime. A prisão parece mais hu-
çadas contra os tribunais (as estatísticas de encarceramento mana: espera-se dela mais a reeducação do que o castigo.
ostram que eles são injustificados, mas correspondem a
una verdade psicológica). Uma maior participação das víti-
21. Cf. infra, pp. 142-3, a noção de promessa, e, sobre esse ponto: A. Ga-
s no solucionamento do conflito poderia, aliás, ajudar rapon, La notion cTengagement dans Ia justice française contemporaine, Droit
^entualmente a lhe suprimir as causas: no Canadá, em cer- et Culturas, 13,1987,51-7.

,.•-•&
199 0 ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 123
NOS CONFINS DO DIREITO

Por certo é preferível ao suplício da roda, mas a experiência ma espécie de contencioso, mesmo que um deles tenha batido
mostrou o caráter muito limitado de suas virtudes curativas) no outro ou o ferido. Pois um não tem parentes que não sejam
Assimilando vingança e violência, o Estado faz pensar também do outro, no mesmo grau; e quem quer que seja tão
que suprimindo uma, ele é a melhor proteção contra a outra parente próximo das duas partes, daqueles que são chefes da
>sse verdade, a violência deveria decrescer à medida que guerra, este não deve meter-se na guerra. Portanto, se dois ir-
Progridem a estatização e a centralização. Os dados etnográ- mãos têm um contencioso e se um prejudicou o outro, ele não
íicos abrernum largo espaço à dúvida. O sentido da vingan- pode desculpar-se por direito de guerra, nem ninguém daque-
ça e da violência não é necessariamente dado pela presença les da sua linhagem que quisesse ajudá-lo contra seu irmão,
ou pela ausência de Estado. como poderia advir se se tivesse menos afeto pelo outro."22
Nossas sociedades modernas não escapam à regra. A
guerra civil é sempre apresentada como um mal superior
Nas raízes da vingança e da violência à guerra entre estrangeiros. De outro lado, todas as expe-
riências que tendem a favorecer os procedimentos de solu-
'ciõnarnento do_s_conflitos baseados mais na conciliação do
, As sociedades tradicionais não sentem menos do que "que no julgamento mostram que eles alcançam melhor re-
nos a gravidade dos atos que fazem correr sangue. Limita- sultado ainda quando as partes possuem vínculos preexis-
cto em seu desenvolvimento, o recurso à violência è de todo tentes (cie parentesco, afetivos, associativos, residenciais etc):
do vedado todas as vezes que conduziria ao enfrengT apesar de suas aparências pacíficas e da ritualização da vio-

^ggtoenteemgnitaog_do mesmo da. Hm compensação, sua lência que ele opera, o processo é mesmo um tipo de guerra,
probabilidade-cresceamedida que vai aumentando a distân- lm todo caso um combate^
cia social entre dois protagonistas. No estado aíual das pes- Mas como então deverão resolver-se os conflitos no in-
quisas, essa regra de distância social parece universal: não se terior de um grupo? jor diversos meios, dos quais está ex-
vinga quando a relação de identidade é forte. Pois o objeti- cluída a violência, ou da qual se desviam: conciliação, me-
vo da vingança é restabelecer a igualdade perdida em favor diação, ritos de purificação e, muito amiúde, sacrifícios de
do campo adverso. Se atinge um parente próximo, funciona animais nas sociedades tradicionais. A jHpntidaHp nu a fnri-p
em sentido inverso, enfraquecendo o grupo. >roximidade são, pois, fatores que paralisam a vingança e su-
Os massas (Camarões-Chade) ritualizam a proibição uti-
lizando duas técnicas de combate. Entre membros de um
•Er limam a violência.
" A centralização estatal, o arsenal de punições de que se
mesmo clã, utiliza-se apenas o bastão, que só acarreta simples dota o Estado intervirão no mesmo sentido no que concer-
ferimentos; entre membros de dois clãs, usam a azagaia, que ne aos outros conflitos, os que põem em confronto grupos
derrama sangue e gera a vingança. Entre os beduínos, um diferentes? É a velha tese evolucionista, soletrada por quase
poema pré-islâmico resume admiravelmente esses princípios: todos os manuais de direito. A antropologia convida a verifi-
Foram os meus que mataram meu irmão; se arremesso mi- cá-la. O meio é simples em seu princípio, mas muito comple-
nha flecha, será a mim que ela atingirá." Nossas sociedades xo em sua aplicação. Consiste em comparar entre si socieda-
não os ignoram. Mais laboriosamente que o poeta, mas com a des que possuem graus variáveis de centralização política e
mesma certeza, o grande jurista da Idade Média Philippe de
Beaumanoir (1250-1296) acha impossível que dois irmãos en-
trem em guerra: "Guerra não pode ser travada entre dois ir- 22. Philippe de Beaumanoir, Lês coutumes de Beauvaisís, Paris, Beugnot,
1842, t. II.
mãos germanos, nascidos de mesmos pai e mãe, por nenhu-
124 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 125

em verificar se a um crescimento dessa centralização cor- em feixe de vários fatores: para grandes mutações, causas
responde uma diminuição da violência e da vingança. Dois complexas.
pesquisadores dedicaram-se a esse trabalho há 25 anos. K. As raízes culturais da vingança e da violência (seu em-
F. e C. S. Otterbein constituíram uma amostragem de cin- basamento biológico reside na agressividade) formam uma
quenta sociedades tradicionais23. Os resultados a que pen- rede ramificada, cuja chave de abóbada não é a centraliza-
sam ter chegado desautorizam as ideias comumente acei- ção estatal: quando muito uma nervura. Pois os antropólo-
tas. As sociedades caracterizadas por um forte grau de cen- gos descobriram correlações muito mais fortes.
tralização e de complexidade política não são mais pacíficas As primeiras se formam a partir de certos tipos de or-
do que as outras e não recorrem menos do que elas à vin- ganização familiar. Foram descobertas já faz trinta anos por
gança: os números citados indicam mesmo tendências in- certos pesquisadores26, cujos trabalhos foram confirmados
versas. Assim, também, a correlação entre guerra externa e pelas análises dos Otterbein. O recurso à vingança é ainda
ausência de vingança interna não é automática: nas socieda- mais frequente quando predomina o princípio da residência
des centralizadas, ela é verificada, mas, nas sociedades não masculina (vive-se junto dos parentes varões ou pelos varões),
centralizadas, guerra externa e vingança interna vão de par. seja esta a do pai, do tio ou do marido. A correlação se acentua
Como se imagina, a publicação desses resultados provo- se juntarmos a esse fator a poligamia. Ao inverso, a vingança
cou a estupefação, de tanto que colidiam nas certezas aceitas. será muito menos provável quando se está numa sociedade
Alguns estudiosos forcejaram para refutá-los, usando outras monogâmica, uxorilocal, matrilocal ou neolocal. Como expli-
estatísticas que contradizem os resultados dos Otterbein24 ou car isso? Sabe-se que a maior parte das sociedades humanas
criticam a maneira pela qual haviam construído sua amos- é regida pelo princípio da dominação masculina e que as
tragem25. O debate não está dirimido. Mas eu me inclinaria de atividades guerreiras em geral competem aos homens. Quan-
bom grado a favor das teses dos Otterbein. Objetar-me-ão do a organização residencial favorece o reagrupamento dos
que toda a história da Europa pleiteia em favor da tese clás- indivíduos de sexo masculino por geração, formam-se afi-
sica: o crescimento estatal valorizou a ideia de paz interna nidades de interesses fraternos ainda mais prontos para rea-
(no exterior, é outra coisa...) e desagregou, em vários séculos • gir por solidariedade vindicativa aos atentados dirigidos a
de esforço, o sistema vindicativo. Decerto a explicação não é um dos seus porque, uma vez casados, os irmãos ficam pró-
tão simples, e é atribuir méritos demais ao Estado. ximos uns dos outros e são unidos por uma comunidade
Pois os grandes fenómenos históricos (o desapareci- de vida. Essa solidariedade residencial aumenta se os homens
são oriundos de casamentos poligâmicos. Com efeito, nas so-
mento do Império Romano, a Revolução Industrial etc.) nun-
ciedades poligínicas, o casamento dos filhos é em geral mais
ca repousam numa única variável e resultam da conjunção
tardio do que nas monogâmicas. Os meio-irmãos são, por-
tanto, educados juntos por mais tempo; supõe-se que sua so-
23. Cf. Keith F. Otterbein e Charlotte Swanson Otterbein, An Eye for an
lidariedade fique fortalecida. Acrescentaremos que as compa-
Eye, a Tooth for a Tooth: A Cross-Cultural Study of Feuding, American Anthro- rações interculturais mostram que, se a patrilocalidade é asso-
pologist, 67, 1965, 1470-1482; cf., igualmente, dos mesmos autores, Internai ciada à guerra interna, a matrilocalidade o é à guerra externa.
War: A Cross-Cultural Study, American Anthropologist, 70-2,1968, 279-89.
24. Cf. W. T. Masumura, Law and Violence: A Cross-Cultural Study,
Journal ofAnthropological Research, 33-4,1977, 388-99. 26. Cf. H. U. E. van Velzen e W. van Wetering, Residence, Power-Groups
25. Cf. E. Adamson-Hoebel, La vengeance, Droit et Cultures, 15, 1988, and Intrasocietal Agression, International Archives of Ethnography, 49, 1060,
162-70. 169-2CO.
126 NOS CONFINS DO DIREITO 0 ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 127

As outras correlações provêm da organização sociceco- manas cada vez mais considerável no curso da História, en-
nômíca. As sociedades de caçadores-apanhadores nómades quanto esta conhecia simultaneamente uma multiplicação
privilegiam os modos pacíficos de solucionamento dos con- das sociedades estatais. Poder-se-á objetar que, sem a re-
flitos, ao inverso dos agricultores sedentários. Entre os pri- gulação estatal, as coisas teriam sido piores ainda? O fun-
meiros, os conflitos se referem sobretudo a problemas de or- cionamento do sistema vindicativo em muitas sociedades
dem familiar ou concernentes ao acesso a bens de consumo tradicionais - algumas das quais conhecem Estados tempe-
perecíveis. Enquanto, entre os segundos, a identificação de rados, menos exclusivos que o Estado moderno - autoriza a
um indivíduo ou de um grupo com um espaço territorial, a pensar que nada é menos certo. A vingança "selvagem", des-
tendência à individualização da propriedade geram ocasiões medida, continua excepcional e constitui sobretudo um con-
suplementares de conflitos. Ademais, o •nomadismo permite traste fantasioso das sociedades modernas. Estas, aliás, vêm
aos indivíduos entre os quais existe uma oposição resolvê-la hoje do "todo-Estado" em matéria de justiça, seja esta civil
com o afastamento em vez de com o enfrentamento. Um pro- ou penal: o tempo dos mediadores parece ter chegado.
vérbio beduíno o diz: "Para aproximar nossos corações, afas-
temos as nossas tendas." Menos exacerbados, os conflitos
não necessitam forçosamente da intervenção de um tercei- O tempo dos mediadores27
ro. Esta é muito mais frequente entre os agricultores seden-
tários. Assim também, o ostracismo ou a dispersão são mais Todos conhecem o ombudsman sueco, o mediador da Re-
raros, pois economicamente mais difíceis de executar. De ou- pública e outros fornecedores de bons serviços que aparecem
tro lado, o modo de vida dos caçadores-apanhadores acentua
a dimensão comunitária dos comportamentos. A busca da
caça, o calendário e o itinerário das migrações dependem de 27. É esse o título de uma obra recentemente publicada sobre o desen-
volvimento da mediação na França: cf. J. F. Six, Lê temps dês tnédiateurs, Paris,
decisões que devem ser tomadas em comum, enquanto o tra-
Lê Seuil, 1990. De modo mais geral, o tema das justiças alternativas suscitou
balho agrícola é submetido a coerções coletivas de menor uma enorme literatura em antropologia jurídica, redigida principalmente em
grau de permanência. O aspecto em geral vital da integração inglês. Posso citar aqui apenas alguns títulos: S, Roberts, Order and Dispute. An
ao grupo permite compreender a frequência das punições so- Introductíon to Legal Anthropology, Harmondsworth, Penguin Books, 1979; The
ciopsicológicas, baseadas na vergonha e no ridículo (repreen- Politícs of Informal Justice, R. L. Abei, org., 21., Nova York, Academic Press, 1982;
R. L. Abel, A Comparative Theory of Dispute Institutions in Society, Law and
são, reprimenda, caçoada, ostracismo temporário, seções de Society Review, 8-2,1973, 217-347; do mesmo autor: Theories of Litigation in
autocrítica) entre os caçadores-apanhadores. Os mbutis ar- Society. "Modern" Dispute Institutions in "Tribal" Society and "Tribal" Dis-
remedam caricaturando o comportamento do faltoso. Os es- pute Institutions in "Modern" Society as Alternative Legal Forms, Jahrbiichfur
quimós chamam o ladrão pelo nome do objeto roubado ou Recktssozíologie und Rechtstheorie, Vt, 1980, 165-91; W. L. Felstiner, Influences
o denominam de tal modo que seus vínculos com a família já of Social Organization on Dispute Processing, Laia and Society Review, 9-1,
1974, 63-94; P. Goffin, Lê droit disciplinaire dês groupes sociaux, in: Lê plura-
não aparecem. Ao inverso, nas sociedades de agricultores lismejuridique, J. Gilissen, org., Bruxelas, Ed. de l'Université de Bmxelles, 1972,
sedentários, empregar-se-ão com maior frequência punições 109-22; J. G. Belley, Conflit social et pluralisme juridique en sociologie du droit,
relativas à pessoa física ou aos bens materiais de um indiví- tese para a Université de Paris II, 1977; E. Servidio-Delabre, La médiation aux
duo: reconhecemo-nos aqui. États-Unis, Archives de Politique Criminelle, 8,1985,195-9; J. P. Bonafe-Schi-
Tudo isso inclina a ter sérias reservas sobre o tema do mitt, Lãs justices du quotidien: lês modes formeis et informeis de règlement dês petits
liliges, tese para a Université Lyon II, 1986; E. Lê Roy, La cortciliation et lês
Estado pacificador. Ao todo, desde o paleolítico, a violência modes précontentieux de règlement dês conflits, Bulletín de Liaíson du Labora-
e a guerra parecem ter reclamado um tributo em vidas hu- toirt d'Anthropologie Juridique de Paris, 12,1987,39-50.
128 NOS CONFINS DO DIREITO •STADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO
O ES
129

assim que conflitos sociais, até mesmo internacionais, adqui- "Quando um homem matou outro, deve imediatamente
rem certa amplitude. Muito "pós-modemos", o consenso e a . ao chefe que lhe entalha o braço de maneira que o sangue
mediação estão na moda. Costumam creditá-los ao êxito eco- nossa correr. Até que essa marca de Caim seja feita, o homici-
nómico dos japoneses, peritos nessas matérias. Contudo, no da não pode comer nem beber. Se, como ocorre comumente,
hit parade da mediação, as sociedades tradicionais não fica- ele teme a vingança, fica na casa do chefe, pois a moradia do
riam mal colocadas. Leiamos o que os antropólogos dizem chefe é um santuário. No decorrer dos meses que se seguem, o
por exemplo do "chefe de pele de leopardo": "A maior parte chefe exorta os parentes do homicida a preparar-se para pagar
das tribos tem uma população superior a 5 mil pessoas, e as uma compensação, a fim de evitar as represálias, e persuade os
maiores entre 30 e 45 mil. Todas as tribos são economicamen- parentes da vítima a aceitar a compensação. Durante esse pe-
te autónomas, possuem suas próprias pastagens, recursos de ríodo, as duas partes não podem comer ou beber nos mesmos
água, reservas de pesca, que apenas os seus membros têm o pratos, nem comer na casa de um terceiro. O chefe reúne en-
direito de explorar. Cada uma tem um nom£_cme é o símbolo tão o gado - quarenta a cinquenta reses ainda bem recente-
de seu caráter distintivo. Os membros d^tribojêrn senso de mente - e o conduz à moradia do marido, onde realiza nume-
patriotismo: são orgulhosos de ser membrosrtésua tribo, que rosos sacrifícios de purificação e de reconciliação. Esse é o pro-
consideram superior às outras tribos [...]. A mais simples defi- cedimento que permite resolver as desavenças graves [...].
nição enuncia que uma tribo é a comunidade mais extensa "Esta breve descrição pode dar a impressão de que o
que considera que qualquer desavença entre seus membros chefe julga o caso e obriga a aceitar sua decisão. Na verdade,
deve ser resolvida por arbitragem e : que deve agir coletiva- nada está tão longe da realidade. Não se pede ao chefe emitir
mente contra as outras comunidades de mesmo tipo e contra um julgamento; não acode à mente de nenhum nuer que seja
os estrangeiros [...]. O direito reina no interior da tribo e existe isso que lhe é pedido. Se parece que, por sua insistência, o
um aparelho destinado a apaziguar as desavenças que uma chefe força os parentes do morto, se necessário ameaçando-
obrigação moral obriga a resolver mais cedo ou mais tarde. Se os de amaldiçoá-los, a aceitar a compensação, é aceito con-
um homem mata um outro membro da tribo, é possível pre- vencionalmente que ele age assim a fim de permitir aos pa-
venir ou pôr fim à vingança com um pagamento de cabeças de
rentes da vítima conservar seu prestígio. O reconhecimento
gado. Entre diferentes tribos, não existe meio que permita re-
da existência de vínculos de comunidade entre as partes, e
conciliar as partes separadas por uma desavença e que seja
com isso a obrigação moral de resolver o caso aceitando o pa-
oferecida ou pedida alguma compensação [,..].
gamento tradicional, e o desejo dos dois lados de evitar, pelo
"Pensamos que o sistema político opera largamente por
meio da instituição das represálias regulamentada por um menos de imediato, o desenvolvimento da hostilidade, são os
mecanismo designado pela denominação de 'chefe com pele dois elementos que parecem ter realmente sido levados em
de leopardo'. Conservamos esse título, se bem que o termo consideração [...]. No estrito sentido do termo, os nueres não
'chefe' possa ser enganador. Essa figura é um dos especialistas têm direito. Ninguém é investido de funções legislativas ou
que exercem uma função ritual em vários campos da vida so- judiciárias. Existem pagamentos convencionais aceitos em
cial nuer e nas relações com o meio natural. Os chefes com proveito de pessoas que sofreram certos danos - adultério co-
pele de leopardo pertencem a certas linhagens; nem todos os metido com a esposa, fornicação com a filha, roubo, membro
membros dessas linhagens utilizam todos os seus poderes ri- quebrado etc. -, mas tais pagamentos não constituem um sis-
tuais hereditários. Na maior parte da região nuer, essas linha- tema legal, pois não existe nenhuma autoridade constituída e
gens não são ramos de clãs dominantes. imparcial que possa decidir sobre direitos ou erros [...]. Se
130 NOS CONFINS DO DIREITO 131
O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO

os nueres não têm direito, carecem igualmente de governo. As "sof t justices" nos Estados Unidos
O chefe com pele de leopardo não é uma autoridade políti-
ca e 'o Homem do gado' e outras pessoas encarregadas do Modernas? De fato, o que os norte-americanos denomi-
ritual (especialistas totêmicos, fazedores de chuva, possui- nam a "Justiça informal" inicia-se na América do Norte há
dores de fetiches, mágicos, adivinhos etc.) não têm estatu- bastante tempo (a expressão é infeliz: a referida justiça não é
to ou função política. Todavia, podem tornar-se muito emi- desprovida de formas, mas elas são diferentes daquelas exigi-
nentes e inspirar o temor em sua localidade. Nas aldeias, os das pelos tribunais). Esse movimento nasceu nos anos 1880.
homens mais influentes são geralmente os chefes de família Começa com a multiplicação das jurisdições arbitrais in-
extensa, particularmente quando são ricos de gado, possuem dependentes dos tribunais e concerne sobretudo às causas
uma forte personalidade e são membros do clã aristocráti- comerciais. No decorrer do século XX, estende-se ao re-
co. No entanto, não possuem um estatuto ou uma função gulamento dos litígios menores, ocorridos entre vizinhos
claramente definidos. O nuer, enquanto produto de uma edu- e indivíduos aparentados, ou os que envolvem crianças ou
cação dura e igualitária, profundamente democrática, pron- adolescentes. As diferentes jurisdições que nasceram dele
to para ceder à violência, considera-se tão válido quanto seu (DomesticRelations Courts, Small Claims Courts, Neighbourhood
vizinho."28
Justice Centers) devem aplicar uma justiça mais "social" do que
Essa é a justiça dos nueres, uma população sudanesa legal: tendem a descartar o formalismo, visam menos a aplica-
cuja descrição transposta aqui constitui um clássico da lite- ção estrita do direito do que a restauração da paz social e a
ratura antropológica. De fato, nela vê-se funcionar um modo adesão das partes ao solucionamento do litígio, consideram o
de solucionamento dos conflitos na ausência de qualquer conflito mais como uma doença para curar do que um mal
forma de Estado, baseado na boa vontade das partes, canali- para reprimir. Reconhecem-se aí muitas das características do
zada por uma série de ritos e de regras. Conquanto se refira direito em inúmeras sociedades tradicionais. Por que os Es-
a urna sociedade hipertradicional (os nueres representam tados Unidos desempenham esse papel de vanguarda nas
um dos modelos mais consumados de sociedade não esta- justiças alternativas? Provavelmente porque se trata de uma
tal), esse processo parece de uma estranha modernidade. sociedade competitiva, conflituosa e, por outro lado, hiperju-
^Anteríparia as jnsfirag alternativas que se multiplicam nos
diciarizada: as justiças alternativas constituiriam válvulas de
EstadosJUnidos e na Europa? Também pias se distanciam
segurança (assim como nesse pais os movimentos pseudõ-
djTÊStado, apelam à rnlahnrarãn rias partps p privilegiam a
religiosos que exploram a ingenuidade de enormes multi-
conciliação em comparação com a aplicação estrita de um di-
dões constituem a moeda falsa com a qual se têm de pagar os
reito preestabelecido. Antes de dizer se assistimos na jranga excessos de uma cultura profundamente materialista). Atual-
a UmjgnasdmerjtP H ac jnctfoc trartifinnaic, Hpypmns qfrrir n
mente, estima-se que somente 5% a 10% das desavenças aca-
dossiê dessasjustiças alternativas modernas.
bem diante dos tribunais (já sobrecarregados, o que dá uma
ideia da potencialidade conflitual dos Estados Unidos). Pode-
mos concluir daí que a maioria dos litígios é resolvida quer pe-
" Ias próprias partes, quer intermediados pelos lawyers, quer so-
28. E. E. Evans-Pritchard, Lês Nuer du Soudan meridional, m: Systèmes lucionados pelas diferentes instâncias de justiça informal.
politiques africains, sob a direção de Meyer-Fortes e E. E. Evans-Pritchard, Pa- A mediação se torna mesmo uma disciplina ensinada na
ris, PUF, 1964, -240-1, 251-6. escola. Faz uns dez anos, formadores em mediação vão cada
132 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 133

vez mais aos estabelecimentos escolares. Organizam jogos selada perpétua, ainda que dure, com frequência cada vez
de papéis, fazem as crianças compreenderem que devem con- maior, menos que a vida. Um dia virá, talvez, em que as fa-
tar consigo mesmas para resolver seus conflitos e não com seus mílias monoparentais ou recompostas serão espontanea-
professores. Outro trabalho dos educadores: selecionar entre mente portadoras de tanta felicidade quanto os casais "tradi-
as crianças (a formação começa já aos 6 anos de idade) líderes cionais" (ficarão então exóticos?). Ainda não é esse o caso.
que serão os chefes com pele de leopardo de calças curtas. A Senão, como explicar que os divórcios sejam tão frequente-
pele do felino é substituída por uma camiseta de cor viva/ com mente a ocasião de dramas psicológicos e afetivos, não só
uma inscrição em letras grossas: DIRETOR DE CONFLITOS. para os ex-cônjuges mas também para seus filhos? De todo
Quando ameaça ou rebenta uma briga, acompanhadas de um modo, é a propósito do divórcio que o termo "mediação fa-
colega mais maduro (sensata precaução), elas acalmam os ar- miliar" foi utilizado pela primeira vez nos Estados Unidos.
dores perguntando aos beligerantes as razões de sua discus- Nos anos 1970, D. J. Loogler, um advogado de Atlanta, reco-
são e tentando fazê-los encontrar o que poderia ser a solução menda esse método e, para praticá-lo, abre em 1974 um
pacífica do conflito29. Procedimentos cuja intenção parece fa- primeiro escritório de prática privada de mediação familiar,
zer eco à valorização da conciliação que encontramos na edu- antes de publicar quatro anos mais tarde uma obra intitula-
cação dada nos países orientais30. Entretanto existe uma gran- da Structiired Mediation in Divorce Settkment. A ideia central
de diferença. Na China ou no Japão, essa educação é confor- sua é que uma terceira pessoa, imparcial e neutra, sem poder
me a uma tradição cultural milenar. Nos Estados Unidos, de decisão - o mediador -, deve ajudar as partes a encontra-
situa-se exatamente no lado oposto dos valores praticados rem em comum (e não de modo conflituoso) uma solução
na vida cotidiana e nas relações económicas. Na rua ou no • ii para os problemas gerados pela separação: guarda dos filhos,
pátio de recreio, na televisão, mesmo nas atividades esporti- residência, interesses financeiros etc. Os pontos de refe-
í
vas (o futebol americano não é a ginástica chinesa), as crianças rência já não são as normas (o contrato de casamento, por
americanas ficam mais vezes defrontadas com a luta, com o exemplo) ou a decisão de um juiz, mas a boa vontade das
conflito e com a violência do que mergulhadas num universo partes; a extinção do conflito, donde deve nascer um novo
consensual. Nos Estados Unidos, a mediação, a conciliação tipo de relações (quando há filhos, o divórcio põe fim ao ca-
são elementos de uma contracultura. O que nem por isso as sal, mas não à família); o carisma de cada mediador. Essas
desqualifica, mas as situa num contexto profundamente dife- ideias conhecem um grande sucesso em toda a América do
rente de muitas das sociedades não ocidentais, e que, em con- Norte, por certo na medida dos sofrimentos gerados pelas
sequência, não lhe facilita a prática. desuniões. Em 1980, o Estado, da Califórnia foi o primeiro
Pequenos litígios, relações de negócios, desavenças en- a adotar uma lei sobre a mediação: se as partes não podem
tre vizinhos, conflitos familiares: são esses os terrenos favo- entender-se sobre a guarda dos filhos, devem obrigatoria-
ritos das '^soft justices". Voltemos ao caso dos divórcios. Sua mente ser apresentadas a um mediador. Dois anos mais tarde,
frequência/ao deixá-los corriqueiros, poderia ter-lhes favore- esses mediadores existem em 44 estados norte-america-
cido a inocuidade. Contudo, parece mesmo que a represen- nos. Na mesma época, nasce um Serviço de Mediação em
tação comum do casamento seja sempre a de uma união de- Quebec; logo a maioria dos fóruns terão seu "Serviço de Me-
diação Familiar".
29. Cf. as descrições dadas por J. F. Six, op. cit. supra, n. 27. A mediação efetua mesmo uma abertura no campo das
30. Cf. supra, pp. 83-5. causas penais, em que sua aclimatação parece a priori mais
i
134 O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 135
NOS CONFINS DO DIREITO

difícil, na medida em que o risco da ordem pública favorece A ordem negociada na França
o recurso ao direito estrito e às soluções de autoridade. Ela
se organiza em três círculos concêntricos. O primeiro é o Pensa-se comumente que o desenvolvimento do Esta-
mais próximo do sistema penal: o próprio juiz ou seu substi- do-Providência desjudiciarizou inúmeros litígios. O Estado -
tuto desempenham o papel de mediadores, mas unicamen- ou, mais concretamente, os serviços e trabalhadores sociais,
te nos pequenos litígios, ou naqueles em que a intenção de-
lituosa é fraca. O segundo é o da mediação privada, porém
muito dependente das autoridades judiciárias. O tribunal 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87
pode realmente decidir remeter o caso a um centro privado
de mediação. Aí, também, trata-se de uma justiça do cotidia- 1030- y

no: o objeto do litígio não pode ultrapassar 1000 dólares; na


prática, trata-se sobretudo de casos familiares e de desaven- 970- X
y
^
^*V
ças entre vizinhos. Infrações mais graves, tais como o roubo, -^*(B í>
910- ^*-
a prostituição, a discriminação racial podem ser tratadas pela fí /
X

mediação do terceiro circulo, inteiramente independente do / .—


850- í*** // •«» *"
sistema penal. É executada pelos Community Boards, centros ,'
de mediação compostos de voluntários de um bairro. Aí, tam-
bém, devem ajudar as partes a encontrar por si sós a solução
790- / t
/
730- / /
/
de apaziguamento. Trata-se realmente de uma justiça alter- /
f

nativa: o acordo a que se chega não tem por si só nenhum ,"'


670-
valor jurídico aos olhos dos tribunais, que, se a causa chega '/ / /1
até eles, podem ou não homologá-lo. Aqui, a referência à i
noção de território é importante: o âmbito dessa justiça é o
610- /
// /
/
bairro. Os conciliadores são guiados pela ideia de que o con- 550- f
/
flito tem um lado positivo se se consegue sublimá-lo agindo J

de modo responsável, sem recorrer a uma autoridade exte- 490- / ™— Proc


t/ nove
rior. Se o procedimento é bem sucedido, não só a harmonia
será restaurada, mas a comunidade dos habitantes do bairro 430-
/ — — . i"O*<_i,i
roc
terá ganhado em coesão. Ainda que o contexto seja diferen-
370- ,' anti£
te, ficamos evidentemente surpreendidos pela similitude
existente entre esse raciocínio e a visão do direito partilhada 310 - .... Proc
por numerosas sociedades não ocidentais31. A França estará terrn
conhecendo a mesma evolução? ocn -
200

Evolução da atividade do conjunto dos tribunais de direito comum (Corte de


Cassação, Corte de Apelação, Tribunais de Grande Instância e de Instância)
em matéria civil expressa em milhares de processos (Em: Annuaire statisti-
31. Cf. supra, pp. 82-4. que 1987. La documentation française, 1989).
-

136 NOS CONFINS DO DIREITO i ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 137

as prestações sociais e abonos -, ao ajudar as vítimas de certos discussão livre entre as partes e o juiz; 32% desejariam que
prejuízos (fundo nacional de garantia em matéria de seguro redundassem numa reconciliação dos pleiteantes; 51,9% as-
de automóvel), ao vir em ajuda dos mais carentes (renda mí- piravam a procedimentos judiciários mais simples e 44,4%,
nima de inserção), ou ao proteger aqueles que poderiam so- mais rápidos. A paralisia da máquina judiciária e os almejos
frer de uma relação de forças muito desigual (legislação do dos franceses correspondem, pois, a uma mutação da Justi-
trabalho) neutralizaria um grande número de litígios, que re- ça que poderia realizar-se com a transição para um modelo
ceberiam assim uma solução não mais judiciária e sim admi- que E. Lê Roy descreveu muito bem como sendo a ordem ne-
nistrativa. Contudo, os números recentes mostram um au- gociada33. A ordem negociada,^ qual pertencem as técnicas
Tnpntn_pspgtacular dos lTti'giosJgvadO£perante o conjunto da conciliação, da mediação e da arDitragem, visa_ejãinguir_(W
IJãirjúrisdições. conflitpjvbuscando prioritariamente o restabelecimento da
Que significarão eles? O desenvolvimento da ajuda ju- "paz. A óFalidade, porqu^_Bo^g_jrjr^maõrielhõFque o es:
diciária ijitervém-eraiayQr de um recurso crescente aos tri- crito e corresponde a relações de face a face, é freqúente-
junais. Mas podemos invocar outras razões. A evolução'do mentêlmpjegada pelos participantes. O direito não é aban-
nível de vida que, em certos setores como o consumo, favo- donado, mas serve sobretudo de ponto de referênciaTcfe
rece os-litígios; a diminuição da confiabilidade das normas modelo flexível adaptável às situações ^concretas (o juiz de
jurídicas: os textos jurídicos são cada vez mais numerosos, nienores poderá, por exemplo, amenizar, até mesmo sus-
às vezes contraditórios e ern geral mal redigidos, o que lhes pendersua aplicação, em troca da promessa de emendar-sp^
complica a interpretação. Mas decerto o fenómeno também "ígnã"pélõ delinquente). A ordem negociada, qnp talvp?. de-
tem outra causa, mais inquietante: a destfuíçãcTde certosi gru- senhe o nossojujiirn, rnrrpsponde evidentemente às con-
pos intermediários da sociedade francesa, acelerada pela cepções de muitas sociedades não ocidentais; pois nossa
mobilidade geográfica que será aumentada no futuro pelos "própria tradição nos habituou mais_à__onJe?n impostáTNela"
meios de locomoção de grande velocidade (qual será o custo õsTítígios são resolvidos pelas instituições judiciárias. Estas
sociológico do trem-bala? Como nenhum perito em ciências se empenham em estabelecer as responsabilidades de cada
humanas foi consultado na fase dos projetos, ficaremos sa- qual aplicando regras escritas, gerais e impessoais, preexis-
bendo à medida dos acontecimentos). Como sabemos, uma tentes ao conflito. Claro, esses modelos correspondem mais
comunidade coerente tende a resolver por si só seus litígios a tendências do que a uma restituição exata da realidade. O
internos. Quando ela se enfraquece, impõe-se o recurso a recurso ao direito e aos juizes pode ser utilizado como meio
uma autoridade exterior. Seja como for, os resultados estão de pressão na ordem negociada. Inversamente, a ordem im-
aí: os tribunais desabam sob o peso dos litígios e os franceses posta é suscetível de muitas atenuações. O juiz costuma dis-
não gostam muito de sua justiça (58% desconfiam dela, 89% por de um amplo poder de acomodação da punição; na prá-
a julgam inadaptada aos litígios de consumo32. Interrogados tica aprecia os fatos, em seu foro interior, conforme a ideia que
em 1975, já expressavam sua preferência por uma justiça civil se faz da equidade, e reveste seu parecer com as normas ju-
que pendesse nitidamente para o lado da conciliação: 77,3% rídicas que lhe parecem adequadas. O juiz-máquina é uma
desejavam que as audiências fossem concebidas como uma ficção: em nossos dias, mais de dois terços dos litígios são diri-
midos pelo fato sem que o juiz tenha recorrido ao direito posi-
32. Números citados em: G. Picard et alii, Petits litiges: zero pour lês tri-
bunaux, 50 Millions de Consommateurs, 221, out. 1989, 28, 30. 33. Cf. E. Lê Roy, op. cit. supra, n. 27.
138 NOS CONFINS DO DIREITO
0 ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 139

tivo de outra maneira que não seja formal34./^ verdade é que n Ca a cargo do direito social e fiscal), criança credora dos pais
rpriir an ^n^it^ n ^ n 'r e- (substituição da autoridade paterna pela responsabilidade pa-
cundo
~ quando o aplicam a certo número de procedimentos terna), criança sujeito autónomo de direitos (declarações dos
cionamerito dos conflitos^ Foder-se-ia acreditar que direitos da criança)35. A preocupação com a proteção da infân-
ele só intervém no exterior dos tribunais, no seio de diversas cia aparece também na existência e no funcionamento de ju-
instituições sociais, mas não judiciárias: não é nada disso. risdições especializadas nos processos que lhes concernem.
O tribunal em geral não é o areópago hierático e majes- Os trabalhos realizados pelo Laboratório de Antropologia Ju-
toso que se costuma imaginar: a imagem quase só corres- rídica de Paris permitem apreender toda a sua originalidade36.
ponde à alta justiça penal. Tampouco é um salão de chá onde Cumpre observar acima de tudo que a proteção judiciá-
se conversa agradavelmente. Mas faz muito tempo que a ria do menor compete sobretudo ao juiz. Dispersos em di-
justiça, por um cuidado de eficácia, recorre em certos casos versos códigos, alguns textos - menos numerosos do que se
às técnicas da ordem negociada. Quando não são solucio- poderia supô-los - dão-lhe um amplo poder para salvar a
nados de modo interno (negociação, mediação), os conflitos criança de um perigo, se possível com a colaboração da fa-
do trabalho são dirimidos por jurisdições especiais, compos- mília. A lei habilita o magistrado a determinar caso a caso
tas de representantes dos grupos aos quais pertencem as a quais obrigações jurídicas deverá submeter-se a família
partes (prud'hommes) . Quanto aos comerciantes e meios de para retornar à normalidade. As relações que ata coin o me-
negócios, a arbitragem é muito difundida entre eles, e, na sua nor e seus pais são muito personalizadas. Pode-se dizer que
Falta, os eventuais litígios também são submetidos a júris - ele "encarna" a lei para eles, mas essa lei consiste menos
dlçõesjispeciais, compostas não de juristas, mis de comer- nesta ou naquela disposição do direito penal ou civil do que
ciantes (tribunais de comércio). No entanto, em apelação e em no chamamento à realidade social na qual o adolescente deve
cassação, os tribunais estatais assumem o posto. Mas, em pri- inserir-se: o juiz visa assim o restabelecimento da paz. Pode
meira instância, deixa-se a esses grupos poderosos (sobretu- pretender mais ainda isso porque em geral é assimilado a
do influentes no campo económico) uma determinada auto- um substituto paterno, pelo menor mas também pelos pais/
nomia na resolução de seus litígios. O direito estatal e os juizes que procuram fazê-lo representar um papel que eles mes-
também hesitam cada vez mais em introduzir-se nas causas de mos já não conseguem cumprir ou que foi deixado vago pela
família. O direito aí faz a escolha do pluralismo: pode-se casar história da família (ausência do pai). Quando esta ainda po-
escolhendo entre vários contratos, divorciar-se de três manei- de desempenhar o papel de intermediária, a lei impõe ao juiz
ras (o divórcio por solicitação conjunta na verdade compete recolher sua adesão à medida considerada (art. 375-1, aí. 2,
praticamente às partes). Inclina igualmente a sugerir modelos do Código Civil). Pois o que mais caracteriza o direito utiliza-
por intermédio de noções-contextos definidas de modo assaz do pelo juiz da infância é seu aspecto negociado: por exemplo,
amplo, que dão ao direito um caráter flexível: perigo, bom pai de a família só dá seu consentimento à colocação da criança
família, interesse da criança, interesse da família. Diante das pro-
fundas mutações sofridas em uma geração pela noção de ca-
sal, o direito se toma neutro e constrói a família mais em tomo 35. Cf. H. Fulchiron, Lês nouvelles formes de vie familiale, in: Couirier
do filho que dos pais: criança abrindo direitos aos pais (crian- du CNRS, 75, abr. 1990, 53.
36. Esse estudo foi realizado por iniciativa do Comissariado Geral do
Plano e do Ministério de Educação Nacional, sob a direção de E. Lê Roy: cf.
34. Cf. T. Ivainer, Uinterprétation desfaits en droit, Paris, LGDJ, 1988, 7. La justice dês mineurs en région parisienne, Bulletin de Liaison du Laboratoire
d'Anthropologie Juridique de Paris, 9,1985,23-220.
140 NOS CONFINS DO DIREITO OESTAD0,A VIOLÊNCIA E O DIREITO 141

noutro lar se o juiz lhe garante a proximidade desse lar com metendo-se ao controle judiciário, que evita o encarceramen-
seu domicílio, a regularidade dos direitos de visita etc. Esta- to provisório; satisfazendo às condições determinadas pelo
mos aqui nos antípodas do modelo da ordem imposta. siirsis sujeito à vigilância. O encarceramento pode sec encurta-
Todo esse COntextoJayorere n renirsn à nralidaHp TV urn do (remissão de pena por bom comportamento), ou, em cer-
lado, ela é a regra nãsTelações frente a frente, como as que tos casos, substituído por trabalhos de interesse geral se o.réu
funcionam na sala do juiz da infância. Do outro, ela tem, por consentir. Podemos mesmo perguntar-nos com A. Garapon,
si só7 um efeito criador.JNÍa_África, a fala, pronunciada em magistrado e antropólogo do direito,//... se_o resultado deJal
'certas condições, nâgjjjmãlnêia coimmicagãO-^inasjnobi-_ evnlucãonãoseria a organização pela justiça de autênticas
liza forças (notadamente as do mundo invisível) que a tor- l^rimõniarclé~riintegraçãopara as pessoas que respeitaram
nam imediatamente eficiente. Ora, podem-se observar efeitos ^úãTprol:néssas da mesma maneira que o processo pode ser
análogos na sala de um juiz. Quando este tem carisma sufi- "assimilado aumacêrimõnia de exclusão. O direito não deve-
ciente, quando concentra toda a sua autoridade pessoal e riajrnagjnarjguniçoes que não seiam negativas para encorajar
a da instituição para lembrar a ordem da sociedade ou pro- ^promessas feitas?"38 Triste imagem, de fato, banalizada por
nunciar solenemente uma admoestação,jn.ão é raro ver-c tantos filmes, a do delinquente que purgou sua pena e, após
menor invadido-pela-mesma-emoção que invade o africano a soltura, deixa de manhãzjnha a prisão, de mala na mão, an-
à evocação das forças ocultas. A lei e os ancestrais desem- dando com um passo hesitante na rua deserta... Rira além do
penham o mesmo papel no invisível. Derradeira prova de estereótipo, ela exprime bem uma certa realidade.
que, em tudo isso, o direito imperativo só é quando muito Cumpre ir mais longe, e poderemos imaginar que o juiz
uma sentinela: o papel das punições. Contrariamente ao juiz abdique de seu poder em favor da vítima? Faz alguns anos,
penal, o juiz da infância utiliza raramente, em matéria de as- em Edimburgo, uma mulher escapa por pouco de urn estu-
sistência educativa, o arsenal dos meios autoritários postos pro seguido de uma tentativa de homicídio. Mc Kenzie, o
à sua disposição. Quando muito ameaça às vezes corn a apli- culpado, é julgado em 1989 por um tribunal presidido por
cação deles. Mas o essencial está noutro lugar, no acordo que lorde Mc Cluskey. Este constata a crueldade do réu e declara
soube negociar com o menor e com sua família, no qual a par- para estupefação de todos: "Que a própria vítima ofereça seu
te do direito imperativo é mínima. ponto de vista sobre a sentença que deve ser aplicada ao seu
A promessa, ou seja, a palavra dada, ocupa aliás um lu- agressor."39 A vítima ficou calada e, alguns meses mais tarde, a
gar crescente no sistema judiciário francês37. Constatamos Alta Corte de Justiça de Edimburgo cassava a sentença como
isso no divórcio por solicitação conjunta e nas medidas de as- contrária ao direito escocês.
sistência educativa tomadas em caso de perigo para a crian- Nenhum tribunal francês teve até hoje a audácia - peri-
ça. Entretanto, mais surpreendente, ela existe também no gosa - de lorde Mc Cluskey, pois o penal toca ao sagrado.
penal, que ressoa mais forte corn o eco da transgfessaã A Em compensação, em outras áreas, o juiz dispõe de meios,
assistência educativa também podeTrrtervirdepe^deurn ato incessantemente ampliados, de distanciar-se do direito. As
delituoso do menor: se este aceita os compromissos que lhe partes podem, nas pequenas causas, recorrer à conciliação
foram propostos, não conhecerá a punição penal. Os adultos judiciária perante o tribunal de instância; o novo Código de
têm igualmente a faculdade cie afasta-la ou amenizá-la. Sub-
38. Ibid., 56.
37. Cf. A. Garapon, La notioíi cTengagement dans Ia justice française 39. Cf. R. Romon, Lê verdict de Lord Mc Cluskey, Lê Nouvel Observateur,
contemporaine, Droit et Cultures, 13,1987, 51-7. 26 out. 1989.
142 £57>1DO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 143
NOS CONFINS DO DIREITO

Processo Civil dota o juiz do poder de conciliá-las. Permite A ordem negociada rodeia as decisões de justiça e até
também aos jurisdicionados liberar em parte o juiz de sua penetra nelas com frequência cada vez maior.
obrigação usual de estatuir em direito, confiando-lhe a mis- Existe em Paris, há alguns anos, um Instituto da Media-
são de estatuir em equidade, como árbitro. Nesse contexto, ção: mediante alguns milhares de francos, aprende-se em al-
pode até formular uma solução contrária à norma jurídica, gumas dezenas de horas a profissão de mediador. Em Caen
se acha que sua aplicação redundaria num resultado não abriu-se em 1988 um Serviço de Mediação Familiar. Dirige-se
equitativo. Uma lei recente (de 5 de abril de 1990) permite- aos casais com filhos, casados ou não, desejosos de separar-
lhe também eclipsar-se por trás de um mediador. Nos ter- se nas melhores condições possíveis. O mediador os ajuda a
mos desse texto, pode realmente designar uma pessoa de concluir um projeto de entendimento que regula as conse-
sua escolha como mediador. Ouvirá as partes, confrontará quências da separação nos filhos. O serviço propõe igual-
suas pretensões e lhes proporá, diz a lei, "uma solução ca- mente consultas às famílias recompostas (casais com filhos
paz de aproximá-las". de leitos diferentes). Esse organismo é totalmente indepen-
Enfim, há que notar que em geral o julgamento se es- dente do tribunal e da administração pública. Insere-se na
vai por iniciativa das partes. Estas concluem um acordo do mesma corrente de pensamento que as Lojas de direito, nasci-
qual nem o juiz, nem mediador algum jamais saberão nada, das nos anos 1970. Elas organizam contatos com advoga-
e procedem a uma desistência, a um pedido de cancelamento dos em lugares neutros (restaurantes, locais de associações).
ou a uma retirada de queixa. Assim que esclarecida nos pre- Organizam também consultas coletivas que misturam juris-
tórios oficiais, a lide volta aos modos internos de soluciona tas e não-juristas: as partes devem participar ativamente na
mento dos conflitos. Essas ocorrências nada têm de raro: solução de sua causa. Em Paris e Lyon, "Grupos divórcio" ela-
boram arranjos que visam reduzir ao máximo a intervenção
DISTRIBUIÇÃO DAS DECISÕES JURISDICIONAIS do juiz e dos advogados no procedimento por solicitação
E NÃO JURISDICIONAIS SEGUNDO OS TIPOS DE TRIBUNAIS conjunta. Mais_ recentemente, essas lojasjtçrescentaram às
suas missões a ajuda às vítimas e aos emigrantes. Entra- se
Corte de it
Jurisdições Tribunais Tribunais Justiça Corte átnôlrãmpojia mediação penal^Osjnagistrados franceses a
cassação
Modo de de de grande do de cl5nlíiciê7ãmcorn mais desconfiança do que seus homólo~-
(câmaras
decisão instância instância Trabalho apelação cíveis) gos norte-americaiujsjjgmem que aTonciliação abafe cau-
ri, saTfêgréntes à ordem pública. Noutras palavras, a retira-
Decisões da do Listado tem limites, ainda que existam agora um mer-
dadas sobre 77,7% 70% 56% 71,9% 62% í* _.
i Pt jma ideologia da mediação.
o mérito
Pois podemos distinguir duas grandes categorias no
Outras seio das justiças deslegalizadas: as que o Estado tolera, as que
decisões rejeita.
(desistência, Nas primeiras, podemos dispor as dos grupos secun-
22,3% 30% 44% 28,4% 38%
cancelamento, dários e das associações (clubes, associações filantrópicas,
conciliação i partidos políticos, sindicatos, ordens profissionais etc.) que,
etc.) í
todos eles, têm suas regras de funcionamento e seus proce-
(Fontes: Annitaire Statístique do Ministério da Justiça para 1987; Rapport Annuel de Ia Com
de Cassation pour 1987).
í
tw dimentos de punição e de exclusão. Uma pesquisa realizada
144 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 145

na Bélgica, abrangendo seiscentos desses grupos de natu- Com muita frequência, quando os membros de um grupo
reza muito variada40, mostrou traços similares no soluciona- levam seus litígios às jurisdições estatais, isso não significa
mento dos litígios em muitas sociedades tradicionais não elas são superiores às outras, mas que as rivalidades no
estatais. O órgão disciplinar usa largamente simples reco- interior do referido grupo são tamanhas que a justiça interna
mendações; o direito disciplinar se elabora não a partir de não pôde resolver (caso de malfeitores que denunciam al-
regras codificadas, mas à medida que se vão apresentando guns dos seus à polícia).Jrkralelamente, em muitos casos, o
casos específicos, apelando largamente às tradições; a defe- Estado se desonera de bom grado da resolução de rprtngji-
sa o mais das vezes é oral e nunca é assegurada por um in- "HeiõTê pássaros às justiças alternativas, o que o ajuda a de-
divíduo estranho ao grupo; a apelação da sentença perante \^sínSrs&rãp^ÕlRõ]udId^io^Mas não se correrá o rigco
uma jurisdição estatal é excepcional; as sanções em geral são ]je terminar assim numa justiça com duas velocidades? Essa
morais (repreensão) ou à base de ostracismo (suspensão ou uma das censuras dirigidas às justiças alternativas.
cancelamento); elas não comportam meios de execução for-
çada, pois a pressão exercida pelo grupo sobre o contraven-
tor basta para garanti-las. A similitude constatada com os Os riscos dasí justiças alternativas
rneios empregados pelas sociedades acéfalas não é efeito do
acaso. Como o funcionamento de muitos desses grupos não Como, a príori, não simpatizar corh os objetivos que as
perturba em princípio a ordem pública, o Estado os deixa justiças alternativas dizem perseguir? jlas são portadores da
auto-regular-se. Reinventam então as técnicas usadas há esperança de um direito mais humano, aquele de que pro~
muito tempo pelas sociedades a-estatais. No entanto, tam- "rTTrãrn dotar-se as sociedades pns-industriais^Mas assim
bém existem outros grupos, efémeros ou persistentes, que como o consensualismo político pode gerar uma sociedade
têm sua própria justiça, mas cujas atividades o Estado não dual/tais práticas podem conduzir a uma justiça com duas
pode tolerar: os formados por marginais, pelos delinquentes velocidades e, além do mais, menos segura.
(os zulus e tagueurs pertenceriam mais aos primeiros, os Os Estados Unidos dispõem de uma experiência muito
sldnheads aos segundos), ou por certas seitas. A ordem nego- mais longa sobre a matéria. Ora, erguem-se vozes que põem
ciada não é a única que funciona aqui: a ordem imposta (la- em dúvida a justificação mais correntemente aceita da jus-
vagem cerebral, espancamento, privação de alimentação etc.) tiça informal: seu caráter democrático. O grande especialista
manifesta-se também com vigor nesses grupos. Encontra- dessas questões, R. L. Abel, a acusa de aumentar aquilo con-
mo-la igualmente, por ocasião de períodos e momentos de tra o que ela supostamente luta, o controle estatal, dissimu-
distúrbios, nas diversas formas de justiça "popular" (instant lando-o sob as máscaras da não-coercividade e da ausência
justice dos guetos sul-africanos). Portanto, seria errado sobre- de formalismo. E é verdade que ela se volta sobretudo para
por as duas distinções ordem imposta/ordem negociada e os grupos dominados, pois as classes médias e superiores se
justiça estatal/justiças não estatais; encontramos os dois mo- reservam a Alta Justiça estatal com seus custos, mas também
delos em prática no seio de cada categoria de justiça. Assim com suas garantias. Longe de ser benigna, a justiça informal
também, .justiças estatal e alternativas não são^stanques" utilizaria simplesmente meios mais maleáveis de dominação
umas das outras e ainda menos sistematicamente opostas., sobre os fracos (um juiz que usa a ordem negociada impres-
sionará mais facilmente um indivíduo modesto do que um
40. Cf. P. Goffín, op. cit. supra, n. 27.
alto executivo; quem sabe quantas secretas injustiças, até
O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 147
146 NOS CONFINS DO DIREITO
téril as segundas constituem garantias para os pleite antes,
mesmo chantagens, ocultam os divórcios por solicitação con- como a checagem dos instrumentos de voo garante a segu-
junta?); não serviria de modo algum para restaurar relações ranra dos passageiros nos aviões. Ademais, jjsjjtos cons-
comunitárias, mas, ao contrário, as destruiria em razão de sua tituem um comportamento simbólico, e, como não
inspiração essencialmente individualista. Em princípio con- que rea-
puros pflom
cebida para deixar de lado a burocracia judiciária da justiça lizam. AssTm o rituaLse. amplia a medida que s_e_sgbe_na hie-
formal, ela se ateria a substituí-la por uma nova corporação "TãrqúTÉTdas jurisdições, sinal da gravidade crescente dos pro-
de profissionais da justiça informal, em que o conciliador vo- ~cedimentos._CúTmina no tribunal de juríTpois a lei transgTe7
luntário teria uma imagem enganadora. E o antropólogo se dida por aqueles que ele tem missão de julgar é considerada
pergunta se essas justiças alternativas que parecem tão tra- fundamental, o que também explica que seja em geral mais
dicionais não produzem o mesmo efeito de engodo que o marcado nas jurisdições penais do que nas cíveis. A drama-
Canada Dry*... turgia do processo penal é a da exclusão: o réu reconhecido
Não exageremos nada. É verdade que as justiças alter- culpado é, em graus diversos, apartado da sociedade. Pren-
nativas, como o sistema vindicativo ou o direito estatal, com- de-se ao sacro. Em compensação, no cível, não há culpado e
portam riscos de escorregadelas. Ademais, se fosse o caso de há bem pouco público. O ritual privilegia o papel dos advo-
confirmar-se que também na França elas concernem sobre- gados. Estes representam as partes: introduzem o conflito num
tudo aos desfavorecidos, cumpriria mostrar-se muito vigi- procedimento codificado de solucionamento que visa a de-
lante: o perigo de manipulação pesa mais sobre eles. Mas sarmá-lo, a extingui-lo, a restaurar a continuidade da troca
recuso-me a reduzir essas justiças a uma técnica "suave" de social. Mas, mesmo uma vez pronunciada a sentença, não
•f dominação, ao último achado das classes dirigentes. A or- está dito que esse objetivo esteja sempre atingido. Ver-se de-
dem negociada, na realidjadj^Jnjm instrumento qug pode- clarar falido, expulso de sua moradia por falta de pagamento
Iríõsjitilizar dé~diferentes~^mãneiras. e não vemos por^np do aluguel, ou privado da guarda dos filhos não é também
osistema capitalista não firf""'3 tpqtado-a-usájda ocasio- sofrer uma importante amputação de sua existência social?
nalmente. o que também fizeram os regimes do socialismo A ausência de formas e de ritos pode, portanto, levar a
rêãtrRcTentanto, existem também, vimos, numerosas situa- uma perda de sentido41. E mesmo a sérios mal-entendidos,
ções nas quais ela não está a serviço de nenhuma classe na medida em que, na realidade, assiste-se menos a uma
dirigente do Estado, seja ela socialista ou capitalista (solu- aniquilação de todas as formas do que à sua substituição por
cionamento dos conflitos familiares e daqueles de muitos outras, menos palpáveis, muito mais difíceis de interpretar.
grupos secundários). A. Garapon o diz com talento:
Mas exprimem-se outras hesitações. Justiça informal? Aí
ng pgpp^aWas. jrbis não se devem con-
41. "Parece que um perigo oriundo de bajulações demagógicas ameaça
Túndlroformalismo e a exigência de formas. O primeiro é es- não o direito tal como é praticado pelas jurisdições, mas a própria base do direi-
to positivo. Já não é o ídolo familiar ao qual se pode desobedecer com circuns-
pecção. Isso tende a tornar-se um vapor que envolve um direito casual. Há uma
* Tipo de acordo, introduzido pela empresa Canada Dry, entre patrão e espécie de complacência em suprimir as formas, em dar a ilusão de uma justiça
empregado a quem faltam poucos anos para a aposentadoria. Esse sistema, paternal e benigna, em favorecer mais o arranjo do que o processo, mais o papel
logo adotado por muitas empresas, livra o empregador de muitas obrigações do conciliador que o do juiz." P. Sanz de Alba, Sur quelques aspects de 1'équité,
e encargos sociais (ele paga extra-oficialmente um abono ao empregado) e Tese de direito, Aix-en-Provence, 1980, 386.
lesa a Previdência Social. (N. da T.)
148 NOS CONFINS DO DIREITO 0 ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 149

"A audiência de escritório é a audiência de julgamento, A insegurança parece crescer quando se passa para pro-
realizada por um juiz único, instalado fora da sala de au- cedimentos em que qualquer juiz está ausente. A análise de-
diência, ou seja, em seu escritório [...]. No decorrer dessas talhada do contencioso judiciário mostra a multiplicação dos
audiências o magistrado praticamente nunca usa a toga; "litígios secundários" levados aos tribunais: uma das partes
apenas sua escrivaninha o separa dos jurisdicionados. A au- rompe o acordo obtido sob o encanto do conciliador ou do
diência então parece exteriormente mais com uma conver- mediador. A pacificação fracassou: seu encantamento é segui-
sa do que com uma audiência de julgamento. Não penso do pelo duro retomo à realidade, perante a toga negra do juiz.
que essas audiências sejam totalmente desprovidas de ri- Será essa uma razão para renunciar a todas as esperan-
tual. Espera-se nos corredores, geralmente adornados de ças nascidas das justiças alternativas, pôr-se totalmente nas
colunas ou de qualquer outro elemento simbólico do espa- mãos do Estado outra vez, voltar ao direito frio e às leis de
ço judiciário; vêem-se passar pessoas de beca, talvez até de- gelo? Não o penso. Aliás, tal reviravolta seria impossível,
tentos, de algemas nos punhos; depois se é chamado de uma pois as mentalidades evoluíram. Mas devemos dizer-nos que
maneira inabitual. Poder-se-ia em seguida destacar a dis- estamos apenas no início de um longo caminho que não é
posição em arco de círculo ao redor da escrivaninha do juiz, sem perigos. É melhor tentar entrevê-los do que se cegar. O
a chamada da identidade das pessoas ou ainda a presença, direito da pós-modernidade ainda está largamente por in-
insólita e muda, do escrivão que faz sua máquina crepitar, a ventar. Mas as sociedades tradicionais, longe de serem ar-
quem o magistrado se dirige, sem que ele nunca responda. caicas, não nos mostram o caminho? Nas linhas que prece-
Parece, antes, que outro ritual.muito mais despojado, e sel- dem, muitas vezes constatamos similitudes entre o direito
vagem, se instala nessas audiências. Esse ambiente mais ínti- delas e aquele que as sociedades pós-industriais geraram.
mo, o contato direto com o magistrado, a discrição deveriam Até onde levar o paralelo?
favorecer uma justiça mais humana e mais familiar de certo
modo. Isso explica por que grande parte do contencioso fa-
miliar seja resolvido dessa forma: juiz das causas matrimo- Nosso direito será tradicional?
niais, juiz das tutelas, juiz da infância [...]. É grande então a
tentação de esconder seu poder supremo e de fazer os juris- Um jornalista perguntava, alguns anos atrás, ao embai-
dicionados crerem que a decisão que é tomada não é coerciti- xador do Japão em Paris:
va! Noutros termos, o risco consiste em transformar a au- "- Como se deve agir numa negociação com os japo-
diência, que continua por definição a ser combate, numa es- neses?
pécie de conversação de salão. Os jurisdicionados têm cada "Resposta: É muito melhor dizer, numa conversa com
vez maior dificuldade em fazer a diferença entre a simples um japonês: 'É esse o meu problema, tente compreender-me'
inquirição, a conversação de cortesia e a própria decisão."42 do que utilizar o método dos americanos - que vejo com um
pouco de tristeza também adotado pelos europeus -, a saber,

42. A. Garapon, L'âne portant dês reliques. Essai sur lê rituel judiciaire, Pa-
ris, Lê Centurion, 1985,187-8. Isso explica que os profissionais da justiça cos- ignorar procedimentos simplificados de resolução de conflitos recém-instituí-
tumem ser reticentes à extensão das técnicas da ordem negociada, ainda que dos no direito do consumo (60% dos 180 tribunais de instância interrogados
preocupações de ordem corporativista também possam influenciar-lhes a ati- durante uma pesquisa realizada por urna revista de consumidores mostraram-
tude. E impressionante constatar que as próprias jurisdições parecem às vezes se falhos: cf. G. Picard, op. dl, pp. 29-30, n. 32 supra).
150 NOS CONFINS DO DIREITO
O ESTA x
brandir à sua frente o porrete para obter satisfação. Natural- . ,inaçãp natural é a do julgamento e do direito imperativo,
mente, quando se tem à frente um colosso brandindo um por-
p quêT/fbrq116' isoladas e separadas, as partes têm mais di~
rete, adota-se um comportamento conforme. Uma relação de
forças não pode ser benéfica para ninguém."43 fiuldade de se entender, ou de permitir a um terceiro despro- __ ximj
Mr. H? ooder de decisão ajudá-las. Devem abdicar da decisão .<>•
A busca do consenso não é, de fato, conforme com os f Ias entregando-a às mãos de um juiz/' Paralelamente im- ^^
valores dásjociedades ocidentais modernas, dominadas pela
õe_se o recurso à normalização. Se a transação, a boa vonta-0- o****2=> -
~Tdeologiã~do individualismo e da competição. A mediação,
de não bastam para extinguir um conflito, há que se referir aC^vrv^o^-
a conciliação pressupõem para obter êxito certa afinidade
de vida, uma partilha dos mesmos objetivos. É por isso que princípios preestabelecidos, à vocação imperativa: o direito le-e_c
_<5Co
o "modelo etnológico" da ordem negociada se encontra mais gislado estende então seu domínio. __a •
facilmente nas sociedades elementares, as que são menos Portanto, pareceria que a evolução é nítida: o aumento
de complexidade conduziria fatalmente, para nossa infeli-
divididas. Nessas sociedades do frente-a-frente, o julgamen-
to contencioso é ine^astenTèTiTcrTestiiLu et um procedimento cidade, à vitória da ordem imposta sobre a ordem negociada,
jde último recurso: consiste então no ostracismo do indivíduo enterraria definitivamente no passado as sociedades tradi-
julgado irrecuperável. As coisas mudam quando, por razões cionais. E, no entanto, fatos tais como o desenvolvimento das
diversas, inicia-se o processo de aumento de complexidade justiças alternativas pleiteiam em favor da tese inversa. Pura
maximizado pelas sociedades modernas. O crescimento da e simplesmente porque devemos proceder a um duplo es-
densidade social e demográfica favorece a multiplicação dos clarecimento de nossos objetivos.
conflitos. Estes mudam igualmente de natureza: levado de Primeiro, as sociedades modernas não são nada mono-
um lado para outro pela mobilidade geográfica, despojado líticas. Compõem-se de uma profusão de grupos secun-
das solidariedades de que o cercam as sociedades tradicio- dários, que formam um tecido sociológico muito cerrado,
nais, o indivíduo pode achar-se confrontado com poderosos mesmo que o desenho de suas costuras se modifique (como
grupos económicos, com o Estado, ou com empresas nacio- a queda de metade da taxa de sindicalização na França du-
nalizadas, diante das quais tem muito poucas defesas. O au- rante a última década, enquanto cresceu a amplitude dos
mento do tamanho das unidades sociais (a vida na aldeia é movimentos caritativos). No interior desses grupos, costu-
diferente daquela que se leva numa megalópole; as relações mamos encontrar relações de frente-a-frente e de estilo co-
de trabalho não são as mesmas numa oficina artesanal ou munitário que são as das sociedades tradicionais elementa-
numa multinacional) acarreta a diminuição das relações de res, e um retraimento correlativo da ordem imposta em pro-
frente-a-frente, ao passo que se firma o individualismo. A di- veito da ordem negociada. O estudo das justiças alternativas
ferenciação social se aprofunda com os distanciamentos eco- nos Estados Unidos o mostra bem: elas são bem sucedidas
nómicos e com a especialização do poder político. Nessas apenas se as partes têm vínculos múltiplos preexistentes ao
condições, a manutenção de uma comunidade de vida e de conflito, se não são separadas por diferenças socioeconômi-
valores fica difícil, e o recurso às técnicas da ordem nego- cas muito importantes e se não cedem à tentação de transfor-
ciada, ainda mais trabalhoso. Numa sociedade complexa, a mar sua briga em "questão de princípio".
Poderíamos deduzir daí que o modelo etnológico só
vale para essas agregações, voltando com força a ordem im-
43. Citado em LePoint, 14 set. 1987. Cf. igualmente M. Deverge, Négo- posta quando se trata de organizar as relações necessárias
cier à Ia chinoise, Études, 369-4, outubro de 1988, 305-13.
entre esses grupos secundários ou de legislar em nome da
152 NOS CONFINS DO DIREITO O ESTADO, A VIOLÊNCIA E O DIREITO 153

sociedade inteira. Nada é menos certo. Pois, se a coesão de dizer que a partir de certo grau elas são inconciliáveis com a
uma sociedade pode e deve ser medida por indicadores eco- ordem negociada. Ora, o exemplo norte-americano mostra
nómicos (desigualdade das rendas, distribuição das presta- que os anos Reagan, inspirados pela desregulação e pelo jogo
ções sociais, volume do desemprego etc.), também se baseia livre do mercado, aumentaram o pauperismo dos meios des-
em representações mentais/ou seja, na imagem que dá de si favorecidos. E temos de recear um crescimento da violência
mesma, através dos valores culturais dominantes. As socie- devido à marginalização desses grupos sociais definitivamen-
dades da África negra são em geral muito desigualitárias e te estigmatizados pela instauração de uma sociedade dual.
muito ramificadas em clãs, castas, classes de idade, socieda- Noutras palavras, o recuo do Estado será prenhe de perigos
des secretas etc. Contudo, imaginam essas diferenças em ter- se não for compensado por novas solidariedades, que cabe
mos de complementaridade44, e essa visão, de certa maneira, à sociedade civil desenvolver ou inventar (a esse respeito, o
transforma a realidade. A prova disso é que as tentativas de avanço dos movimentos caritativos constitui um sinal en-
explicação marxista dessas sociedades, por meio de noções corajador). Não esqueçamos que as sociedades tradicionais
baseadas na oposição e no conflito, em geral conduziram a acéfalas só podem funcionar em razão da existência de for-
resultados decepcionantes. Ora, nas sociedades pós-indus- tes solidariedades (em geral modeladas pela organização pa-
triais, com ou sem razão, a busca e a valorização do consen- rental e residencial).
so tendem a tornar obsoleta a luta de classes. Paralelamente, O segundo perigo reside na prova da diversidade. O
o Estado e seu direito próprio se retiram de certo número de pluralismo se portava bem há ainda muito pouco tempo: o
respeito das diferenças estava no gosto do dia. Os antropólo-
territórios ocupados desde o início do século. Sob a pressão
gos do direito vêem nisso uma das chaves principais para a
da sociedade civil, mas também sob o efeito da paralisia da
compreensão dos fenómenos jurídicos. Mas, há pouco tempo,
administração pública e das coerções orçamentarias.
vozes cada vez mais numerosas se levantam, denunciando a
Uma sociedade consensual, em que a parte do diri- "peste comunitária", o "tribalismo" e o "comunitarismo"45.
gismo estatal diminuiria (falo aqui sobretudo do dirigismo De fato, podemos ao mesmo tempo exaltar as diferenças, be-
jurídico), constituiria um terreno muito favorável à ordem ne- ber na fonte das identidades e construir uma sociedade ba-
gociada, e nesse sentido as experiências das sociedades tra- seada na busca da harmonia e na boa vontade? Vamos abrir
dicionais ficariam atuais. Mostram-nos de fato que o direito esse dossiê, usando os óculos do direito.
pode existir sem o Estado, e que este não é de modo algum
o único garantidor da paz: tanto para uma sociedade como
para um indivíduo, ficar adulto é aprender a não depender
dos pais.
No entanto, o consenso não pode se realizar se fica na
fase das boas intenções. E vejo dois perigos terríveis com os
quais já se confrontam as nossas sociedades pós-industriais.
O primeiro reside na persistência, até mesmo crescimen-
to, das disparidades socioeconômicas: tudo concorre para

45. Essas expressões são citadas por J. Daniel num de seus editoriais, Lê
44. Cf. supra, pp. 79-81. Nouvel Observateur, 1357, 8-14 de novembro de 1990, 60.
Capítulo IV
Q direito no plural
Há certas ideias de uniformidade que entusiasmam algumas
vezes as grandes mentes [...] mas impressionam infalivelmente
as pequenas. Nelas encontram um género de perfeição que é im-
possível não descobrir; os mesmos pesos na polícia, as mesmas
medidas no comércio, as mesmas leis no Estado, a mesma reli-
gião em todas as partes. Mas isto será sempre conveniente, sem
exceção? [...] a grandeza do génio não consistiria mais em saber
em qual caso é preciso a uniformidade e em quais casos é preciso
diferenças/ [...J Quando os cidadãos seguem as leis, que importa
que sigam a mesma?
MONTESQUÍEU, Uesprit dês lois, XXIX, 18.

O caráter social do homem não se esgota no Estado, mas se


realiza em diversos grupos intermediários, da família aos grupos
económicos, sociais, políticos e culturais, que têm cada qual sua
autonomia própria,
JoAo PAULO II; encíclica Centesimus Annus, 1991.

A pluralidade das culturas será um obstáculo para a uni-


dade do género humano? Poderei ao mesmo tempo afirmar que
todos os valores são equivalentes e querer combater a injustiça?
É a essas questões que deveriam responder, em 1990, os can-
didatos ao exame de bacharelado. Elas se apresentam a to-
dos os cidadãos. O direito francês não é espontaneamente
inclinado a consagrar o pluralismo. Por mais que o Estado re-
publicano se tenha resolvido há uns dez anos à descentrali-
zação, esta até hoje é apenas administrativa. O Estado retém
em última análise o poder de fazer a lei: os juristas vêem nis-
so, faz muito tempo, a mais manifesta expressão da sobe-
rania. .As coletividades territoriais podem, decerto, criar nor-
mas, mas o Estado lhes dá rédea curta: essas normas só po-
dem acrescentar-se às regras estatais e não substituí-las, isso
nas áreas e nas condições fixadas pelo direito estatal; o juiz
ou o executivo podem anulá-las. Pois somos sempre influen-
ciados por mitos elaborados há dois séculos.
156 NOS CONFINS DO DIREITO 0 DIREITO NO PLURAL 157

as axias iças antes de sua instalação na França. Prudente, a Previdência


Social aperta os cordões de sua bolsa furada, não aceitan-
A lei "deve ser a mesma para todos, quer ela proteja, quer do a existência senão de uma esposa. Está certo, mas trata-
ela puna", prescreve o artigo 6 da Declaração dos Direitos se de imigrantes, responderão. Não são os únicos vetores
do Homem de 1789, que pertence ao nosso direito positivo. de pluralismo jurídico. Contra as tradições do Sul da França,
Uma representação da sociedade modelada pela imagem de fortemente impregnado de concepções individualistas e da
um corpo homogéneo a inspira. Paralelamente, o princípio onipotência do testamento legada pelo direito romano, os
de unidade do Estado é lido estritamente como um impera- revolucionários suprimiram em 1791 todos os privilégios li-
tivo de uniformidade. País dos direitos do homem, que conce- gados à progenitura, ao sexo, à sucessão por leitos. Cumpria
de generosamente o direito de asilo, a França está infinita- emancipar os jovens (alguns anos mais tarde, o Código Civil
mente mais recuada no que concerne aos direitos das mino- era compreendido como o "Código da Juventude"), o que
rias1. Abandonos de jurisdição ou concessões de territórios, passava pela fragmentação das heranças (chamou-se tam-
tais como os está operando o Estado canadense em proveito bém o Código de "a máquina de retalhar o solo") e contri-
buía para pulverizar os clãs aristocráticos. Paralelamente, foi
das minorias ameríndias, seriam na França inimagináveis. E,
feita interdição aos pais de família de favorecer um dos filhos
no entanto, certos fatos começam a impor-se. No final de
por testamento. Defenderam-se como puderam contra a le-
1990, o governo elabora um estatuto administrativo da Cór-
gislação dos homens do Norte. Por exemplo, reduzindo vo-
sega que, pela primeira vez, reconhece juridicamente a exis- luntariamente o número dos filhos. Ou jogando com cer-
tência de um povo corso. Seu primeiro artigo é recheado de tas possibilidades deixadas abertas, como o mostram alguns
palavras que fazem empalidecer os partidários de um poder exemplos atuais1.
central forte: "A República francesa garante à comunidade O camponês do Aveyron aplica sempre a regra (con-
histórica e cultural constituída pelo povo corso, componente suetudinária) "do quarto": aquele dos filhos que já trabalha
do povo francês, os direitos à preservação de sua identidade na fazenda - em geral o primogénito - recebe um quinhão
cultural e à defesa de seus interesses económicos e sociais es- suplementar ao que lhe cabe legalmente a fim de que seja
pecíficos." Mais discretamente, o direito privado também re- preservada a unidade da propriedade, competindo-lhe res-
cebe injeções de pluralismo, notadamente no ponto em que sarcir os irmãos e irmãs. No país basco, o primogénito é be-
se aproxima mais da moral, no direito das pessoas. Faz onze neficiado mais por meio de doações-partilhas operadas em
anos, os casamentos polígamos são reconhecidos pela Cor- vida dos pais. Entre os nobres e os burgueses, costuma-se
te de Cassação e pelo Conselho de Estado... desde que se- usar o dispositivo de segurança da cota disponível (a par-
jam os de imigrantes que os contraíram em seu país natal te - variável - do património pessoal que cada um de nós
tem liberdade de transmitir a quem quiser) para legar ao fi-
lho primogénito a morada ancestral ou o castelo. Atitudes
1. Cf. D. Lochak, Lês minorités et lê droit public français: du refiis dês passadistas e minoritárias? Os mecanismos jurídicos que as-
différences à Ia gestion dês différences, in: Lês minorités et leurs droits depuis seguram a transmissão preferencial das empresas se pren-
1789, estudos reunidos por A. Fenet e G. Soulier, Paris, L/Harmattan, 1989,
111-84. Alguns juristas são hostis ao pluralismo civil porque, colocados dian- dem largamente à mesma lógica.
te de uma escolha, tanto a moral como o direito têm de decidir-se: cf. C. Atias,
Lê mythe du pluralisme civil en législation, Revue de Ia Recherche Juridique -
Droit Prospectif, 2,1982, 244-53. 2. Cf. C. Rigollet, Et lê droit d'aínesse?, Lê Point, 918, 23 abr. 1990,131.
158 ' NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 159
Existem em nossa sociedade muitas outras manifesta- de menores à autoridade paterna (que certas seitas operam),
ções de pluralismo jurídico, voltaremos a elas. Tentemos bre- as obrigações contratadas pelos traficantes de droga são con-
vemente definir o conceito3. Em sua versão fraca, este alude trárias à ordem que o Estado define como "pública". Pífic
à existência, no seio de determinada sociedade, de mecanis- exemplos, dir-me-ão, de pluralismo jurídico? São fatos, ner
mos jurídicos diferentes que se aplicam a situações idênticas. um pouco excepcionais. Poderíamos citar outros, que a infâ
Por exemplo, o contrato comercial, em que o comerciante mia penal não macula: o direito canónico continua a proib 3
vende mercadorias segundo regras diferentes (mais maleá- o divórcio, o direito estatal o admite desde 1884; o primeir
veis) que o resto dos cidadãos. Em sua versão forte, que tem proíbe o aborto, o segundo deixou de considerá-lo crime er
minha preferência, inspira-se na ideia de que os diferen- 1975; no antigo direito, a Igreja e o Estado condenavam o err
tes grupos sociais vêem cruzar-se em seu seio múltiplas préstimo a juros, os comerciantes o praticavam etc.
ordens jurídicas: o direito estatal, mas também aquele pro- Vamos parar essas enumerações para reter a constate
duzido por outros grupos, direitos que podem coincidir ou cão essencial. O monismo jurídico oferece vantagens e autc
divergir. Por exemplo, o trabalhador imigrante é submetido riza o repouso das certezas: o que pode ser mais tranquiliza
em seu trabalho ao regulamento interno da empresa que o dor que um astro único num céu fixo? O pluralismo, em sua
emprega; utiliza o direito estatal segundo o qual funciona a versão forte, abre-nos as portas de um universo vertiginoso,
Previdência Social, cujos diversos benefícios ele recebe; ele os povoado de galáxias jurídicas que se afastam umas das outras
redistribui no interior de sua família segundo critérios con- ou, ao contrário, se atraem, misturando às vezes seus braços.
suetudinários que não são os do direito francês (condição A visão clássica do direito seria tão ultrapassada quanto o geo-
da - ou das - mulher(es), principalmente). Outro exemplo: centrismo? Devemos em todo caso interrogar-nos sobre as
um mafioso pode fazer legalmente investimentos na Bolsa razões que, de modo muito particular na França, levaram a
se utiliza dinheiro corretamente lavado, mas também pode acorrentar o direito ao Estado.
liquidar um rival conforme as tradições da Honrada Socieda-
de. Versão fraca, versão forte, essas não são apenas argúcias
de juristas? As consequências delas são muito diferentes. A A paixão pelas leis
versão fraca reverte em vantagem do direito estatal: nela o
xy^í,^n_xdL»Jr>»v-»P^ura^smo em &era^ se reduz a manifestações de autono- Já falei4 da influência do monoteísmo sobre as nossas
^ -**nf^rnja toleradas, reguladas ou incentivadas por ele. Vale mais concepções do direito. Evidentemente ela não explica tudo.
Vj» então falar de pluralidade de mecanismos jurídicos do que Outros países cristãos (mormente os de Common Law) não
de pluralismo jurídico, o qual pressupõe a existência e o en- sentiram tanto quanto a França a paixão pelas leis5 e pelo
contro de múltiplas ordens jurídicas. A versão forte pode Estado.
redundar em choques: as leis do meio, a excisão, a subtração É que a França foi cedo iluminada pelas Luzes. Alguns,
como Voltaire, não eram contra o despotismo, contanto que
fosse esclarecido. Esperança desiludida, sabe-se: Frederico da
3. Ainda que todos os antropólogos do direito estejam de acordo sobre
a existência do pluralismo jurídico, não chegaram a entender-se sobre uma
definição única do fenómeno. Cf. N. Rouland, Pluralisme juridique, w: Diction- 4. Cf. supra, pp. 63-73.
naire encydopédique de thêoríe et de sociologie du droit, org. A. J. Arnaud, Paris, 5. Extraio esse belo título e algumas das explanações a seguir de J. Car-
LGDJ, 1988, 303-4; Anthnpologie juridique, Paris, PUF, 1988, 83-4. bonnier, Essais sur lês lois, Répertoire du Notariat Defrénois, 1979, 203-23.
160 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 161

Prússia o expulsou, comparando-o a uma laranja cuja casca Passam vinte anos somente, e na Alemanha acende-se
convinha jogar depois de lhe ter espremido o suco. Mas to- o braseiro do Romantismo, reação contra as pretensões uni-
dos os filósofos convergem na denúncia do Estado absolu- versais da Aufldârung. Esse movimento glorifica o costume,
tista, cujas ambições devem-se coibir por constituições, có- expressão direta da história e da vontade populares, contra
digos e leis, que a Razão, e não mais a tradição, inspiraria, a lei, vapor maléfico do qual gostam de se rodear algumas
Se esta está do lado do costume, a primeira faz da lei o ins- elites cortadas desse povo e que querem fazer-lhe a felicida-
trumento de seu reinado. Sinal dos tempos, é aliás sob o rei- de contra a vontade dele, O grande jurista alemão desse
nado de Luís XV, quando se encerra o absolutismo e o libe- tempo, Savigny, esforça-se para afastar da Alemanha o Có-
ralismo económico fica no gosto do dia, que se multiplica digo de Napoleão, no qual só vê a expressão da mania fran-
a literatura legislativa. Obras com vocação tanto pedagógica cesa de legislar. O Código não ia, porém, tão longe quanto o
quanto jurídica se empenham em arrastar os homens para haviam desejado as Luzes: aos amores mais apaixonados su-
fora das profundezas silvestres do costume, sob o quente sol cedem depressa as primeiras decepções. Portalis e Napoleão
dos códigos. Diderot declara à imperatriz da Rússia: "Cum- foram os moderadores. O redator do Código Civil publicara
prirá prescrever que nas escolas utilizem para ensinar a ler ora um panfleto contra a codificação em sua juventude; aprecia-
o catecismo, ora o código. Seria melhor que fosse o mesmo li- va o empirismo de Montesquieu e durante seu exílio na Ale-
vro." Prudente, Catarina responde ao seu projeto de código: manha sofrera a influência do romantismo. Por isso não con-
"Trabalhais apenas com o papel, que aguenta tudo [...], ao cebe o Código como um absoluto, chegando a dizer que as
passo que eu, pobre imperatriz, trabalho com a pele huma- pessoas não fazem os códigos, mas que eles se fazem com o
na, que é muito mais irritável ou coceguenta." Mas é Rous- tempo... Quanto a Napoleão, ele evoluirá. No apogeu do Im-
seau que manifesta com mais ardor a paixão de seu tempo pério, coroado de vitórias militares, sonha em fazer do Códi-
pelas leis. Não escreve no Contrato social: "Seriam precisos go dos franceses uma legislação universal. Mas os povos não
Deuses para dar leis aos homens..." O que não o impede de têm os mesmos projetos. Mesmo na França, o autoritarismo
redigir -já - um código para a Córsega, nunca aplicado. do regime começa a pesar. Em 1812, Napoleão deve voltar
Sob a Revolução, a afeição pela lei se torna delírio amo- da Rússia às pressas para pôr fim à conspiração do general
roso. Em 1790, o deputado Romme (inventor, entre outras Malet. Consciência do impasse militar (a terrível derrota de
coisas, do calendário republicano) abre no Fauburg Saint- Leipzig só tem um ano de distância), reviravolta ideológica?
Antoine o clube dos Nomófilos que será animado pela célebre Em todo caso, o imperador muda de discurso: à Razão racio-
Théroigne de Méricourt. No mesmo ano, Robespierre con- cinante, à sua "tenebrosa metafísica", ele afirma doravante
dena a jurisprudência... em nome da lei. Seu amigo Saint-Just preferir os ensinamentos tirados das lições da História e do
mal tem tempo, antes de ser guilhotinado, de escrever Insti- conhecimento do coração humano.
tuições republicanas, em que destina às cidades futuras o sonho Tarde demais. E sobretudo contraditório. Pois Napoleão
espartano de leis intangíveis gravadas no mármore. Rabaut bem que aceitou o legado da Revolução num ponto capital: a
Saint Etienne, também ele prometido à guilhotina, afirma vi- construção de um Estado forte e centralizador, que ele queria
gorosamente: "Nossa história não é nosso código." Pois é pela capaz de compensar o déficit sociológico gerado pela pro-
lei que o homem se torna dono de seu próprio destino, em moção do indivíduo. Déficit sociológico: que será que isto sig-
vez de se deixar derivar sobre frágeis e instáveis costumes. nifica? Para compreendê-lo, retornemos justamente à época
Estes, porém, não estavam votados a uma morte próxima. revolucionária.

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162 NOS CONFINS DO DItf E/TO O DIREITO NO PLURAL 163
O Estado, instituidor do social termediários, cuja abolição sistemática é empreendida mui-
to depressa; laicização do direito e da sociedade: o Estado
Numa obra recente que mostra muito bem a complexi- pretende produzir sozinho a coesão de uma sociedade, que
dade do desenvolvimento das figuras do Estado no decorrer ele almeja fazer de indivíduos subtraídos à rede cerrada dos
destes dois últimos séculos (nem tudo se reduz à alternativa grupos. Quanto às garantias de seus direitos, as declarações
simplista "mais" ou "menos" Estado)6, P. Rosanvallon opõe se encarregarão delas. Os corpos da antiga sociedade não
o Estado monárquico àquele que nasce da Revolução. O pri- são os únicos a arcar com o preço dessa paixão uniformiza-
meiro seria "o topo regulador e organizador de uma hierarquia dora. Dois exemplos. O primeiro consiste na remodelagem
articulada de corpos intermediários"7, enquanto o segundo jurídica do território. Há que destruir o "espírito de provín-
não hesitaria em subverter e aniquilar esses corpos. Ficaría- cia" e pôr fim aos arcaísmos - reais - da antiga administra-
mos tentados a atenuar o vigor do contraste8, assinalando ção. O que importa é o espírito da reforma posta em prática
que a monarquia absoluta não se contentou em afirmar sua já no início do ano 1790: o recorte departamental fraciona
superioridade política sobre a nobreza, o clero e os diferentes a França em 83 espaços de dimensões próximas, todos
corpos. Restringiu-lhes também as competências judiciárias subdivididos em circunscrições e em distritos. O local já
(subordinação das justiças feudais e eclesiásticas à justiça ré- não passa de um reflexo de uma organização nacional unitá-
gia); refreou-lhes o poder legislativo; submeteu-os à pres- ria. Em 1793, Saint-Just enriquece essa organização de um
são de seus agentes e de sua fiscalidade (o clero pagava um conteúdo mítico. Na linha das identificações entre o corpo
imposto, disfarçado sob o eufemismo de "doação gratuita"; humano e o corpo social operadas de Hobbes a Rousseau, ele
Luís XTV instaurou a capitação, à qual até os nobres estavam liga as noções de território e de povo, afirmando que as divi-
em princípio sujeitados). Quanto às comunidades urbanas, o sões do território são apenas o reflexo daquelas do povo. Se-
poder régio soube abater-lhes as veleidades de independência gundo exemplo, de igual precocidade, de luta contra os par-
e uniformizar-lhes o regime jurídico. Tanta obstinação políti- ticularismos: a língua e as medidas. Já em 1790, procura-se
ca e administrativa só podia restringir também a existên- unificar a língua. Em 1794, o famoso abade Grégoire apre-
cia social desses corpos intermediários: não é sem razão que senta à Convenção um Relatório sobre a necessidade e os meios
odiavam os intendentes do rei. Todavia, continuaram bas- de destruir os dialetos e de universalizar o uso da língua francesa.
tante fortes para constituir o freio mais eficaz do absolutismo, A uniformização dos pesos e medidas procede do mesmo
e o rei tocou só com precaução e sem muito sucesso nos pri- andamento unitário: a Lei de 18 germinal do ano III convida
vilégios (aliás, os juristas se dividiam sobre a questão de sa- em seu artigo l os cidadãos a mostrar "uma prova do apego
ber se ele tinha esse direito).
à unidade e à indivisibilidade da República, servindo-se das
Os filhos das Luzes pretendiam ir muito mais longe e novas medidas nos cálculos e transações comerciais". Bona-
fazer do Estado o instituidor do social. Acabaram-se corpos in- parte, por sua vez, faz que seus primeiros prefeitos procedam
em 1801 a uma pesquisa sobre os usos locais, inaugurando
6. Cf. P. Rosanvallon, L'Étaten Frcmce, de 1789 à nosjours, Paris, Lê Seuil, uma etnologia administrativa9. Os encarregados têm dificul-
1990. dade em fazê-lo, pois os recortes departamentais não corres-
7. Md., 96.
8. Nesse sentido, é inexato pretender, como o faz P. Rosanvallon (op.
cit., 105), que o Estado absolutista "... não lutou contra os corpos intermediá- 9. Cf. M. N. Bourguet, Déchiffrer Ia Fmnce - La statistique départementale
rios nem contra os particularismos locais". à 1'époque napoléonienne, Paris, Ed. dês Archives Contemporains, 1988.
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164 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 165

pondem necessariamente às realidades geográficas e socio- denuncia o anticorporativismo de Lê Chapelier: "Não é ver-
lógicas. Percebem em todo caso que, negados pelo direito e dade que haja apenas indivíduos, grãos de poeira sem coesão,
pela ideologia revolucionários, os particularismos regionais e o poder coletivo da nação. Entre os dois, como transição de
ainda estão bem vivos. Ordenando recenseá-los, Bonaparte um para o outro, como meio de evitar a compressão do indiví-
não pretendia em absoluto protegê-los, mas, ao contrário, duo pelo Estado, existe o grupo, formado pelas livres aproxi-
conhecê-los melhor para aniquilá-los com mais segurança. mações e pelos acordos voluntários."10 Filósofos, sociólogos e
O destino efémero do Império impediu-o. juristas sentem cada vez mais a necessidade de pensai- o social
E também uma angústia que não parou de crescer no de- como uma totalidade não exclusiva do Estado, mas irredu-
correr das primeiras décadas do século XIX, compartilhada tível ao seu único papel de instituidor desse social. Atestam
pela maioria dos publicistas e historiadores daquele tempo: isso os esforços de L. Bourgeois, inventor do solidarismo; de
a da dissolução social. Todos eles falam de sociedade redu- Durkheim, em seu grande livro De Ia division du travail so-
zida a pó, desconstituição social, decomposição dos laços cial*', e de juristas como Saleilles, Hauriou, Duguit. Estes es-
sociais anteriores. De fato, descobre-se a necessidade pre- tão conscientes da defasagem entre o individualismo legal
mente de substituir as antigas solidariedades por novos la- e as aspirações desenvolvidas no final do século pelos pro-
ços: são necessários corpos novos. O binómio Estado-in- cessos e pela concentração da industrialização. Elaboram
divíduos, em sua versão primitiva, não durou muito. Mas o diversas teorias, que vão do solidarismo ao socialismo jurí-
Estado não renunciou a instituir o social. Vai somente reco- dicos, e todas elas enfatizam a regulação das vontades dos
meçar de outro jeito, tentando gerar efeitos sociais análo- indivíduos pelos diferentes grupos sociais aos quais perten-
gos aos vínculos produzidos pelas corporações do Antigo cem (associações profissionais, classe social etc.). Sinal dos
Regime, sem restaurar de modo algum estas. P. Rosanvallon tempos, aparece em 1905 a noção de abuso de direito: o exer-
qualifica com razão esse procedimento de "regulação neo- cício de um direito, ainda que perfeitamente reconhecido,
corporativa". Já em 1802, o Estado implanta instituições con- é vedado desde que não possa ter outro objetivo senão cau-
sultativas que lhe servem de interfaces em suas relações com sar um dano a outrem. Isso põe em causa toda a noção de di-
certas profissões (câmaras de comércio, câmaras consultivas reito subjetivo. Alguns anos mais tarde (em 1912), E. Gounot
das manufaturas); o movimento prossegue com a multipli- ataca_outro
_ pilar do individualismo, a noção^de
' autonomia
cação de conselhos superiores (da instrução pública, da agri- "Hãvõntade. Em filigra^no Códign Civil pia signifíra
cultura, do trabalho etc.) que devem associar as competên- a vontade^ dos indivíduos é suficiente para criar efeitos de
cias privadas à sua ação. Por esse viés, reaparece a represen- JctifgtoTnõtadamente graças à conclusão de contratos. Ora,
tação pluralista dos grupos secundários, somente uns dez jilgunsjuristas começam a escrever que essa noção é incom-
anos depois de seu princípio ter sido negado. Os regimes se patível com a multiplicação das associações e com a progres-
sucedem, mas o movimento continua. A revolução de feverei- são do direito sindical. As ideias de justiça e de solidariedade
ro de 1848 institui a liberdade de associação, que será consa- devem impor-se à vontade individual.
grada pela Lei de If de julho de 1901. As sociedades de socor-
ro mútuo, nascidas das necessidades de uma classe operária
10. E. Ollivier, Commentaire de Ia loi du 15 mai 2864 sur lês coalitions,
em formação, estão agora legalizadas e se multiplicam sob o Paris, 1864, 52-3.
Segundo Império. Paralelamente, critica-se o individualismo * Trad. bras. Da divisão do trabalho social. 2f ed. São Paulo, Martins
radical dos primeiros revolucionários. Em 1864, Émile Ollivier Fontes, 1999.
166 O DIREITO NO PLURAL 167
NOS CONFINS DO DIREITO

Vasta e fundamental evolução, da qual todo o século XX vêm da iniciativa dos representantes do povo, mas resultam
ia ressentir-se, através do florescimento dos direitos sociais. de projetos elaborados pelos ministérios e pela adminis-
Poder-se-ia ter acreditado que essa restauração do social, ini- tração pública. Ademais, desde o início do século e sobretu-
ciada já nos primeiros anos do século )QX, teria enfraquecido do com a instauração da V República, ela sofre a concorrên-
o Estado pós-monárquico, na medida em que preenchia um cia do crescimento do poder regulamentar (decretos, porta-
vazio que ele mesmo criara fazendo prevalecer as concep- rias administrativas etc.), que pertence exclusivamente ao
ções individualistas. Não foi nada disso, muito pelo contrá- poder executivo.
rio. Pois o Estado instituiu-se o protetor e o regulador das As manifestações de pluralismo jurídico e judiciário às
nova? solidariedades; grupos modernos nasceram sobre os quais aludi" não contradizem nem um pouco essa tendên-
^scomferòs' dos antigos. A mesma lógica comanda-lhe ã ati- cia. As justiças internas ou alternativas toleradas pelo Esta-
tude para com o. direito. do sempre são suscetíveis, em caso de fracasso de suas ins-
Recuaram rápido do culto absoluto da lei. Já na segunda tâncias, de conduzir às jurisdições estatais: a autonomia não
metade do século XÍX, a jurisprudência retomou seu papel é a independência. É por isso que em sua versão "fraca" o
criadcjjfDepois de precisar o alcance dos textos codificados, pluralismo jurídico não arranha realmente o monopólio es-
os tribunais irão mais longe: completarão as suas disposições, jaial do direito: pode ser apenas o produto de uma "gestão
estatal-corporativa"12..Assim, o Estado escolheu resolver, a
apoiando-se em seu senso de equidade, nas noções de neces-
partir dos anos 1950, o problema da modernização da agri-
sidades e tradições do povo: elaborarão até interpretações
cultura, jogando a carta de encarregar as profissões rurais de
dos códigos opostas ao sentido primitivo deles^Também a
seus problemas, sem no entanto desafrouxar seu controle.
doutrina sacode o jugo dos códigos no final do século: dei-
Seus serviços agrícolas se tornam mais discretos, mas novos
xando de considerá-los monumentos indestrutíveis, ela su-
intennediários são introduzidos: diferentes fundos e asso-
gere e propõe inovações. Mas tudo isto não constitui de mo-
ciações são criados por sua iniciativa (Fundo Nacional de
do algum um prelúdio para o enfraquecimento do monopó- Desenvolvimento Agrícola), financiados por subvenções ou
lio que o Estado pretende exercer sobre o direito: somente
taxas parafiscais. O mesmo princípio é aplicado à siderurgia:
uma outra maneira de exercê-lo. À regulação neocorporati-
o Estado auxilia financeiramente esse setor em dificuldade,
IJLsl va corresPonde uma nova gestão da produção jurídica: o di- com a condição de uma política de reestruturação cuja exe-
reito é sempre um negócio de Estado.
cução é confiada à Câmara Sindical da Siderurgia.
cto~dL^x Percebe-se isso identificando-lhe as fontes. Está certo, Portanto, o sonho revolucionário continuou, sob outras
os manuais de direito distinguem várias delas, A doutrina, ou formas, mais maleáveis e mais eficazes. Aliás, o senso co-
seja, os pareceres expressos pelos outros eruditos. Mas estes mum faz eco a essas concepções. Pergunte a um francês mé-
não têm nenhum valor jurídico por si sós: só o adquirem se dio: à ideia de direito ele associará espontaneamente os có-
são repetidos pelo juiz ou pelo legislador. O costume: na prá- digos, as forças da ordem e as jurisdições (penais, de prefe-
tica, ele pode ser mais importante do que a lei, mormente rência, como sabemos). Podemos, todavia, perguntar-nos se
nas relações comerciais. Mas o direito oficial dá-lhe pouco esses procedimentos não atingiram hoje seus limites.
A^jjv^vvaju^- esPaco: Rão pode ir contra a ordem pública, definida pelo
LJ ^^. / Estado; os juizes da causa controlam sua aplicação. A pró-
jt dlt9(£ta<.f«lAoft'Pria lei depende estreitamente do Estado: mesmo que se- 11. Cf. supra, pp. 136-49.
jam todas votadas pelo Parlamento, 90% delas não pró- 12. Cf. P. Rosanvallon, op. cif., 264-8.
168 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 169

A sociedade civil a descoberto rença cada vez mais compartilhada de pertencer a uma clas-
se média. Percebem-se ainda mais certas consequências ne-
Pois vários sinais parecem mostrar que as diferentes ins- gativas do progresso tecnológico, cada vez menos associado
tâncias que compõem a sociedade civil almejam diminuir, se à ideia de felicidade; a desconfiança contra certas figuras do
não suprimir, o papel de instituidor do social que o Estado Estado e da classe política em geral conduz à valorização de
pretende desempenhar há dois séculos. Isso não significa que universos sociais de pequena dimensão: em particular as as-
o Estado deve desaparecer, mas, antes, modificar-se, mos- sociações/ a localidade e a família.
trar-se mais o agente coordenador de novas solidariedades: Mais de 50 mil associações foram criadas em 1987, ou
em suma, mais um conciliador do que um regulador. Aqui seja, cerca de quatro vezes mais do que nos anos 1960 e dez
nós nos juntaríamos às aspirações a um direito estatal mais vezes mais que no início do século XX. Quarenta e cinco por
i
inspirado na ordem negociada e ao reconhecimento de um cento dos franceses pertencem a pelo menos uma associação
autêntico pluralismo jurídico, irredutível a uma única técni- (existem entre 300 mil e 500 mil). Interpreta-se em geral a bai-
ca de desconcentração. xa da taxa de sindicalização (8% em 1990) como o sinal pre-
Os problemas aos quais deve fazer frente a sociedade monitório do enfraquecimento da vida associativa15. É um erro.
francesa são menos económicos do que culturais. O princi- Os franceses julgam insuficientemente operantes certos tipos
pal consiste na diversificação. A dos modos de vida, acima de de associações de caráter extenso (sindicatos, partidos polí-
tudo. A elevação do nível de vida, o enfraquecimento dos si- ticos); privilegiam aquelas que pretendem administrar uma
nais externos de pertencer à sociedade acarretam uma capaci- instituição ou manter uma sociabilidade locais: não se pro-
dade maior para cada família de construir como bem entende cura transformar tanto o mundo e a sociedade quanto seu
seu modo de vida. À diversificação da demanda corresponde, bairro ou sua comuna, menos por egoísmo do que por preocupa-
aliás, a da oferta de produtos de consumo e de bens de produ- ção de eficácia. A localização das atividades ficou para muitos
ção. Mesmo fenómeno na imprensa escrita, na qual se consta- franceses uma das dimensões essenciais de sua existência, que
ta um fortíssimo desenvolvimento das revistas especializadas: o estereótipo de "busca das raízes" traduz bem. Já em 1975,
se se lêem menos livros, é também porque há mais jornais e as comunas rurais próximas de uma aglomeração grande vêem
público-alvo mais bem definido. O videocassete também per- crescer sua população num ritmo superior ao das grandes ci-
mite uma programação rnais pessoal do que a televisão. dades, caracterizadas pelo anonimato das relações sociais,
A diversificação é também religiosa. País de tradição cris- pelo enfraquecimento das relações de face a face. A vida polí-
tã, a França tornou-se multirreligiosa13. Mais significativa ain- tica local torna-se mais animada, principalmente por ocasião
da parece a recentragem no microssoáal, constatada por to- das eleições municipais. Sinal da força das atitudes identitá-
dos os sociólogos14. O local se autonomiza cada vez mais em rias: as tentativas de fusão de comunas fracassaram largamen-
relação aos grandes grupos e instituições nacionais. As di- te, embora a França, com suas 36 mil comunas, possua a me-
versas consciências de classe se esbateram em proveito da nor unidade político-administratíva local. Podemos também
citar os resultados de uma pesquisa efetuada em 1990 nos
seis departamentos da região Provence-Alpes-Côte d'Azur:
13. Cf. La France multireligieuse, número fora de série de Têmoigriage
Ckrétien.
14. Cf. L. Dirn, La société française en tendances, Paris, PUF, 1990; G.
Mermet, Fnmcospie, Paris, Larousse, 1989,11,199-200. 15. Nesse sentido, cf. P. Rosanvallon, op. cit., 278.
170 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL
48% das pessoas interrogadas declaravam ter o sentimen- hinos é difícil; a criminalidade aparente (conhecida da po-
to de pertencer acima de tudo à cidade ou à comuna nas lícia, mas que não é obrigatoriamente objeto de urn julga-
quais moravam, 35% à França16. As relações de parentesco, mento) aumentou, sobretudo aquela contra os bens. Outros
enfim, se modificaram e se fortaleceram a um só tempo. São fenómenos são mais inquietadores ainda, pois demonstram
mais fundamentadas do que antes na busca do consenso; uma dificuldade de viver que pode afetar consideráveis con-
os jovens ficam mais tempo com os pais e, uma vez casados, juntos da população. Aumento do consumo de drogas; consu-
75% deles têm a residência a menos de 20 quilómetros de mo de hipnóticos e psicotrópicos que faz da França o país
pelo menos uma de suas famílias de origem; os pais e avôs que os consome cada vez mais em comparação à população
transferem em vida uma parte de seu património aos des- dobai; aumento dos suicídios, muito forte entre os jovens.
cendentes (formas diversas de assistência aos jovens casais). De modo que podemos perguntar-nos qual tendência pre-
Quanto ao Estado, mesmo que, segundo uma pesquisa de valecerá: a que conduziria à desagregação, por falta de insti-
1984,41% dos franceses desejem sua "diminuição", ele não tuidores do social (Estado ou outros), ou, ao contrário, as que
é rejeitado. A opinião pública o considera sempre o garan- parecem prenunciar sua reagregação. A teoria do Estado de
tidor da proteção social e um agente importante da integra- direito, apesar de suas ambiguidades, aposta nestas últimas.
ção à sociedade de grupos marginais ou desfavorecidos.
Mas reclama que se retire mais da "vida privada" (medicina,
família, informações, lazer). O Estado de direito e o direito do Estado
Importância dos grupos secundários, inserção de novas
solidariedades no local, fortalecimento dos parentescos, cle- . Sente-se a respeito de certos conceitos um temor reve-
sencorajamento diante de um Estado muito aglutinador: to- renciai:, é o caso do Estado de direito, cuja promoção foi asse-
dos esses traços aproximam em certa medida as sociedades gurada por tantos acontecimentos recentes. É em seu nome
pós-industriais das sociedades tradicionais caras aos antro- que desaparecem na Europa central e alhures regimes au-
pólogos. Mas outros as afastam delas. A importância da so- toritários, é para ele que dizem tender as sociedades liberais
lidão17 (à qual corresponde justamente o desenvolvimento da avançadas em busca de um acordo entre a necessidade do
vida associativa): 13 milhões de franceses dizem senti-la; o Estado e os direitos da sociedade civil. Pois o Estado de di-
número dos solitários (7,6 milhões de solteiros entre os in- reito se distingue das outras formas estatais de organização
divíduos com 20 anos e mais; 1,5 milhão de divorciados; política por sua aceitação da limitação de seus poderes pelo
4 milhões de viúvos e um número indeterminado de pessoas direito. Daí o sucesso do conceito, numa época em que o Es-
que não possuem ou possuem poucas relações de amizade) tado dirigista saiu da moda e em que os Estados despóticos
cresceu mais depressa do que o da população global; sabe-se registram no mundo um recuo inequívoco.
que em Pans 48% dos lares comportam apenas uma única Resta saber como interpretá-lo18. Pois é possível tanto_
pessoa (contra 32% em 1954). A amplitude, também, dos fe- redunSãr na exaltação do direito do Estado como naqueles dã~
nómenos de exclusão. A integração dos imigrantes magre- jociedade civil. O problema é o seguinte: estamos de acor-
do sobre o fato de que, num Estado de direito, o Estado não
16. Cf. a Lettre du Conseil Regional Provence-Alpes-Côte d'Azur, n. 83, fora
de série, 1990, 3.
17. Cf. G. Mermet, op. dt., 199. 18. Cf. o excelente resumo de J. Chevallier, subverbete État, m: Dictionnaire
encydopédique de théorie et de sociologie du droit, Paris, LGDJ, 1988,147-51.

, f.
172 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL

pode fazer o que bem entende e aceitar ver-se contido pelo di- Essas duas abordagens resultam, portanto, num impas-
reito. Mas a questão crucial é: de onde vem esse direito que li- ou o Estado de direito só é limitado por si mesmo, o que
mita o Estado? Do próprio Estado^u de uma outra instância? não constitui um sistema de freamento muito confiável; ou se
Certos autores são pela autolimitação. O direito não fracassa em encontrar no direito positivo os vestígios de uma
preexiste ao Estado, que procluz a ordem jurídica. Se o Es- hipotética limitação extrínseca da potência do Estado. Exis-
tado se submete ao direito, é por seu próprio movimento. A te, porém, uma saída, sugerida pela experiência antropológica:
maior parte dos juristas é favorável a essa abordagem. Mui- a do pluralismo jurídico.
tos historiadores do direito, quando pintam o grande afresco Todas as sociedades tradicionais ou modernas, em graus
que conduz das profundezas merovíngias ao sol jurídico do diversos, são sociologicamente plurais, no sentido de se com-
Código Civil, salientam os benefícios do crescimento estatal porem de grupos secundários, com maior ou menor auto-
e de seu corolário, a unificação do direito, oposta à desordem nomia. Emjmbos os casos, a proteção dn indivíduo pode
consuetudinária. Para o cientista político B. Barret-Kriegel, vir maisdessa estrutura plural do que de declarações de di-
a redação dos costumes, a penetração do direito romano, a TêitõlTou"de garantias fornecidas por uma autoridade cen-
sucessão das codificações embeberam de direito a socie- tral, pois "esses diferentes grupos são interdependentes uns
dade, e o direito acabaria investindo o Estado. Daí uma lei -^õTÕútrõsTMas, enquanto inúmeras sociedades tradicionais
de evolução: quanto mais se amplia e se uniformiza o di- o reconhecem abertamente, as sociedades modernas o ne-
reito, mais se democratiza a sociedade e mais se civiliza o gam e, incentivadas pelo discurso dominante dos juristas,
Estado. Essas ideias têm certos riscos. O principal resulta têm tendência a recorrer ao Estado para assegurar a coesão.
da identificação do direito ao Estado que elas operam: o Es- Tropeça-se então sempre no mesmo obstáculo: venha o di-
tado de direito redunda no direito do Estado. Para o grande ju- reito dele ou de outro lugar, é ao Estado que é principalmen-
rista G. Burdeau, o Estado é assim a própria encarnação da
te atribuída sua produção.
ideia de direito. Aliás, o direito público dos países europeus Mas tudo se esclarece se admitimos que a esse pluralis-
(sobretudo na Alemanha e na França) organizou-se no sé-
mo sociológico corresponde inevitavelmente um pluralismo
culo XIX e no início do século XX em torno dessa exaltação
jurídico. O Estado não é a única forma de organização social.
da potência estatal.
Muitas sociedades perfeitamente viáveis passaram sem ele.
Donde uma segunda abordagem, que inverte o movi-
Quanto às nossas sociedades modernas, por certo são estatais,
mento: esse direito ao qual o Estado de direito aceitasubme-
ter-se não vem dele, mas de um princípio que IheTãnterior mas somente em parte estatizadas. Existem alguns grupos
O e superior. Já no passado, os que temiam a rivalidade da organizados, ao mesmo tempo aquém e além do Estado, e
'potência estatal ou contestavam o absolutismo formularam esses grupos produzem seu próprio direito, que confirma ou
diferentemente esse princípio: invocou-se primeiro Deus, infirma o direito estatal ou se afasta dele. Possuem também
depois a Natureza e o Homem. Em nossos dias, a ordem seus próprios mecanismos de punição, seus "tribunais", se
preexistente ao Estado é, antes, atribuída à Sociedade, daí a preferirem. A ordem jurídica estatal não é a única, como
distinção entre a sociedade civil e o Estado. Isso traz proble- se crê e com muita frequência é ensinado: ela encima ordens
ma: se a sociedade é a fonte do direito ao qual se submete o jurídicas infra-estatais (as dos grupos secundários) ou se avi-
Estado, como explicar que, como o indiquei, este permaneça zinha delas e se inclina diante das ordens jurídicas supra-es-
não obstante a principal fonte do direito? A teoria política tatais (por exemplo, as ordens jurídicas europeia ou interna-
'entra aqui em contradição com o direito positivo. cional, ou ainda os "códigos de conduta" das multinacionais.
174 NOS CONFINS DO DIREITO ODIRFJTONOPLURAL 175

Graças à transnacionalidade delas, estas usufruem uma sobe- assegurar-se de que os sistemas de direito não estatais têm
rania normativa que lhes permite negociar com os Estados de boas possibilidades de ser direito.
soberano com soberano, e não de súdito com soberano). Há mais de uma definição na casa do direito, escreveu J.
Jortanto. o pluralismo jurídico permite superar a pro- Carbonnier, especialista inconteste de direito positivo e so-
D
^-^ _blemática do Estado de direito ao afirmar que ò bstaclcTnãõ"
tem o monopólio da produção do direito oficial. Para o antro-
ciólogo do direito. O que inclina a guiar-se pelas definições
que lhe são caras20 para isolar o jurídico do social não-jurídico.
pólogo, a limitação jurídica do Estado não pode ser oriunda De minimis non curat praetor, dizia-se em Roma: o direito e a
do próprio Estado, por intermédio de um direito cujo domí- justiça intervêm nas relações sociais apenas a partir de certo
nio ele conserva de todos os modos. No plano interno, ela limiar, eminentemente variável conforme as sociedades. Con-
vem mesmo da sociedade, da qual se deve reconhecer que segue-se sem muita dificuldade, quando um sistema cultural
produz sistemas de direito. Pois, se o direito estatal é o único o exige (nem sempre é esse o caso), separar o direito da mo-
a existir, o Estado de direito não passa de uma ilusão. Porém, ral, da política ou da religião. É mais difícil distingui-lo dos
mais ainda do que a constatação da pluralidade das ordens costumes. Pertencerão ao reino do direito a palmada tradicio-
jurídicas, conta a da interação delas: essas ordens não são nal que acompanha as vendas de gado, os grãos de arroz lan-
mônadas. Elas se enredam no funcionamento concreto dos çados sobre os noivos à saída da igreja, a regra que obriga o
diversos sistemas de regulação: um médico é sujeito às re- sedutor a se casar com a moça seduzida, as algazarras cam-
gras deontológicas ditadas pelo Conselho Regional de Medi- ponesas, as regras estritas que as crianças se impõem em
cina, mas também aos princípios gerais da responsabilidade suas brincadeiras, as convenções de concubinato que os con-
civil; um detento continua a obedecer às leis do meio mesmo cubinos às vezes pedem ao tabelião redigir, os modos práti-
c? sendo forçado a observar as do estabelecimento carcerário. cos (podem afastar-se dos regimes legais ou contratuais) de
É a partir dessa interação que se pode elaborar um duplo gestão dos bens pelos esposos, os costumes locais (persis-
controle. O do Estado sobre as ordens infrajurídicas, que ele tência do direito de progenitura no Béarn)? Respostas antes
tolera, incentiva ou combate. Mas também o que resulta para positivas iriam no sentido do pluralismo jurídico e inversa-
o Estado da própria existência dessas ordens/k antropolo- mente: pois, em todos esses exemplos, o direito estatal está
gia ultrapassa, pois, a visão clássica do Estado de direito, que ausente, ou em sua borda. Podemos admitir com J. Carbon-
se esgota diante do monismo jurídico, e propõe uma teoria nier quea regra de direito é "... uma regra de conduta huma-
pluralista que explica melhor uma limitação do Estado pelo na, a cuja observação a sociedade pode nos coagir mediante
direito ou, miais exatamente, pelos direitos. uma pressão exterior de maior ou menor intensidade". Mas
ela compartilha essa caraterística geral com outras normas: se
bem que as regras de polidez me convidem a isso, posso não
olta à definição do direito me dirigir a um ministro chamando-o "Senhor Ministro"
sem ser ameaçado pela lei. Portanto, há que se debruçar pri-
^asvo^a en^° a interrogação já evocada19: o que é o di-
í reito? Lancinante questão, de difícil resolução, mas inevitá-
Cb- v -ÕOÕCD CÍOÓ- ve^' ^°*s antes ^e ^ar ^e pluralismo jurídico, ainda cumpre 20. Cf. J. Carbonnier, II y a plus d'une définition dans Ia maison du droit,
Droite, 11,1990, 5-9; Sociologie juridique, Paris, A. Colin, 1972,122-36; Droit ci-
vil (Introduction), Paris, PUF, 1988, 21-2. Cf. igualmente o parecer de outros d-
oU fcytcuto AL :. supra, pp. 5-7. vilistas: A. Weill e F. Terre, Droit civil (Introduction generais), Paris, Dalloz, 3-21.

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O OMITO NO PLURAL
NOSCONFINS DO DJÀEITO
Em segundo lugar, embora esses critérios da coerção e
meiro sobre a noção de coerção. Ela está presente noutros
da justiciabilidade constituam pontos de referência do direi-
lugares além do direito: regras de direito e de costumes são
to não são definições dele: uma regra não é jurídica porque
sociedade. Mas n
quecGsHnguiria o direito é uma coerção emanante de um po- o érup° lhe imputa esses caracteres, imputa-lhe esses carac-
f^rés~põrque a pensa juncTicamente e a qualifica assim. No
> ( ? ) der organizado especialmente para esse fim. Pensa-se espon-
^ésffíõ~sentido, mesmo que admitamos que a eventualidade
taneamente no Estado. Mas outras instituições podem cum-
da passagem para a justiciabilidade transforme os costumes
'<XÂr. prir esse papel, trate-se de sociedades não estatais (Anciães
em direito, perguntamo-nos o que determina essa transpo-
de clãs, senhores da Terra ou da Chuva, espíritos invisíveis,
sição. Questão que nos remete sinais exteriores do direito ao
defuntos etc.), ou lide-se com grupos secundários de socie-
dades estatais modernas que vivem mais oujnenos à mar- seu conteúdo.
Sociologia e antropologia jurídicas nos mostram que a
gem do Estado, de seu direito e de suas forçag/íotemos que
qualificação jurídica pode ter geometria variável no interior
a coerção não é necessariamente menos forte quando o Es-
de uma mesma sociedade (no metro, a proibição de fumar
tado desaparece ou se encobre: as pressões exercidas por um
procede do direito; noutros lugares, da boa educação ou da
grupo social (seita) ou os imperativos religiosos quando se
higiene) e que o sentido das prescrições jurídicas pode variar
associam ao direito (sem falai" do temor das assombrações in-
conforme as sociedades (o homicídio pode ser prova de vi-
fligidas pelos mortos aos parentes vivos que não os vinga-
rilidade ou de fraqueza). Inútil, portanto, procurar a uni-
ram) podem ser muito mais intensas do que uma intimação
versalidade do direito diretamente em seus conteúdos. Em
do oficial de justiça.
compensação, ela aparece melhor num tipo de definição
/kCarbonnier invoca igualmente o critério de justiciabili-
funcional. Õ direito, através da diversidade das experiências
daálsÁf regra de direito é suscetível de um tipo particular de
que as sociedades humanas fizeram dele, seria o que cada
contestação, resultante da intervenção eventual de um ter-
sociedade ou alguns de seus grupos consideram como indis-
iro nas relações entre as partes (juiz, árbitro, conciliador,
pensável à sua coerência e à sua reprodução. Compreende-se
mediador etc.). /ydtk K i ucuuv assim por que, em graus diversos, o direito veste as roupas
Decerto esses critérios não deixam de ter pertinência.
""gacoerção e do litígio, e as razões por que nem todas as so-
Mas deve-se relativizá-los. Em primeiro lugar/acontece ao
ciedades lhe dão um conteúdo idêntico. Além de combinar
direito ultrapassar a coerção. Pode consagrar regras sem as
com os qualificativos comumente aceitos do direito acres-
combinar com a punição estataJ/Ô direito positivo francês
OuàAc. centando-lhes ao mesmo tempo uma dimensão antropoló-
c j?.A- reconhece assim a existência de obrigações naturais entre pa-
gica, essa definição deixa todas as possibilidades ao pluralis-
rentes (um irmão deve socorrer a irmã na miséria), mas ne- mo jurídico, visando igualmente os grupos que constituem
nhuma ação judicial pode ser intentada pelo beneficiário da uma sociedade global. Será legítimo fazê-lo? Penso que sim:
obrigação natural se esta não foi espontaneamente executa- na maioria dos casos, a regulação social praticada por esses
JyO da; em compensação, quando o devedor dessa obrigação a grupos possui os atributos externos do jurídico (coerção, ju-
satisfez, o direito considera que pagou uma dívida, e não que ridicidade); corresponde igualmente à definição funcional
realizou um ato gratuito. Ademais, o direito pode nem sem-
que acabo de expor.
pre se apoiar numa coerção rígida e preferir a ela as técnicas Portanto, o pluralismo jurídico se relaciona não com fe-
da ordem negociada: isso tanto nas sociedades estatais quan- nómenos infrajurídicos, mas com sistemas jurídicos próprios
r to não estatais, tanto tradicionais quanto modernas.
178 NOS CONFINS DO DIREITO i
NO PLURAL 179

dos subgrupos de uma sociedade. Para dizer a verdade, mui- eus exércitos. Mas não procura de modo algum impor a
tos historiadores do direito, há muito tempo, constataram es- reerninência de alguma raça (o racismo é praticamente des-
ses fenómenos, mesmo que lhe tenham deixado a teorização conhecido na Antiguidade), tampouco sua língua (aprende,
aos antropólogos do direito. Percebemos isso quando faze- ao contrário, a falar grego), ou seus deuses (acolhe em seu
CO A* . mós brevemente a história do pluralismo jurídico. nanteão as divindades dos vencidos). Quanto às suas elites
governantes - até o trono real inclusive -, ela as abre larga-
mente aos homens vindos dos países conquistados. Tampou-
Uma breve história do pluralismo jurídico co impõe seu direito, deixando uma larga autonomia aos di-
reitos locais e nacionais: contrariamente aos estereótipos, o
Faz séculos que se procuram as causas da queda do Im- Império Romano foi amplamente pluralista. Daí seu sucesso:
pério Romano. Melhor seria interrogar-se sobre aquelas de as populações heterogéneas que o constituem encontram na
sua excepcional longevidade21. No final do século V de nossa referência política comum a Roma um ponto de convergên-
era, o Império do Ocidente não passa de um corpo desmem- cia. Em 143 d.C, Élio Aristides, um retórico grego, faz com
brado, salpicado de efémeros reinos bárbaros e atravessado razão um discurso entusiasta: "Mas há algo que, decidida-
por povos em fuga que transpuseram a fronteira de uma mente, merece agora tanta atenção e admiração quanto todo
província. Um sonho se esvanece: o Mediterrâneo, desde os o resto: quero dizer, vossa generosa e magnífica cidadania,
confins das charnecas escocesas até as dunas do Saara, não romanos, com sua grandiosa concepção, pois não há nada
somente submetido às armas, mas unido a Roma numa com- equivalente em toda a história da humanidade [...] Nem os
munis pátria. Unida, mas dessemelhante em suas partes. mares, nem as terras são um obstáculo na rota da cidadania, a
Como reunir, manter esse imenso Império, pacientemente Europa e a Ásia não são tratadas diferentemente. Todos os di-
construído desde os obscuros primórdios da cidade tiberia- reitos estão à disposição de todos. Nenhum daqueles que
na? Imenso, ele o era não só por suas dimensões, mas tam- merecem poder ou confiança é deixado de lado, mas, ao con-
bém pela ausência de um sistema de comunicações permi- trário, foi estabelecida uma livre comunidade por toda a terra,
tido pela tecnologia moderna. Daí o caráter crucial de certas sob a direção de um responsável único, fiador da ordem do
questões. Nivelar todas as disparidades, transformar todos mundo, que vem a ser a melhor possível; e todos acorrem, a
em romanos pela espada ou pelo direito ou, ao contrário, fim de cada qual receber o que lhe é devido, à vossa cidada-
criar uma espécie de Estado federal, irradiado pelo influxo nia, como a uma agora comum. E como as outras cidades têm
nervoso da Urbs? Descentralizar com o risco de uma frag- suas próprias fronteiras e como território o inundo habitado
mentação tornada muito provável pelas imensas desseme- inteiro, essa cidade (a vossa) tem como fronteiras e como ter-
lhanças entre os territórios e as populações, ou centralizar ritório o mundo habitado inteiro."22
com o perigo de partir-se diante dessas irredutíveis diferen- Esse sucesso deve-se à recusa da uniformidade. Em di-
ças? Integração, assimilação, respeito das diferenças: o deba- reito privado, a regra é a maior parte do tempo a autonomia:
te é antigo. Roma procede à exploração económica dos países cada cidade conserva suas leis, seu direito civil. Ademais, o
conquistados e arrebanha suas populações para guarnecer direito prático (dito "vulgar") se afasta com frequência do di-
reito oficial. Em geral os atos jurídicos comportam disposi-

21. Cf. N. Rouland, Décentralisation, citoyenneté et clientélisme: 1'expé-


rience romaine, Cahiers Pierre-Baptiste I, Aries, Actes Sud, 1982,156-75. 22. Élio Aristides, Éhge de Rome, 59-61.
180 NOS CONFINS DO DIREITO Q DIREITO NO PLURAL 181

coes de direito romano/ mal interpretadas ou contraditas pela muito inferiores às populações romanizadas). A diferença dos
continuação do texto: as partes quiseram "bancar romanas" costumes podia ser tanta que, para assegurar a coexistência
(o prestígio de Roma era grande), não conseguiram. Mas au- He povos diferentes no interior de um mesmo reino, reco-
tonomia não é sinónimo de independência: ainda é preciso nheceu-se a cada um uma autonomia jurídica (por exemplo,
que os direitos locais não se choquem com demasiado vigor os germânicos consideravam o casamento um ato que devia

contra o direito romano. É possível em inúmeros casos: Pi- Desenvolver-se por etapas, enquanto romanos e cristãos o
latos, para salvar Jesus da crucificação, tenta jogar com um viam como gerado por um ato único). Depois a vida mudou
costume judeu para fazê-lo libertar, mas é Bambas que se lentamente os costumes: os bárbaros falaram mais o latim,
beneficia dele. Noutras circunstâncias, finalmente pouco nu- muitos deles desejaram romanizar-se; os intercasamentos,
merosas, o direito romano prima sobre o direito local, pelo de início proscritos, se multiplicaram; o habitat - tanto o dos
menos oficialmente. Por exemplo, o imperador suprime em vivos como o dos mortos - misturou as comunidades. A re-
direito arménio a exclusão sucessória das mulheres. Em 285, ligião também as cimentou. Os povos bárbaros se converte-
um edito de Diocleciano proíbe os casamentos entre irmãos ram oficialmente ao cristianismo (a despeito da sobrevi-
e irmãs (os recenseamentos operados por Roma na provín- vência de inúmeros costumes pagãos), mas, salvo os francos,
cia do Egito deixam entrever que 15% a 20% dos casais teriam adotaram-lhe a versão ariana (que punha em dúvida a divin-
sido formados de consanguíneos). Mas, no essencial, o di- dade de Cristo). Por muito tempo, a heresia desempenhou
reito do antigo Egito (assim corno sua língua e sua religião) um papel identitário: o arianismo era peculiar aos bárbaros;
sobreviveu às conquistas macedônia e romana, ainda que o catolicismo, aos romanos. Reprimida duramente a heresia,
sofresse retoques. Estes costumam ser obra dos tribunais: os a religião cristã se impôs. Afinal de contas, a personalidade
juizes provinciais estão dispostos a respeitar o direito local, das leis deu lugar à territorialidade delas: todos os habitan-
podendo às vezes atenuar-lhe o alcance. É o caso da aférese, tes de um mesmo território obedeceram a um mesmo direi-
um direito oriundo da onipotência do chefe de família, que to, fossem quais fossem suas origens étnicas. Mas o direito
permite a um pai tirar a filha do marido ao qual a deu como continuava plural: os costumes mudavam de um território
esposa. Os juizes provinciais reconhecem sua existência, para outro: apenas o poder central, o dos imperadores fran-
ainda mais que em Roma, no tipo de casamento dito "sem o cos, promulgava uma legislação aplicável a todo o reino. De-
poder (do marido)", a moça romana continua submetida ao tenhamo-nos um instante para observar que foram esses
pai mesmo depois de casada. Mas parece-lhes desumano diferentes regimes de autonomia jurídica que, paradoxal-
que o direito dos egípcios chegue a permitir ao pai romper o mente, permitiram a unificação realizada pelos impérios ca-
casamento da filha contra a vontade dela. Assim, de 80 a 180 rolíngios. Se tivessem tentado impor um direito uniforme a
d.C., restringem o alcance da aférese para afinal suprimi-la. populações tão diversas, o caos e o desmembramento se te-
O Império do Ocidente desapareceu, a Europa conhe- riam seguido infalivelmente. A integração se realizou por duas
cerá durante séculos o regime da personalidade das leis: razões: sua progressividade (vários séculos); a existência de
cada qual viverá segundo o direito de seu povo ou de sua laços federalizadores (o poder político imperial, o cristianis-
etnia. Em certo número de reinos bárbaros, elabora-se uma mo) comuns a todos.
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dupla legislação: uma válida para as populações romaniza- Na Idade Média, amplia-se o pluralismo. Não só terri-
das, mais penetradas de direito romano; a outra para a mi- l torial (direito consuetudinário), mas também sociológico: o

noria bárbara (os bárbaros sempre foram numericamente


;&& direito canónico (o dos clérigos), o direito do Estado, o direi-

ffií.íiíí''
182 NOS CONFINS DO DIREITO 183
O DIREITO NO PLURAL

to nobre (o dos senhores), o direito dos comerciantes, o dos de modo que se fica impressionado em constatar que, após
servos não são os mesmos, e por vezes se opõem (um se- tantos anos, o pluralismo jurídico pareça ainda hoje na Fran-
nhor pode recusar a seus servos um direito de casamento ça uma ideia nova, até mesmo perigosa.
que a Igreja lhes concede). A monarquia o reduz muito len- Já o grande jurista M. Hauriou (1883-1926) mostrava per-
tamente, mas, às vésperas da Revolução, a diversidade con- feitamente que alguns grupos organizados que não o Estado
suetudinária ainda é grande. Depois é o breve triunfo das produziam sistemas de direito que lhes são próprios, ditando
ideias das Luzes, com as consequências que descrevi. Quan- a um só tempo normas e sanções. Não foi muito seguido
do a França, algumas décadas mais tarde, construir na África pelos colegas, que ficaram surdos às sugestões dos antropó-
negra uma parte de seu império colonial, retornará a solu- logos. No início do século, Mareei Mauss e B. Malinowski,
ções pluralistas organizando um duplo sistema de jurisdições: mais conhecidos por seus estudos sobre a doação e a sexua-
as do direito moderno, que julgam os súditos do direito fran- lidade, também enunciam a ideia de que vários direitos po-
cês; as do direito consuetudinário, a bem dizer em estado de
dem interagir no interior de uma mesma sociedade. Um an-
subordinação perante as primeiras. Atualmente (desde 1989),
tropólogo do direito holandês, injustamente esquecido, é a
na Nova Caledónia, o costume canaca é de novo levado em
bem dizer o pai do conceito: já em 1901, Van Vollenhoven o
consideração pelos tribunais: justa volta das coisas.
formula e, durante quarenta anos, seus colegas holandeses
Como se vê, o monismo é urna ideia relativamente nova
o verificarão nas colónias indonésias dos Países Baixos. Pois
na França: em sua história e na das civilizações que a ge-
os antropólogos examinam primeiro o pluralismo onde é
raram, domina o pluralismo jurídico. Encontramo-lo ainda
hoje. Nos direitos produzidos pelos grupos secundários, dos mais manifesto, e nos terrenos exóticos que lhes são mais
quais já falei. Nas persistências de certas tendências con- familiares: onde a expansão europeia favoreceu a emergência
suetudinárias locais: direito de progenitura no Béarn23, mas de sociedades pluriétnicas, multirraciais, de culturas muito
também afeição na Córsega pela indivisão em razão de uma diferentes. Depois, em 1941, o jurista Llewellyn e o antropólo-
sucessão, apego do Sul da França ao regime de dote até o go Adamson-Hoebel, co-autores de Cheyenne Way, enfati-
início deste século; preferência acentuada na Bretanha pela zam o pluralismo dos modos de resolução dos conflitos no
separação de corpos em comparação aos outros departa- interior de uma mesma sociedade: o acordo tem tendência a
mentos. Mas ainda, com uma amplitude insuspeita, nas de- impor-se quando as partes pertencem a uma mesma unida-
legacias de polícia, lugares de repressão mas também de so- de social; a vingança, no caso contrário. Nos anos 1960, as
lução de muitos litígios: é a eles que primeiro se dirigem o pesquisas in loco centradas no pluralismo se multiplicam,
esposo abandonado, os pais da criança fujona, a mulher enquanto na França G. Balandier desenvolve a antropologia
surrada, o cliente insatisfeito de um comerciante do bairro. dinamista, que analisa a situação colonial por meio de con-
E acontece de as coisas ficarem por lá. Direito vulgar, justi- ceitos vizinhos dos utilizados pelas teorias do pluralismo.
ça do cotidiano? Decerto, mas mesmo assim direito. Mas, paralelamente, os sociólogos e certos juristas iso-
Sociólogos e antropólogos perceberam esses fenómenos lados chegaram a conclusões próximas, tiradas mais notada-
com mais frequência do que os juristas de faculdade, dedi- rnente das experiências das sociedades modernas. Considera-
cados ao direito nobre. Fizeram-no no início do século XX: do por muitos o verdadeiro fundador da sociologia do direito,
o jurista austríaco Eugène Ehrlich (1862-1923) era especialista
de direito romano; mas, nas universidades germânicas, os his-
23. Cf. supra. pp. 160-1. toriadores do direito deveriam praticar também o direito mo-
134 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 185

demo, hábito em que a França deveria ter-se inspirado mais. Atualmente, embora o pluralismo jurídico tenha na Fran-
Foi professor em Czernowitz, em Bukovine, numa região si- ça apenas uma audiência recente24, tardia, e não tenha em ab-
tuada na encruzilhada de diferentes etnias. O Código Civil soluto a unanimidade, o consenso sobre esse tema é geral na
austríaco só reprimira muito pouco seus costumes, cujas nor- comunidade internacional dos antropólogos do direito. Es-
mas se avizinhavam das suas: um bom terreno para.que ger- tes, claro, elaboram diversas teorias dele, cujo sentido leva a
mine a ideia do pluralismo jurídico. Ehrlich concluiu disso um afastamento cada vez maior relativamente ao direito es-
que o direito não vem principalmente do Estado, nem dos au- tatal: o direito é cada vez menos um negócio de Estado. No-
tores eruditos, nem dos tribunais, mas da própria sociedade, temos que, como sempre, o observador influi no objeto ob-
o que corresponde às nossas teorias atuais do Estado de di- servado. Se os antropólogos do direito se entusiasmam por
reito. Outras ideias muito modernas que os antropólogos do essa teoria, é também porque ela valoriza seus campos de
direito deviam verificar no local (primeiro colonial, depois eu- pesquisas e, portanto, as legitima. Ora, estes estão em busca
ropeu): o direito não pode reduzir-se ao contencioso (ob- de um estatuto académico, sobretudo na Europa. Ocorre que,
servamo-lo a maior parte do tempo sem precisar ser força- a meu ver como ao de muitos de meus colegas pelo mun-
dos a isso); a maioria dos conflitos se resolve sem que as par- do, as teorias do pluralismo jurídico possuem no plano cien-
tes recorram às regras de direito abstratas elaboradas pelo tífico um inegável valor operatório: verdadeiras ou falsas, des-
Estado e sancionadas por seus tribunais. Assim, tudo o que pertam o interesse ou a reprovação, permitem compreender
atribuímos ao direito (os códigos, a polícia, os juizes, os fó- melhor o que é o direito e como ele funciona, urbi et orbi.
runs) não é mais que seu apêndice: do continente, só ve- Assim, não há nenhuma razão de privar-se de suas luzes,
mos a península. Infelizmente, a obra fundamental de Ehr- podendo-se substituí-las por outras mais esclarecedoras
lich (Grundlegung der Soziologie dês Rechts) foi publicada em quando se tiver encontrado novos astros no céu das ideias.
1913: alguns meses mais tarde, já não era a hora das refle- Por ora, elas bastam para fazer que apareçam a nossos olhos
xões eruditas. Por isso, a obra nunca foi traduzida para o fran- numerosos direitos ocultos.
cês; só houve edição inglesa nos Estados Unidos, em 1936.
E, se os anglófonos não lêem os franceses, os juristas fran-
ceses devolvem na mesma moeda. Os direitos ocultos
Mas outros autores enveredaram nas mesmas direções.
Um jurista polonês, L. Petrazyki (1867-1931), eleva à O carvalho abriga sob sua sombra a soberania e a justi-
dignidade do direito sistemas de normas que concorrem com ça: velha imagem que todos nós em criança contemplamos.
o direito oficial: regras de jogos, códigos esportivos, leis do Apesar de sua majestade, ele é apenas uma árvore cujos galhos
meio, jogos infantis, regulamentos de estabelecimentos psi- e raízes se entrelaçam a outras silvas mais sombrias, Abra-
quiátricos, reciprocidades entre amantes ou amigos etc. O mos um caminho.
sociólogo G. Gurvitch (1894-1965) é seu aluno. Pensa tam- Passando primeiro pela África negra atual, terra salpi-
bém que o direito não necessita do Estado para existir e en- cada de pluralismo. Na superfície, os direitos dos dominan-
fatiza o papel criador do direito exercido por entidades tais tes, irrigado pela seiva estatal: largamente imitados dos
como o feudalismo, a Igreja, as corporações ou os sindicatos,
e insiste no caráter comunitário do direito social gerado por
cada um desses grupos. As faculdades de direito ignoraram 24. Cf. as Actes du Colloque "Lê Pluralisme Juridique", Aix-en-Provence,
muito amplamente suas teorias. 21-22 nov. 1991, orgs. A. Seriaux e N. Rouland.
186 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL

modelos europeus, eles naturalizam a legislação do antigo ande quanto a do direito estatal, mas difícil de explorar em
colonizador, retomam-na trazendo-lhe algumas modifica- razão de seu caráter não oficiai. Categoria máxima do plura-
ções. Depois, numa penumbra que apenas pesquisas etno- lismo jurídico, eles se formam por fora das instâncias esta-
gráficas podem esclarecer (na mata, mas também em mui- tais/ tanto em zona urbana quanto rural. Afastam-se igual-
tos bairros das grandes metrópoles africanas), distinguimos mente com bastante frequência dos direitos tradicionais e de
sistemas jurídicos desigualmente compostos de referências suas soluções herdadas do passado, pois são essencialmente
ao passado e de uma modernidade alternativa àquela defi- inovadores. Lição para guardar bem, e para repetir aos parti-
nida pelo Estado. Os direitos tradicionais e consuetudinários dários voluntaristas do "tudo-Estado": o direito oriundo do
formam o conjunto dos direitos antigos. Os primeiros são povo não é somente aquele que ele tira do passado, mas um direi-
aqueles que os autóctones praticavam antes da colonização to que ele sabe inventar tão bem quanto o legislador moderno (o
europeia (direito islâmico inclusive): regime de dote, even- antropólogo bem sabe que os mitos têm uma história, trans-
formam-se e criam-se em todas as épocas; o historiador do
tualmente poligamia, proibição de cessão das terras da fa-
direito se lembra do adágio medieval "Costume se mexe", pro-
mília etc. Certos pontos seus ainda subsistem, mas as mi- va de que não é a fossilização do passado). Aliás, essas dife-
grações de população, o imposto, o trabalho forçado, as con- rentes categorias de direito não são estanques: como um co-
versões religiosas, a opção de renúncia ao estatuto pessoal meta, uma regra pode passar de uma para a outra, e um sis-
aberta pelo colonizador alteraram-lhes seriamente o fun- tema sofrer a força de atração de seus vizinhos. As políticas
cionamento. Os direitos consuetudinários só aparecem com de autenticidade jurídica elaboradas faz alguns anos por certos
o período de administração colonial, quando se prescreve a Estados africanos mesclam, aliás, disposições oriundas do
redação dos costumes, operação que os transforma em pro- direito estatal e dos direitos tradicionais ou consuetudiná-
fundidade, submetendo-os às categorias jurídicas ocidentais rios, prova de que estes últimos também podem modificar o
(amputar-se-á assim o direito imobiliário de suas referências primeiro, opondo-se ao movimento inverso, que é o único que
religiosas: como admitir, como diz um provérbio agni, que é temos muita tendência de considerar.
a Terra que possui o homem, e não o inverso? O tema reapa- Mas os direitos ocultos rodeiam-se de outros vapores
rece, porém, nos nossos movimentos ecologistas). Os direi- -•..'
que não são os do exotismo. Em nossas próprias sociedades,
tos locais e populares são, por sua vez, direitos modernos. '
as normas e comportamentos de certos grupos de malfeito-
O direito local resulta em geral de mecanismos de reinter- res, marginais ou revoltados (a distinção às vezes é difícil de
pretação de instituições estatais: o Estado pós-colonial cria operar) também entram nessa categoria. Inútil dizer que os
entidades novas, que os autóctones compreendem e fazem manuais de direito nunca o citam entre as fontes do direito.
funcionar à maneira deles, que não é forçosamente a pre- E no entanto, muito amiúde, nele encontramos os caracteres
vista pela administração. O fenómeno é frequente em ma- mais clássicos do direito erudito ou o das pessoas de bem:
téria de reformas agrárias: sob o brilho de siglas criadas nos os bandidos podem ter uma lei e tribunais25. Os malfeitores
escritórios climatizados dos funcionários públicos e que de- costumam mesmo reproduzir os processos judiciários esta-
signam pessoas morais de direito público, depressa se vêem tais. Ern 3 de setembro de 1609, Pierre de l'Estoile insere em
reaparecer, por iniciativa dos camponeses, antigos modos de seus Registres Journaux:"... a execução de um ladrão que exer-
exploração da terra e de regulamentação dos litígios agrários.
Os direitos populares (existem também em nossas socieda-
des ocidentais) ocupam uma área extensa, pelo menos tão 25. Cf. J. Carbonnier, Flexible droit, Paris, LGDJ, 1988, 339-40.
188 NOS CONFINS DO DIREITO O D/RE/TO NO PLURAL 189

cia a justiça sobre seus congéneres como presidente ou pro- de, O conceito de humildade reúne estes dois imperativos:
curador-geral. As audiências se realizavam num barco, indo obediência absoluta às normas, respeito ao sigilo. Têm o obje-
a penalidade da multa à morte". Os bandidos, sabe-se, são tívo de limitar ao máximo as dificuldades que podem sobre-
conservadores: se votam, é mais à direita. A detenção car- vir da interação da ordem jurídica da Máfia com as de outras
cerária parece, aliás, maximizar-lhes o mimetismo judiciá- instituições: as solidariedades tradicionais (principalmente
rio: os tribunais de prisioneiros, vigias do código de honra as nascidas da família) e a ordem jurídica estatal. Se a lei da
que lhes é próprio (os assassinos de velhos ou de crianças Sociedade pudesse ser facilmente transgredida, as outras or-
são muito malvistos pelos outros detentos), são muito mi- dens logo a superariam. O Tribunal de Humildade intervém
nuciosos. Decerto porque o encarceramento, ao exacerbar os nos casos mais graves. É composto de doze membros escolhi-
choques potenciais dentro do grupo, aumenta a necessida- dos na aristocracia da Sociedade, os camorristas, e presidido
de de judiciaridade. Também é preciso fazer intervir outros pelo chefe da Sociedade. O acusado tem um defensor, um ca-
comportamentos mais perturbados, induzidos por efeitos de morrista que se dirige ao tribunal nestes termos: "... Cuidai de
dominação. Os estudos do grande psiquiatra B. Bettelheim, não cometer erros, pois todos nós podemos ser negligentes. E
interno nos campos de concentração nazistas, mostraram agora, dirijo-vos uma outra súplica sem papas na língua e
que, submetidos às tremendas pressões que conhecemos, digo claramente que, este companheiro, eu quero libertá-lo,
os detentos reproduziam às vezes em seu seio a ordem im- pois ele me chamou como defensor, com lágrimas nos olhos
posta pelos brutais guardas, chegando até a imitar o andar, as e cheio de aflição. A Sociedade deve conceder-me esta graça.
atitudes, numa palavra, o estilo de seus torturadores. Aceitai todos, peco-vos [...] Falo contigo, ó Tribunal sagrado,
Mas voltemos às leis do meio. Sabe-se que o funciona- usando o bom senso, e tu que tens o bastão de comando, con-
mento da Máfia é um. bom exemplo delas. Vamos vê-lo dan- sidera que por tua causa estou neste lugar para ser o defensor.
do alguns detalhes sobre a justiça aplicada na Calábria pela Tenho nas mãos um pequeno livro com o cálice de honra, que
Honrada Sociedade26. A adesão à Sociedade implica um cor- repele embustes, infâmias e manchas de honra."
te com a família de origem, que o postulante renega por ju- O réu, por sua vez, declara que, se for reconhecido culpa-
ramento. Depois disso enfrenta um adversário num duelo do, aceita de antemão a sentença. A morte, claro, está pre-
ritual e bebe um pouco de seu sangue, símbolo do nasci- vista, mas igualmente outras punições, as zaccagnate, facadas
mento de uma nova fraternidade. O peso das normas é de infligidas nas costas (ignominiosas, pois sinais de covardia)
imediato considerável. O código de honra define primeiro ou no ventre (para as faltas mais leves, pois o culpado então
um âmbito geral dominado por três faltas (embuste, infâmia, fica de frente). Mais grave que as zaccagnate, o "tártaro", pu-
mancha de honra), depois enumera dezessete transgressões nição ignominiosa: o rosto e o torso do condenado são co-
passíveis das mais pesadas punições, ditas de "depuração". bertos de uma mistura de excrementos e de urina, sinal de
Outra regra, de ordem geral, é tão fundamental quanto e ge- exclusão social. Essas são penas de "depuração". Para o des-
ralmente punida pela morte: a lei do silêncio. A imagem do respeito às regras menos graves existem também penas de
túmulo volta muitas vezes para qualificar o segredo em que convívio, em geral pronunciadas por outra instância, o Cor-
cada membro deve enterrar tudo o que concerne à Socieda- po de Sociedade. Este é composto apenas porpictiotti (mem-
bros de uma dignidade inferior àquela dos camorristas), uma
espécie de tribunal de instância. As penas de convívio são
26, Cf. N. Zagnoli, Lê Tribunal d'Humilité, Droits et Cultures, 11/1986,37-8. fundamentadas na correição e consistem em diferentes tipos
190 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 191

de ostracismo: durante um tempo variável, o culpado será diferentes manifestações de punição não estão ausentes dos
mantido afastado das atividades da Sociedade. Em geral é es- grupos em que menos se espera. O que não impede de modo
pionado, como numa colocação à prova que lembra as medi- algum achar prejudicial para a maioria do corpo social este
das de "vigilância especial" da polícia, as quais puderam servir ou aquele grupo secundário e o direito por ele instilado e,
de modelo. Essas regras não pertencem apenas ao século XIX: portanto, combatê-los. Há certas comunidades cujo papel
eram ainda aplicadas nos anos 1950. é nocivo, e o de outras, positivo. O oficial de polícia o diz,
Aliás, as grandes cidades modernas também conhecem aliás, muito bem: as gangues de Los Angeles se explicam
esses fenómenos de justiça e vingança interna aplicadas por em grande parte pela perda de referências identitárias por
quadrilhas organizadas, cujos valores e funcionamento se seus membros, o que os faz recair numa "selvageria" que não
inserem diretamente contra a ordem estatal. A qual às vezes é a das origens, nem a das sociedades tradicionais. Temos as
se resigna a ceder: em certos bairros, a polícia praticamen- solidariedades que podemos, ou que nos deixam.
te deixou de penetrar. É o que atesta esta descrição de Los Essa busca contínua e angustiante de uma identidade é
Angeles: " ... meninos da underdass, sacrificados no altar do encontrada no movimento zulu28, fundado nos anos 1970
déficit orçamentado e do liberalismo selvagem, travam guerra em Nova York e agora implantado na França, onde parece so-
com os Ma 47 e os Uzi. Uma guerra absurda, tribal, que provo- frer desde 1988 uma inclinação para a delinquência. A prá-
tica do grafite (assinaturas estilizadas postas em diversos lu-
cou 462 mortes em 1988, apenas em Los Angeles. Ainda não é
gares) expressa bem essa busca. Escutemos um de seus adep-
Beirute. Mas equivale a Belfast. Quinhentas gangues dividem
tos: "Meu barato é a farra! Não posso ficar sem ela. Grafitar é
as calçadas pobres da cidade. Todas as etnias têm seus bandos.
existir, porque a gente fica com o nome em todo lugar. Mas o
Os mais conhecidos são as duas gangues rivais negras/ os blod que eu gosto é de tudo o que é perigoso, como grafitar uma
e os crips. Cada esquina cria sua própria gangue, com sua pró- delegacia, uma viatura de polícia, ou uma casa de grã-fino. Se-
pria linguagem, seu código de honra particular. São 80 000 a não o grafite não tem valor." Noutras palavras, sente-se a
odiar-se ou a amar-se, conforme morem em quarteirões dife- identidade não só na solidariedade interna, mas também pe-
rentes ou sejam oriundos do mesmo. Os mais jovens às vezes rante grupos que possuem outros valores: a lógica do con-
mal têm 8 anos... Entre home-boys, presenteiam-se com carros, fronto não está longe. Os jovens membros dos zulus perten-
armas, jóias, afeto [...]. 'Os Estados Unidos são grandes de- cem a etnias em sua maioria originárias da África negra e
mais', comenta calmamente o capitão Lillo, da polícia de Los de Guadalupe. A referência étnica é portanto fundamental,
Angeles, 'as pessoas não têm uma identidade. É por isso que é o que distingue os zulus dos "jaquetas negras" dos anos 1960
tão importante a organização em comunidades, a salvaguarda em que contava a identificação com as classes sociais desfavo-
das tradições. A gente precisa pertencer a um grupo. É huma- recidas. É acompanhada do fato de pertencer a um território: a
no. É melhor que seja uma etnia do que uma gangue'"27. cada grupo o seu setor, sua linha de metro ou de trem subur-
Que fique bem entendido: não se trata de justificar em bano, seu bairro. Cada qual também parece ter um sistema
nome do pluralismo jurídico os assassinatos em série. Mas normativo particular: por ocasião de testes de admissão, os
simplesmente de mostrar que o fenómeno jurídico e suas

28. Cf. P. Broussard, L'été zoulou, Lê Monde, 11 abr. 1990, l, 8; F. Alchoune,


27. Cf. C. de Rudder, La fin du revê blanc, Lê Nouvel Observateur, 22-28 Faut-il avoir peur dês bandes? Lê Nouvel Observateur, 9-15 ago. 1990, 7-11; J. Du-
nov. 1990,19. ptiis, Lê vírus américain, ibid., 12-3.

IV-
192 NOS CONFINS DO DIREITO 193
l DIREITO NO PLURAL

postulantes se comprometem a seguir um código de honra modificação nos anos 1975-1980. Muitos dos primeiros ex-
e leis internas, eventualmente a praticar artes marciais e a perimentadores voltaram para a cidade. Foram substituídos
abster-se do consumo de drogas e de álcool. Essas caracte- por uma segunda leva de imigrados, menos desejosos de
rísticas levam à segmentação dos grupos zulus e, portanto, inventar uma nova sociedade do que de viver mais de acor-
às manifestações de hostilidade interdânicas. Mas outros do com a natureza. Portanto, preocuparam-se mais com suas
caracteres lhes dão uma cultura (no sentido antropológi- relações com os autóctones, procurando inserir-se nas econo-
co do termo) em comum: culto da música rap, filmes-mitos mias locais e nas redes de sociabilidade interiorana: tratava-se
(Warríors, Colors, Do the right thing etc,), linguagem particu- menos de autonomia normativa do que de mudança de siste-
lar, objetos-feliches (bonés com viseiras, camisetas com a ma de referências. Contudo, o pluralismo jurídico não ia tar-
efígie de grupos de rap americanos), roupas com domi- dar a se manifestar. A angústia ecológica atormentava cada
nante esportiva, ou até paramilitar. Num registro diferente vez mais os neo-rurais do segundo tipo: cumpria elaborar,
e nitidamente mais violento, os grupos de skin heads (os no meio rural, um modo de sobrevivência coletivo. Já que o
neonazistas são os mais conhecidos, mas existem também mundo industrializado e urbanizado iria perecer, deviam do-
"vermelhos") também mereceriam ser estudados do ponto tar-se do mais alto grau de autonomia nos pianos social, e
de vista que adotamos. cultural, bem como económico. Volta ao passado, ao direito
Mas, no título dos direitos ocultos, existem felizmente tradicional? Sim, em certos aspectos: divisão sexual do tra-
grupos mais pacíficos, como as comunidades neo-rurais29. balho muito acentuada (para as mulheres, a casa; para os ho-
Nascidas nos anos 1968 e formadas de jovens urbanos de- mens, o exterior); casamentos preferenciais que favorecessem
sejosos de experimentar no campo novas formas de vida os casais de que se pudesse esperar certa estabilidade; orga-
socioeconômica, passaram em vinte anos por uma transfor- nização muito precisa do cuidado das crianças. Mas outros
mação radical. No início caracteriza-as a vontade de não-di- estavam ausentes: papel dos figurões, laços com a economia
reito: "A única regra é que não há regra." Mais exatamente, o urbana, religião cristã, autoridade reconhecida às pessoas
direito rejeitado era o que vinha do exterior, do Estado ou idosas etc. Tratava-se, antes, de um fenómeno inovador, de
direito popular, centrado numa representação da redenção
da sociedade global. Os neo-rurais pensavam que, ao abri-
consistente no ajuste máximo da ordem social a uma ordem
go dessas coerções artificiais, urn grupo se auto-regulava
natural. Mas a natureza já não estava no extremo do desejo:
de modo espontâneo e harmonioso. Mas normas e práti- ela exigia, para exercer seu efeito salvador, ser redescoberta,
cas deviam, apesar de tudo, elaborar-se a partir de repre- de maneira voluntarista, aceitando submeter-se a regras pre-
sentações bastante delimitadas: partilha comunitária dos determinadas que instituíssem séries de hierarquias, com a
recursos, liberdade sexual que permitisse superar o "egoís- possibilidade de utilizar a experiência de antigas sociedades
mo" do casal nuclear, direito da criança à satisfação de suas rurais, necessária mas insuficiente. Tudo isso dentro da pers-
pulsões espontâneas. O movimento conheceu uma primeira pectiva de um cataclismo ecológico próximo. Noutras pa-
lavras, o princípio de autoridade encimava a organização
comunitária. Autoridade dos líderes (em geral o ou os fun-
29. Cf. D. Leger e B. Hervieu, Lê retonr à Ia nature. Au fona de lafôret...
dadores da comunidade) donos de um carisma profético e
]'État, Paris, Lê Senil, 1979; D. Hervieu-Leger, Communautés néo-rurales en
France: de ia contestation familiale à 1'utopie d'une nouvelle famille, in: Aux legitimados por sua capacidade de garantir a observância co-
íources de Ia puissance: sociabilité et parente, org. F. Thelamon, Publications de letiva das leis naturais e que indicam o caminho da reden-
1'Université de Rouen, n. 148,1989, 91-100. ção. Autoridade das normas instituídas para consegui-lo:
194 195
NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL
I certas comunidades foram organizadas em verdadeiros pa- mais tolerantes com os direitos oficiosos: estes modificam
ramosteiros que se dotaram de uma Regra escrita que es- com mais frequência os primeiros e resistem melhor ao seu
tipulava todos os aspectos da vida dos membros, às vezes domínio. As situações de pluralismo são vividas com mais
isolados do exterior por uma clausura bem tangível. facilidade: as relações familiares ainda são no Japão larga-
Pluralismo jurídico, mas também passagem numa dé- mente tradicionais, enquanto outros setores da vida socioe-
cada da ilusão do não-direito para uma forma de normali- conômica estão muito ocidentalizados.
zação hiperjurídica. Mas o pluralismo jurídico não será capaz A segunda distinção visa não mais o caráter dos direitos
de gerar senão universos fechados, ou de qualificar os rno- (oficiais ou ocultos), mas a origem das regras que os consti-
dos de controle social próprios dos marginais e dos rebeldes? tuem. Contrariamente ao que se poderia crer, o direito ofi-
cial nem sempre é direito recebido (ou seja, importado) e os
direitos ocultos, direito autóctone. A riqueza d" pluralismo
A dinâmica dos direitos oficiais e dos direitos ocultos juridicoprovém do fato de ele poder combinar diferentemen-
te as duas distinções, direitog orF^i0/^"!^0, Hir°i>op
Pela evidência, não. O pluralismo jurídico não recorta
' bidos/autóctones.JSÍotemos logo de início que um mesrno
conjuntos estáticos: ilumina direitos vivos, cuja sorte difere
conjunto de normas jurídicas pode mudar de cores como um
de acordo com as grandes tradições culturais30. Para melhor
compreendê-lo, vamos operar duas distinções. camaleão. A evolução do Egito o mostra bem. O direito ofi-
cial, na Antiguidade, é primeiro faraónico: é direito oficial
A primeira diz respeito à divisão direitos oficiais/direi-
tos oficiosos (ocultos). Nem todas as sociedades vivem da autóctone. Depois, com a conquista romana, temos um regi-
mesma forma a dinâmica que ela gera. O Ocidente obedece me de direitos oficiais mistos, que associam o direito autóc-
a uma tradição unitária e costuma pôr sua confiança no di- tone faraónico e o direito romano, Antes como depois da
reito para reger as relações sociais: por isso os direitos oficiais conquista romana, os direitos oficiais se aproximam do di-
firmam nele sua preeminência, até mesmo seu exclusivismo. reito consuetunidário autóctone não oficial (principalmen-
A África negra aceita mais facilmente o pluralismo jurídico te os costumes camponeses). Depois o Islã sucede a Roma:
(não estou falando aqui de muitos de seus dirigentes for- o direito islâmico fica um direito oficial, primeiro recebido,
mados à moda europeia) que rege sempre a condição da que depois se torna aos poucos autóctone e interage com os
maior parte de seus habitantes (na África negra vai-se da ne- costumes autóctones não oficiais. Em 1798, Bonaparte ten-
gação dos direitos oficiosos ao seu reconhecimento mais ou ta sem grande sucesso introduzir o direito francês nas áreas
menos seletivo). O Oriente, por sua vez, jamais privilegiou o cível e penal. E, atualmente, o direito egípcio parece ser uma
direito cuja forma imperativa e centralizadora, cara ao Oci- mescla de direito recebido e autóctone, tanto no nível oficial
dente, ele despreza. Portanto, os direitos oficiais são muito como não oficial. Bale plurissecular de normas, que só espan-
tará os retardatários. Àqueles que só vêem no direito rigidez,
* ^"ir^""— enquanto a antropologia nos convence de que ele tem a ma-
30. Cf. N. Rouland, Lês droits mixtes eríes théories du pluralisme juridi- leabilidade da vida.
que, in: La fonnation du droit naiional dans lês pays de droit mixte, Presses de
Observemos também que a dinâmica direito recebido/di-
1'Université d'Aix-Marseille III, 1989, 51-53; M. Chiba, org., Asian Indigenous
Law (in: Intemction with Received Law), Londres-Nova York, Routledge-Kegan reito autóctone não funciona necessariamente em benefício
Paul, 1986; do mesmo autor: Legal Pluralism: Toward a General Theory through do primeiro, como nossa tradição de imperialismo jurídico
Japanese Legal Culture, Tóquio, Tokai' University Press, 1989. nos convida com exagerada frequência a acreditar. Ó direi-
196 NOS CONFINS DO DIREITO 197
O DIREITO NO PLURAL
to oficial pode muito bem modificar-se com a inclusão em pois casos de pluralismo jurídico:
seu seio de direitos autóctones. Como o direito dinamarquês a excisão e o véu islâmico
que, para a Groenlândia, reconhece certas particularidades
dos costumes esquimós que consagram a família "ampla" No final do verão de 1989, fui chamado ao telefone por
das sociedades tradicionais; como o do Canadá, onde a ju- „ advogado parisiense que me pedia para colaborar na
risprudência reconheceu a validade das adoções e casamen- 11 n i £*'••*• * o *• - M • i n *• 1 i T*1
defesa de sua cliente. Os fatos são simples. Mahamet e Fo-
tos operados segundo o direito tradicional dos esquimós; o fana Dália são muçulmanos e pertencem à mesma etnia, os
da França, onde o direito romano, primeiro tolerado como olinkes do Mali. Casam-se em 1978 em seu país. Nasce-lhes
costume do Sul, acabou penetrando no direito estatal e sen- o primeiro filho: é uma menina, rapidamente excisada. Ma-
do recebido em todo o país.
hamet emigra para a França em 1980 e encontra um lugar de
Portanto, o pluralismo jurídico alarga consideravelmen- empregado na cantina do aeroporto de Orly. Sua mulher vai
te a nossa visão do direito e percebemos bem a maleabilida- seu encontro dois anos mais tarde. Nasce outro filho, um
de que este ganha com isso. Mas, aplicado às nossas socie- menino que morre logo. Sucede-lhe em junho de 1984 Assa,
dades modernas, não estará repleto de perigos? Seria mais uma menina. A diretora do Centro de Proteção Materna e
comum acomodar-se com ele nas sociedades tradicionais infantil avisa Fofana do caráter ilegal da excisão na França,
que, por certo, também sofrem o dinamismo da História, mas
sem que fique comprovado que ela tenha compreendido bem
cujos contornos variam mais devagar do que os nossos. Se-
(ela não fala francês e uma amiga teve de lhe traduzir o avi-
guras de uma perenidade mais longa de suas divisões, elas
so) Seis dias depois do nascimento de Assa, duas mulheres
podem pagar o luxo de reconhecer juridicamente sua estru-
tura sociológica plural. Seria admitido também nas socieda- passam pela residência de Fofana e propõem-lhe excisar
des que devem fazer coexistir comunidades profundamente a filha Ela aceita. Alguns minutos mais tarde, Assa sofre a
diferentes, como as da Europa bárbara ou da África colonial. amputação de seu clitóris e de seus pequenos lábios. Toma-
Seria concebido ainda num mundo onde a ideologia dos di- da de febre, deve ser hospitalizada. Assa é tratada e curada,
reitos do homem e de sua universalidade não tivessem ma- mas a diretora do Centro de Proteção Materna submete o
nifestado seus efeitos salvadores. Mas, em nossas sociedades caso ao Procurador da República. Juntam-se logo à acusa-
ocidentais modernas, submetidas ao staccato das mudanças ção diversas associações: SOS-Mulheres-Altemativa, Criança
rápidas, ainda unidas por referências históricas, religiosas e e Partilha Comissão Internacional para a Abolição das Muti-
culturais largamente comuns, dar livre curso ao pluralismo, lações Sexuais, Confederação para o Planejamento Familiar.
institucionalizá-lo juridicamente, ver sistemas jurídicos no Fofana é acusada de cumplicidade de crime, de violências vo-
que talvez se trate apenas de costumes residuais ou crispa- luntárias em criança de menos de 15 anos que acarretam uma
ções identitárias, não será abrir a caixa de Pandora? mutilação ou uma amputação, infração que provoca sua pas-
Reconhecendo e valorizando exageradamente as dife- sagem perante o Tribunal de Júri.
renças, não se correrá o risco de destruir os equilíbrios anti- Refleti longamente nesse caso de antropologia jurídica
gos que necessitaram tantos séculos e dissolver harmonias aplicada. Qual é a extensão da responsabilidade da mãe?
novas de que tanto precisamos? É o que muitos pensam. Não faltam argumentos para mostrar que a excisão, ato apa-
rentemente bárbaro e injustificável, corresponde a um con-
junto de dados culturais que, mesmo não sendo os nossos,
198 NOS CONFINS DO DIREITO Q DIREITO NO PLURAL 199
nem assim são menos reais31. Amplitude atual dessas práti- fatos: a associação do clitóris a uma indecisão sexual que favo-
cas: 70 a 80 milhões de mulheres as sofrem (das quais cinco rece a homossexualidade, a antiguidade e a dispersão dessas
são infibuladas: seu sexo é costurado). Encontramo-las so- práticas. Dessa antiguidade e de sua localização deveremos
bretudo na África, em toda a extensão do continente, com deduzir que elas são apenas costumes ultrapassados ou "sel-
casos menos numerosos na Indonésia e na Amazónia. Sua vagens", como o dizem em geral seus adversários europeus?
profundeza histórica é igualmente comprovada. A ideia de De maneira geral, as mutilações (sexuais ou não) não
inserir no corpo humano marcas culturais é muito antiga: parecem necessariamente vinculadas à ideia de evolução: os
os arqueólogos encontraram, no tocante ao paleolítico supe- egípcios eram uma alta civilização; a deformação craniana
rior, instrumentos de tatuagem, pinturas rupestres de mãos ainda existia na Europa há pouco (praticada sob forma cir-
com dedos amputados. Essa inscrição corporal é um tipo de cular oblíqua, como no Egito antigo, ou entre os berberes,
escrita: a contrario, as sociedades que conhecem as escritas ela aparece em nossa cultura no século XIII e termina há um
"clássicas" (efetuadas sobre um suporte que não é o corpo século); certas sociedades tradicionais (pigmeus da floresta
humano) parecem menos mutiladoras. equatorial africana) não se mutilam, a maioria ignora a ex-
A primeira menção da excisão é, todavia, mais tardia. cisão e mais ainda a infibulação.
Data da época ptolomaica (século II a.C.), na qual um do- Por outro lado, se a excisão pode ser assimilada a uma
cumento judiciário nos fala de um processo entre um homem técnica de dominação dos homens sobre as mulheres, não
e uma mulher cuja filha: "... está em idade de sofrer a circun- se deve reter unicamente esse seu aspecto. Com muita fre-
cisão em conformidade com a tradição egípcia". Mais perto quência, é inscrição no corpo de um estatuto social, na me-
de nós - quem acreditaria nisso? - Ambroise Pare recomen- dida em que se supõe que fixa definitivamente a mulher em
da em certos casos a ablação dos pequenos lábios: suas fun- seu sexo: representação que explica que muitas mulheres a
ções eréteis são tais que podem tornar-se desgraciosos ou legitimem. Os dogons (Mali), cuja riqueza da mitologia co-
facilitar a homossexualidade feminina! No século das Luzes, nhecemos, a explicam assim: "A criança chega oo inundo
interrogam-se sobre a verdadeira natureza do clitóris. Para cer- provida de dois princípios de sexos diferentes e teoricamente
tos médicos, órgão natural, deve ser conservado; outros pen- pertence tanto a um como ao outro; o sexo de sua pessoa é in-
sam, ao contrário, que constitui uma anomalia ou uma doença diferenciado. Na prática, a sociedade, por antecipação, reco-
que lhe justifica a ablação. Em 1736, Dionis condena a hiper- nhece-lhe desde o início o sexo que ela traz na aparência [...]
trofia clitoriana: aquelas que a manifestam sãcV//chamadas_ ^Munida de suas duagjlmas. a criança prnsqptTiip qpn nfstino.
nmgtiJTifasjprqi IF> pnHpm ah) iqar disso e pohiir-se COm Outra Magjgllg primeiros anos sãn marrados ppjfl msta.hilidnHp dp
Eeresjé isso que faz propor sua amputação para tirar degr jjuajggssoa. Enquanto conserva seu prepúcio ou seu clitóris.
'sãs muTEêres a causa de uma lascívia contínua [...] essa opera- suportes do princípio de sexo contrário ao sexo aparente, mas-
ção não e tão perigosa como se poderia imaginar, porque é Ãilinidade e feminilidade, ter" a mpsma forra " n nP
"apenas uma parte supérflua que se amputa". Salientemos dois justo comparar o incircunciso a uma mulher; ele é, como a me-
nina não excitada, an mi-"-mn rpmpo m-irhn n fnrn°a SP pqgq
indecisão em que está quanto josgujexo_devesse durar, o ser
31. Cf. M. Erlich, Lafemme blessée. Essai sur lês mutilations sexuelles fétni-
nínes, Paris, L'Harmattan, 1986; C. Chipaux, Dês mutilations, déformations, nunca teria nenhuma inclinação para a procriação. Com efeito,
tatouages rituels et intentionnels chez 1'homme, ín: Histoíre dês mceurs, org. J. 'õ~cEtor5~que a menina recebeu é um gémeo simbólico, um
Poirier, I, Paris, Gallimard, 1990, 553-67. substituto macho com o qual ela não poderia reproduzirjjeT
200
NOS CONFINS DO DIREITO O DÍKEÍTO NO PLURAL 201

a impediria de unir-se a um homem. As- não é peculiar aos "primitivos": basta ouvir o testemunho
dos psicanalistas para ficarmos convencidos de que essas fo-
bias também são as nossas. Mas justamente a nossa manei-
^ ^r .^^v.^^ ^.v, juci picaçu^a uiscuilda pelr ra de tratá-las não será objetivamente superior àquelas que,
órgão que
_ se pretenderia seu"-n
igual. Oindivíduo,
~" _ de outro lado, no caso Fofana, nossa justiça incrimina? Decerto sempre te-
j pode conduzir-se norrnalrnenLe se mos medo das mulheres, sobretudo quando elas dão prova
de que também podem, tão bem quanto os homens, cumprir
_ sobre o outro/'32 certas tarefas (seria uma forma moderna, no plano fantas-
Racionalização reforçada pela referência ao mito de mático, de sua "clitorização"?). Mas a angústia dos homens
origem? Sem dúvida, mas muitos povos, ocidentais incluí- já não lhes inflige essas mutilações, o que é uma inegável
dos, pensaram à maneira dos dogons (o próprio Freud não vantagem. Entretanto, fica o ridículo de qualificar de "violên-
escapa): de essência divina, a androginia primordial afirma- cias voluntárias à criança" o ato que Fofana deixou realizar.
da por numerosíssimos mitos fundamentais (cf. Platão) está Pois ele é ligado a um contexto cultural totalmente diferente,
inserida nos órgãos genitais dos dois sexos. A união heteros- que podemos recusar, mas não nos dispensa, para apreciar
sexual, própria do homem e de seu acesso à idade adulta, sua responsabilidade penal, de situá-la consoante coerções
passa pela supressão dos vestígios de um dos dois sexos. De culturais nas quais ela se exerceu. Delicado exame de plu-
fato, foi sobretudo com os monoteísmos - o judaísmo e o ralismo jurídico? Sim, mas aparentado com a liberdade de
islamismo - que as mutilações sexuais deixaram de ser ri- pensamento. Esta sempre é valorizada, pois fazem dela o
tuais de diferenciação para se tomar marcas de se perten- sinónimo do direito de resistência à opressão. Mas iludi-
cer a uma religião, praticadas no nascimento. A circuncisão mo-nos' esquecendo também que ela pode legitimar pensa-
significa a identidade judaica ou muçulmana; a excisão, em mentos e atos contrários aos nossos. E por isso que posso a
terras isiâmicas, tende então a se tornar largamente um ins- um só tempo recusar condenar Fofana e aderir ao que C.
trumento de dominação masculina, pretensamente imposto Castoriadis escreve sobre o juízo de valores: "A lapidação
pelo Alcorão. dos adúlteros é inaceitável para nós, assim como a amputa-
Mas parece mesmo que, por trás de todas essas mon- ção das mãos dos ladrões, a prática da infibulação e da ex-
tagens intelectuais, deva-se ver muitas vezes o medo que os cisão das meninas... Meu respeito pelas culturas não pode
homens sentem das mulheres, aparentemente vivo nas so- abarcar isto, e surge um ponto de interrogação na medida
ciedades patriarcais. De maneira geral, o sexo feminino é per- em que penso que há mesmo assim uma certa solidarieda-
cebido coiry inestético, sufocante^Ê sobretudo ameaçador: de entre isso e o resto. Aí, decerto em virtude de meus pró-
como prova o tema mitológico oem conhecido da vagina prios valores, ou seja, dos valores que reconheço e que es-
dentada (trezentas versões dele são repertoriadas apenas en- colhi em minha própria cultura, acaba o simples respeito
tre os índios da América do Norte), que ameaça o hornem de pela cultura do Outro, tento compreender, mas não respei-
castração em cada relação sexual. Se acrescentamo-lhes o to no sentido que aceito."33
perigo suplementar do clitóris que, em estado de ereção,
pode, como o crêem os dogons, "picar" o homem. Tudo isso
33. C. Castoriadis, De 1'utilitê de Ia connaissance, Cahiei-s Vilfi-edo Pareto,
Revue Européenne dês Sciences Sociales, 79,1988, 99. Sobre os pontos de vista de
juristas e antropólogos do direito francês sobre a exrisão, cf. o dossiê reserva-
32. M. Gríaule, Dieu d'eau, Paris, Fayard, 1983,146,148-9. do a essa questão por Droit et Cultures, 20,1990,145-215.
202 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREÍTO NO PLURAL 203
Foi por isso que afinal de contas recusei participar da quipá) e em face da prudência da hierarquia católica (o car-
defesa de Fofana (minha resposta teria sido totalmente di- deal Lustiger se recusa a condenar logo de saída o porte do
ferente se tivesse sido nomeado perito pelo tribunal): de sua lenço), A. Finkielkraut denuncia a "santa aliança dos cleros"
irresponsabilidade, não tinha quase dúvida, mas meu tes- e previne que o tribalismo, disfarçado pelo direito à diferen-
temunho infalivelmente teria sido sentido como uma defe- ça, está destruindo a educação republicana, desintegrando a
sa da excisão. Ora, como indivíduo, e em relação à minha pró- sociedade francesa, entregando-a além disso à Frente Na-
pria cultura, tenho de recusá-la. Há vezes em que temos de cional34. Consultam o Conselho de Estado. Em 27 de novem-
escolher entre dois males. bro de 1989, este emite um parecer muito comedido que con-
Os juizes franceses, aliás, sabem-no bem. Por ocasião de tribui para uma definição moderna da laicidade, numa França
casos precedentes, a promotoria absteve-se de abrir processo tornada multiconfessional. Nele a liberdade religiosa é de-
contra a infração qualificando-a de crime, o que a tornava finida de modo amplo, já que pode incluir o uso, no interior
passível de penas menos severas. Mas foi mesmo o Tribunal das dependências escolares, de sinais no vestuário de perten-
do Júri que julgou Fofana de 3 a 5 de outubro de 1989. Ele a cer a uma religião, desde que não impliquem manifesta-
reconheceu culpada, mas, sinal de seu embaraço, condenou- ções de agressividade ou de proselitismo para com outros
a apenas a três meses de prisão... com swrszs. Veredicto não alunos, do que ficam juizes as autoridades de cada estabe-
equitativo (o direito nem sempre tem de se conformar à equi- lecimento escolar.
dade), mas razoável. Pois desonerando, concretamente, a Sabedoria da Alta Assembleia. Esta leva em conta a
acusada da execução da pena, ele expressava em termos ju- evolução do conceito de laicidade. No final do século XIX,
rídicos, pela sentença de uma condenação, a convicção fi- ele encarnava a crença na Razão e no Progresso e defendia
losófica de C. Castoriadis, que a meu ver nada impede que a liberdade de pensamento contra as ambições excessivas de
um antropólogo compartilhe. um catolicismo em geral retardatário. Um século mais tarde,
Desde aí, as penas ficaram mais pesadas. A França, nes- depois do Vaticano II, este reformou-se profundamente e,
se campo, age isoladamente: nesta hora, nenhum outro país apesar de algumas declarações intempestivas de seus hie-
europeu confrontado com a questão da excisão escolheu o rarcas, mostra-se, e de longe, o mais aberto dos três mono-
caminho da repressão. teísmos: logo, deixa de ser o inimigo. Por outro lado, aban-
Mas, naquele final do ano de 1989, outro caso agita mui- donou-se a crença unívoca na Razão e no Progresso, e a
tíssimo mais a opinião pública francesa: o do "lenço islâ- busca do sagrado se volta de novo para as experiências reli-
mico". Em Creil, localidade situada numa ZEP (zona de giosas, sejam elas exóticas (desenvolvimento do budismo na
educação prioritária), a uns 60 quilómetros de Paris, umas França) ou procedam de uma renovação do cristianismo tra-
adolescentes de origem argelina e marroquina pretendem dicional (Renovação Carismática). Enfim, no caso do Islã, se-
usar o lenço islâmico durante as aulas, o que lhes é proibi- gunda religião da França, a identidade étnica se mesclou com
do pelo diretor e pelos professores em nome da laicidade. o fato de pertencer a uma religião (poucos franceses, afora
O caso se envenena: aos defensores do direito à diferença alguns intelectuais, se converteram ao islamismo). Portanto,
opõem-se os que, como o porta-voz do Grande Oriente da trata-se mesmo de pluralismo, que necessita de uma formu-
França, denunciam a alienação da mulher que o uso do xa-
dor simboliza. Diante de certas reações do rabinato (este
34. Cf. A. Finkielkraut, La sainte alliance dês clergés, Lê Monde, 25 out.
previne de antemão que não aceitará a proibição do uso da 1989.
,,.

204 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 205

laçao jurídica, na medida em que a regulamentação do Es- Eis no tocante às ideias; o que dizem as pesquisas35?
tado intervém. E aí, também, é a um direito flexível, não im- Comecemos pelos sistemas de valores. De 1981 a 1988,
perativo, que deixe uma larga faculdade de interpretação às os valores ditos comunitários (desejo de arraigamento, de
instituições locais, que se refere o Conselho de Estado. Ele pertencer ao grupo, inquietudes diante do futuro e do es-
tem toda a minha preferência, pois parece-me mais "civili- trangeiro) passam de 56% para 57%; os igualitários (igual-
zado" do que o outro, ao qual estamos habituados. dade das oportunidades, dos direitos e das rendas; adesão
Sejamos claros. Não há mais que duas maneiras de al- à redistribuição social por meio da ação estatal), de 54% para
cançar a unidade em sociedades em que se afirma a pluri- 49%; os pessoais (individualismo), de 27% para 29%; os prag-
culturalidade. Quer se decrete a uniformidade (a laicidade máticos (anti-estatismo, espírito empreendedor), de 34% para
seria então compreendida como a proibição de qualquer 35%. Portanto, uma grande estabilidade. Única tendência de-
manifestação de pertencer a uma religião). O que pode ser ne- . tectável: os franceses creditam mais confiança no indivíduo
cessário nos casos em que as diferenças são interpretadas mais ou nos grupos do que no Estado. Entretanto, a referência às
em termos de antagonismos do que de complementarídades. Quer identidades comunitárias parece mais marcada por tendên-
se prefira a via mais difícil, porém infinitamente menos pri- cias ao fechamento do que à comunicação intergrupal. Pelo
mitiva, da unidade na diversidade. Pois eis o que os partidá- menos no que concerne ao que os franceses imaginam acer-
rios da uniformidade querem ou fingem ignorar: a diversida- ca dos estrangeiros. Quarenta e cinco por cento dos franceses
de não é necessariamente sinal de desunião... contanto que se pensam que a presença de estrangeiros pertencentes a ou-
queira, enquanto a uniformidade pode conduzir a ela. O tras culturas é uma oportunidade para a diversidade e para
que pensam hoje os franceses sobre isso? o futuro da França, 53% são de opinião contrária. Em 1975,
61% achavam simpático que os estrangeiros moradores na
França pudessem continuar a viver um pouco da mesma
A opinião pública e os intelectuais maneira que em seus países; já não são mais do que 47% em
influentes diante do pluralismo 1985. Entretanto, parece que essa tolerância menor se refe-
re mais aos costumes do que à liberdade de pensamento, e
Em poucos anos, o tema do "direito à diferença" mudou mais especialmente à religião. Em 1989, 58% dos franceses
bruscamente de posição. Foi primeiro objeto de uma inter- pensavam que se pode ser francês mesmo sendo de religião
pretação otimista - as diferenças enriquecem, a tolerância muçulmana; 56% achavam normal que se construíssem mes-
permite a comunicagão^e costuma estar inscrito no catálo- quitas (mas, quando se aventa perante os entrevistados a cons-
> das ideias d^ésquerda.JDepois suas cores se escureceram. trução de uma mesquita em seu bairro, 52% ficam hostis a
. Percebeu-se qu^as-diíerenças também podiam conduzir à
>T^ j* i * I isso); 55% dizem que não mudariam os filhos de escola se esta
exdttsãe-e-aõ ódio, que a indiferença podia dissimular-se sob comportasse mais de 50% de crianças imigradas; 49% não se-
a tolerância: najrflZoõF^íltóplMra/ é de ouro. Paralelamente, riam hostis a que um de seus parentes próximos se casas-
a Nova Direita apropriava-schio tema, exibindo-se até num se com uma pessoa de origem muçulmana (37% hostis, 14%
papel neoterceiro-mundista. São tamanhas as diferenças, e sem resposta). No total, uma tolerância pelo menos sur-
o respeito que se lhes deve tão evidente, que é inútil procurar
tirar proveito delas. A cada qual seus valores e, provavel-
mente, seu território: versão ao gosto do dia do apartheid. O 35. Cf. L. Dirn, op. cit, 351; G. Mermet, op. cif., 16-18; Lê Point, 893, 30
racismo biológico se transforma em diferencialismo cultural. out. 1989; Lê Monde, 30 nov. 1989.
206 NOS CONFINS DO DIREITO Q DIREITO NO PLURAL 207

preendente. Mas o pluralismo jurídico p_areceJ._cojQtudo, ter Mas o problema do pluralismo não se reduz ao cia fixa-
mau início. Pois outros números são muito nítidos: para além ção de um estatuto para os estrangeiros, de nacionalidade
'das diferenças raciais, religiosas, que aceitam admitir com al- francesa ou não. Vai muito mais longe: concerne a toda a es-
gum esforço, os franceses são muito apegados à preeminência trutura sociológica da França, na qual os estrangeiros cons-
do vínculo político e à sua expressão na uniformidade jurídica. tituem só um elo da corrente. Noutras palavras, como con-
À pergunta: "Na sua opinião, os muçulmanos deveriam be- ceber as relações do Estado com uma sociedade plural? De-
• neficiar-se na França de um estatuto próprio da religião deles veremos continuar a falar de um direito quando há vários?
para o casamento, o divórcio e a guarda dos filhos ou então as Escrevi numa obra publicada em 1988: "Todas as teorias
leis devem ser as mesmas para todos?", 82%, em 1989, res- do pluralismo jurídico têm em comum relativizar o lugar do
pondem pela negativa (11% positiva, 7% sem resposta). Aliás, Estado com relação à sociedade e afirmar que existem direi-
os muçulmanos estão conscientes disso, já que fornecem res-
tos não estatais gerados pelos grupos sociais constitutivos
postas que expressam, num grau menor, as mesmas tendên-
de toda sociedade [...] Podemos perguntar-nos se, de tanto
cias (66% não, 27% sim, 7% sem resposta). Outra confirma-
ção: 71% dos franceses pensam que compete aos imigrados empurrar o Estado a cada vez mais longe da sociedade, não
que vivem na França fazer esforços para se adaptar à sociedade acabaremos chegando a um impasse teórico. Com efeito,
francesa, mesmo que não possam praticar a religião deles nas seja isso motivo de felicitação ou de deploração, os Estados
mesmas condições de seus países de origem. existem e não parecem perto de desaparecer: essa existência
Decerto esses números se referem apenas a um proble- tem um significado que, seja ele qual for, uma atitude crítica
ma: o da presença dos estrangeiros na França, especialmen- viva demais contribuiria erradamente para negar. Decerto não
te os magrebinos. O respeito por sua liberdade de pensa- é temerário prever que, no futuro, nascerão novas teorias favorá-
mento coincide com a vontade de sua assimilação política e veis ao Estado, como reação àquelas que acabamos de expor."36
jurídica, o que, aliás, pode ficar contraditório. Pois deve-se O que ocorreu no decorrer destes últimos anos: o espec-
tomar consciência do fato de que, a partir de certo limiar de tro da dissolução social veio assombrar a República sob o dis-
diferenças, a assimilação se torna pura e simplesmente im- farce de pluralismo, intelectuais influentes (mas, sim, ainda os
possível. Como, por exemplo, conciliar os preceitos do Islã há) lembram ao Estado sua missão ou o dotam de novas ar-
em matéria sucessória (a parte das mulheres é a metade da- mas contra a "peste comunitária".
quela dos homens), o casamento poligâmico e o repúdio da Michel Debré se posta assim como feroz adversário do
Sharia com o direito francês, por sua vez apegado à igualda- pluralismo cultural e, mais ainda, jurídico: "... à unidade e à
de sucessória, à união monogâmica e ao acesso igual do ho- indivisibilidade do território correspondem, a um só tempo,
mem e da mulher ao divórcio? Ou o direito francês deve ce- no subconsciente da França e na vontade francesa, a unidade
der, ou cabe ao direito islâmico curvar-se. De fato, se se quer e a indivisibilidade da cultura, graças ao que nossa nação exis-
evitar o impasse, só há uma única saída, queira ou não a opi- te. Este aviso é ainda mais necessário ao nosso tempo porque
nião dominante: o pluralismo jurídico. Noutros casos em
que o choque dos sistemas culturais é menos violento (rela-
ções pais-filhos), poder-se-á procurar soluções de meio- 36. N. Rouland, Anthropologje juridique, Paris, PUF, 90-1. P. Delmas (Lê
mattre dês horloges, Paris, Odile Jacob, 1991) também mostra que, embora o
termo, definindo para os cidadãos de cultura estrangeira
mercado tenha bom desempenho a curto prazo, o Estado é mais hábil do que
estatutos jurídicos mistos, tirados de seus direitos originais ele para controlar os processos de tempos longos: não se deve jogar um con-
e do direito francês: a Europa, vamos repetir, se fez assim. tra o outro, mas repartir os papéis entre eles.
208 NOS CONFINS DO DIREITO
OOIREITONOPLURAl. 209

permite lavar-se de qualquer pecado de imperialismo cultu-


ideias falsas, algumas das quais viraram ideologias, redundam
em políticas contrárias a esse princípio fundamental. Dá-se ral ocidental (ela foi de fato culpada no fim do século XIX,
quando legitimou a colonização francesa salientando que
isso quando a descentralização [...] conduz a criar entidades
regionais das quais algumas, por um apelo desarrazoado e em ela permitia aos povos submetidos ter acesso à civilização).
geral pervertido à História, pretendem contra a nação criar E A. Finkielkraut mescla sua voz ao lamento de Michel De-
novas legitimidades [...]. Dá-se isso quando, diante de urna bré e aos clamores de J. Chirac: deplora o desaparecimento
baixa da natalidade que altera nossa capacidade de assimila- dos defensores de Dreyfus, que proclamavam outrora sua
adesão a normas incondicionadas ou a valores universais39.
ção, ousam falar de uma França multicultural. A República é a
expressão da tolerância e para além da tolerância da igualdade Pode ficar sossegado, ei-los de volta.
Outro observador talentoso das mutações atuais, homem
entre os homens, sejam quais forem sua religião ou sua ori-
de esquerda, J. Daniel fustiga em seus editoriais:"... a reivindi-
gem, mas essa tolerância só vale na unidade de cultura."
Num tom eleitoralista, J. Chirac expressa a mesma in- cação crispada de pertencer a uma comunidade", as diversas
dignação37: formas de tribalismo, e repete as condenações, de M. Rodin-
son e de outros autoies, da peste comunitária e do comuniiaris-
"Fico consternado quando ouço, faz alguns anos, falar em
mo40. Um exemplo? P. Yonnet no-lo fornece num artigo a res-
toda parte, na mídia, entre os intelectuais, entre certo número
peito da escandalosa profanação do cemitério de Carpentras41:
de políticos, unicamente de identidade racial, étnica, cultural
'Acabou-se uma religião submetida às leis do mundo
que conviria desenvolver e aprofundar. Nunca ouço toda essa
que a rodeia: 'O grande rabino deu início ao processo inverso:
gente falar de identidade francesa [...]. A ambição deles, desses
para ele, é a religião primeiro, a lei civil depois.' Deve-se de-
miseráveis, será simplesmente transformar o nosso país numa
profusão de cias e de igrejinhas?" fender a pureza do meio moral judaico. As mulheres casadas
retornam ao uso da peruca (apenas seus maridos têm o direi-
Unidade política ou pluriculturalidade: intimam-nos a
to de ver seus cabelos). Enquanto um judeu sobre dois esco-
escolher. Vindo de outro horizonte totalmente diferente
lhe um cônjuge fora de sua comunidade, os casamentos mis-
(o dos meios esquerdistas), A. Finkielkraut também soa o
tos, antigamente tolerados, são sistematicamente recusados,
alarme. Enrabichados por cultura, os emologistas não seriam
salvo em algumas sinagogas marginais [...] Ávida intracomu-
os vetores de um determinismo tão nocivo quanto o racismo:
nitária prevalece sobre qualquer outra relação e as relações
"... lembremo-nos de que os próprios emologistas copiaram
desses judeus com os não-judeus, no cotidiano, são reduzi-
do romantismo político o conceito de cultura deles e que se
das ao mínimo e ao obrigatório. Aliás, eles têm suas lojas, es-
pode muito bem reprimir a identidade pessoal dentro da
colas privadas onde não são aceitos os não-judeus, onde as
identidade coletiva ou encarcerar os indivíduos em seu grupo
matérias judaicas e religiosas têm uma influência marcante
de origem - sem com isso invocar as leis da hereditariedade"38.
em face dos ensinamentos profanos."
Dão assim armas à Nova Direita, ao mesmo tempo que inspi-
P. Yonnet salienta que, como os muçulmanos integris-
ram a crença da esquerda na sociedade pluricultural, que lhe
tas, os judeus ortodoxos jogam o fato de pertencer a uma

37. M. Debré, Prefácio a R. Debbasch, Lê príncipe révohitionnaire d'imité


39. Ibid., 113.
et d'mdivisibiliíé de Ia Republique, Paris, Económica, 1988, 1-2. J. Chirac disse 40. Cf. J. Daniel, Lê Nmmel Observateur, 8-14 nov. 1990, 60.
estas palavras em 21 de junho de 1991 durante a "Noite tricolor" do RPR dos 41. Cf. P. Yonnet, La machine Carpentras, Histoire et sociologie d'un
Alpes-Maritimes (cf. Lê Monde, 23-24 jun. 1991, 7).
syndrome d'épuration, Lê Débat, 61, set.-out. 1990,18-34.
38. A. Finkielkraut, La défaite de Ia pensée, Paris, Gallimard, 1987,110-1.
210 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 211

religião contra o direito francês. Longe de resultar numa so- grande vantagem de estar longe, é bom. Refletir sobre a exis-
ciedade diversificada, que se enriquece de suas mútuas di- tência de um povo corso parece mais suspeito; trabalhar para
ferenças como sonham os utopistas da esquerda dos salões a dissolução do Estado republicano é ruim. De fato, o que é
e do Ministério da Cultura, essa ideologia prepara uma explo- sobretudo criticável é misturar tudo. Tentemos ver mais claro.
são identitária: "Não o escondemos: a racialização, a etniza- Em primeiro lugar, a noção de comunidade. Empregada
ção das sociedades e do mundo é nitroglicerina para amanhã." em geral de maneira polémica pelos adversários do pluralis-
Pois, atacando a unidade política e a uniformidade jurídica, mo, ela possui em antropologia um sentido científico. Dife-
não se destroem somente os laços sociais supracomunitá- rentemente dos modelos individualista e coletivistaque se
rios. Fortalecem-se também outros, de mau augúrio. Como c-oiitrontaram na Europa no decorrer do séculoXX, o comu-
reação a essas culturas de fora, a identidade francesa se atro- nitarismo tão frequente nas sociedades tradicionais visa es-
fia e se refugia por sua vez em certas tribos: pensar pluricul- tãBélécer relações equilibradas entre o grupo e o indivíduo:
tural é fazer que se vote em Lê Pen. Para enfrentar o perigo, "õTncTividuo se submete às leis do grupo, mas não é escravo
cumpre agir de modo que o que une seja percebido como delas. A comunidade pode definir-se por uma tríplice par-
mais forte do que o que divide. E o Estado, seu direito desem- tilha. A de uma mesma vida: têm-se as mesmas línguas, os
penham aí um papel insubstituível. O Estado sempre teve a mesmos ancestrais, divindades, amigos e inimigos; vive-se
missão de defender a unidade nacional. Mas as mutações nos mesmos espaços. A das mesmas espedfiddades: longe de
atuais, os perigos de que são prenhes, transformam essa an- praticar o "comunismo primitivo" (sexual ou outro) caro a
tiga vocação em banho de Juventude, no qual P. Rosanvallon certos pensadores do século XIX, as comunidades se apre-
o convida a banhar-se: "Numa Europa cada vez mais per- sentam como inclusões sucessivas de grupos distintos e hie-
passada pelas tensões entre grupos, regiões etc., a primeira rarquizados (homens e mulheres, clãs, classes de idades,
razão de ser do Estado - garantir à paz civil e a coexistência castas, associações etc.). Mas esses particularismos são fon-
pacífica das diferenças - recobra uma atualidade nova. A te mais de coesão do que de divisão, pois representados em
questão é a um só tempo económica e cultural [...] Cultural: termos de complementaridade. A maioria dos mitos de fun-
produzir identidade nacional superior às diferenças (nota- dação das comunidades mostra que indivíduos semelhan-
damente religiosas). O Estado retornará a Hobbes e ao seu tes não podem fundar a sociedade política se não são pre-
programa fundamental."42 viamente diferenciados, enquanto nossos teóricos do con-
Diante da urgência do perigo, devemos tirar as amar- rato social pensavam, ao contrário, que a similitude era a
ras de Leviatã e ajuizar os etnologistas perante o tribun :ondição da constituição da sociedade. As consequências são
da impostura? :onsideráveis. No plano social, cada categoria tem neces-
sidade das outras: o camponês, que não tem o direito de tra-
balhar o metal, necessita do ferreiro, que, não podendo traba-
Verdadeiros e falsos problemas do pluralismo lhar a terra, espera sua alimentação do camponês; o mesmo
camponês tem necessidade do senhor da terra e do senhor
, !
Pois estes são postos no banco dos réus. Defender os ín- da chuva, que não teriam nenhuma serventia sem ele; a lei de
dios da Amazónia ou os aborígenes da Austrália, que têm a exogamia deixa cada linhagem dependente das outras etc.
No plano político, o modelo comunitarista se expressa pela
42. P. Rosanvallon, L'État au touxnant, UExpress, 16 fev. 1990,61. separação dos poderes. Em cada gaipo existem não um pó-
212 NOS CONFINS DO DIREITO Q DIREITO NO PLURAL 213

der único e superior aos outros, mas poderes de natureza di- grupo, a família conjugal, que se tornará família de procria-
ferente sobre diversos elementos (o ar, a terra, o mar, o fogo, ção. Terá acesso, assim, a novas responsabilidades nas linha-
as águas etc.). Esses poderes são interdependentes uns dos gens, e poderá ser contado no número de seus dirigentes.
outros, o que evita que, salvo em caso de crise, um deles pos- Ivlas o casamento o faz também deixar a classe de idade dos
sa ficar absoluto. Vê-se bem por aí como um modelo pluralis- caçulas e tornar-se, por exemplo, ferreiro ou pescador, ao
ta pode assegurar a unidade social e política. Partilha, enfim, mesmo tempo que acabam suas eventuais obrigações de
de um mesmo campo de decisão: cada comunidade produz seu cliente junto a um patrão. É graças à multiplicidade de suas
jireito, essencialmente consUêrudináríõ^cle modc^ãulôno- participações que a pessoa guarda uma autonomia no seio
Jmo. Élrêqtíente que comunidades vizinhas no espaço digam da comunidade: a maior parte do tempo, o modelo comu-
ignorar tudo do direito das outras, o que surpreendia os pri- nitarista funciona com os indivíduos, e não contra eles.
meiros observadores ocidentais. ns partidários Ha
E o indivíduo em tudo isso? Não será absorvido, engo- sobagarências pluralistas, os sistemas que descreve são tão
lido por todos esses grupos que exerceriam sobre ele uma autoritários quanto regimes modernos, ainda que a auto -
arcaica opressão da qual apenas a modernidade o teria li- ridade seja organizada de forma pluripolar. Pois, acima de
bertado? Observemos primeiramente que, mesmo em nos- tudo, sabemos bem desde Foucault que o poder não está só
sas sociedades, o indivíduo permanece fechado em diver- no Palácio do Governo: ele irradia em toda a sociedade atra-
sos grupos, em cujo seio não se sente forçosamente mal vés de suas diversas instituições. Ao que se pode responder
(exemplo: a lei de homogamia socioeconômica, segundo a que, se é realmente assim, nossas sociedades modernas não
qual nos casamos numa esmagadora maioria no mesmo escapam à regra: nelas também o indivíduo é uma ilusão. De
meio). Pois, se o grupo pode coagir, ele também protege, outro lado, nas sociedades tradicionais, a contestação é pos-
o que não éji£jse_4esprezar em nossas sociedades que so- sível: costuma mesmo estar presente, inclusive nas forma-
frem tanj/Ò da solidãoQuarU0^s^õcíèdades ções sociais que parecem mais igualitárias. G. Balandier dis-
indivíduo não está ausenljeViela. É verdade^qtreste não é tingue várias categorias de constestadores43. Os rivais, que
concebido como no Ocidente à maneira de uma unidade tentam apoderar-se de uma autoridade à qual não têm direi-
indivisível: é-prefejíveííalar de pessoa, por sua vez compos- to: como os clássicos conflitos entre primogénitos e irmãos
ta de vários elementos, dissociáveis pela vontade dessa pes- mais moços, muitas vezes resolvidos graças a distorções im-
soa ou de outrem, ou ainda pela morte. Assim os wólofes postas às genealogias clinicas. Os empreendedores, que vio-
(Senegal) distinguem três princípios fundamentais: o ser hu- lam as regras de divisão dos bens e serviços raros, a fim de
mano (nif), que compreende: o corpo (garam) e o alento (ruu); os capitalizar em sua vantagem pessoal. Os inovadores reli-
o espírito (rab); a força vital (/íí). Na morte, cada princípio giosos, novos gestores do sagrado, que se impõem como in-
volta à sua fonte: o corpo à terra, o ruu a Deus, o rab se une ao ventores de rituais, profetas ou messias (os cultos messiâni-
mundo invisível dos ancestrais, ofit pode permanecer ligado cos acompanham frequentemente as crises provocadas pelo
à sua descendência, daí uma eventual reencarnação do an- colonialismo). A categoria muito ampla dos feiticeiros: não
cestral. Encontra-se um princípio de organização pluralista somente os que se servem da magia, mas de fato um grande
na inserção da pessoa no seio dos grupos que constituem
a comunidade. Com efeito, cada qual no curso de sua vida
passa por vários grupos. Ao se casar, o homem cria um novo 43. Cf. G. Balandier, Aitíhropo-logtquea, Paris, 1985, 271-2.
214
NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 215
número de contestadores que escolheram formas de oposi- formação da Europa, a personalidade do direito decerto du-
ção mais ou menos ocultas.
rou muito tempo, mas indo no sentido de um constante en-
Todos esses dados permitem jogar de novo a bola para fraquecimento em benefício das relações mistas intercomu-
o campo dos polemistas, aqueles que querem a todo custo nitárias). Na segunda hipótese, pode-se de fato conceber que
quebrar as tribos, associar os termos de comunidades e de o Estado e seu direito permanecem os produtores de uma
identidade aos de monolitismo e de exclusão, a fim de con-
unidade política que se afirma pela uniformidade jurídica.
jurar o que eles acham ser os perigos do pluralismo. Torcen-
Todavia, aí se trata apenas de uma situação precária: quer as
do suficientemente os conceitos, sempre é possível fabricar
moeda falsa ideológica. Mas os bens que ela permite adqui- diferenças continuem a firmar-se irredutivelmente, e cumpri-
rir não são muito duradouros. rá que umas cedam às outras; quer se atenuem por si sós, e
Será que por isso deve-se dar cegamente no "todo- o pluralismo não tem razão de ser; quer se alinhem num ní-
pluralismo"? vel admissível e fertilizante, solução ideal que permite a prá-
O pluralismo não é uma panaceia nem, sobretudo, uma tica de um pluralismo jurídico nem um pouco destruidor da
fórmula idêntica para ser aplicada a todos os casos. Por cer- unidade da sociedade civil.
to ele é baseado na tolerância e no respeito das diferenças, De outro lado, notar-se-á que os adversários do plura-
pois sabe-se muito bem que a imposição de um modelo único sem- lismo fundamentam ad nauseam sua argumentação nos ma-
pre se faz em proveito dos mais fortes. Mas, eu o disse44, ele não lefícios atribuídos à pluriculturalidade ou ao multietnismo.
funciona a qualquer preço. Tudo depende da maneira pela Isso é ignorar a dimensão essencial do pluralismo, que trans-
qual são fixadas as representações para essas diferenças. cende esse tipo de oposição. Nossa sociedade é composta de
Ou as diferenças são percebidas de imediato como comple- uma profusão de grupos secundários dos quais os imigran-
mentares (direito moderno do meio ambiente e sacralida- tes só formam algumas unidades. Ora, com base no perigo
de da terra em inúmeras sociedades tradicionais), ou são fun- religioso ou nas necessidades do anti-racismo, quer-se fazer
damentadas em princípios inversos mas não prosélitos (coe- o fardo do direito estatal recair no conjunto dos grupos se-
xistência na França do casamento polígamo dos imigrantes e cundários, acusados de "neocorporativismo", de egoísmos de
monógamo dos franceses), ou ainda não tocantes à ordem corpos, e detestá-los "cada vez mais". Aí, também, impõem-
pública (cardápios especiais nas cantinas escolares para os se distinções. Alguns desses grupos, de fato, perseguem ob-
judeus e os muçulmanos): nesses casos, o pluralismo jurídi- jetivos condenáveis de preservação de privilégios, no sentido
co é adaptável sem maiores dificuldades. Ou os diferentes vulgar do termo, que nada justifica, a não ser seus interesses
valores são concorrentes, ou são percebidos - com ou sem próprios. Mas outros, ao contrário, permitiram os progressos
razão - como excluindo-se uns aos outros (uso do véu islâ- da democracia, como o salienta com razão A. Touraine: "... a
mico em Creil; excisão na França); neste caso, o pluralismo democracia representativa sempre foi fortalecida ao mesmo
fica difícil, até mesmo impossível, pelo menos a longo pra- tempo por uma forte descentralização do poder, mais por um
zo. Sua perpetuação redundaria de fato no que nossos pole- regime parlamentar do que presidencial e, a fortiori, plebisci-
mistas temem: a dissolução social (nos primeiros séculos de
tário, e pela existência de grupos de interesses conscientes e
organizados, pois não basta, para que a democracia seja repre-
44. Cf. supra, pp. 205-206; e N. Rouland eJ.-L. Harouel, L'anthropologie sentativa, que repouse na livre escolha dos representantes; é
juridique face au jugement de valeurs, Revue de Ia Recherche Jurídique et Droit mister também que os eleitores sejam representáveis, ou seja,
Prospedif, l, 1991,177-81.
que exista acima das escolhas políticas uma organização auto-
216 NOS CONFINS DO DIREITO 217

noina dos atores sociais. A democracia representativa, que mensão relacional, pois nesse caso nada mais teriam de hu-
nunca foi tão sólida como nos países onde a luta de classes. mano. Mas oscilam entre o mito do indivíduo - perigoso,
propria_cla sociedade industrial, foi viva, onde a organização pois pode facilitar todos os totalitarismos - e a descoberta
"dõsjrabaihadores em sindicatos, em sociedades mútuase do sujeito, categoria que permite operar a síntese entre a ir-
cooperativas, de um lado, a dos empregadores em associações redutível singularidade de^cada ser e sua não menos irre-
~dive£sas.jg outro, deram uma base sociaTsólida à oposição da fragável dimensão social. É por isso que reconhecer a exis-
esquerda_e da direita. A social-democracia merece perfeita- tência dos grupos, das comunidades não é em si negador
mente seu nome: nela a democracia repousa na organiza- da modernidade. Os próprios processos judiciais o atestam.
ção prévia de atores sociais. A democracia é fraca, ao contrá- Faz uns vinte anos que vem desenvolvendo-se a ação civil
rio, em toda parte onde o Estado controla, até mesmo consti- coletiva, via aberta aos grupos para fazer que os tribunais
tui os atores sociais, como se deu em quase todos os países da reconheçam seus direitos. Esses grupos não são "tribos",
América Latina, em particular no Brasil e no México, onde sin- e ainda menos as "casas de intolerância" de que fala J. Jul-
dicatos operários e grandes empresas foram criadas pelo liard46. Ao contrário, eles costumam expressar preocupações
Estado e só tiveram pouca existência autónoma. Na França, as perfeitamente democráticas: defesa dos consumidores, do
categorias do político quase sempre dominaram as catego- meio ambiente, luta contra o racismo etc. Aliás, de modo ge-
rias do social, [...] o individualismo no campo político é a ral, negar os grupos não é decerto a melhor maneira de pre-
contrapartida da concentração do poder e a associação des- caver-se contra seus eventuais desvios: a experiência mostra
ses dois elementos ameaça uma democracia representativa que, quando as comunidades são fracas, são efetivamente
que pressupõe, ao contrário, a integração do indivíduo em tentadas por formas de tribalismo, que podem conduzir ao
grupos de interesses, profissionais mas também regionais, racismo e a diversas formas de integrismo.
religiosos ou outros, e a supremacia do poder legislativo e das É por isso que o pluralismo, oposto à uniformidade, não
coalizões formadas entre seus representantes eleitos sobre é em absoluto o coveiro da unidade. Tampouco não é por es-
o poder executivo."45 sência o inimigo do Estado (o que o distingue das teorias
Portanto, a modernidade não é de modo algum sinóni- anarquistas), mas pode constituir um regulador determinan-
mo da negação dos grupos e de sua organização pluralista: te de sua ação. A antropologia política, aliás, esclarece-nos
é, ao contrário, a uma descrição antiquada e perigosa que o sobre o papel desempenhado pelo Estado com relação à coe-
binómio indivíduo-Estado remete. Seria melhor, aliás, pre- são de que toda sociedade necessita.
cisar esses termos. De um lado, distinguir entre o indivíduo,
a pessoa e o sujeito. O indivíduo é o suporte biológico da re- 46. "Desde quando essa palavra [comunidade] se introduziu subrepticia-
lação de socialização que a pessoa exprime. Esta se deduz das mente na linguagem corrente para designar grupos que pertencem a uma reli-
relações que mantemos com os nossos próximos e com as gião considerados fundamentais e determinantes? Houve um tempo, o do Ilumi-
diversas comunidades às quais pertencemos: as sociedades nismo, o da República, o da Razão individual, em que dizer a um cristão ou a um
judeu que ele se determinava como cristão ou como judeu teria sido considerado
tradicionais, holísticas, a valorizam plenamente. As socieda- uma injúria. Hoje, em nome da famosa "diferença", que veicula, é verdade, uma
des modernas, mais individualistas, não suprimiram essa di- parte de nossa identidade mas também o velho fundo obscuro em que as gran-
des coerções coletivas conspiram com as nossas pequenas covardias pessoais
para nos desviar de ser homens livres; em nome, digo eu, das "comunidades",
45. A. Touraine, Un essas grandes casas de intolerância, você é classificado, normalizado, neutraliza-
264,,br. 1989,24 do." (J. Julliard, Chroniques du septième jour, Paris, Lê Seuil, 1991,115.)

:\ oDIREITO NO PLURAL
218 NOS CONFINS DO DIREITO O DIREITO NO PLURAL 219

Antropologia política do Estado volvem na ausência do Estado. Para os filósofos, o direito é


natural e a política, um artefato; para o antropólogo, a poií-
A antropologia não mostra forçosamente a boa inten- tira é_om dado primeiro, enquanto os fenómenos jliridicos
ção dos "selvagens": vimos que estes não hesitam em pagar essencialmente plurais, não passam do produto dos diteren-
com o preço da guerra a preservação de seus valores, na me- gi'upub humdiiuij. Portanto, a unidade política e soc—
^—_-_-^—
dida em que muitos acham ser os únicos verdadeiros "ho- jçdejierassegurada pormecánisrnosjiáo estãTais: rejações
mens". E podemos razoavelmente pensar que, mesmo sob *" de trõcãsTentre os cias, cúltõs~c5rriuns, cooperação-egonôrni^
formas mais benignas, a preservação da identidade dificil- i, aliás, enfatizará alguns anos mais tarde
mente pode excluir certo grau de fechamento perante ou- ~a reciprocidade das obrigações como principal fundamento
tras culturas. do direito. Impossível, aqm, não evocar os pais do anarquis-
No entanto, a maior parte dos grandes antropólogos, de mo. Para Proudhon, o Estado confisca sua potência original
Mauss e Malinowski até Lévi-Strauss, reteve sobretudo a da sociedade, institui relações de coerção onde a lei de reci-
troca como princípio estruturador e condição de viabilidade procidade presidia às trocas. De modo mais trivial, Kropotkine
das sociedades humanas. Uma vez permitida a comunicação caçoa dos burgueses que "consideram o povo uma aglome-
pela linguagem, os homens se puseram a trocar cônjuges e ração de selvagens que começam a brigar assim que o gover-
bens, sem necessitar, durante muito tempo e em numerosos no deixa de funcionar".
casos ainda atuais, daquilo a que chamamos o Estado. Pois Entretanto, a verdade é que o Estado apareceu ainda
esta é a lição essencial para o tema que tratamos: a instituição assim. Por quê? A questão continua a obcecar politistas e
do social pode ser realizada pelo Estado, mas também sem ele, sem antropólogos. Para Sumner-Maine, cujas teorias serão larga-
_gue se tenha de condenar por princípio um ou outro modo dessa mente retomadas mais tarde, as comunidades originais tive-
instituição. Comecemos pela segunda hipótese. ram de incorporar recém- chegados cuja integração não foi
' A antropologia enriquece consideravelmente a teoria possível assegurar pela parentalização, mesmo fazendo-a
política clássica, à qual ela se opõe47. Os teóricos do contrato repousar em ficções (convinha-se, mesmo que isso fosse bio-
social (Hobbes, Locke e Rousseau) supõem que no estado de logicamente falso, que tal indivíduo era vinculado a tal clã).
natureza os homens acabaram sentindo dificuldades em coa- A partir de certo limiar, o princípio territorial impôs-se à
bitar. Por intermédio de um contrato social baseado no ape- organização familiar como traço de união entre grupos cuja
heterogeneidade ficava cada vez mais manifesta: era o pri-
lo à Razão, inventaram a sociedade política, alienando-lhe
partes variáveis de suas liberdades originais. Mas, no final do meiro passo para o Estado territorial. Passo decisivo, mas que
século XIX, H. Sumner-Maine, o primeiro grande antropólo- muitos outros tiveram de dar. Pois das sociedades acéfalas
go do direito da época moderna, replica fundamentando-se aos Estados modernos, a antropologia jurídica nos põe dian-
te de múltiplas formas de Estados tradicionais, cujos dirigen-
nos dados historicamente constatáveis: o estado de nature-
tes se esforçam, com maior ou menor sucesso, para reali-
za dos filósofos é sobretudo o produto de suas fantasias; a
zar um equilíbrio entre seus poderes e os que continuam nas
sociedade civil não foi em absoluto gerada por um contrato,
mãos das autoridades clânicas, religiosas ou rituais. Contra-
ela existe no mais longe que nosso olhar possa dirigir-se sob
riamente ao que pensavam os anarquistas, o Estado não ab-
a forma de organizações familiares patriarcais que se desen-
sorve sempre e em toda parte a sociedade.
O que guardar de tudo isso? Atualmente, não há ex-
47. Cf. M. Abeles, Anthropologie de l'État, Paris, A. Colin, 1990, 8- plicação única para o nascimento do Estado. Encontram-se
-V

<fo
NOS CONFINS DO DIREITO 0 DIREITO NO PLURAL 221

exemplosJústóricos (a bem dizer majoritários) que mostram mo quando se falar menos da questão imigrante do que do
que este procede de fatores externos (a presença de um Es- destino dos enjeitados. De maneira mais geral, convenhamos
tado vizinho obriga a modificar os equilíbrios presentes, ain- também que grupos e comunidades oferecem aos indivíduos
da que em consequência de uma guerra); mas também de o calor de uma sociabilidade que foi dissolvida pelas grandes
outros (vale do Nilo, Mesopotâmia, China, Peru, México) nos máquinas estatais e pelo estiolamento das relações de face
quais ele apareceu sem a intervenção do estímulo de outras a face provocado pelas tecnologias modernas (a adminis-
formações estatais preexistentes. O Estado nasce então para tração da Previdência Social é necessária, falta-lhe uma alma
organizar as relações entre grupos socjais não igualitários que as redes de ajuda mútua possuem mais; e fica-se ater-
com interesses separados, até mesmo divergentes. Mas nas rado diante da amplitude das enfermidades da comunicação
duas eventualidades - aporte de elementos exteriores, acen- reveladas pelo sucesso dos "correios sentimentais"). O que
tuação de divisões internas - a função essencial do Estado não impede em absoluto fazer uma triagem entre essas co-
parece mesmo ser produzir unidade onde os mecanismos munidades: as que pregam a intolerância não podem ser
antigos já não asseguram - ou não tão bem - a instituição aceitas, pois a intolerância impede a aliança.
do social. Para continuar viável, a maior parte das sociedades hu-
O que concluir disso, hic et nunc? Num futuro previsível, manas escolheu até agora trocar cônjuges e bens, Cabe a
e mesmo que se pense que os Estados-nações modernos tal- nós inventar os novos parentescos exigidos por nossa época.
vez sejam um dos numerosos impasses da evolução, está ex- O Estado não está de modo algum excluído desse processo.
cluído que nossas sociedades retornem a formas acéfalas de Devemos dessacralizá-lo, mas guardando-lhe um lugar no
organização política. Mas a antropologia permite-nos per- santuário. Pois constatar que foram inúmeras as socieda-
ceber que nossas sociedades também são segmentarias, mesmo des que passaram sem ele não basta para transformá-lo num
que essa segmentaridade se baseie em outros princípios or- manequim inerte. A sociedade, em sua estrutura global en-
ganizadores, diferentes da solidariedade parental clânica de carada no plano tanto jurídico como sociológico, deve ter re-
muitas sociedades tradicionais. Reconhecê-lo e deixar de ful- conhecido um papel fundamental na instituição do social.
minar indiscriminadamente o "tribalismo" não me parece Mas viver sem Estado deixou de estar - ou ainda não está -
em nada fazer injúria à democracia. A existência de grupos e ao nosso alcance. Para evitar que o pluralismo possa levar à
jie comunidades não impede de modo algum, como o dê^ dissolução social, o Estado deve construir o fórum no qual
""monstra amplamente a antropologia, a formação de meca- poderão encontrar-se os habitantes dos diversos bairros da
' nismos de aliança que lhes permitem coexistir e unir-se, sem cidade. Compete a ele favorecer as práticas de interconhe-
'se confundir. Não esqueçamos que amiúde as mais fecha- cimento, deixando fluidas culturas herdadas ou importadas
das comunidades, que parecem com razão ameaçadoras, são (notadamente mediante o ensino... da antropologia), reco-
um efeito da exclusão antes de constituir sua causa/A valori- nhecer à sociedade o direito não de o suprimir, mas de coope-
zação dos particularismos comunitários só fica perigosa para rar com ele. Utopia? Convenhamos que foi uma das mais des-
a unidade do Estado e da sociedade quando se combina com truidoras, da qual o Estado dirigista e centralizador ganhou
uma situação de exclusão na qual, anteriormente, o Estado ou um importante laurel.
a sociedade puseram ou deixaram insinuar-se esta ou aque- Aliás, essa utopia já se realizou. Como a luz viva de um
la comunidade/Níoutras palavras, o efeito bumerangue. Como astro já morto, ela nos vem de muito longe, trazida por
escreve P. A. Taguieff, lutar-se-á tanto melhor contra o racis- um texto de Cícero: "Penso que havia para ele [Catão], como
222 NOS CONFINS DO DIREITO Capitulo V
Direito e valores
para todas as pessoas dos municípios48, duas pátrias: urna
pátria de natureza, uma pátria de cidadania [...] considera- O desenvolvimento não se reduz ao simples crescimento eco-
mos pátria aquela onde nascemos assim como a que nos nómico. Para ser autêntico, deve ser integral, ou seja,, promover
acolheu. Mas é necessário que esta prevaleça em nossa afei- todo homem e o homem todo.
ção, pela qual o nome 'República'49 é o bem em comum da PAULO VI, encíclica Populorum Progressio.
cidade inteira. É por ela que devemos morrer, é a ela que te-
Vamos cada vez mais compreender que não só as receitas de
mos de nos dar inteiros, nela que se há de colocar e por as- desenvolvimento do Terceiro Mundo provocavam subdesenvolvi-
sim dizer santificar tudo o que nos pertence. Mas a pátria mento, mas também que nosso desenvolvimento material, técni-
que nos gerou não nos é muito menos doce do que aquela co, económico produzia subdesenvolvimento mental, psíquico,
que nos acolheu. É por isso que nunca haverei de negar-lhe moral. Vamos compreender, em suma, que era o nosso conceito
absolutamente o nome de minha pátria, ainda que uma seja de desenvolvimento que é subdesenvolvido.
maior e a outra esteja fechada dentro da primeira - ficando EDGARD MORIM.'
bem entendido que todo homem, qualquer que seja o lugar
onde nasceu, participa da cidade e a concebe como única."50
Duraremos tanto tempo quanto o Império? Vertigens. Como escapar-lhes ao inventariar a nossa
herança? Desde o início da espécie, entre 60 bilhões e 100
bilhões de seres humanos se deitaram embaixo da terra ou
em cima das fogueiras; conservamos os vestígios de cerca
de 10 mil sistemas de direito; existem vários milhares de
grupos étnicos apenas neste final de século2. E o que dizer
do longínquo futuro? O homem ainda tem um lugar nele?
Ele aparece há somente 2,5 milhões de anos, e nosso pla-
neta só se consumirá na agonia flamejante do sol dentro de
5 bilhões de anos... Por mais curto que seja o caminho per-
48. Os municípios são cidades conquistadas por Roma, que se benefi- corrido, a diversidade das paisagens encanta os olhos, mas
ciam de um estatuto de autonomia: mediante uma participação nos encargos
militares e financeiros comuns, elas conservam seus próprios magistrados,
repugna à razão: alguns séculos ou oceanos transpostos,
suas assembleias, seus cultos e às vezes sua língua. em geral muito menos, bastam para que mudem códigos e
49.0 termo Rés publica não designa, como agora, um determinado regi- costumes. Que fazer de tudo isso? Às vertigens sucede o
me político, mas, antes, a coletividade considerada em sua individualidade, dilema. Deveremos, para compreender melhor, renunciar a
como sujeito de relações jurídicas. Implica a existência de uma organização
política (que pode ser democrática ou aristocrática, mas não tirânica ou dema-
julgar? Os etnologistas conjuram seus leitores a não medir
gógica, ou olígárquica), determinada por regras de direito.
50. Cícero, As leis, II, 5. Sinal da permanência dos direitos locais que o
pluralismo romano autorizava, os costumes autóctones reaparecem em geral 1. E. Morin, L'homme domine-t-il sã planète?, in: La pensée aujourd'hui,
bem vivos e suplantam o direito romano em numerosas regiões da antiga Gá- LeNouvel Observateur, col. "Dossiers", 2,1990, 45.
lia quando, no século VI d.C, desapareceu o império do Ocidente; cf. P. Our- 2. As estimativas vão de 4... a 20 mil para a avaliação desses grupos: cf.
liac e J.-L. Gazzaniga, Histoire du droit prive jrançais, Paris, Albin Michel, J. Poirier, Histoire dês maeiirs, I, Paris, Gallimard, 1990, XI, XII; R. Stavenhagen,
1985, 35-6. op. f/7. infra, n. 94.
224 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 225

os "selvagens" pela medida de seus próprios valores, sob pena dições, até as mais detestáveis, contanto que elas pertençam
de etnocentrismo. Mas foram muitos, e continuam a sê-lo, os a outras sociedades que não a deles. Em suma, conformistas
que desprezaram esses conselhos, ou porque no passado ti- a serviço de selvagens nem sempre muito confiáveis. E tal-
vessem visto neles "primitivos", ou porque hoje se afirmem, vez até adversários potenciais dos direitos do Homem, essa
como M. Leiris, os "advogados naturais" deles. E o que dizer preciosa conquista da modernidade.
dos filósofos, tantos que se enrabicharam por selvagens mora-
listas. Há um século A. Cochin, o historiador da Revolução,
não lhes poupava seus sarcasmos: "Não há um autor que não Os antropólogos sob vigilância
vos apresente seu selvagem, desde os mais alegres aos mais
sérios. Montesquieu começou com seu príncipe persa, Voltaire Acusaram-nos de facilitar a tarefa da administração colo-
imortaliza a personagem de Cândido; Buffon faz-lhe a análise nial fornecendo a seus agentes "modos de usar" das popula-
em seu despertar de Adão, Condillac, a psicologia no mito da ções que deviam ser pacificadas. De fato, esta raramente levou
estátua; Rousseau criou-lhe o papel e passou a velhice ban- em conta suas pesquisas3. Fazem-lhes agora outras censuras.
cando o selvagem no parque dos castelos. Não há um apren- Em 1973, Claude Lévi-Strauss é recebido no Instituto da
diz de filósofo, por volta de 1770, que não empreenda a revisão França. Já no início de seu discurso, compara os ritos indíge-
das leis e usos de seu país com seu chinês e seu iroquês de nas e os de nossa sociedade. R. Aron acha que se apoia de-
confiança, como um rapaz de família viaja com seu abade." mais nesse tema4. Encarregado da resposta, R. Caillois repro-
Dentre esses doutos autores, alguns pais dos direitos do ho- va os etnologistas por bancar sem ónus os bons apóstolos:
mem eram ainda menos bem inspirados do que o exemplo "Eles [os indígenas] não ignoram que esses cientistas vie-
dado por muitos verdadeiros selvagens: para inúmeras so- ram estudá-los com simpatia, compreensão, admiração, que
ciedades tradicionais, o humano termina em suas fronteiras. lhes partilharam a vida. Mas o rancor lhes sugere que seus
Quanto ao jurista e ao juiz, de braço armado/ como po- hóspedes passageiros estavam lá para escrever uma tese, con-
deriam abster-se de dirimir entre o bem e o mal, de conde- quistar um diploma, já que voltaram para ensinar a seus alu-
nar aqueles que violam suas fronteiras? O jurista não pode- nos os costumes estranhos, 'primitivos', que haviam observa-
subtrair-se à ardente obrigação de julgar e de punir. Contu- do e encontraram em suas terras automóvel, telefone, aqueci-
do, o direito que se anuncia nas sociedades pós-industriais mento central, refrigerador, as mil comodidades que a técnica
terá sempre os traços desse mestre bem conhecido? Mais arrasta atrás de si. Por conseguinte, como não ficar irritado ao
instável no tempo, recorrendo ainda mais do que antes à ouvir esses bons apóstolos elogiar as condições de felicidade
rústica, de equilíbrio e de sabedoria simples que o analfabetis-
persuasão, ele vê sua dimensão normativa enfraquecer-se.
mo garante? Despertadas para ambições novas, as gerações
As ciências sociais não dissolveram o homem nem a
que estudam e que, há pouco, eram estudadas, não escutam
moral: hoje o sujeito e os valores voltam com força. Daí uma
sem sarcasmos esses discursos lisonjeadores em que acredi-
volta do apego pelo direito: os pesquisadores se interessam
tam reconhecer o tom enternecido dos ricos quando expli-
por ele, a mídia o põe em cena, os editores começam a so-
nhar com best-sellers. Mas, ao mesmo tempo, o vento pare-
ce virar-se para os antropólogos. Embora sua disciplina con- 3. Cf. M. Panoff, Ethnologie: lê deuxième souffle, Paris, Payot, 1977,10-1.
tinue na moda, devem cada vez mais tirar sua roupa de luz 4. Cf. C. Lévi-Strauss e D. Eribon, De prés et de loin, Paris, Odibe Jacob,
dos anos 1970, acusados de avalizai' por princípio todas as tra- 1988,119.
997
226 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES

cam aos pobres que o dinheiro não traz a felicidade - ainda ainda, neutralizar qualquer início de classificação e_ dejuízo.
menos, decerto, do que o fazem os recursos da civilização in- de valor7ja~que ãTcTêsyãlõrizaçãojio termo autoriza dotar de,
dustrial. Vai dizer isso a outros."5 "unrarculíurã todos os grupos humanos, até mesmo os menos
Membros do clube dos munidos de tecnologia, os an- reluzentes: os skin heads têm uma cultura (mitos derivados
tropólogos agravariam seu caso desdenhando as aquisições do nazismo, coturnos e outros autoritarismos) como a pos-
intelectuais da modernidade. Abandonado, o conceito de ci- suíam os estatuários de Reims. A cultura se torna um sinistro
vilização criado pelas Luzes indigna-se A. Finkielkraut6: a tapa-miséria.
humanidade não é mais que um espelho partido em mil cul- É verdade que atualmente a inflação dos empregos des-
turas cujos reflexos enlouquecem a razão. Em nome do ho- se termo (fala-se de culturas de oposição e de governo, de
mem diferente advém a morte do Homem7. Quer dizer que cultura de empresa) apresenta o risco de conduzir a uma
todas as culturas se equivalem? Nem isso: os antropólogos enorme diluição de seu sentido. Ater-me-ei, portanto, ao em-
são acusados de fabricar por inteiro um Bom Selvagem ge- pregado pelos antropólogos para responder às críticas.
neroso, democrata, ecologista etc.8. E de esquecer o que po- A invectiva de R. Caillois merece poucos comentários.
deria incomodar mais: o infanticídio, a escravidão, a poliga- As temporadas de pesquisa de campo do antropólogo não são
mia, a excisão: "O servo deve poder beneficiar-se do cnute: férias rústicas. Basta ler, para se convencer disso, o diário de
seria mutilar seu ser, atentar contra a sua dignidade de ho- Malinowski onde abundam desencorajamentos e mesmo
mem, em suma/ dar prova de racismo privá-lo dele."9 Per- rancores contra os indígenas11 da parte de um dos maiores
versos, mas espertos, os antropólogos poderiam responder antropólogos de campo. Ademais, deixados de lado alguns
referindo-se à noção de totalidade cultural. Tal costume, tal iluminados, os antropólogos não desprezam os evidentes be-
comportamento, tomados isoladamente, podem escandali- nefícios da tecnologia moderna: lembram simplesmente que,
zar: recolocados no interior de seu contexto cultural, adquirem como o dinheiro, a técnica é bom criado porém mau patrão.
um sentido e parecem normais aos que os vivem. Insuportá- Não desviaram depois o conceito de cultura para as ne-
vel ao norte do Mediterrâneo, a excisão se toma no sul um rito cessidades da causa deles. De fato, os termos cultura e civili-
de integração à vida adulta tão necessário quanto entre nós a zação conheceram sentidos diferentes, geradores de ambigui-
carta de motorista^ cultura; aí está a moeda falsa forjada pe- dades e mal-entendidos. Nos séculos XVHt e XIX, a civilização
los antropólogos para substituir o ouro da civilização. Paia eles, exprime o otimismo, a crença no Progresso. Para Condorcet,
tudo é cultura, tanto as diversas maneiras de defecar10 quanto ela tende a fazer "desaparecer a guerra e as conquistas, bem
allíada ou a CWz'ssá'a./ííscorregão semântico que permite, aqui como a escravidão e a miséria", Guizot a vê "estender sobre
o mundo o glorioso império da razão". Os clássicos alemães
davam àKultur quase o mesmo conteúdo (Kulturkampj).M&s
5. Lê Monde, 28 jun. 1974. os românticos mudam as regras do jogo: a Zivilisation fica
6. Cf. A. Finkielkraut, La dêfaite de Ia pensée, Paris, Gallímard, 1987, 69-70. marcada de ciência e de progresso, ao passo que a Kultur ex-
7. Aid., 83.
prime daí em diante a alma profunda da comunidade, o fa-
8. Cf. P. Bruckner, Lesanglotde lhomme blanc, Paris, Lê Seuil, 1983,188-9.
9. A. Finkielkraut, op, cit., 129. moso Volksgeist. Da Alemanha, a distinção entre civilização e
10. O exemplo parece trivial. No entanto... Ficaremos facilmente con- cultura passará para os especialistas anglo-saxões das ciên-
vencidos de que as relações que o homem mantém com o excremento às ve-
zes são muito reveladoras de suas concepções metafísicas ao ler: C. Gaignebet
e M.-C. Perier, L'homme et 1'excretum, in: J. Poirier, op. cit. supra, n. 2, 831-3. 11. Cf. B. Malinowski, Journal d'Ethnogmphc, Paris, Lê Seuil, 1987.
228 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 229

cias humanas. Ajajitura compreende assírn_certo número um código seletivo de sinais de distinção. Esta cultura é sus-
de,idéias, de crenças e de representações, mas também cos- cetível de apropriação privativa [...] têm-se mais ou menos
tumes e os sinais sensíveis que os exprimem. Nesse senti- cultura, e largas partes da população ignoram a maior massa
do, sua definição já não é somente de cultura, mas também das produções 'culturais' de sua própria civilização. São am-
cultural, e aproxima-se assim daquilo que hoje sociólogos e plamente incultas."12
antropólogos nela vêem. Ou seja, o conjunto das respostas Portanto, os antropólogos não deturparam um honra-
que os grupos humanos trazem'ao problema de sua exis- do conceito para poder dizer melhor que tudo se equivale.
tência social: as representações e os símbolos pelos quais o Tanto menos que eles próprios não se privaram de fazer juí-
homem dá sentido à sua vida, a língua, o direito, os cultos, os zos de valor.
ritos, mas também as roupas, o habitat, os hábitos sexuais ou Sobrinho de Durkheim e um dos maiores cientistas de
o artesanato. O que denominamos a civilização seria assim nosso século nessa disciplina, Mareei Mauss não hesita em
apenas uma forma de cultura, podendo ser datada e situada. escrever que as sociedades "... estão longe de ser todas da
Essa dilatação do conceito invalida a possibilidade do juízo mesma natureza e da mesma categoria na evolução. Consi-
de valor? De modo algum: sempre sou livre para preferir a derá-las iguais é uma injustiça para com aquelas em que a
civilização das Luzes àquela dos melanésios, ainda que nela civilização e o sentido do direito estão mais nitidamente de-
só veja uma das formas da cultura ocidental. Por outro lado, senvolvidos."13 O próprio Claude Lévi-Strauss condena os as-
costumam acusar a concepção antropológica da cultura de tecas (atitude ainda mais corajosa por ele ser americanista):
dissolver a unidade das nações no ácido dos particularismos "... outras sociedades [que não o Ocidente] participaram do
identitários. A Kultur do século XLX foi, porém, estreitamen- mesmo pecado original; não muito numerosas decerto, e ainda
te associada à construção dos Estados-nações europeus... mais raras quando descemos na escala do progresso. Bastar-
me-á citar os astecas, chaga aberta no flanco do americanismo,
Enfim, objetar-me-ão, você não pode negar que, ao banali-
que uma obsessão pelo sangue e pela tortura (na verdade uni-
zar a palavra cultura, outrora reservada às expressões nobres
versal, mas patente entre eles sob a forma excessiva que a com-
do pensamento (artes, ciências, crenças, literatura), os antro-
paração permite definir) - por mais explicável que seja pela
pólogos puderam reabilitar primitivos, em geral indigentes na
necessidade de domesticar a morte - coloca ao nosso lado,
matéria, e sentar na mesma tribuna Aristóteles, Abelardo, o não como os únicos iníquos, mas por tê-lo sido à nossa ma-
feiticeiro africano e o xamã esquimó. Decerto cumpria en- neira, de modo desmedido."14 Quanto aos antropólogos que
contrar os meios terminológicos de expressar a ideia de que tomam a defesa das populações que estudam (elas são em ge-
os Selvagens não o eram tanto quanto se acreditava há um ral minorias étnicas - às vezes, mais raramente, maiorias - no
século. Mas estender o conceito de cultura não permitirá seio de Estados-nações que lhes são hostis ou indiferentes),
comparar melhor entre si os grupos humanos que são seus
portadores e, se o decidirmos, a formulação de juízos de va-
lor? Longe de proibi-los, esse procedimento os autoriza. Ade- 12. S. Latouche, Uoccidmtalisation du monde, Paris, LaDécouverte, 1989,
mais, a concepção usual da cultura (a que nos faz dizer de al- 48-9.
13. Citado por A. Cuvellier, Manuel de sociologie, II, Paris, PUF, 1968, 680.
guém que é um homem "culto") não será bem menos inocen- 14. C. Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris, Plon, 1955, 450. De fato, a
te do que a dos antropólogos? Como escreve o economista tentativa de reabilitação dos astecas tentada por J. M. G. Lê Clézio (Lê revê me-
S. Latouche, na sociedade moderna, a cultura já não é tanto xicain ou Ia pensée interrompue, Paris, Gallimard, 1988) não convence muito, a
"... um sistema simbólico que dá sentido à existência quanto despeito - circunstância agravante - da evidente qualidade de sua escrita. C
232 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 233

junto desse sistema. Quem, dentre nós, não sentiria legítima Nesse ponto, nós o seguiríamos com todo o gosto, mas, para
revolta contra a escravidão, os sacrifícios de crianças, as cre- aprová-los sem hesitação, teríamos de esquecer que também
mações de viúvas, a costura do sexo feminino e outras vile- eles eram antropófagos... Podemos comparar materiais: mas
zas? Mas, uma vez experimentada essa reação sadia, deve co- o juízo só adquire todo o seu sentido aplicado aos edifícios
meçar a ciência: ela mostra a quais considerações podem res- construídos graças a eles. É por isso que, se queremos a qual-
H ponder essas práticas para os que a elas se dedicam. Claude quer preço classificar as sociedades, é o conjunto de sua cul-
Lévi-Strauss o fez a propósito de um costume, difundido do tura que devemos considerar. Senão, procurando bem e se-
Ártico canadense à Terra do Fogo: a antropofagia. Afora as lecionando exemplos isolados, podemos provar tudo e o seu
penúrias, ela em geral se baseia na ideia de que absorver uma contrário, ver no mais sanguinário dos dancalis um discípu-
parte do corpo de um parente falecido ou do cadáver de um lo de Madre Teresa ou nos polinésios (peritos em sacrifícios
inimigo permite adquirir-lhe as virtudes ou neutralizar-lhe humanos) seres santificados por uma leniente sexualidade
os poderes. Claude Lévi-Strauss observa que é a mesma cren- consumada contra um pano de fundo de coqueiros. Dito isto,
ça no vínculo entre o corpo e a alma que explica esses costu- nada proíbe sentir por certas sociedades afinidades e indi-
mes e a abominação que por eles temos19. Acrescentarei que, ferença ou restrições a outras. Cada etnologista escolhe seu
se o direito positivo considera que os mortos já não são pes- terreno em razão de circunstâncias ocasionais (o orientador
soas e consagra o desaparecimento dos cadáveres20, deve- de pesquisa, os recursos materiais disponíveis), mas também
ríamos mostrar mais lógica e desinteressar-nos do corpo em de seus gostos. Existem culturas que me atraem, e outras que
que desapareceu o espírito. Enfim, o cristianismo não se apoia me inspiram antipatia: atitude corriqueira, e legítima. Ela não
na eucaristia, manducação por certo sagrada, mas da qual se significa que apenas as primeiras são boas, e as outras más.
deve reconhecer que não deixa de ter ligação com as concep- Afinal de contas, nenhuma sociedade é perfeita, nem intei-
ções dos "selvagens"? A excisão pode suscitar o mesmo tipo ramente condenável, e se prefiro algumas delas é que me
de reflexões, como o vimos21: podemos ao mesmo tempo al- parecem mais conformes com minhas próprias escolhas. Afir-
mejar que p direito francês a proíba, compreender que ela mação presunçosa e não fundamentada, objetar-me-ão: an-
possui na África outros significados e desejar que no futuro tropólogo, você deveria saber mais do que qualquer outro
as preocupações identitárias que a podem fundamentar en- que suas escolhas são determinadas pela cultura em que nas-
contrem outros meios de se expressar. Noutras palavras, ceu. Por certo, mas é precisamente para afrouxar esses deter-
deve-se tomar consciência das relações que existem entre os minismos que a antropologia me ajuda, ainda que me mos-
diferentes elementos de toda cultura, sem o que nos expomos trando que a problemas similares correspondem soluções
a enormes contra-sensos. Como o enfatiza Lévi-Strauss22, os diferentes, engastadas em lógicas próprias cvija coerência
índios das Planícies teriam considerado bárbaro o encerra- se pode mostrar. Cumpre começar desprendendo-se de sua
mento penitenciário pelo qual as nossas sociedades se re- própria sociedade para poder observar melhor as outras, sem
solveram há dois séculos, pois nada poderia ser pior para eles com isso confundir-se com elas.
do que a ruptura dos laços sociais: desgraçado o homem só. Com o risco de enganar-se, como pôde fazê-lo uma an-
tropologia mal conduzida ou nutrida por observações fala-
19. Cf. C. Lévi-Strauss, op. cif., 447-8. ciosas. Se, no século XIX, a antropologia jurídica nascente
20. Cf. infra, pp. 397-400. cedeu à tentação evolucionista e cometeu tantos erros (en-
21. Q. supra, pp. 204-5. tre os mais brejeiros: a pretensa ignorância, pelos primitivos,
22. Cf. C. Lévi-Strauss, op. cif., 448. do contrato, da família conjugal, da propriedade individual,
234 NOS CONFINS DO DIREITO 235
DlKE.nO E VALORES

da punição penal etc.)/ foi porque o juízo de valores no qual tas não têm nada que ver com os fins e com os valores que
se í:undamentava - a superioridade da cultura ocidental so- deles resultam, cumpre então fazer-lhes a mesma acusação
bre todas as outras - era em muitos pontos erróneo: a con- (errónea) que aos antropólogos: representam a fase supre-
clusão precedia e inspirava a demonstração. Pois das duas ma do relativismo, já que, como o conteúdo do direito varia
uma. Ou há efetivamente uma evolução que ocorre no sen- consideravelmente no tempo e no espaço, tudo e seu contrá-
tido de um maior progresso, cujo resultado hoje é a moder- rio se equivaleriam.
nidade ocidental: isto justificaria que posasse como modelo No entanto, essa atitude é relativamente recente, e já lar-
perante outras culturas. Neste caso, todo remorso seria inútil gamente obsoleta. Os juristas romanos, cuja competência
e o desencanto, um processo benéfico. Ou nenhuma cultura não tem de ser provada, não hesitavam em definir fins ao di-
é profeticamente investida da missão de realizar o progresso. reito. O direito é a arte do bom e do equitativo, deve atribuir a
Este só poderia nascer da comparação das experiências rea- cada qual o que lhe é devido: máximas então correntes. A re-
lizadas no tempo e no espaço pelas diversas sociedades: cabe ligião, ontem e hoje, conforme se considere esta ou aquela
a cada uma delas contribuir para a grande obra, à sua ma- parte do mundo, é a fonte direta de inúmeros sistemas jurí-
neira e segundo seus méritos. Mas não se pode tolerar que dicos. No Ocidente, os teóricos do direito durante séculos
uma única cultura - fosse ela a dos papuas, dos ianomâmis ou afirmaram que um direito ideal - denominado direito natu-
dos americanos - se veja reconhecer o exorbitante privilégio ral - deveria guiar á busca dos bons sistemas de direito po-
de decidir por todas as outras, na medida em que, até ago- sitivo. Infelizmente, por falta de acordo sobre o conteúdo
ra, em nenhuma sociedade os homens vivem como deuses. desse direito natural, esgotou-se finalmente a doutrina deles,
Vasto programa, mas qual papel o direito e os juristas de- o que preparou a renúncia teórica do positivismo. Partindo
sempenham nele? de Grócio, todo um movimento racionalista conduz a ele.
Sua expressão mais desencorajadora é decerto a de Kelsen
(1881-1973), derivada das teorias do Direito puro da Esco-
Os juristas e as virgens estéreis fc la Vienense. Para ele, o direito é apenas uma hierarquia de
normas coercivas indiferentes a qualquer consideração mo-
A priorí, o direito não se formula nem o problema dos ral, há identidade entre o Estado e o direito. Carré de Malberg
valores (a moral, a religião, os costumes estão aí para isso) afirmará até a anterioridade do primeiro sobre o segundo.
nem o dos fins (cabe aos filósofos dissertar sobre ele). A pro- Muito poucos teóricos do direito aceitariam hoje essa
va disso é que, quando os manuais se empenham em encon- alienação do direito pelo Estado. Ademais, a estrita separação
trar-lhe uma legitimidade, é ao excesso que chegam. Segu- entre o direito e os outros sistemas de controle social repre-
rança, ordem, justiça: a multiplicidade das tarefas é tamanha senta só um momento, talvez breve, do pensamento jurídico.
que lhes esgota de antemão o instrumento. Cumprirá então Vimos que nas sociedades tradicionais esse corte é muito
resolver-se a pensar com os positivistas que o direito se reduz menos firme. Mesmo em nossa própria história, ele só se ope-
ao conjunto das leis existentes, o que dissimula o fracasso ra a partir das sequências históricas em que se afrouxam os
conceptual sob a neutralidade científica? No início do século vínculos pessoais e estatutários em proveito do individualis-
mo. Nas sociedades pós-industriais, como o sabemos23, o di-
XVII, F. Bacon, em nome da utilidade da ciência, julgava aces-
sória a busca das causas finais, por ele qualificadas de "vir-
gens estéreis": conhecê-las não serve para nada. Se os juris- 23. Cf. supra, pp. 9-23.
236 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 237

reito se torna mais flexível e mais maleável, e a coerção nor- Noutras palavras, para julgar, o magistrado se baseia, na
mativa se enfraquece em proveito de outros meios. maioria dos casos, noutra coisa que não o direito: dados téc-
Mas, sobretudo, não se pode subscrever ao positivismo nicos, psicológicos, e também a moral e o juízo de valores que
jurídico e à sua recusa de considerar os fins do direito24: aliás, ela implica. Um exemplo, prosaico mas esclarecedor. O arti-
ele nunca conseguiu a adesão do conjunto dos juristas e mos- go 13 do Decreto 61.100, de 25 de janeiro de 1961, estipula
tra-se hoje largamente desacreditado no campo da pesqui- que as majorações de mora incorridas pelo não-pagamento
sa. Pois, fundamentando o direito apenas na vontade das au- das cotizações exigíveis de Previdência Social podem ser re-
toridades habilitadas a enunciá-lo, ele redunda num verda- duzidas em caso de força maior ou de boa-fé do devedor. Um
deiro cafarnaum. Não se pode basear apenas na decisão do empregador submetido a uma retificação não paga sua dívi-
legislador a licítude ou a proibição do divórcio e do aborto, da dentro dos prazos, contando com as promessas de perso-
a equivalência ou a distinção entre filiação legítima e natural. nalidades políticas locais, que lhe haviam garantido "ajeitar
Toda sociedade possui seus valores dominantes, que a expe- o caso". Mas este não foi classificado, e a Previdência Social
riência e a História confirmam ou invalidam: nesse debate, o o processa, exigindo-lhe o pagamento das indenizações de
jurista tem seu papel, que não é somente validar a opinião mora. Para desculpar-se, o empregador afiança que contava
dos vencedores do momento. Pois a recusa do juízo de valo- com essas promessas não cumpridas, daí seu atraso de pa-
res pode ser condenável, na medida em que pode conduzir gamento. Ó tribunal admite essa argumentação. Mas a Cor-
a justificar a arbitrariedade ou, mais correntemente, a nor- te de Cassação caça o aresto, pelo motivo de que "o fato, para
malizar os comportamentos criticáveis25. O jurista não é es- um empregador, de ter recorrido a intervenções para tentar
cravo da lei.
escapar às consequências de uma retificação não pode ser
Levemos mais longe. Para os positivistas (e, a bem dizer, aceito como constitutivo de boa-fé" 27 . O texto do decreto só
para outras correntes de pensamento), a punição judiciária é visava a boa-fé, sem a definir: os juizes não fizeram, portanto,
o critério do direito: não se comparece perante a justiça por ter apelo a uma argumentação jurídica, mas qualificaram, em no-
somente desejado a mulher do vizinho, enquanto o Evan- •me do sistema de valores deles, as manobras do devedor, que
gelho já vê nisso a culpa. Portanto, imagina-se que os jul- acharam repreensíveis.
gamentos apliquem fielmente o direito existente (positivo). Isto quer dizer que o jurista não é uma máquina de apli-
O que acontece é muito diferente. Como escreve T. Ivainer, car a lei, pois em geral esta, assim como a jurisprudência, dá-
um antigo magistrado: "Em nossos pretórios e em nossos
lhe apenas algumas instruções. Cabe a ele, depois, procurar
dias, mais de dois litígios sobre três são dirimidos pelo fato, o
o que é o direito, apoiando-se em outros dados. Juntamo-
que significa que os direitos subjetivos, objetos de contesta-
nos assim ao que a antropologia nos diz do direito: que ele
ção, serão reconhecidos, denegados ou alterados pelo juiz,
não é somente certo número de discursos (normas orais ou
sem que haja recurso a disposições de direito positivo, a não
ser de um modo puramente formal."26 escritas), mas também práticas, e talvez sobretudo representa-
ções, que o positivismo dissimula, porque lhe dão medo. E há
razão para isso... Pois é toda uma mascarada que tem fim, a
24. Cf. supra, capítulo I. que consistia em apresentar o direito como um conjunto rí-
25. Nesse sentido, cf. M. Villey, PHilosophie du droit, l, Paris, Dalloz,
1986,168-179; C. Atias, Une crise de légitimité seconde, Droits, 4,1986, 22-33;
Théoríe contre arbitmire, Paris, PUF, 1987, 9-17. 27. Arrêt de censure de Ia Chambre sociale de Ia Cour de Cassation, 21 de
26. T. Ivainer, Uinterprétation desfaits en droit, Paris, LGDJ, 1988, 7-8. maio de 1974, Buli. 320° 305.
238 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 239

gido de normas preestabelecidas/ fixas, e perfeitamente claras, pede de fazer minha escolha. Portanto, a antropologia per-
conformes com os votos da razão técnica, isso para assegurar mite conhecer melhor as sociedades diferentes da sua. Mas
melhor o poder daqueles que as estabeleciam. Mas então o di- também esclarecer-lhe o funcionamento. Pois há que se de-
reito não é o que se acredita? Não, cumpre tomar uma resolu- sabituar de sua própria sociedade e de seus valores para me-
ção. Como escreve M. Villey: "Será isso reintroduzir o vago e a lhor apreciá-los ou criticá-los: distante, o olhar se toma pa-
incerteza nos estudos jurídicos? Não podemos impedir: que radoxalmente mais penetrante. Muitas coisas nos parecem
aqueles que não gostam disso vão estudar matemática."28 naturais, ao passo que apenas estamos acostumados com elas.
Longe de banir o juízo de valores, o direito e a antropo- Ora, o hábito é um conforto, não um juízo.
logia são seus vetores. O primeiro porque não passaria de Nessa fase, precisamos de exemplos que mostrem em
uma concha vazia se fosse desprovido dele; a segunda por- que a antropologia jurídica opera um desarraigamento salu-
que estabelece as condições científicas do recurso que se tar. Escolherei dois: a noção de desenvolvimento e a ques-
pode fazer a ele. Todo sistema jurídico instituído repousa em tão dos direitos do Homem. Terrenos periclitantes, pois vi-
valores dominantes, selecionados entre outros: Deus, a na- brantes de juízos de valores. Mas o percurso vale a pena ser
tureza, a classe, a raça, a democracia, o Fúhrerprinzip etc., que empreendido.
os juristas, conforme a opinião deles, sustentarão ou contes-
tarão, procurando-lhes a verdade ou a impostura. Constatá-
lo em nada implica a adesão ao relativismo cultural: Espar- O "todo económico"
ta e Atenas não são equivalentes. Simplesmente, ela insere
a eventualidade do juízo de valor num determinado nível. No decorrer do ano de 1989, Lê Monde*9 e Jeune Afrique™
O etnocentrismo proíbe compreender a lógica da sociedade publicam dossiês sobre o estado atual do Terceiro Mundo.
observada, condição de um juízo posterior. Todo pesquisador Pouco suspeito de complacência para com o Ocidente, Jeu-
que tateou um pouco o terreno sabe bem como, diante de ne Afrique dá à sua pesquisa a forma de uma classificação,
circunstâncias imprevistas, do medo, do desencorajamento distinguindo entre os países do Terceiro Mundo "os que ti-
ou do desconforto, os mais vulgares preconceitos que acre- veram sucesso, os que fracassaram". Com base em que critério?
ditara abolidos para sempre por sua ascese intelectual subi- A evolução do PNB a preço constante por habitante. Como
ram de novo com força à superfície de sua consciência... No o confirma a leitura do Lê Monde, o bisturi dessa autópsia é,
plano da pesquisa, a busca da neutralidade, da distância cer- pois, o instrumento económico: diga-me quanto você produz,
ta entre os valores do observador e os dos observados cons- dir-lhe-ei o que deve ser. Os manuais de direito não ficam
titui uma exigência metodológica primordial, mesmo que atrás: "... os especialistas concordam em considerar subde-
nunca seja atingida: se quero compreender a excisão, de- senvolvido um amplo conjunto de países marcados pela fra-
vo superar o asco que me inspira. Mas, uma vez desnuda- queza do produto nacional bruto ou da renda média por ha-
dos os mecanismos, lógicas e representações, nada me im- bitante; incapazes de assegurar a cobertura das necessidades
elementares, nas áreas de alimentação, de cuidados médicos
e de educação; prejudicados por uma estrutura económica
28. M. Villey, La science du XIXe siècle et Ia crise du droit, in: Leçons
d'histoire de Ia philosophie du droit, nova ed., Paris, Dalloz, 1962, 293. Eu mes-
mo, aliás, defendi esse direito à incerteza: cf. N. Rouland, Anthropologie jurídi- 29. Lê Monde, Dossiers et documents, 163, fev. 1989.
que, Paris, PUF, 1988, 96-8. 30. Jeune Afrique P/ws, l, jul.-ago. 1989,16-31.
240 DIREITO E VALORES 241
NOS CONFINS DO DIREITO

dualista, pela ausência de ligações entre os modos de produ- porque era sustentado pelo progresso económico do campo
ção moderno e as atividades tradicionais"31. Foi A. Sauvy que, Q pela instalação nas cidades de pólos de desenvolvimento
em 1952, inventou a expressão Terceiro Mundo, ligando-lhe a cultural, ao passo que ele é um dos flagelos da África negra
definição à do Terceiro Estado sob o Antigo Regime, separado atual. A importância do fator cronológico é igualmente de-
das ordens privilegiadas: na parte mais baixa da escala. Mas terminante noutro plano. As mentalidades não evoluem tão
qual escala? No mesmo ano, a Unesco publicava um texto de depressa quanto se fabrica um transistor: é assim. Elas tam-
Claude Lévi-Strauss. Este demonstrava que, segundo os cri- pouco mudam por decreto. Noutras palavras, uma reorgani-
térios considerados, prevaleceriam largamente sobre o Oci- zação das estruturas de produção de uma sociedade só tem
dente os esquimós e os beduínos (para a adaptação ao meio possibilidade de ser levada a cabo se a mudança cultural a
geográfico), o Oriente e o Extremo Oriente (para o domínio precede ou a acompanha, o que não se programa tão facil-
do corpo), os aborígenes australianos (para os sistemas de mente quanto muitos desses planos quinquenais que per-
parentesco); quanto à África antiga, ela rivalizaria sem difi- manecem letras mortas, e com razão! Todo projeto de desen-
culdade com este no tocante à inventividade no campo dos volvimento (e o conselho vale também para as grandes ope-
sistemas políticos32, sem contar a mitologia, na qual as socie- rações de urbanização - tais como o TGV [Trem de Grande
dades tradicionais comprovaram seus méritos. Mas as vo- Velocidade] - efetuadas no interior das nações ocidentais)
zes dos economistas encobriram a de Lévi-Strauss. Meio deveria abranger, de modo liminar, pesquisas socioantropo-
século mais tarde, para o homem comum, o Terceiro Mun- lógicas. Não são efetuadas a maioria das vezes, ou intervêm
do não é muito mais que atraso, miséria e ditaduras, com ex- posteriormente, depois do mal já feito. Esse vício não é um
ceção dos que fizeram o milagre de saber imitar o Ocidente. acaso. Deve-se a um grave defeito de nossa modernidade,
Mas você se engana de alvo, objetar-me-ão. Dizer que que, numa preocupação de eficácia (real a curto prazo), operou
uma população é subdesenvolvida não implica desprezar-lhe cortes entre o cultural, o económico, o jurídico, o religioso etc.
o passado cultural, mas equivale somente a constatar que até Essa taylorização do pensamento constitui uma regressão em
agora não conseguiu operar sua transição para a moderni- relação à visão holística das sociedades tradicionais: o ho-
dade, enquanto a Europa soube a um só tempo produzir mem não é nem um puro espírito nem um mero agente eco-
Aristóteles, Reims, industrializar-se e sua medicina realizar nómico. Tomar o económico pelo todo redunda fatalmente
os fulgurantes progressos que conhecemos. em julgar o todo pelo económico. Pouco importam as adver-
O argumento não se sustém. De um lado, as nações eu- tências dos antropólogos: se, em nossos dias, um país pro-
ropeias dispuseram de um tempo muito maior (alguns sé- duz menos do que o imposto por certas normas, é porque é
culos em vez de décadas) para efetuar sua passagem para a subdesenvolvido; se é subdesenvolvido, é porque carece das
modernidade, que foi espontânea, o que lhe permitiu evitar aptidões intelectuais e culturais para se desenvolver,
certos reveses. O crescimento urbano, por exemplo, tão di- Na realidade, uma política económica não passa da con-
ferente daquele do Terceiro Mundo, pôde ser bem sucedido sequência de uma escolha cultural, que poderia ser outra:
pode-se tanto colocar Deus ou a natureza como o PNB no
centro de suas preocupações, tirando daí vantagens ou in-
31. J. Bouveresse, Droit etpolitiques du développement et de Ia coopération, convenientes que não serão os mesmos.
Paris, PUF, 1990,11. É por isso que, antes de propor aos outros o nosso de-
32. Cf. C. Lévi-Strauss, Race et Histoire, Unesco, 1952, reed. por Denoêl,
Paris, 1987,41-50.
senvolvimento económico como a única via da redenção, agi-
242 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 243

ríamos melhor olhando-o de mais longe e vendo o que ele rias para conhecer as sociedades primitivas e modernas, a
pode significar para aqueles que queríamos converter a ele. etnologia e a sociologia? Em numerosas línguas, ao contrá-
rio, a palavra desenvolvimento não tem equivalente. Os bubis
de Guiné Equatorial utilizam um termo que significa ao mes-
O desenvolvimento, uma noção etaocentrista? mo tempo crescer e morrer. Os ruandeses usam um verbo que
significa andar, locomover-se sem indicação de uma direção
A noção de desenvolvimento parece-nos prover da evi- particular. Em uólofe (Senegal), utiliza-se uma perífrase, "a
dência. E, se ela pode comportar desagregações, mesmo em via do chefe", e certos camaronenses traduzem planejamento
nossas sociedades (cf. as manifestações anti-TGV no sul da por "o sonho do branco"... Essa é mesmo a prova do atraso
França em 1990, as contra as centrais nucleares etc.), é o desses povos, concluirão certas pessoas. Na verdade, não se
"preço do progresso". Quanto aos povos subdesenvolvidos, trata de uma imperfeição, mas de uma visão diferente do
é mais do que evidente que desejam bens de consumo e a mundo, que somos livres para apreciar ou rejeitar. Desde a
tecnologia que sabemos produzir: são os etnologistas que origem, o Ocidente considerou a sociedade um organismo
gostariam de pô-los em reservas. Ainda cumpriria poder di- caracterizado por seu crescimento. Em grego antigo, o verbo
zer-lhes o preço a pagar, e para qual resultado, sem se exone- crescer (phyo) é associado por seu radical à noção de nature-
rar da garantia para vícios ocultos da coisa vendida. Já que za (physis): conhecer a natureza de uma coisa ou de um ser é
conhecemos a demanda, tentemos especificar melhor a ofer- poder determinar-lhe o desenvolvimento (no sentido atual
ta. E constatemos para começar que nossa noção de desen- do termo). Ainda, para os gregos, esse crescimento se inte-
volvimento é alheia a muitas culturas tradicionais33. grava na concepção de um mundo cíclico. Mas o judaísmo
A palavra em primeiro lugar. O termo "développer" [de- e o cristianismo substituem a ideia de ciclo pela de um tempo
senvolver] data dos séculos XII e XHI. Tem o sentido de reve- cumulativo e linear, e o otimismo do Iluminismo lhe acres-
lar, desvelar, significação correspondente àquela que conser- centa a noção de Progresso, exaltada pelo século XIX.,. e pelo
vou em nossos dias na fotografia*. Sua acepção usual muda marxismo. Para as sociedades tradicionais, a salvação não
nos anos 1850: o desenvolvimento caracteriza a progressão
se encontra necessariamente no futuro: as lições do passa-
de fases mais simples ou inferiores para fases superiores ou
do são, antes, invocadas para assegurar o presente. Assim
mais complexas. Será um acaso se essa época é também a
os saras (Chade) estimam que o passado está diante de seus
do colonialismo e do evolucionismo unilinear, para os quais
olhos, já que o podem ver, enquanto o futuro se situa atrás.
existem povos primitivos e outros civilizados? Será uma coin-
Isso não os impede de evoluir: os mitos não servem apenas
cidência se foi entre 1839 e 1842 que A. Comte, em seu Cur-
so de filosofia positiva, afirma que duas ciências são necessá- para remontar às origens, mas também para legitimar as
inovações. Mas a mudança não é necessariamente virtude. De
outro lado, as sociedades tradicionais se mostram mais respei-
33. Cf., nesse sentido, Alternatives au développemmt, org. R. Vachon, tosas da natureza (o que evidentemente não significa que não
Centre Interculturel Monchanin, Montreal, 1988, 32-3, 44-5, 202-3; S. Latou- intervenham nela). Enquanto o Ocidente, antes de descobrir
che, Lê progrès comme signification imaginaire sociale fondatrice de 1'écono- bem tardiamente a ecologia, se atribuiu a tarefa de dominá-la
mie, Reoue Européenne dês Sciences Sociales, XXVI-82,1988, 20-22; o número da totalmente: não só desde Descartes (que via no homem o "se-
revista Ethnies consagrado ao desenvolvimento: La fíction et Ia feinte - Déve-
loppement et peuples autochnes, 13,1991. nhor e dono do universo"), mas já na narrativa da Génese:
* Em francês, développer é revelar um filme. (N. da T.) "Deus os abençoou [o homem e a mulher] e lhes disse: 'Sede
244 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 245

fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a; do- que não é nada disso36. Neles a carne ocupa um caráter cen-
minai os peixes do mar, os pássaros do céu e todos os animais tral, decerto em razão da identificação indo-européia dos bo-
que rastejam na terra'."34 Ora, aqui, ainda, essa concepção vinos com a riqueza (pecus significa o gado, pecunia, a fortuna)
exclui outras, de igual dignidade, que privilegiam a aliança e com a virilidade, enquanto outras culturas a proíbem. Ora,
entre o homem e a natureza. Os axântis pensam que o píton é consumimos raramente cavalo, e nunca cachorro, enquanto
seu ancestral: haverá razão de lhes explicar que devem cor- isso seria tecnicamente possível, e justificado de um ponto
tá-lo em pedaços para fazer porta-moedas e cintos? E, se a de vista estritamente económico. Essa abstinência é de or-
floresta é sagrada, dever-se-á explorá-la? dem cultural: a comestibilidade aqui é apreciada ern função
Desses particularismos do pensamento ocidental, aos inversa da natureza humana. Quanto mais nos é próximo o
quais cumpre acrescentar o culto da Razão, nascerá, entre animal, menos nos nutrimos dele: é bem conhecido que os
outros, a escolha cultural do todo-econômico, pela qual se cavaleiros na França não comem nunca cavalo. Esse é o to-
moldará nossa ideia do desenvolvimento, ainda mais tenta- temismo moderno. Portanto, um tipo de desenvolvimento
dora para outras culturas porque se apresenta decorada de pode muito bem ter sucesso aqui e fracassar alhures, ape-
todas as vantagens - inegáveis - da tecnologia. nas por razões culturais. O inegável sucesso do Ocidente no
Mas bastará que um conceito seja alheio a uma dada plano económico não é forçosamente exportável tal qual:
cultura para que lhe seja obrigatoriamente fatal? Aí está o não é sua realidade que se deve contestar, mas sua preten-
etnologista, para quem tudo o que vem do Ocidente é por são ao universalismo.
princípio ruim. Contudo, não se trata de um a príorí, e exis- Como apoio para essa reivindicação, costumamos en-
tem boas razões para duvidar da validade do modelo. contrar afirmada a ideia de que o desenvolvimento econó-
Acima de tudo, ele serve para fazer juízos globais efe- mico gera a liberdade e favorece a emergência e o respeito
tuando-se apenas medições parciais. Não só a economia in- dos direitos do Homem. Isso é andar depressa demais no ca-
formal escapa-lhe largamente, mas o que mede o PNB per ca- minho. É perfeitamente exato que a liberdade intelectual e
pita é sobretudo o grau de ocidentalização das culturas: como científica (cuja supressão o Islã pagou com uma considerá-
contabilizar as danças, as adoções, os nomes ocultos das coi- vel regressão), as liberdades de investir, do comércio e dos
sas que podem entrar em certos ciclos de trocas e as qualida- preços foram elementos-chave na decolagem económica
des dos totens? Mas, sobretudo, como escreve S. Latouche, do Ocidente37. Mas não constituem invariantes. A propósito
um economista não conformista: "O economismo é uma es- da África, a pesquisa já citada38 mostra que, dentre os Esta-
colha cujo significado metafísico importa ver. Ele repousa na dos que tiveram "sucesso", encontram-se tanto países onde
afirmação de que a realidade material (produção e consumo a iniciativa privada não sofre muitos entraves como outros
de produtos) existe de modo autónomo e possui um sentido onde o intervencionismo estatal é muito acentuado. Na Ásia,
em si mesma, separada do universo social das representações o crescimento económico pode combinar muito bem com re-
(prática simbólica). Esse postulado metafísico é o da economia
política, é também o do marxismo tradicional..."35 Basta consi-
derar os nossos próprios hábitos alimentares para perceber 36. Cf. a análise de M. Sahlins sobre isso, Au coeur dês sodétés, Paris,
Gallimard, 1980, 216-25.
37. Cf. N. Rosenberg e L. E. Birdzell, Comment 1'Occident s'est enrichi, Pa-
34. Gn, I, 28. ris, Fayard, 1989.
35. S. Latouche, Faut-il refuser lê développement?, Paris, PUF; 1986,166. 38. Cf. supra, n. 30.
illiíf

246 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 247

gimes políticos autoritários e com as violações dos direitos corda agora em pensar que há várias vias para o desenvol-
do Homem39. vimento.
Aliás, o desenvolvimento é por natureza criador de de-
sigualdades, pouco compatíveis com os direitos do Homem,
isso até que seja atingido o nível dos países industrializados Um desenvolvimento pluralista
com alta renda, onde elas tendem então a se reduzir40.
Enfim, se o homem ocidental não deve ter vergonha da "O Ocidente só encanta o mundo pela técnica e pelo
Razão, não pode ignorar que as outras culturas também po- bem-estar. Não é pouco, mas não é o bastante."42 Acrescen-
dem ser razoáveis, mesmo que obedeçam a lógicas diferentes. tou-se-lhes os direitos do Homem, decerto para encontrar o
"A razão é helénica, a emoção é negra", infelizmente pôde suplemento de alma que lhe falta. Mas é mais ainda ao seu
escrever Léopold S. Senghor. As sociedades tradicionais sa- domínio do mundo material que ele é identificado. Seu su-
bem tanto como as nossas recorrer à Razão: senão, teriam cesso nesse plano mostra-se paradoxalmente uma causa de
desaparecido há muito tempo, por não poderem adaptar-se sua rejeição pelos movimentos identitários, dos quais o fun-
ao seu meio ambiente natural. Mas pode acontecer que a damentalismo islâmico é uma das ilustrações mais extrema-
racionalidade assuma outras formas, diferentes daquelas de- das. Estes se enraízam em populações às quais fizeram crer
senvolvidas pela modernidade ocidental. Os potlatchs, o pa- que, à custa do abandono de uma grande parte de suas he-
rentesco com a brincadeira e o xamanismo não são menos ranças culturais, elas teriam acesso aos níveis ocidentais de
P;.:: racionais do que muitas de nossas crenças e comportamen- PNB. Em muitos casos, a recompensa não seguiu os sacrifí-
tos, sendo mesmo permitido preferir o casamento-fantasma cios, sem que com isso a responsabilidade recaia integralmente
dos quicuios41 à inseminação artificial. Mesmo os ordálios não nas nações ocidentais. Criada assim a desculturação, com-
são desprovidos de certa lógica: em frente da prova, aquele preende-se que uns fundamentalismos religiosos totalitá-
que está seguro de sua razão parte psicologicamente com rios possam instalar-se ainda mais facilmente nos postos de
1: melhores chances do que seu adversário.
Nessas condições, pode-se duvidar que o Ocidente de-
comando. Não são, como é repetido muito amiúde, uma vol-
ta ao passado: os grandes impérios árabes não eram regidos
tenha o segredo da poção mágica. Ainda mais que, em razão pelos princípios puritanos dos aiatolás, a despeito de certos
dos dados atuais da tecnologia, o desenvolvimento tal como episódios de intolerância. Pois os movimentos identitários
o entendemos é pura e simplesmente irrealizável na escala repintam o passado com as cores do tempo. Nesse sentido, o
mundial. Representando 6% da população do globo, os Es- fundamentalismo religioso é menos uma ressurgência me-
tados Unidos consomem quase 40% dos recursos não re- dieval do que uma criação involuntária da modernidade.
cuperáveis da energia terrestre... Em face desses perigos, certos autores pensam que seria
Tudo isso não é verdadeiramente novo, ainda que a cul- ainda melhor não se desenvolver totalmente43. Posição difícil
tura popular o ignore. Diversos sinais mostram que se con-

42. S. Latouche, Uoccidentalisation du monde, op. át., 113.


39. Cf. Droits de l'homme, droits dês peuples, org. A. Fenet, Paris, PDF, 43. "Eis por que não me atenho a defender a ideia de um crescimento
1982,168-71. zero; pronuncio-me resolutamente em favor de um crescimento negativo. Para
40. Cf. Tiers-mondes, org. S. Brunel, Paris, Económica, 1987, 493-6. tornar os temas caros a Illich, diria que o simples fato de manter certos modos de
41. Cf. infra, p. 247. vida em seu nível atual implica um estado de guerra permanente. As sociedades
248 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 249

de manter na hora atual, pois, motivo de felicitação ou de em antigas solidariedades ou geram outras. Em numerosas
deploração, praticamente nenhuma sociedade escapa ao cidades da África negra, o imigrante é cuidado pelos mem-
confronto com os modos de vida ocidentais... e com suas ine- bros de sua comunidade étnica; quando as zonas urbanas
gáveis vantagens concretas. Não se poderia censurar essas se estendem por terrenos ocupados pelas aldeias, os chefes
populações por esperar o bom trigo sem o joio. Aliás, a maio- consuetudinários se tornam com muita frequência os prin-
ria das organizações representativas das populações autóc- cipais promotores imobiliários dessas novas zonas. Nas fa-
tones no mundo não pretende enclausurar seus aderentes velas do Rio, nos bairros populares de Abidjan ou do Cairo,
dentro de reservas, mas obter os meios jurídicos e políticos nas favelas de Calcutá, reconstitui-se um tecido social, para
de decidir por si sós seu desenvolvimento44. Inventando uma atender às necessidades da auto-organização.
nova modernidade, que resultaria não da supressão das tra- Aliás, pode-se ir mais longe e perguntar-se se nossa
dições culturais, mas da adaptação delas. O desenvolvimen- imagem miserabilista das sociedades não ocidentais - os
to transferido (por mimetismo para com o do Ocidente) se- economistas do século XVIII, como Adam Smith, já a tinham
IpP ria substituído assim por um desenvolvimento endógeno. na cabeça - não é em parte baseada em lugares-comuns
^ Visão do espirito? A importância do "setor informal" em erróneos. Citemos alguns.
inúmeros países do Terceiro Mundo parece provar o contrá- » A miséria: embora a má nutrição persista na África e
rio. Ele agrupa atividades muito heterogéneas (do vendedor na índia (diminuiu na Ásia e na América Latina), a misé-
ambulante ao motorista de táxi, passando por diversos ar- ria - carência absoluta de alimentação que acarreta a curto
tesãos), caracterizadas por traços inversos aos da economia prazo a morte de populações inteiras - diminuiu do decor-
moderna: gestão sumária, pequeno valor do equipamento rer das últimas décadas e deve-se sobretudo à guerra e às
ausência de regulamentação. Trinta a 50% dos empregos ur- crises políticas (Etiópia)46.
t, ' banos lhe pertencem no Terceiro Mundo45. Prova do sub- • As condições sanitárias: em trinta anos, melhoraram e a
desenvolvimento desses países, responder-me-ão. Vejo nis- expectativa de vida aumentou 40%, ao passo que a mortali-
so antes a demonstração de que as populações envolvidas dade infantil caiu entre 2% (Brasil) e 4% (China)"7 (mas é
souberam adaptar-se a um modo de vida moderno (o habi- verdade que são sobretudo satisfatórias nos Novos Países
tat nas grandes metrópoles), criando redes de produção e Industrializados - NPI - do Sudeste Asiático, com a África
de distribuição em que encontramos certos princípios das negra situando-se muito atrás, como o mostra seu trágico
economias tradicionais (oralidade, relação de frente a fren- subequipamento em face da Aids).
te, pequena capitalização dos meios de produção, autono- • O crescimento demográfico: ele não é a. fonte do subde-
mia e até potlatchs). Esses circuitos económicos se apoiam senvolvimento. Mesmo elevado, como no Extremo Oriente
ou na América Latina, não impede certos países dessas zo-
nas de atingir o estatuto de NPI49.
avançadas esgotam atualmente seus recursos num ritmo vertiginoso e, por inter-
médio das multinacionais e das instituições financeiras internacionais, elas tentam
Acusações não menos falsas são dirigidas às religiões e
assegurar o controle dos recursos dos outros. Mas, desta vez, os pobres não es- às estruturas sociais tradicionais. De modo que podemos in-
tão dispostos a ceder sem combater. Essa é a minha concepção da terceira guerra
mundial." G. Rist, Lê développement, une notion occidentale, in: Altematives au
développement, op. cit. supra, n. 33. No mesmo sentido, cf. R. Vachon, ibid., 12-4. 46. Ibid., 472-80.
44. Cf. J. Burger, Reportfrom the Frontier, Londres, Zed Books, 1987. 47. Ibid., 155-5.
45. Cf. S. Brunel, op. cit., 481. 48. Ibid., 16-7.
250 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 251

dagar-nos se, sob formas diferentes, não sentimos a mesma conta com 70% de budistas. Na Tailândia, encontramos um
boa consciência que os colonizadores do século precedente: altar sagrado e florido em todos os lares, administrações pú-
também eles legitimavam sua supremacia com o atraso cul- blicas e empresas. No Japão, os "cemitérios e santuários
tural e a miséria das populações que conquistavam. de empresas" se multiplicam51: neles se reza aos deuses do
mundo dos negócios para a prosperidade da empresa; a
memória dos membros do pessoal que contribuíram para o
A catedral e as leis-fetkhes progresso da empresa é ali reverenciada.
O próprio Islã não é necessariamente um fator de atra-
Faz uns trinta anos, R. David, um dos maiores espe- so, como se crê muito facilmente no Ocidente. É verdade
cialistas de direito comparado, foi consultado pelo governo que o mapa do mundo muçulmano coincide largamente com
etíope, que lhe pediu que redigisse um anteprojeto de Códi- o do Terceiro Mundo, que o puritanismo xiita é paralisante,
go Civil. Para ele, devia-se cortar o direito tradicional. Cum- que a interdição do empréstimo a juros e a negação da mu-
pria construir "... um sistema novo [...] cuja base seria forneci- lher como ator económico se inscrevem em seu passivo. Mas,
da mais por considerações de ordem económica do que pela do século VIII ao XII, a extensão do Islã se traduziu pela do
observação de dados sociológicos: sendo o Código concebido comércio e das trocas, pela urbanização e por inegáveis pro-
como um instrumento político destinado a delinear em certas gressos intelectuais (devemos a dois autores árabes a trans-
vias o desenvolvimento do país, e não como uma coletânea
missão de muitas de nossas fontes antigas), em geral realiza-
folclórica de costumes que em geral entravariam esse desen-
dos dentro do respeito aos particularismos locais. Em nossos
volvimento [...] Esse costume [o direito tradicional] não mere-
dias, a Indonésia, maior país muçulmano do mundo, está
cia respeito; é a causa do subdesenvolvimento sob todas as
entrando no grupo dos NPI.
suas formas"49. Reconhece-se a árvore por seus frutos: o Có-
digo Civil etíope praticamente jamais foi aplicado pelas po- As famosas vacas sagradas da índia, com tanta fre-
pulações, que conservaram seus costumes. E a situação é quência citadas como exemplo das aberrações económicas
largamente similar em muitos países da África negra. às quais conduz a religião, possuem uma inegável utilidade52.
A despeito de sua imensa ciência, R. David obedecia aqui Seus excrementos servem de combustível, o que evita todos
a preconceitos. Mui amplamente compartilhados na época, os anos o abate de florestas inteiras (eles liberam o equiva-
eles ainda continuam vivos: as religiões e estruturas sociais lente térmico de 68 milhões de toneladas de madeira). Pro-
tradicionais seriam apenas os santuários de costumes em- duzem também leite, força de trabalho (atrelam-nas para
poeirados que são obstáculo ao progresso. Cortemos esse vi- lavrar a terra); suas peles são aproveitadas. No total, um
nho forte demais com algumas observações. balanço económico não desprezível e perfeitamente com-
A religião não é o sono da economia, assim como não patível com a religião.
foi o ópio do povo. De fato, como observa S. Brunel53, não é tanto a religião
Budismo e xintoísmo estão muito vivos nos NPI50. No quanto a ausência de separação entre o espiritual e o tempo-
Japão e na Coreia do Sul, mas também em Cingapura, que
51. Haute technologie et divinités, Lê Courrier International, 15 nov.
49. R. David, La refonte du Code Civil dans lês États africains, Annales 1990,19.
Africaines, l, 1962,161. 52. Cf. S. Brunel, op. cit., 115.
50. Cf. S. Brunel, op. cif., 87-93. 53. Md., 91-3.
252 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES

ral que pode frear o desenvolvimento: se a religião está no segundo uma ordem lógica, operando assim um trabalho
poder, conforme seu conteúdo, ela pode opor-se a certas dito de codificação. Mas um código é muito mais do que a
modalidades do crescimento económico (empréstimo a ju- execução de uma técnica: muito amiúde, é ao mesmo tempo
ros). Por certo, mas ainda há que decidir se um desenvol- projeto político e social56. Os códigos intervêm frequente-
vimento económico mais respeitoso do humano não seria mente quando, ao sair de um período de crise, os dirigentes
preferível, à custa da desaceleração de seu ritmo por impe- pretendem fixar as novas regras do jogo (o Código Civil de
rativos éticos (pode-se escolher esse registro, se o do religioso 1804 se esforça para estabilizar um direito convulsionado
dá medo). Quanto às estruturas sociais, não está provado pelos acontecimentos revolucionários e para entrar na mo-
que o individualismo seja a condição necessária do desen-
volvimento, mesmo que as coisas se tenham passado assim dernidade, sem absolutamente renegar tudo do passado).
na história do Ocidente54. No Japão/ o indivíduo existe pou- Politicamente, os códigos manifestam o poder do soberano
co em face da família e das instituições, e dá-se o mesmo nos e contribuem para isso tendendo a fazer que se fundam po-
NPI. O sistema de castas indianas não é exclusivo da mobi- vos de origens diversas, ou a unificar costumes diferentes no
lidade social das comunidades endogâmicas (3miljatis re- conjunto de um território: a tradição francesa é nesse pon-
partidas em toda a índia) que nele se inserem; há muito tem- to inequívoca. Os códigos também são bandeiras. É por isso que,
po que já não corresponde à divisão que exprimia no início55 realizadas as independências, a maior parte dos países da
(a maioria dos brâmanes é pobre e com maior freqtiência África negra se lançaram na redação de constituições e de có-
dedicada à agricultura do que às funções culturais). digos, auxiliada por grande número de professores de di-
Mas e o direito? Volto a ele. Era preciso este rodeio pela reito vindos das antigas metrópoles. Não só eles simboliza-
economia, que é mais familiar ao leitor, para compreender vam a existência desses jovens Estados, mas também se
como os problemas se apresentam de forma similar, porque mostravam a garantia e os instrumentos de uma unidade hi-
as mesmas crenças e preconceitos os inspiram. Pois existe potética, de tão vivos que eram os particularismos étnicos e
também um desenvolvimento jurídico, que contraiu as mesmas consuetudinários. A criação de partidos únicos era legitima-
doenças que seu irmão mais velho (o económico) e desper- da pelo mesmo cuidado de unidade, bem como a atribuição
tou as mesmas reações. de um papel subsidiário ao direito tradicional, ou mesmo sua
Ocorre que os códigos se parecem com catedrais. Em supressão. Passou uma geração, e é mister subscrever ao ba-
1990, João Paulo II consagra a basílica de Yamossoukro (Cos- lanço negativo estabelecido por E. Lê Roy, um antropólogo do
ta do Marfim). Ancorada em terras africanas, ela se apresen- direito africanista: "O Estado-nação produziu mais conflitos
ta como uma quase réplica da de São Pedro em Roma. Os có- no interior e entre os Estados (para problemas de fronteiras,
digos africanos também se parecem muito com seus irmãos por exemplo) do que permitiu assentar uma autoridade, civil
mais velhos europeus. Pois um código não é somente o que ou militar. O partido único, quando não é um fantasma ou
parece. Tecnicamente, trata-se de um conjunto coerente de um partido sem a menor representatividade, só serviu para
disposições jurídicas com caráter normativo, antes esparsas manipular as massas e enriquecer os funcionários públicos.
em diferentes textos, que foram agrupadas e classificadas Em nenhum lugar vi um partido único servir de motor ao de-

54. Md., 94-6.


56. Cf. J. Gaudemet, La codification, sés formes et sés fins, Estúdios en
SS.Ibid., 111-4.
homenajealj. Iglesias, Madri, 1988, 309-27.
254 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 255

senvolvimento, mesmo na Tanzânia. Quanto ao direito estatal, das elites do norte, muçulmanas, sobre o sul, povoado de
dito do 'desenvolvimento', concebido para construir o futuro, populações negróides56.
ele se revela um freio para o presente, de tão incompreensível Na medida em que o direito oficial é pouco aplicado,
e inadaptado que é."57 Isso leva a inverter a proposição habi- só se pode presumir a existência de vim vasto setor jurídico
tual: fome e ditaduras teriam na África causas largamente exó- informal, pois nenhuma sociedade pode viver sem o direi-
genas, oriundas, como na economia, de um tipo de desenvol- to. Entretanto deve haver um entendimento sobre o sentido
vimento transferido. Mas, se a comparação com a economia é do qualificativo "informal". Ele não significa que os direi-
justificada, não existiria também no direito um setor informal? tos não oficiais sejam desprovidos de formas. Além do fato
de que não se pode conceber o direito sem formas, estes
possuem algumas da mesma maneira que os direitos ofi-
? O setor jurídico informal ciais, assim como a economia informal tem seus circuitos e
seus mercados. Mas essas formas são diferentes daquelas
Ele é até muito mais desenvolvido: pelo menos 80% dos sistemas oficiais, reempregadas noutro sentido: a orali-
da população se afasta dos direitos oficiais (enquanto a eco- dade, por exemplo, desempenha neles um papel muito mais
nomia informal agrupa entre 30% e 50% dos empregos urba- determinante.
nos). Pois certo número de novos Estados escolheu a uni- É difícil conhecer esse setor sem que seja pelas pes-
formidade jurídica, que corresponde a uma homogeneidade quisas sociológicas, já que ele não existe legalmente: nem
étnica (é rara, mas podemos citar o caso de Ruanda ou do os textos, nem os julgamentos os levam diretamente em con-
Burundi) ou a objetivos políticos de integração: as autorida- ta. Podemos, porém, dar alguns exemplos, tirados de uma li-
des tradicionais são substituídas por funcionários públicos teratura científica que se enriquece aos poucos sob a in-
nas estruturas administrativas e judiciárias; o direito penal fluência dos antropólogos do direito59. Em Ruanda funciona
e os direitos ligados aos negócios se pautam pelos direitos o gacaca ou "justiça da relva". Todos os membros da aldeia
europeus. A identificação é em geral menos total em maté- podem participar dela, cujo objetivo é resolver os litígios re-
ria familiar, na medida em que se toca aí na intimidade da sultantes da proximidade de vida: as pessoas envolvidas são
vida e dos sentimentos. Entretanto, ela pode existir... no vizinhas ou pertencem à mesma família. A decisão deve ser
papel: a legislação marfinense de 1964 imita assim o Códi- executada pelas partes, o que se dá em 82% dos casos, sem
go Civil francês, mas muito poucas famílias o aplicam, con- o que o caso fica sem solução imediata ou é remetido a uma
tinuando a guiar-se pelas antigas tradições, mormente no jurisdição oficial. Dentre as decisões emitidas, a maioria (54%)
meio rural, majoritário. não é conforme com o direito oficial. Resultam de longas len-
Outro exemplo, o do direito sudanês. Em 1983, o ge- galengas, nas quais as intervenções da comunidade desem-
neral Numeiri, num ímpeto de islamismo, faz da Sharia o penham um grande papel. Não estatais, esses direitos e esses
único direito oficial da nação, enquanto aqui também 80% procedimentos não são a pura repetição do passado. O setor
da população obedece a direitos consuetudinários. De fa-
to, a medida corresponde a uma vontade de dominação
58. Cf. C. Fluehr-Lobban, Toward a Sudanese Law Appropriate to Ma-
jority and Minority Populations, Law and Anthwpology, 4,1989,187-98.
57. E. Lê Roy, Lês droits africains traditionnels et Ia modernité, Revue 59. Cf. notadamente as diferentes contribuições contidas em Law and
Monchanin, 65, Montreal, out.-dez. 1979, 41-2. Anthropology, 4,1989; Politique Africaine, 40,1990: Lê droit et sés pratiques.
256 NOS CONFINS DO DIREITO
DIREITO E VALORES 257
jurídico informal é, de fato, a maior parte do tempo neotra-
dicional: adapta as soluções antigas ao contexto novo. Assim, mudanças em curso ou desejadas pelo Estado e seus agen-
o gacaca é convocado e presidido pelo conselheiro comunal tes. Objetar-me-ão que, tudo bem considerado, a nobre ex-
eleito por seu setor; os tribunais oficiais intervêm no peque- pressão "eficácia simbólica da lei" também pode aplicar-se
no número de casos em que suas sentenças não foram exe- ao funcionamento da Máfia, o que não é muito favorável ao
cutadas; estas são consignadas num papel assinado pelas setor jurídico informal. Com efeito, ele contém de tudo. Mas,
partes mediante suas impressões digitais. Isto mostra que, da Máfia à vara do juiz da infância, a distância é menor do
contrariamente ao que pretendem os adeptos do desenvolvi- que parece: as pesquisas realizadas recentemente pelos an-
mento jurídico transferido, o direito tradicional é perfeitamen- tropólogos do direito mostram que, em sua prática cotidiana,
te capaz de evoluir: as populações podem continuar fiéis à sua esse magistrado joga constantemente com a referência à lei
lógica modificando ao mesmo tempo seus conteúdos. para fazer o menor aceitar melhor as medidas que ele lhe
Outro exemplo, o das relações imobiliárias nascidas nas propõe, sem que estas sejam a estrita aplicação do direito61.
zonas irrigadas recentemente em razão de projetos de de- O camponês africano e o magistrado francês contratualizam
senvolvimento. O direito oficial aplicável aqui repousa em o direito, cada qual à sua maneira.
dois princípios: a terra pertence ao Estado; as glebas irriga- Mas existem outros lugares além do setor informal em
das são apenas atribuídas aos agricultores, que não ficam que se podem ver, bem vivos, os direitos tradicionais, o mais
Ifi." seus proprietários. De fato, muito depressa aparecem práticas das vezes adaptados às necessidades do dia.
imobiliárias mestiças: finge-se obedecer ao direito oficial para Pois estes nem sempre tiveram de levar uma existência
não ter aborrecimentos com os representantes do Estado oculta. Depois das independências, foram objeto de certo re-
(funcionários técnicos e administrativos), mas obedece-se a conhecimento pelo direito oficial e viveram como vizinhos
outras regras, que levam em conta a um só tempo a lógica com o direito moderno. Por vezes, é sob forma redigida que
mercantil (a exploração deve ser rentável) e lógicas sociais, alcançaram esse reconhecimento, processo perigoso na me-
que reproduzem as desigualdades dos estatutos antigos (em dida em que tende a estratificar o direito tradicional e a fazê-
vantagem dos proprietários tradicionais das terras) ou re- lo perder assim suas faculdades de adaptação. As situações
centes (em favor de "novos ricos", tais como comerciantes resultantes dessa vizinhança são muito diversas. Em muitos
ou funcionários públicos). Essas personagens influentes che- casos, o direito consuetudinário oficial perde importância em
gam a apropriar-se de fato de uma parte considerável das su- proveito dos direitos modernos. Na África do Sul, mesmo nos
perfícies irrigadas e cultivá-las segundo os usos da exploração "Homelands", este está ausente das relações imobiliárias e
indireta (meação, arrendamento etc.). Como o diz (em 1983) dos setores económicos gerenciados segundo os métodos
um antigo chefe de aldeia do vale do rio Senegal: "há a lei ocidentais. Um direito neotradicional é, em compensação,
do Estado e a lei da aldeia. Quando é possível, preferimos aplicado pelas jurisdições não oficiais e pelos "vigilant groups"
ajeitar-nos entre nós, com a lei da aldeia"60. Nem por isso a nascidos nas zonas urbanas62.
lei do Estado é um cetro oco. Possui uma eficácia simbólica: Mas, elaborando direitos mistos, alguns Estados se em-
os atores sociais a consideram uma baliza, um indicador das penham em restabelecer a primazia de certos valores dês-

60. Citado por P. Mathieu, Usages de Ia loi et pratiques foncières dans 61. Cf. supra, pp. 141-4.
lês aménagements irrigues, Politique Africaine, op. cit., 78. 62. Cf. T. W. Bennett, The Position of Customary Law in South África,
Law and Anthropology, 4,1989, 39.
258 DIREITO E VALORES 259
NOS CONFINS DO DIREITO

prezados pelo colonizador e em dar aos direitos autóctones cestrais e deles extrair o que é compatível com a modernidade.
um lugar correspondente. Como na República dos Cama- Um novo Código da Família entrou em vigor em 1988. Com-
rões, além do mais submetida a sucessivas colonizações (ale- porta várias disposições diretamente tiradas do direito tradi-
mã, francesa e britânica) e a duas religiões (cristianismo e is- cional. Como o sobrenome resume a personalidade de cada
indivíduo, os pais têm toda a liberdade para escolher o so-
lamismo): encontramos traços de todas essas heranças em
brenome dos filhos, não se impondo a atribuição patrono -
estratos diferentes do conteúdo dos direitos e dos processos.
mínica. O regime dotal é reconhecido. O casamento deve ser
Outros Estados aproveitaram a independência para firmar
celebrado em família, segundo os ritos consuetudinários,
sua vocação islâmica (Líbia).
antes de ser registrado. A mulher casada deve ser assistida
Mas, ao lado do setor informal e dos direitos oficial- pelo marido para passar um ato jurídico. A violação dos de-
mente mistos, existe uma terceira via, ressurreição possível veres conjugais pode receber punições consuetudinárias (pa-
do direito consuetudinário. É definida por políticas jurídicas gamento do vinho ancestral). Em caso de desentendimento,
de autenticidade, par do desenvolvimento endógeno na es- os esposos podem convir em separar-se por um período de-
fera económica. Faz uns dez anos, certos Estados desistiram terminado ou não. O adultério é reprimido penalmente, mas
do mimetismo jurídico para com as legislações europeias, o adultério do marido só pode ser punido se revestido do ca-
obrigados a constatar que os códigos das independências em ráter de injúria grave, não constitui uma causa de divórcio en-
geral não eram muito mais utilizados do que os limpa-neve quanto tal. O filho "natural" não existe: quando a filiação pa-
soviéticos entregues a Conacri, Mesmo conservando o di- terna de uma criança nascida fora do casamento não pôde
reito moderno, reanimaram o direito tradicional, infundin- ser estabelecida, o tribunal designa um pai jurídico dentre
do-o em certos setores do direito. No Togo, o Código das os membros da família da mãe da criança. O pai que quer
Pessoas e da Família (1980) decide que as sucessões são re- ser reconhecido deve, aliás, obter seu reconhecimento des-
gidas pelo direito consuetudinário, exceto se os sujeitos de sa família materna da criança, traço específico da organiza-
direito renunciem a ele em favor do direito moderno. Um di- ção familiar tradicional64.
reito neotradicional nasce dessa orientação. Um estudo de
caso de sucessão realizado em Lomé63 mostra que os indi-
víduos utilizam o modelo tradicional da organização de li- Direito fantasma e maleabilidade do direito
nhagem, mas não se privam, para criar, manter ou continuar
linhagens, de técnicas jurídicas modernas tais como o testa- Sejam quais forem o sentido e o destino dessas experiên-
mento escrito, a transmissão direta dos bens aos filhos (en- cias de autenticidade (o fato de a autenticidade ter sido pre-
quanto, no direito tradicional, circulavam na linhagem antes
de chegar a eles), a matrícula e o registro das mutações etc.
Noutras palavras, direito moderno e consuetudinário estão 64. Para mais detalhes, cf. Bayona ba Meya Muna Kimvimba, L/authenticité
dans Ia reforme du droit du Zaire, in: Dynamiques etfinalités dês droits africains,
constantemente em interação.
org. G. Conac, Paris, Económica, 1980, 229-58; R. Vigneron, Mariage et divor-
No Zaire, desde 1973, o poder favorece uma política cha- ce dans lê nouveau Code Zairois de Ia Famille, Das Standesamt 42-6/7 (Frankfurt,
mada de autenticidade, consistente em voltar aos valores an- junho/julho de 1989,186-191). Mas, para certos autores, a política zairense de
autenticidade é sobretudo poeira nos olhos, e o direito tradicional não é um
modelo constante de equidade nem um bom meio de adaptação à moderni-
dade. Nesse sentido, cf. Wyatt Mac Gaffey, The Policy of National Integration
63. Cf. K. Adjamagbo, Pluralisme juridique et pratiques successorales
in Zaire, The Journal ofModemAfrican Studies, 20, l, 1982, 87-105.
homéennes, Politique Africaine, 40,1990,12-20.
260 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 261

gadaporum regime como o do marechal-presidente Mobu- setor informal, se bem que já não apareça nos códigos, assim
topode inquietar), podemos, afinal de contas, perguntar-nos como não o fazia nos números do PNB. Pois, quando o le-
se o setor informal não constitui o melhor meio para a for- gislador cria uma lei da qual ele sabe pertinentemente que
mação do direito neotradicional. Pois a penumbra comporta a aplicação necessitará de várias décadas, convida implici-
vantagens: flexibilidade e inovação podem funcionar com tamente as comunidades tradicionais a regrar por si sós sua
mais liberdade aí do que sob a luz dos projetores. O reconhe- vida jurídica, desejando que o façam na direção indicada.
cimento oficial tem mais brilho. Pode-se temer que seja em Essa concepção do direito pode parecer-nos suspeita e
geral o dos funerais: ossificado pela redação, sofrendo a con- exótica. Corresponde, porém, tanto à mentalidade tradicio-
corrência do direito moderno nas áreas em que este é vanta- nal quanto à nossa modernidade. De fato, sabemos66 que as so-
joso (a prova, a filiação indiferenciada, a condição da mulher, ciedades tradicionais têm menos confiança do que nós no
por exemplo), submetido aos desígnios do poder, ele corre o
direito: ele é mais estreitamente imbricado nos outros mo-
risco de dissolver-se nessa luz. É na obscuridade subterrânea
que se ancoram as fundações.
dos de regulação social, sua aplicação é mais flexível. Mas as
nossas práticas legislativas mais recentes nos aproximam
Os legisladores africanos parecem, aliás, redescobrir de-
pois de Portalis que, propriamente falando, não se fazem có-
dessas concepções. Entre nós, também, a lei pode inspirar-se
digos, mas que eles se fazem com o tempo. A lei mostra-se
num direito concebido mais como um modelo do que como
com frequência cada vez maior um ideal, e não o instrumen-
uma sanção, e introduzir o tempo e a incerteza em sua en-
to de transformação imediata da ordem jurídica65. Assim, em carnação. É esse o sentido de nossas leis-cadres, leis-progra-
1963, o legislador malgaxe decidiu que um filho que passa mas e leis de orientação; leis que prevêem por si sós que são
por necessidades poderia recorrer aos tribunais para obrigar promulgadas apenas por um período de teste a cujo termo
o pai e a mãe a socorrê-lo. Em compensação, é impossível poderão ser rediscutidas (lei que institui a IVG - Interrupção
qualquer recurso à justiça da parte do filho contra outros Voluntária de Gravidez); a daquelas que deixam aos contra-
membros da linhagem, que só têm para com ele uma obriga- ventores a escolha de suas punições (a partir de 1992, os auto-
ção natural: ela existe, mas não se pode executá-la na justiça. mobilistas que ultrapassam as velocidades autorizadas ou di-
Essa distinção significa que o legislador reconheceu simul- rigem em estado de embriaguez terão a escolha entre a sus-
taneamente a existência da família tradicional (a linhagem) pensão da carteira e estágios de reciclagem promovidos por
e a moderna (o casal paterno), criando condições mais favo- profissionais de auto-escola e psicólogos, destinados a sen-
ráveis para a segunda. Pode-se também recorrer às leis de sibilizá-los aos perigos do trânsito rodoviário: um belo exem-
aplicação postergada, cujo texto prevê que só adquirirão au- plo de "direito-modelo", que toca a cada um de nós). Sem
toridade por etapas. Escândalo para os juristas ocidentais que falar das legislações fiscal e aduaneira, com normas muito
vêem nisso um "direito-fantasma", essas legislações cons- repressivas, mas cuja prática deixa um amplo espaço para
tituem planos de desenvolvimento jurídico: fixam-se objeti- as transações concluídas entre os contraventores e as admi-
vos, sabendo que será preciso tempo para os atingir e que a nistrações públicas. Aqui, também, as causas se acertam o
prática poderá modificá-los. Consagra-se assim o papel do mais das vezes "no ventre da família". Mais largamente,
tudo o que certos juristas qualificam com razão em nossos

65. Cf. M. Alliot, Un droit nouveau est-il en train de naítre en Afrique?,


m: Dynamiqueetfinalités dês droits afiicains, op. cit. supra, n. 64, 467-95. 66. Cf. supra, pp. 76-85.
t
if 1

262 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 263

sistemas modernos de "flexibilidade do direito"67 se vincula a ção, a divinização do lucro e das leis do mercado. No plano
essas concepções tradicionais, mas de modo algum antiqua- sociológico, a atomização da pessoa humana em indivíduos
das. Há várias moradas na casa do direito, que cada socie- solitários, a transformação das relações sociais em bens e
dade pode utilizar como quiser, e, se existe o direito fantasma, serviços mercantis. No plano jurídico, a fascinação pelo cro-
convenhamos que ele assombra também os nossos muros. mado das leis e das constituições, a incrustação da unidade
Mas, para que esses fenómenos de pluralismo se mani- na uniformidade. Mas, para o crédito, as vacinas, os medi-
festem, ainda é preciso que as comunidades e os grupos so- camentos, os automóveis, os videocassetes e outras vanta-
ciais que os inspiram tenham conservado alguma identidade. gens ligadas à tecnologia, algumas das quais não são me-
Terra à qual são atribuídas tantas misérias, a África constitui nores, o que mascara ainda mais os efeitos corrosivos dos
ii* a esse respeito um continente privilegiado. Mas não devemos outros agentes. Compreender-se-á então que esse desen-
esquecer que, noutras partes do mundo, ocorreu ou está se volvimento só possa ser aceito por sociedades diferentes das
operando o desfolhamento jurídico. Podemos pensar nos Es- nossas pela história e cultura delas sob benefício de inven-
tados islâmicos, onde o proselitismo do direito oficial deixa tário e sob condição de sincretismo.
pouca margem aos outros sistemas. Entretanto mais ainda Quando lhes é dado tempo, as sociedades tradicionais
na América do Norte: os tribunais bem podem reconhecer conseguem de fato adaptar-se sem se renegar, interpretar
com frequência cada vez maior os direitos territoriais dos sua própria cultura segundo as necessidades dos novos tem-
ameríndios, a desculturação operada pelo Ocidente nas so- pos e notadamente do contato com a civilização ocidental. A
ciedades indígenas e esquimós é profunda, e parece-me irre- antropologia pode ajudar a execução desses mecanismos, pois
versível (o espetáculo aflitivo das zonas árticas mostra bem respeitar as tradições não consiste necessariamente em re-
a amplitude da catástrofe). Na Austrália a situação não é mui- peti-las: não somos conservadores de museu. J. M. Tjibaou es-
to melhor. Naqueles imensos espaços, o estudo das comuni- tava certo quando declarava: "A volta à tradição é um mito.
dades aborígenes hoje se aparenta mais com a História do Nenhum povo nunca a viveu. A busca de identidade, o mode-
que com a etnologia. A Ásia decerto resistiu melhor, mas ca- lo, para mim está diante de mim, nunca atrás; e eu diria que
recemos cruelmente de estudos de antropologia jurídica que nossa luta atual é poder pôr mais elementos pertencentes
nos permitiriam avaliá-la melhor. ao nosso passado, à nossa cultura, na construção do mode-
Como se vê, o jurista não é menos envolvido do que o lo de homem e de sociedade que queremos para a edifica-
economista pelos problemas do desenvolvimento, nos quais ção da sociedade. Nossa identidade está à nossa frente."
se entrechocam sistemas de valores em geral profundamen- (Lês Temps Modernes, março de 1985).
te diferentes. Pois tudo o que acabei de dizer se articula ao A necessidade ou a recusa do desenvolvimento, os ti-
redor de juízos de valores. Com efeito, o desenvolvimento pos de desenvolvimento escolhidos, o grau de pluralismo
não tem a impessoalidade das leis da termodinâmica. O que que autorizam, tudo procede portanto de juízos de valor.
nomeamos assim nada mais é que um segmento de nossa Cumpriria ser cego para não admitir que o jurista chama-
própria cultura. Repousa em aquisições da modernidade, do a redigir, aplicar ou interpretar os direitos nascidos dos
muitas delas contestáveis. No plano económico, a explora- contatos entre as culturas ocidentais e as das outras socie-
ção dos recursos naturais sem que se lhes respeite a renova- dades se confronta constantemente com esses posiciona-
mentos. O tema atual dos direitos do homem constitui um
belo exemplo disso.
67. Cf. supra, pp. 13-5.
264 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 265
Os direitos do homem: um cavalo de Tróia? De fato, deve-se convir que há antinomia entre os re-
gimes autoritários e os direitos do homem e que estes ope-
"Os direitos do homem: evidência ou problema?" Essa ram uma escolha de valores que exclui radicalmente outros.
pergunta foi formulada na França, em 1991, aos candidatos O antropólogo não fica chocado com isso, pois, embora a
ao bacharelado, que devem ter tido dificuldade em responder. antropologia tenha vocação para compreender tudo, não
Pois é difícil para um europeu, hoje, interrogar-se sobre os di- pode conciliar tudo, e os direitos do homem não têm voca-
reitos do homem, de tanto que parecem ligados ao progresso ção para receber tudo o que se quer. Mas ela pode esclarecer
moral e à democracia política. O antropólogo deve, porém, fa- escolhas. Vamos abrir o mapa mundial das liberdades70. As
zê-lo. A príorí, parece ser duro ir contra a corrente, pois o ques- zonas onde os direitos do homem são "corretamente apli-
tionamento dos direitos do homem parece condenado pela cados" são bem delimitadas: a América do Norte, a Europa,
própria identidade daqueles que a ele procedem. Leiamos, o Japão e a Austrália. Deixemos de lado o fato de que essa
por exemplo, o que diz a República Islâmica do Ira sobre isso: classificação faz pouco caso do estatuto das minorias étni-
"Ele [o governo iraniano] não reconhece outra autoridade ou cas nesses Estados (que pensam disso os índios da América
poder além daqueles do Deus Todo-Poderoso e nenhuma ou- do Norte ou os aborígenes da Austrália?), e constatemos que
tra tradição jurídica além daquela da lei islâmica. Nessas con- o mapa corresponde aos lugares de nascimento ou da mais
dições, a delegação iraniana reafirma [...] que as convenções, intensa propagação da cultura ocidental em sua versão liberal.
declarações e resoluções ou decisões de organizações inter- A maioria do mundo ainda continua, pois, terra de missão.
nacionais que são contrárias ao Islã não têm validade alguma Mas a que título?
i: na República Islâmica do Ira [...] 'A Declaração Universal dos
Direitos do Homem', que ilustra uma concepção laica da tra-
Das duas uma. Seja que essa localização é a prova ma-
nifesta de que os direitos do homem são apenas a expres-
dição judaico-cristã, não pode ser aplicada pelos muçulmanos são de uma cultura particular, soberana no campo tecnoló-
e não corresponde em absoluto ao sistema de valores reconhe- gico, mas sem superioridade moral particular. Nesse caso, o
cido pela República Islâmica do Ira; esta última não pode hesi- Islã, o hinduísmo, as outras religiões e tradições têm perfei-
tar em violar-lhe as disposições, já que tem de escolher entre tamente o direito de recusar converter-se, e o Ocidente faria
violar a lei divina do país ou as convenções laicas."68 Você tem melhor associando o princípio de autodeterminação cultural
aliados bem inoportunos, já ouço os incondicionais dos direi- àquele por ele reconhecido no nível político. Mas os partidá-
tos do homem dizer-me... E podem-se até considerar outras rios dessa tese "diferencialista" vêem seus adversários opo-
hipóteses, para não condenar sempre o Islã. O que teria acon- rem que o direito à diferença, generoso em aparência, atrai
tecido se a índia tivesse conquistado o mundo? Como escreve a suspeita. O respeito pelas diferenças foi um argumento
J. Latouche:"... a purificação das viúvas [sua cremação na pira] colonialista utilizado para legitimar uma política indígena ou
faria parte dos direitos da mulher, e matar as vacas seria pros- a administração indireta; os adversários da assimilação (prin-
crito como um crime contra o respeito pela vida"69. cipalmente na Argélia) não deixaram de usar do direito à di-
versidade; foi a justificação oficial do regime de apartheid
na África do Sul. Atualmente, aliás, o tema foi recuperado
68. Declaração do representante oficial da República Islâmica do Ira por
ocasião da 39? Sessão da Assembléia-Geral das Nações Unidas, de 7 de dezem-
bro de 1984.
70. Por exemplo, a proposta por Lê Nouvel Observatettr, col. "Dossiers",
69. S. Latouche, op. cit. (Uoccidentalisation du monde), 138-9. n? 2: La pensée d'aujourd'hui, 71.

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266 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 267

pela Nova Direita: a cada qual seus valores... e cada qual em modelo baseado numa articulação determinante entre o in:
sua terra. A esquerda e seus extremos tampouco saem inde- divíduo e uma potência exterior e onipotente não ficou con-
nes disso. Quantos abusos cometidos sob Stálin e Mão foram finado apenas ao campo religioso. Também serviu de matriz
justificados pelos particularismos do acesso à modernidade para a modernidade política. À imagem desse Deus, J. Bodin,
das pátrias do socialismo, sem contar a discriminação das "li- Hobbes e Colbert criam um Estado hierarquizado e burocrá-
berdades burguesas", com virtudes mais tarde redescobertas? tico que desenvolverá suas virtualidades até a nossa época.
Assim sendo, somos levados a examinar uma segunda Paralelamente, Hobbes, Locke e a Escola do Direito Natural
hipótese. A leitura do mapa não implica que, desde então e fazem do indivíduo o suporte único dos direitos e obrigações
para sempre, o Ocidente seja o único depositário dos direitos do sujeito de direito. Em 1756, a Encyclopédie afirma o prin-
do homem. Mas, hic et num, ele se acha seu portador. Outras cípio da unicidade da vontade, tanto para o indivíduo como
culturas podem operar seu recebimento: o Japão faz mesmo para o Estado. Assim é que em dois séculos implantou-se
parte dos Estados selecionados. E até o devem. Pois os direi- um modelo únitarista revelado, em grandes traços, por uma
tos do homem têm um alcance universal, que ultrapassa a antropologia de nossa concepção dos direitos do homem.
cultura que os gerou: em nenhum lugar a escravidão, os sa- Ora, outras tradições pensaram o problema da proteção dos
crifícios humanos, as mutilações sexuais são justificáveis. indivíduos em face do poder, quer concebendo o poder de
Existe certo número de valores universais, que eles instituem, modo diferente (Ásia, índia, Islã), quer pensando o ser hu-
perante os quais devem inclinar-se as diferentes culturas e mano como um elemento estreitamente associado ao resto
outros tribalismos. Daí resulta que a autodeterminação cultu- da criação (lógicas animistas, notadamente na África negra
ral e política é limitada pelo direito - ou mesmo pelo dever - e entre os ameríndios). E essas diferentes sínteses não cons-
de ingerência. Quando um Estado viola os direitos do ho- tituem criações menos dignas do que as operadas por nos-
mem a ponto de tornar necessária uma assistência humani- sa modernidade, como o veremos nas linhas a seguir.
tária, a comunidade internacional formada pelos Estados É por isso que a concepção únitarista dos direitos do
que a ela subscreveram pode intervir para fazê-los respeitar. homem, sejam quais forem suas inegáveis vantagens e as
Poeira nos olhos, replicam os diferencialistas. Na reali- reais liberações às quais ela pôde conduzir e conduzirá al-
dade, os direitos do homem são apenas a continuação do guns povos sujeitados, não representa decerto um horizonte
colonialismo por outros meios: isfecit qui prodest, e as gera- insuperável, nem um axioma universal: pode e deve enrique-
ções futuras nos julgarão com a mesma severidade de que cer-se com contribuições de outras culturas.
damos prova a respeito dos construtores de impérios colo- A elaboração do novo direito de ingerência deve, pois,
niais do século precedente. Os direitos do homem seriam ser feita com grande prudência a fim de que, mais tarde, ele
apenas um cavalo de Tróia, o veículo de uma lógica unitaris- não possa servir de pretexto para operações menos dignas
ta fundadora unicamente da modernidade ocidental. Esta se do que a estrita assistência humanitária. Ó trabalho de refle-
desenvolve sobretudo a contar do final da Idade Média. Com xão que a acompanhará deveria, principalmente, ser feito sob
Calvino, a Reforma introduz o indivíduo no cerne do jogo o controle de um organismo em que seria levada em conta,
político, após tê-lo alçado ao nível de um diálogo direto com de uma maneira que não fosse por votos piedosos, a dimen-
Deus. Do lado católico, a Contra-Reforma reduz o espaço do são intercultural da nova ordem internacional. Ademais, de-
culto dos santos e reconstrói uma imagem de Deus marcada ver-se-á tomar cuidado para que ele não legitime o próprio
por sua superioridade e sua exterioridade à sua criação. Esse princípio que pretende combater: o emprego da força. Pois o
268 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 269

Estado recalcitrante pode ver-se coagido pela ação militar. Aí os conservadorismos, objetar-me-ão. Proclamar a fidelida-
estaria o verdadeiro perigo para a ordem internacional, mais de para com a ordem natural pode de fato levar a caucionar
do que na violação de uma soberania de princípio dos Esta- todos os poderes, até os mais hegemónicos. É perfeitamen-
dos, frequentemente maltratada por outros meios ou insti- te exato, mas, afinal de contas, pouco frequente. As socie-
tuições (receitas infligidas pelo FMI ou pelo Banco Mundial, dades que aderem a essa visão cosmocêntrica são decerto
condenações internacionais do racismo, do apartheid, da es- reticentes à mudança. Mas, na história da humanidade, elas
cravidão, do genocídio etc.). são bem menos culpadas do que outras pelas grandes em-
O debate não é de resolução fácil, pois parece que há preitadas de servidão: o Ocidente moderno (a partir do Re-
verdade nesses argumentos... como naqueles que os refu- nascimento), baseado no individualismo, não pode dizer
tam. Sinal de que o problema por certo está mal formulado. o mesmo.
A arbitrariedade não se situa mais entre os diferencialis- Cumprirá então denegar todo valor às declarações dos
tas do que entre seus adversários. Pois é possível expres- direitos do homem? Deixemos de nos fechar em falsos di-
sar reservas sobre os direitos do homem sem pertencer ao clã lemas. Pois as declarações têm uma história. No final do
dos ditadores nem aos cleros de turbante. Tomemos alguns século XVIII, elas visam fazer os direitos do indivíduo pre-
exemplos. Pode-se legitimamente admitir que existem ou- valecerem sobre os dos grupos estatutários. Vem em segui-
tros regimes políticos além da democracia ocidental sem com da uma segunda geração, dita dos direitos sociais e econó-
isso fazer a apologia das tiranias. As sociedades não estatais micos, gerada pela luta de certos grupos (movimentos ope-
ameríndias julgam que as noções de maioria e de minoria rários a partir do século XIX) e povos (descolonização no
aritméticas não são soluções ideais: é preferível a busca do século XX). Hoje é o tempo da terceira, os direitos de soli-
ííi « ' consenso ao corte implicado por uma divisão em dois blo-
""ly-' cos, em geral paralisante. Por outro lado, elas abrangem na
dariedade que concernem a todos os povos e ao conjunto da
ííJ1"
noção de povo não só os humanos, mas praticamente todos
os seres vivos, e o homem tem para com eles direitos mas
humanidade (direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio
ambiente, à comunicação etc.). Portanto, temos de repen-
também deveres. Será criticável e tão distante de nossas sar a dialética dos direitos do homem, não mais a partir das
preocupações? Certos autores, como M. Serres, não nos pres- relações entre o indivíduo e o Estado, mas daquelas manti-
sionam para passar um "contrato" com a natureza71? das pelo conjunto dos povos que formam a humanidade72.
A própria noção de direito pode ser relativa para as cul- Atitude que possui três vantagens. Fica-se mais próximo da
turas não ocidentais, sem que se deva ipso facto qualificá-las realidade: o homem não é em nenhum lugar um indivíduo
de bárbaras. Para elas, o homem tem sobretudo responsabi- isolado, sempre pertence, em graus diversos, a um conjunto
lidades e deveres: para com seus semelhantes, mas também de grupos cuja articulação forma um povo. Acrescem-se aos
relativamente a outros seres vivos e à natureza. Por conse- direitos deveres, que lhes são o corolário obrigatório: situa-
guinte, como dizem os agnis, já não é o homem que possui do numa hierarquia (nem todas são injustas..,), o homem é
a terra, mas a terra que possui o homem. investido de responsabilidades, as quais deve levar em con-
Não se vê em que essas concepções são menos nobres ta. Devolvendo às culturas não ocidentais um direito à pa-
do que as nossas. Sim, mas também podem justificar todos
72. Cf. R. Verdier, Droits dês peuples et droits de l'homme à Ia lumière
71. Cf. infra, p. 265. de 1'anthropologie, Droit et Cultiires, 15-6,1988,188-90.
270 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 271

lavra nos discursos dos direitos do homem, compreende-se coletivos, e que a crescente distância entre países desenvol-
melhor sua mensagem, mas também a do Ocidente. vidos e em desenvolvimento cria condições diferentes para
o exercício dos direitos do homem. Em 1972, a carta cultural
da OUA (Organização da Unidade Africana) estabelece cla-
O direito de resposta das culturas não ocidentais ramente o direito de autodeterminação cultural (Todo povo
tem o direito imprescritível de organizar sua vida cultural con-
Os direitos do homem ou o caos. Dois terços da huma- soante seus ideais políticos, económicos, sociais, filosóficos e espi-
nidade são excluídos em benefício dos direitos do homem: rituais). Adotada em 1981, a Carta Africana dos Direitos do
deve-se ver nisso outras penúrias, estas jurídicas, das quais Homem e dos Povos proclama sua vinculação à Declaração
teríamos a missão de libertá-los. A tentação fica ainda mais Universal, mas muitos de seus artigos (17 ai. 3,18 ai. 2, 29
forte porque sondagens de opinião realizadas entre os jo- ai. 7) insistem nos deveres dos Estados signatários de asse-
vens no Senegal, no Congo e na Argélia mostram que entre gurar a preservação e o fortalecimento dos valores culturais
73% e 95% deles se pronunciam a favor de uma validade uni- africanos e das tradições reconhecidas pela comunidade.
versal dos direitos do homem73. No plano internacional, a Os mesmos jovens africanos objeto da sondagem citada acima
adesão igualmente é muito ampla, excetuados os Estados afirmam, 57% deles, que "os direitos do homem devem ser
islâmicos. No entanto, mesmo no plano estritamente jurídi- adaptados ao país, aos costumes, à cultura". O edifício da paz
co (para não falar das aplicações concretas), essa quase una- branca, trincado pelos tribalismos, irá logo desabar, dando lu-
nimidade logo se revela de fachada: o mundo não gira em gar à monstruosa Babel?
torno da declaração francesa de 1789, por mais prestigiosa Duas atitudes extremas devem ser proscritas aqui. A
que ela seja74. A Declaração Universal dos Direitos do Homem primeira consistiria em renunciar à noção ocidental dos di-
de 1948 era muito marcada pelas concepções ocidentais (art. reitos do homem a pretexto de sua modernidade e de seu
16, que se apoia na definição consensualista do casamento; caráter relativo, ao passo que tantos acontecimentos recen-
arts. 20-2, que visam enfraquecer os vínculos estatutários tra- tes, na Europa e alhures, mostram com evidência que ela
dicionais; art. 21, abertamente favorável à democracia direta pode ser um dos instrumentos pelos quais os povos se liber-
ou representativa). Entretanto, mais tarde, aparecerão as va- tam da servidão. A segunda seria transformá-la no padrão
riações. Em 1968, a proclamação de Teerã afirma que os di- universal de medida dos direitos do homem noutras cultu-
reitos individuais devem ser contrabalançados pelos direitos ras, classificadas como melhores ou piores alunos. Pois ou-
tras culturas inventaram outros mecanismos de proteção, di-
73. Cf. J, Quatremer, L'Afrique jauge lês droits de l'homme, Liberation, 4 ferentes dos nossos, e que nem por isso são infamantes. Nem
de maio de 1989, 28. sequer fica excluído que^possamos inspirar-nos neles. Toma-
74. No plano histórico, cf. N. Rouland, La tradition juridique africaine et rei alguns exemplos: a África negra, a Ásia, a índia e o Islã75.
Ia réception dês déclarations occidentales dês droits de 1'homme, Communica-
tíon au colloque international "La Révolution Française de 1789 et 1'Afrique", Da-
car-São Luís do Senegal, 23-29 de abril de 1989, em Actes du Colloque. A leitu-
ra dos debates a cujo termo foram redigidos os diferentes artigos da Declaração 75. Reencontrar-se-ão diversos dados que lhes concernem em R. Verdier,
Universal dos Direitos do Homem mostra como sua universalidade não ga- Problématique dês droits de l'homme dans lês droits traditionnels d'Afrique
nhou a unanimidade (cf. La Déclaration Universelle dês Droits de l'Homme, dir. noire, Droit et Cultures, 5,1983, 97-103; M. Alliot, Protection de Ia personne et
G. Johnson e J. Symonides, Paris, L'Harmattan, 1990, 62, 66-8, 75. structure sociale, Revue Juridique et Politique, Indépendance et Coopération, 1982;
V* VALORES 273
ti
272 NOS CONFINS DO DIREITO
ferem a de uma organização pluripolar da personalidade
A África: inferno dos direitos do homem? (em geral diferenciada no aspecto corporal do ser humano,
seu espírito, e a força vital que o anima). Plural, a pessoa não
Mal dividida, a África está sempre no inferno dos direi- está sozinha (a imagem do indivíduo em face do Estado é es-
tos do homem. Pelo menos se acreditamos em nossos ma- pecífica da cultura ocidental moderna): ela pertence a dife-
pas76: neles nenhum Estado pode prevalecer-se da aplicação rentes comunidades. Cada indivíduo faz parte de vários gru-
correia deles, pois a maioria se entrega a atentados memo- pos, em cujo seio, consoante seu estatuto, possui direitos e
ráveis contra a vida e a dignidade humanas. Cumprirá incri- deveres recíprocos: sobre quem dispõe de direitos de coman-
minar as culturas autóctones? Acima de tudo, a literatura do do pesa uma obrigação correlativa de generosidade. Essas
final do século XVIII e os relatos da conquista colonial não diferentes comunidades formam um conjunto politicamen-
são avaros em descrições de déspotas locais sanguinários e te hierarquizado, no qual as relações sociais são concebidas
escravagistas, e seria uma solução muito fácil para nós ver em termos de complementaridade e não de igualdade: o ar-
nisso apenas fantasias ou pretextos para a necessidade da tigo 6 da Declaração de 1789, que afirma que todos os ho-
paz branca. Examinemos com mais vagar. mens nascem e permanecem livres e iguais em direito, não
O direito das sociedades tradicionais da África negra cabe aqui. E, no entanto, daí não se pode concluir que seu
parece dar um espaço menos amplo aos direitos individuais resultado seja a arbitrariedade. Pois nem todas as comunida-
do que o direito ocidental moderno. Por isso os indivíduos des são os pilares da ordem estabelecida. Algumas agrupam
deverão curvar-se diante do poder, e abdicar perante a força "minoritários" (o mais das vezes nos planos étnico ou pro-
do costume? Se sim, nossa ideologia dos direitos do homem fissional) e podem ser produtoras de contraculturas (como
é realmente salvadora. Mas a realidade é outra. Essas socie- foi o caso do Islã e dos muçulmanos em muitas sociedades
dades escolheram, como sabemos77, em sua maior parte um no fim da época colonial). Outras resultam de agregação de
modo de organização pluralista. Nossa noção de indivíduo grupos pouco estáveis e fracamente institucionalizados (ini-
lhe é dificilmente transferível, na medida em que a ela pre- ciados, seguidores de uma religião; partidários ou clientes
de um candidato a uma função política; comerciantes), que
também podem expressar tendências diferentes dos valores
E. Lê Roy, Communautés d'Afrique noire et protection dês droits de 1'individu dominantes.
face au pouvoir, in: 1'individu face au pouvoir, Recueils de Ia Société Bodin,
XLVII, Bruxelas, Dessain et Tolra, 1988, 37-63; R. Panikkar, Lês droits de
O próprio poder político não corresponde ao esquema
rhomme, concept occidental?, in: Alternativas au développement, op. dt., 67-92; de organização unitária das instituições religiosas, políticas
M. Chiba, Legal Pluralism: Toward a General Theory through Japanese Legal Cul- e jurídicas que foi o programa de nossa modernidade ociden-
ture, Tóquio, Tokai University Press, 1989,141-157; M. Arkoun, Origines isla- tal. Não se vê, porém, em que ele seria mais "atrasado" ou
miques dês droits de l'homme, Revue dês Sciences Morales et Politiques, l, 1989, condenável. Com efeito, esse poder não é solitário, nem 'dis-
25-37; do mesmo autor, Ouvertures sur 1'Islam, Paris, Grancher, 1989,141-178
(sobre a noção da pessoa no Islã). O texto da Declaração Islâmica Universal
cricionário, sejam quais forem os regimes políticos, muito di-
dos Direitos do Homem está citada integralmente em B. Etienne, Uislamisme versos, que consideremos. Nas sociedades sem Estado, ele
radical, Paris, Hachette, 1987, 353-62. Enfim, é de notar que E. Lê Roy deu em é distribuído entre as diferentes unidades sociais e exercido
1991 no Institut International dês Droits de l'Homme (Estrasburgo) um curso pelos diferentes detentores de autoridade sobre seus respec-
intitulado: Lês fondements anthropologiques dês droits de 1'homme - Crise de
runiversalisme et post-modemité.
tivos membros (chefes de família, decanos de linhagem, che-
76. Cf. o citado por J. Quatremer, op. dt. supra, n. 73. fes de terra, figurões, chefes de confrarias etc.). As decisões
77. Cf. supra, pp. 76-82.
274 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 275

o mais das vezes são tomadas depois de um amplo enten- promoção dos direitos do homem mediante o desenvolvimen-
dimento. Nas sociedades em que o poder político se cons- to económico, foi visto com maior suspeição porque o cresci-
titui em instância especializada, ele não dá fim aos poderes mento económico costuma ser utilizado pelos Estados como
dos grupos particulares, mas assegura-lhes a coordenação. um slogan que justifica a disciplina e a repressão. O cresci-
Quanto ao poder exercido por um rei, ele sempre é limita- mento económico acarretou, ademais, novos tipos de violação
do pelo contrapeso de um conselho, reunido com base em dos direitos do homem. Por exemplo, os problemas de meio
critérios diversos. Enfim, para prevenir as situações de cri- ambiente... Esses novos tipos de problemas atingem os habi-
se - das quais esses sistemas evidentemente não escapam - tantes com maior gravidade ainda porque os direitos à infor-
podem ser utilizados mecanismos moderadores: procedi- mação, à imprensa e à ação coletiva não são assegurados."7fl
mentos de legitimação de um novo poder conquistado pela Aqui, ainda, não se deve discutir a persistência das ideias
força, intervenção dos ancestrais mediante os sonhos ou a tradicionais? Segundo os juristas japoneses, a noção dos di-
adivinhação, práticas de feitiço ou de bruxaria. Nas socieda- reitos individuais é muito pouco definida. A tendência ao
des com poder centralizado, nota-se às vezes até a existência acordo mais do que ao julgamento em direito, muito pronun-
de certas instituições (os titamfon, "pais" do soberano entre ciada em todo o continente asiático, impede que a noção de
direitos individuais adquira a importância que conquistou
os bamoun dos Camarões, ou o grande administrador do
entre nós. Os litígios são resolvidos sobretudo com relação à
reino do Baol entre os uólofes), que detêm poderes de con-
vontade das partes, não em razão de seus respectivos direi-
selho e de proteção das comunidades contra as usurpações tos, raramente explicitados, pois o recurso às leis e ao direito
possíveis do soberano. Nessas condições, compreende-se a não é um modo desejável de solucionamento dos conflitos.
ausência de procedimentos equivalentes às nossas declara- As leis indicam modelos de conduta, mas não constituem
ções de direitos, sendo estes definidos e garantidos noutro normas imperativas. No Japão de antes da era Meiji (que se
contexto e por outros meios. abre em 1868), a ideia de direitos individuais some perante
as obrigações estatutárias. Dão preferência aos giris, regras
de comportamento correspondentes aos diversos tipos de
A Ásia: a civilização sem os direitos do homem? relações sociais: há o gíri do pai e do filho, do credor e do de-
vedor, do comerciante e do cliente etc. A noção de deveres é
A Ásia desenvolvida é em geral menos acusada do que a muito firme: deve-se respeito às autoridades, às pessoas ido-
África perante o tribunal dos direitos do homem. Entretanto, sas, à ordem existente em geral. No entanto, desde a era Mei-
a equação que tendemos a formular entre desenvolvimento ji, a força das obrigações estatutárias decresceu, notadamen-
económico e direitos do homem parece amiúde invalidada: te em razão da ocidentalização dos modos de vida. Mas nem
"Apesar desse crescimento económico, as violações clássicas por isso o Japão adotou as nossas concepções do direito: o
dos direitos do homem permanecem porém inalteradas, se essencial, para os japoneses, permanece nas regras de com-
não aumentadas. As detenções sem processo, o controle da portamento (giri-nzn/o) estabelecidas pela tradição para cada
imprensa, a discriminação das minorias e dos desfavorecidos tipo de relação humana, Assim sendo, a falta de consistência
não diminuíram. Medidas legislativas e administrativas que
suprimem a defesa jurídica dos direitos civis e políticos foram 78. H. Yamane, Bilan dês approches pour Ia protection dês droits de
aplicadas em muitos países em resposta às tensões políticas e 1'homme en Asie, in: Droits de 1'homme, droits dês peuples, org. A. Fenet, Paris,
ideológicas da região. O simplismo da abordagem, que crê na PUF, 1982,169-70.
276 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 277

dos direitos individuais pode explicar-se pelo recurso ao con- as partes formam o complemento funcional do conceito de in-
ceito de flexibilidade. determinação cios direitos individuais, que permite a esse con-
Por outro lado, a noção de deveres parece mais forte do ceito japonês de indeterminação funcionar como um contexto
que a de direitos: deveres de respeito pelas autoridades, de jurídico de referência equivalente ao conceito ocidental preci-
conformidade com a ordem existente. Entretanto, a referên- samente definido de direitos individuais."79 Noutras palavras,
cia à obediência devida às autoridades (tradicionais ou mo- o direito não se impõe aos homens, eles o criam segundo suas
dernas) explica menos a falta de consistência dos direitos necessidades. Por mais desnorteado que fique com essas con-
individuais do que o conceito de flexibilidade. Os papéis so- cepções, um ocidental pode ainda assim compreender que a
ciais de cada qual são concebidos e executados diferente- formulação de direitos imprescritíveis e inalienáveis, à qual se
mente conforme as relações particulares que existem (ou dedicam tantas declarações, aqui não tem muito sentido. Essa
não) entre as partes: os respectivos "direitos" podem variar responsabilidade deixada ao homem constitui uma faca de
muito conforme a natureza dessas relações. De um modo dois gumes. De um lado, pode servir de base para todas as
geral, as relações pessoais transcendem as divisões devidas emancipações e liberações, já que não tropeça no obstáculo
aos estatutos. Esse modelo é interessante, pois se distingue das leis. Mas, de outro lado, também pode justificar todos os
ao mesmo tempo dos da África negra e do Ocidente. Em conservadorismos: o acordo pode traduzir apenas a lei do
comparação à África negra, ele atribui em nossos dias um lu- mais forte, e a recusa do conflito priva os processos de mu-
gar menos importante ao estatuto. Contudo, essa liberdade dança de um de seus principais motores. Constatemos, em
deixada aos homens para resolver suas lides está muito lon- todo caso, que os próprios ocidentais sempre viram nas cul-
ge da liberdade à ocidental, baseada nos direitos e nas de- turas asiáticas formas consumadas de civilização: isso é impli-
finições jurídicas, tendência hiperatrofiada nos Estados Uni- citamente reconhecer que a modernidade ocidental e suas
dos, às voltas com a mania do contrato e dos processos. Nada concepções do direito não são as únicas criadoras dela.
disso há na Ásia. Como poderíamos espantar-nos com isso, Pode-se dizer o mesmo da índia, que não nos fascina
nessas culturas que, há tão longos séculos, sentem um gran- menos?
de desprezo pelas leis e pelos juizes? Como escreve M. Chiba,
um antropólogo do direito japonês: "Os direitos individuais
de uma pessoa não estão plenamente definidos por cláusulas A índia: direitos do homem ou do Universo?
contratuais no direito moderno. Podem ser modificados por
diferentes tipos de relações sociais concretas que seriam não A tradição indiana (entendamos com isso as concep-
jurídicas no sentido ocidental do termo. Conforme as partes ções da realidade comuns ao hinduísmo, ao budismo e ao
t i
são empregado e empregador, proprietário de terras e arren- jainismo) tampouco constitui um meio muito propício ao re-
datário, cidadão e membro do governo; conforme estão uni- cebimento dos direitos do homem concebidos pelo Ociden-
das pela perseguição de objetivos comuns ou por estreitas re- te. Essa tradição se orienta inteira a partir da noção de darma,
lações pessoais; conforme negociam diretamente uma com a O darma é o que mantém, dá força e coesão a tudo o que
outra ou recorrem a intermediários, poder-se-á tanto coagi- existe. Podemos considerá-lo de diferentes maneiras, e ver
las como autorizá-las a levar em conta em todas essas hipóte- sua manifestação na religião (o que mantém o universo), na
ses certos fatores inerentes às suas relações pessoais que da-
rão uma definição específica do conteúdo particular de seus
direitos e deveres individuais. As relações particulares entre 79. M. Chiba, op. cif. supra, n. 75,149.
±i tí NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 279
moral (o que mantém o ser em harmonia), na lei (que uni- modernidade e revelação, do qual a questão dos direitos do
fica as relações humanas), na justiça (que os mantém juntos), homem pocle constituir uma ocasião privilegiada.
na verdade (ou coesão interna de uma coisa). A noção de di- As dificuldades são significativas. Algumas provêm de
reito subjetivo, prerrogativa usufruída pelos indivíduos sob diferenças de costumes a priori inconciliáveis: a condição
a proteção do Estado, é totalmente alheia ao darma. Ele não da mulher, por exemplo. Mas também os estatutos jurídicos
tem seu caráter imperativo: enuncia modelos de comporta- diferentes que decorrem de hierarquias teológicas. Apenas
mento que aceitam muitas flexibilizações e modificações. os religiosos têm direito à plena proteção da Lei divina, pois
Enquanto as normas imperativas podem levar os indivíduos esta não se aplica aos politeístas e aos ateus, ao passo que
a opor-se entre si, ou com a sociedade. Ademais, o darma é os povos do Livro só usufruem um estatuto inferior de pro-
orientado pela ideia de deveres: cada qual deve cumprir os tegidos (Dhimmí) do governo islâmico. Certos radicais (nos
deveres que lhe são próprios e variam segundo sua idade, quais se inspiram principalmente os assassinos do presiden-
seu sexo e sua condição social. Para o pensamento tradicio- te Sadat) exacerbam mesmo essas divisões, afirmando que
nal, não são, aliás, uns direitos que exprimem o justo ou o os infiéis são não-pessoas, com as quais os muçulmanos de-
injusto, mas o caráter dármico ou não dármico de uma coi- vem travar guerra. A acentuada preocupação de extensão da
sa ou de uma ação. Nem por isso, o darma exclui toda ideia ordem islâmica inquieta ainda mais os ocidentais, mormen-
de direitos do homem. Mas estes seriam diferentes da for- te quando estes constatam que numerosos Estados muçul-
mulação operada pelo Ocidente e se aproximariam de certos manos não aplicam os direitos do homem definidos por nos-
traços constatados na África negra ou no Extremo Oriente. sa modernidade, cuja capacidade liberadora foi várias vezes
Incluiriam assim deveres recíprocos desses direitos: o géne- atestada. Enfim,; os fundamentos atribuídos aos direitos do
ro humano não tem o "direito" de sobreviver senão na me- homem parecem profundamente divergentes. Para nós, a
dida em que cumpre o dever de manter o mundo. Esses di- formulação deles é fruto da atividade da Razão, liberta das
coerções da tradição e da religião; seu respeito é, de outro
reitos não seriam os do homem unicamente, pois este não
lado, garantido pelo Estado, que lhes valida e sanciona as
passa de um elemento do cosmos: cumpriria também defi-
declarações. Nada disso para o Islã. Para os religiosos, a lei e
nir e garantir os direitos dos animais, das criaturas supostas
os direitos do homem só podem encontrar sua fonte na re-
inanimadas e mesmo dos deuses. Enfim, o indivíduo é ape-
velação divina. A garantia deles resulta da obediência à Pa-
nas uma abstração, não existe fora das relações que o unem lavra de Deus, não do Estado. Pois, nas sociedades islâmicas,
a todos esses elementos do real. Logo, não pode ser o be- o direito escapa ao Estado muito mais do que nos nossos.
neficiário exclusivo desses direitos declarados. Este permanece submisso à Lei divina, eventualmente com-
pletada pelos mais eruditos da comunidade dos religiosos e
não por um órgão estatal. Longe de mostrar-se o instrumen-
O Islã contra os direitos do homem? to do Estado, a Lei permite aos indivíduos julgá-lo e derru-
bar os governos que não a respeitam. Num sistema desses,
Com o Islã, o diálogo parece ainda mais difícil, sobretu- uma declaração dos direitos do homem não é impossível:
do se nos ativermos - erroneamente - aos manifestos radicais. pode servir para limitar os do Estado, mas não deve diferir
Estes impressionam a opinião pública nos países ocidentais da Lei divina.
e ocultam-lhe os esforços empreendidos por outras corren- Tudo isso parece afastar-nos cada vez mais. E, no entanto,
tes de pensamento, ciosas de estabelecer um diálogo entre se, menos que estranhos, fôssemos sobretudo primos? Pois
280 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 281

o monoteísmo teceu entre nós laços de parentesco: o tempo, provocar ou acentuar a rejeição em razão do desconhecimen-
por certo, afrouxou-os, mas seria desonesto escondê-los. to dos dados históricos e culturais que ele implica com de-
Deus não é alheio aos grandes textos fundamentais de masiada frequência.
nossa própria tradição. A Magna Carta inglesa (1215) é dita Outras críticas dirigidas ao Islã perdem muito peso
proclamada em seu nome e em sua presença. A Declaração quando as submetemos à avaliação histórica. A pejoração
de Independência dos Estados Unidos (4 de julho de 1776) do estatuto'da mulher não é uma exclusividade islâmica: é
tem "por evidentes por si sós as seguintes verdades: todos os só lembrar-se de sua condição na Grécia ou em Roma (na
homens são criados iguais; são dotados pelo Criador de cer- sociedade latina, como escreve P. Veyne, ela é uma menor
tos direitos inalienáveis; dentre esses direitos encontram-se a dependente do pai que, pelo casamento, a empresta ao gen-
vida, a liberdade e a busca da felicidade". Quanto à Declaração ro com o dote); da sorte pouco invejável que lhe reservam
dos Direitos de 1789, ela começa com estes termos: "... a As- muitos costumes medievais (salvo no sul da França, mais li-
sembleia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os beral), e dos séculos profundamente antifeministas; de sua
auspícios do Ser supremo, os seguintes direitos do homem incapacidade que se generaliza a partir do Renascimento e
e do cidadão". Cláusulas de estilo? Não somente: essas fór- corresponde à sua situação na família burguesa: dona em
mulas sacralizantes trazem a marca de uma longa tradição, sua casa, mas atingida de interdição de qualquer atividade
que reporta a Deus a origem da sociedade humana e do po- exterior.
der político, ainda que a sacralidade religiosa do texto de 1789 Mesmo atualmente, sabemos bem que, atenuada e mais
faça pensar mais no grande relojoeiro de Voltaire do que no sutil, disfarçada pela palavra e desmentida pelos fatos, a de-
Deus judaico-cristão. Mais tarde, é verdade, a Revolução Fran- sigualdade entre homens e mulheres decerto desapareceu
cesa cortará esses laços umbilicais. Mas, durante cerca de um do direito oficial, mas não dos costumes. E podemos levar
século, seus oponentes e a Igreja católica condenaram os di- mais longe o paralelo. É exato que inúmeros países muçul-
reitos do homem na medida em que rompiam com a noção de manos não aplicam as declarações dos direitos às quais não
subscrevem, o que parece lógico, e mesmo aquelas que ra-
religião de Estado, sem que esses protestos estejam, aliás, to-
tificaram, o que nos dá fundamento para condená-los. Sem
talmente extintos em nossos dias (os movimentos integristas
dúvida, mas nossas grandes declarações do final do século
os adoram).
XVIII impediram as brutalidades do XIX, as terríveis guerras
Quanto ao proselitismo muçulmano, não será ele um do XX? Garantiram tão bem a existência das minorias min-
eco dos nossos? Durante muito tempo - mas já não é esse guadas ou destruídas pelos Estados modernos, ocidentais ou
o caso desde o Vaticano II - a Igreja católica afirmou que o não? Tudo isto inclina a mostrar mais modéstia na crítica,
homem não podia salvar-se fora dela. A Revolução e o Im- sem contudo renunciar a ela. E a procedê-la levando em con-
pério francês, mediante guerras travadas com o resto da Eu- ta dados sociológicos e históricos, como nos convida Mo-
ropa, investiram-se do dever sagrado de iluminar os países hammed Arkoun, autor cujos trabalhos pleiteiam em favor
submetidos, impondo-lhes as declarações e códigos da épo- de um diálogo possível entre o Islã e a modernidade ociden-
ca. Um pouco mais tarde, a conquista colonial foi justificada tal. Esse tipo de reflexão é em geral encoberto pelo estarda-
por uma preocupação vizinha de exportação de um modelo lhaço dos radicais islamitas, sufocado pelos preconceitos de
cultural julgado o melhor por aqueles que o veiculavam. E, uma opinião pública mal-informada e pela dificuldade que
em nossos dias, os adeptos dos direitos do homem dão pro- muitos antropólogos sentem de abordar o campo das reli-
va de um zelo louvável, mas cujo ardor apresenta o risco de giões reveladas. Só nos resta deplorá-lo.

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II l
fti
282 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 283

M. Arkoun lembra-nos que as ideologias clássicas dos fundidos pela mídia. Ela constitui mesmo, em minha opi-
direitos do homem não se beneficiaram no Islã e no Ocidente nião, um dos textos que o diálogo intercultural sobre a ques-
das mesmas condições de arraigamento cultural. Na América tão dos direitos do homem necessita. Um comentário de-
do Norte e na Europa do século XVIII, as declarações foram talhado não cabe aqui. Mas deve-se salientar-lhe o caráter
preparadas pela forte corrente do Iluminismo e adotadas po- polifônico. Certos traços a aproximam das concepções oci-
lítica e sociologicamente por uma burguesia que soube dotar- dentais anteriores à modernidade: afirmação da origem divi-
se dos meios necessários ao começo da aplicação das ideias na dos direitos do homem; superioridade dos direitos de
novas. Essas ideias penetraram mais tarde nas elites inte- Deus sobre os do homem. Outros, muito numerosos, estão
lectuais e políticas dos países muçulmanos, que utilizaram de acordo com as declarações ocidentais modernas: igual-
os direitos do homem como tema de combate anticolonial. dade entre todos os seres humanos, repetidas proclamações
Mas a maior parte da população permaneceu alheia aos seus das liberdades de consciência e de culto, exclusão da responsa-
fundamentos filosóficos. Conquistadas as independências, bilidade coletiva, condenação da tortura etc. Não menos im-
os novos Estados inauguraram políticas o mais das vezes vo- portantes, certos artigos retomam concepções às quais ade-
luntaristas, que utilizam a religião do mesmo modo que as ririam sem dificuldade muitas sociedades tradicionais não
outras forças sociais. Experimentando muitas vezes dificul- islamizadas: caráter relativo da Razão ("A radonalidade em
dades para legitimar seu poder mediante procedimentos de- si, sem a luz da revelação de Deus, não pode constituir um guia
mocráticos, confrontados com problemas do subdesenvol- infalível nos negócios da humanidade, nem trazer um alimen-
vimento conjugados com os da pressão demográfica, alguns to espiritual para a alma humana"); declaração de deveres
tentaram encontrar soluções que lhes permitissem a um só ("Nos termos de nossa Aliança ancestral com Deus, nossos
tempo continuar a busca das vantagens tecnológicas do Oci- deveres e obrigações têm prioridade sobre os nossos direitos");
dente; consolidar seu poder evitando sua contestação; res- definição da família como "fundamento de toda ávida social"
ponder às incertezas, sentidas pelas populações, de uma mo- e valorização da maternidade; reconhecimento da divisão
dernidade difícil, favorecendo um movimento identitário sexual do trabalho; definição da liberdade de associação em
apoiado no Islã (aplicação da Sharia, construções de mesqui- termos comunitários. Enfim, a Declaração Islâmica contém
tas, incentivo do ensino religioso etc.). Daí uma rejeição das disposições em que as sociedades da pós-modernidade po-
ideologias dos direitos do homem exportadas pelo Ocidente, deriam inspirar-se com proveito: afirmação do caráter sagrado
mas também um ímpeto criador consistente em tentativas e inviolável da vida humana; sacralidade igualmente vincula-
de formulação desses direitos à luz da tradição e da religião da ao corpo, inclusive ao da pessoa falecida; direito inalie-
islâmicas. nável à liberdade, notadamente cultural, de todo indivíduo e de
Foi assim que, em 19 de setembro de 1981, o Conselho todo povo; direito e dever de resistência à opressão, que chega
Islâmico para a Europa proclamou em Paris, nos locais da até a contestação da mais alta autoridade do Estado. Votos
Unesco, uma Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Ho- edificantes? Não somente. Pois muitos exemplos, na década
mem, cujos artigos são todos fundamentados nos versícu- precedente, mostram que uns textos que muitos considera-
los do Alcorão e nas tradições proféticas (Hadith) sunitas (os vam ilusórios serviram de pontos de apoio para movimentos
Hadith xiitas não são levados em conta). Entretanto, lendo-a, liberadores: mesmo parcialmente ineficazes, os direitos do
compreende-se logo que um texto dessa ordem se situa mui- homem nunca são inúteis. O esforço empreendido por certas
to longe dos manifestos radicais condescendentemente di- correntes do pensamento islâmico para formulá-los indica a
284 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 285

possibilidade de um diálogo entre tradição e modernidade. sim os Estados africanos - e não sem razão - de estar às vol-
Isso permite responder a unia eventual objeção. Com efeito, tas com o clientelismo e com a corrupção. O clientelismo é
poderíamos adiantar que, respeitáveis, as diferentes visões do de fato um mal que gangrena a vida política de muitas ad-
homem e do universo que expus encerraram, não obstante, ministrações públicas africanas (entretanto estará ausente de
sua carreira. nossas próprias estruturas?). Mas ele representa uma tenta-
tiva malograda de adaptação do Estado moderno ao modelo
tradicional: os grupos de clientes nada mais são do que uma
O arquipélago planetário daquelas comunidades de agregação já citadas. Mas a dis-
tância entre os dois modelos é aqui grande demais e esse en-
Pois vivemos, ao que parece, na aldeia planetária. Já não xerto apresenta um grande risco de acarretar a morte do
estamos no início da colonização, quando esses sistemas doente. Sua necessidade encontra, em todo caso, sua origem
de representações brilhavam com toda a sua especificidade, em causas exógenas à África, à qual foi imposto o Estado eu-
inalterada pela interconexão das sociedades operada pela ropeu. E poderíamos estender o raciocínio àqueles déspotas
tecnologia moderna. Desde então decorreu um tempo irre- africanos dos séculos XVIII e XIX, que em geral deveram seu
versível. O Terceiro Mundo de hoje já não vive na hora das acesso ao poder às desestruturações das sociedades gera-
sociedades tradicionais dos etnologistas. Vocês, os antropó- das pelo choque da economia de tráfico escravagista organi-
logos, que denunciam ao longo de livros os malefícios da zada em proveito das nações europeias (antes, tampouco o
aculturação o sabem aliás muito bem. Ávida em Abidjan ou Islã se privara de utilizar a África como reservatório de mão-
em Nova Délhi já não é a das aldeias onde os membros da de-obra servil. Em suma, Islã e Ocidente chegam a escores
corporação de vocês gostam de passar uma temporada. Dei- comparáveis, mas o escravagismo ocidental foi sentido mais
xem de opor ao presente um passado consumado. duramente, pois concentrado em menos séculos).
E se a aldeia planetária não passasse de uma ilusão? O Japão desperta no Ocidente mais admirações ciu-
Por certo podemos em nossos dias locomover-nos mais de- mentas do que a África. Entretanto, são decerto as culturas
pressa, transmitir informações e imagens em alguns segun- orientais, às quais ele se vincula, que se situam mais longe
dos para pontos muito distantes. Mas isto não significa de de nossas concepções dos direitos do homem. Como nele
modo algum que todas as culturas estejam prontas para vi- o individualismo é pouco valorizado, as estruturas sociais e o
brar em uníssono. Ao contrário, como reação, é mesmo a um espírito liberal pressupostos pelos códigos de inspiração oci-
aumento dos particularismos que assistimos, seja isso moti- dental que esse país adotou só são encontrados num peque-
vo de felicitação ou de deploração. Diante de nossos olhos no grau na realidade concreta. Como na África negra, esses
emerge um arquipélago planetário. códigos só regem certas relações e só valem para poucas
Abordemos primeiramente a África negra. Conhecemos pessoas, inclusive nas grandes cidades modernas. Isto terá
agora toda a importância do setor jurídico informal e da pro- impedido o Japão de adorar um regime político de tipo demo-
dução de direito neocolonial. Para a imensa maioria das po- crático e sobretudo de vencer o Ocidente no terreno económi-
pulações, ali o presente se conjuga estreitamente com o pas- co, ao passo que, após a guerra, os Estados Unidos previa que
sado, que não está acabado. Por outro lado, levar em conta ele seria um país com vocação essencialmente agrícola?
esse passado pode trazer-nos elementos indispensáveis para A índia, enfim. Sua democracia decerto não é irrepreen-
a compreensão de fenómenos muito atuais. Censuram-se as- sível, mas é a maior do mundo. Talvez fosse difícil a nossos
286 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 287

países ocidentais conseguir fazê-lo tão bem se tivessem de Então teremos de resolver-nos a rodar sem esperança em
administrar populações tão numerosas e diversas. Em qua- torno de Babel?
renta anos de independência (desde 1947), o funcionamen- As linhas precedentes incitam a concluir de maneira di-
to democrático das instituições só foi interrompido durante ferente. Pois, em nossa caminhada, pudemos constatar que
dezenove meses (1975-1977)... Quanto ao desenvolvimen- as diversas fórmulas consideradas podiam enriquecer-se de
to económico, embora restem fazer muitos progressos, ele contribuições mútuas: há mais que ganhar ao aproximá-las
é indubitável há uma década: a índia é exportadora de gé- do que ao confrontá-las. Os contatos interculturais se resol-
neros alimentícios e põe em prática tecnologias de ponta. E, vem em geral pela absorção de uma cultura por uma outra.
no entanto, é um dos países do mundo onde os usos e cren- Aqui parece possível fazer outra aposta. O pluralismo das
ças tradicionais mais persistiram. Quem conhece a índia de sociedades africanas instrui-nos sobre os malefícios da uni-
hoje e lê as narrativas de viagens escritas no início do século80 formidade; a Ásia nos precavê contra os perigos do direito
fica impressionado com a amplitude das permanências: a imperativo; a índia insiste na continuidade entre o homem
crença no darma não está em absoluto ultrapassada. e o universo. Onde estará o exotismo? Pois conhecemos cada
Na maior parte do mundo, modernidade e tradição se um desses temas, para envolvê-los com nossas próprias va-
avizinham e interagem uma com a outra. O debate sobre riações, em forma de questões e, às vezes, de soluções. A ên-
a transferência da noção ocidental dos direitos do homem fase posta sobre o fato de os indivíduos pertencerem a grupos,
é, pois, plenamente justificado. Pode, contudo, incentivar o característica das sociedades tradicionais, encontra-se nas re-
pessimismo. centes declarações de direitos, internas ou internacionais.
Em face de tradições tão diferentes das nossas, como es- Estas não visam, como em 1789, um Homem abstrato, mas
perar que um dia todos os homens possam compreender-se categorias de seres humanos81: a mulher, a criança, o estran-
í e comungar num respeito em comum pelo que para eles é o geiro, o refugiado, o apátrida, o trabalhador, o desempregado,
1 mais digno e sagrado, em sua própria natureza e na do mun- o religioso, o insubmisso por razão de consciência, o contri-
do que os rodeia? Esse ideal tem uma incontestável grande- buinte, o consumidor, as pessoas idosas etc. O face-a-face
za. Não merece de modo algum ser aviltado, e menos ainda entre o indivíduo e o Estado terminou; são grupos que o
descartado em nome do direito à diferença. Tal oposição, en- Poder tem à sua frente, com os quais negocia os direitos de-
tretanto, é largamente artificial. les. Mas aparecem outras similitudes: o pluralismo está na
Os direitos do homem tais como os concebeu determi- ordem do dia nos debates sobre a integração; o direito im-
nada cultura, seja ela ocidental, os mecanismos inventados perativo recua diante do direito-modelo; a ecologia nos lem-
por outras culturas para determinar e proteger os interesses bra que a natureza tem direitos sobre nós e nos adverte de
dos homens que elas agrupam não podem nem devem im- que o homem deve colaborar com ela se quer salvar-se. En-
por-se ao planeta inteiro. Não podemos submeter um india- fim, devemos admitir que não pode haver direitos sem de-
no ou um muçulmano à nossa Declaração dos Direitos de veres correlativos.
1789, assim como estes não podem exigir de nós que a ras- Quanto aos direitos subjetivos e às declarações que nos-
guemos para nos entregar ao Alcorão ou buscar o darma. sa história produziu, não poderíamos sacrificá-los inteiros

80. Cf., por exemplo, a excelente narrativa de G. Gozzano, Carnets in- 81. Cf., nesse sentido, J. Mourgeon, Lês droits de l'homme, Paris, PUF, col.
diens, Aries, Actes Sud, 1990, publicada pela primeira vez em 1914. "Que sais-je?", 1990, 46-8.
288 NOS CONFINS DO DIREITO
DIREITO E VALORES 289
no altar das diferenças. Por certo são a expressão apenas de
ro humano transcenderiam assim as culturas. O objetivo é
um momento histórico, e sua exportação nunca deve redun-
louvável: por que o homem não tentaria dominar a diversi-
dar na eliminação das outras concepções que citei, e que me-
recem o mesmo respeito. Mas eles previnem contra certos dade de suas histórias? Mas não é tão seguro que a realidade
perigos inerentes a essas outras visões do mundo, cujo in- lhe corresponda. Pois o que veicula exatarnente a Declaração
conveniente é poder tornar mais fáceis certos conservado - Universal: uma concepção autenticamente transcultural, que
rismos (o que é "a ordem do mundo"?), ou dar, em nome da tiraria o melhor das experiências passadas, ou noções par-
harmonia, grande liberdade de ação à injustiça. Esbocemos o ticulares a uma cultura, a nossa?
diálogo que essas linhas reclamam82. Observemos primeiro84 que essa Declaração é funda-
mentada em certo número de postulados filosóficos cujo
conteúdo não autoriza a crença na universalidade deles. Ad-
Uma pesquisa transcultural dos direitos do homem mitamos - o que já levanta muitos problemas - que existe
uma natureza humana universal. Como conhecê-la, uma
Cada qual com seus pobres. Indagados em 1990 sobre vez que não nos é explicitamente dada? Mediante a razão,
a identidade dos países aos quais prefeririam conceder uma igualmente universal, que permite entender-se sobre certo
ajuda económica, os franceses manifestaram uma centrali- número de direitos naturais identificados por ela (esse é o
zação de suas preocupações favorável ao Leste da Europa, sentido do termo "declaração": constata-se a existência de
em detrimento da América Latina e da Ásia. A Polónia pas- direitos). O homem se encontra, por outro lado, radicalmen-
sa na frente de Bangladesh83. Sinal de que, apesar dos votos te separado do resto do universo, do qual é o legislador su-
dos promotores da "aldeia planetária", os bons sentimen- premo: os outros seres vivos não estão abrangidos. O homem
tos também se modulam conforme a proximidade geográ- também é distinto da sociedade: os seres humanos visados
fica e cultural. aqui são indivíduos. Esse prémio concedido ao indivíduo na
Entretanto, todos os homens teriam direitos iguais: esse
definição do humano tem como consequência a valorização
é o princípio fundamental da Declaração Universal dos Di-
reitos do Homem. Ele rompe com uma longa tradição, a de da democracia aritmética. A sociedade é a soma de indiví-
pertencer a comunidades distintas com destinos históricos duos livres, que se associaram por contrato para alcançar ob-
diversos, em proveito da adesão a uma sociedade funda- jetivos que de outro modo seriam inatingíveis (dentre eles a
mentada numa lei impessoal e num contrato em princípio li- segurança). Sendo cada um desses indivíduos dotado de uma
vremente firmado. Esses princípios unificadores do gêne- igual importância (e com isso isento de vínculos estatutários),
as oposições de interesses são resolvidas mediante o recur-
so à noção de maioria aritmética, cujo exercício é garantido
82. A literatura jurídica e política sobre os direitos do homem é extrema- pelo Estado democrático. Todas essas afirmações nos pare-
mente farta. Ao inverso, a crítica antropológica das noções que eles abrangem
está apenas no começo. Deve-se ler sobretudo: R. Panikkar, La notion dês
cem fundamentadas porque estamos habituados com elas.
droits de 1'homme est-elle un concept occidental?, Diogène, 120,1982, 87-115, Seria melhor, já que a isso nos convidam, recorrer à razão.
e Alternativa ait dévdoppement, dir. R. Vadiou, Centre Interculturel Moncha- Vamos ver que esta abre outros horizontes, sem necessaria-
nin, Montreal, 1988. O texto - fundamental - de R. Panikkar provocou certo mente fechar as janelas abertas em nossa própria casa.
número de comentários, que serão encontrados em Interculture, Montreal, 83,
abr.-jun. 1984,49-82.
l» 83. Cf. R. Sole, Au baromètre de Ia solidarité, Lê Monde, 18 dez. 1990, 2.
84. Cf. R. Panikkar, op. cit. supra, n. 82, 91-102.
290 DIREITO E VALORES 291
NOS CONFINS DO DIREITO

Aliás, não temos de procurar muito longe para relativi- persistência das tradições nos NPI mostram que muitas socie-
zar esses postulados. Pode-se de início criticá-los ficando em dades não ocidentais talvez inventem outras modemidades. Estas
nossa própria cultura: o Ocidente nem sempre se identificou poderiam notadamente conceder um espaço maior à noção
com a modernidade liberal. Observemos, para começar, que de pessoa. Ela é mais ampla do que a de indivíduo, pois
se pode pensar, com muitos povos de religiões diferentes, pode englobar a família, os amigos, os ancestrais ou os su-
que os direitos do homem podem ter sua fonte não apenas cessores. Portanto, predispõe mais à solidariedade, e liberta
na razão, mas numa entidade superior, transcendente, tra- o indivíduo do fardo tão pesado e tão moderno da solidão.
dicionalmente denominada Deus, que os revelaria aos ho- Outros acessos à modernidade implicariam também um
uso mais largo da noção de deveres: se é solidário de seus
mens, ao mesmo tempo que seus deveres. Para os cristãos,
semelhantes e do mundo que o rodeia - como desejar o con-
todo homem tem o direito de ser amado, e o dever de amar
trário? -, o homem deve ser responsável para com eles.
ao seu próximo: aparentemente é desarrazoado, mas alta-
Quanto à democracia aritmética, silencia-se muito facilmen-
mente almejável. Por outro lado, observam os marxistas, os
te o traumatismo implicado pelo recurso ao princípio majo-
direitos do homem são os das classes dominantes. Pois co- ritário: mesmo forte, a minoria deve inclinar-se, o que pode
mo proceder a uma mera formulação jurídica deles, sem di- dividir por muito tempo a sociedade e até entravar o fun-
zer em que a ordem estabelecida deveria ser modificada cionamento das instituições. Pode-se responder fácil e erra-
para deixá-los economicamente possíveis? Ademais, acres- damente que isto é muito mais válido do que a ditadura. Ora,
centam eles, não sem razão, que o indivíduo pertence à so- muitas sociedades tradicionais escolheram uma outra via, a
ciedade e não o inverso: ela tem direitos sobre ele e ele tem do consenso (em que começamos, aliás, a nos inspirar). Não
deveres para com ela, que se devem definir. Enfim, acrescen- é perfeita, pois o consenso pode tanto mascarar a lei do mais
tam os ecologistas e certos astrofísicos, o homem não é corta- forte como expressar uma real conciliação. Mas, em suma, a
do da natureza, ela tem direitos sobre ele, que alguns filó- noção é mais "razoável" do que a da maioria aritmética. Re-
sofos reclamam contratualizar85. Essas críticas são oriundas pousa na ideia de que, quando a ordem social foi perturbada,
de nosso seio, mas nós as encontraríamos na base de con- há que se conseguir recobrar uma harmonia integral, seja por
cepções próprias de muitas sociedades não ocidentais. Vol- volta à situação inicial, seja por invenção compartilhada de
temo-nos para elas. um novo ponto de equilíbrio. Quanto ao argumento econo-
Muitos temem que os direitos do homem em sua ver- mista em favor da democracia, conhecemos seus limites: na
são comumente apresentada constituam efetivamente um França, o desenvolvimento económico nasceu em contextos
cavalo de Tróia. Pois sua transmissão postula que todos os políticos não democráticos; alhures, temos numerosos exem-
povos do mundo resolveram abandonar o modelo comuni- plos de países não democráticos que o empreenderam ou o
tarista em proveito da forma de modernidade descoberta e atingiram diante de nossos olhos; na Europa, a democracia
praticada pelo Ocidente industrializado. É verdade que certas política apareceu em condições que hoje são as do subde-
sociedades tradicionais (notadamente no Ártico) foram de- senvolvimento (desnutrição, forte mortalidade infantil, frau-
sintegradas pelo choque do encontro com o Ocidente. Mas des eleitorais etc.).
não é esse o caso de.todo lugar: as políticas de autenticidade É por isso que, embora os direitos do homem, tais como
na África negra, a evolução atual do mundo muçulmano, a os concebeu o Ocidente, nada tenham de indigno, não se
poderia sem hipocrisia torná-lo o único modelo oferecido ao
85. Cf. infra, p. 358. resto do planeta.
292 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 293

Tanto mais que o funcionamento real de nossas pró- constantemente em guerra uns contra os outros, de aldeia a
' '
prias sociedades mostra bem que eles são a nossa própria aldeia, de tribo a tribo [...] Com a paz, os indígenas conhecem
mitologia: orientam-nos o pensamento e os discursos mas a segurança de suas pessoas e de seus bens [...] Assim, as con-
não dão conta da realidade. Pois esta depende largamente dições morais da população melhorarão e ajudarão fortemen-
* das lutas de poder entre os dirigentes da economia, os he- te à realização dos fins económicos perseguidos, objetivo prin-
^ róis das mídias, as personagens carismáticas da política as cipal da colonização." Essas linhas são extraídas de um manual
autoridades religiosas... No cerne do Estado, no ponto onde de direito colonial, publicado em 192986. Podemos temer sua
no sistema francês se tomam as decisões políticas, descobre- atualidade...
se com mais frequência, atuante, a lógica plural das socie- Para evitar recair nos defeitos que elas ilustram, é pre-
dades africanas do que os artigos das nossas declarações ferível portanto buscar uma declaração universal e transcul-
Algumas centenas de altos funcionários públicos intervêm tural dos direitos do homem. Estarei por uma vez de acordo
na elaboração das grandes escolhas: membros de gabinetes com A. Finkielkraut, quando ele afirma que a descoberta de
ministeriais, do Conselho de Estado, controladores financei- uma forma de civilização superior pode operar-se à custa
ros etc. A ação deles repousa nos acordos tácitos de recipro- das tradições culturais87. Dizer que todas as sociedades de-
cidade, na busca dinâmica de um equilíbrio entre grandes vem aderir a uma visão monoteísta do universo não é mais
corpos cuja rivalidade controlada redunda na complemen- fundamentado do que convencê-las unicamente da existên-
taridade. Mas esses jogos complexos são ocultos ao comum cia das leis do mercado. E, se um dia uma declaração auten-
dos mortais. Ao simples cidadão, dizem que as garantias de ticamente universal dos direitos do homem fosse elaborada,
suas liberdades dependem das declarações de direitos, ao não ficaria nem um pouco incomodado pelo fato de ela não
passo que elas resultam, na maior parte, da estrutura diver- retomar as concepções políticas dos ianomâmis ou dos do-
sificada de nossa sociedade, que obriga a jogos de controle gons. Pois ela não pode nascer da supremacia de uma cultu-
cruzados. ra, seja ela qual for, sobre as outras. Deve, ao contrário, resul-
Por outro lado, temos tendência a querer provar a ver- tar de uma confrontação e de ajustamentos recíprocos entre
dade de nossa mitologia pela eficácia de nossa tecnologia concepções culturalmente diferentes. A antropologia não
m Nosso inegável sucesso nesse nível (por um instante deixe- contesta em absoluto a necessidade de transições para a
"r- modernidade. Recusa-se somente a confundir esta com os
mos de contar os danos causados ao meio ambiente) não
valores ocidentais, que não devemos maldizer nem sacralizar.
H constitui um salvo-conduto para todo o resto: a filosofia do
século XX mostra que inventamos a um só tempo o ônibus es- Existem outras modernidades por inventar: no ponto em
pacial e o desespero. Aos defensores incondicionais dos di- que estamos, seria ilusório crer consumado o tempo neces-
reitos do homem em sua versão ocidental, proponho meditar sário para uma formulação realmente universal dos direitos
estas poucas linhas: "O melhoramento moral dos povos ha- do homem. Chegaremos a ela procurando o que, em cada
*,,. . bitantes dos países novos é o terceiro objetivó que o Estado cultura, constitui um "equivalente homeomorfo" do conceito
colonizador deve propor-se [...] O bem-estar e o desenvol- dos direitos do homem. A expressão é de R. Panikkar. Signi-
*r fica que, se na cultura ocidental os direitos do homem, tais
vimento dos povos colonizados formam uma 'missão sagrada'
J da civilização que a Sociedade das Nações toma sua. O Esta-
*• do colonizador em geral encontra diante dele populações re- 86. G. François e H. Mariol, Législation coloniais, Paris, Larose, 1929,17.
| tardadas, atrasadas [...] Esses povos, em muitas regiões, estão
"S 87. A. Finkielkraut, op. dt, 128-30.

»
294 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 295

como os exprimem suas grandes declarações, constituem a mundo. E podemos temer que certas concepções do desen-
base do exercício e do respeito da dignidade humana, deve- volvimento participem dessa perversão. Portanto, não pode-
se procurar como outra cultura satisfaz a necessidade equi- mos definir os direitos do homem sem os equilibrar em rela-
valente. Pois toda cultura tem sua concepção da dignidade ção aos da natureza.
humana: dei vários exemplos88, que ilustram maneiras dife- Estes dois exemplos mostram que nossa concepção dos
rentes, mas nem sempre contraditórias, de formulá-la. direitos do homem não deve impor-se em detrimento das ex-
Assim, a noção de pessoa parece-me enriquecer a de periências das outras culturas, que podem e devem enrique-
indivíduo. Nem por isso rejeito esta última. Pois a ficção - o cê-la. Como escreve R. Parúkkar: "Se é verdade que numerosas
direito está repleto delas, com toda a razão - que declara que culturas tradicionais têm Deus como centro, e que algumas
todo ser humano, pelo mero fato de ter nascido, possui di- outras são fundamentalmente cosmocêntricas, a cultura que
reitos iguais aos de qualquer outro, pode ser salvadora: per- apareceu com a noção dos direitos do homem é nitidamente
mite-lhe tentar escapar do lugar que ocupa na sociedade, ou antropocêntrica. Talvez devamos agora voltar-nos para uma
mesmo de sua própria cultura, se eles não lhe convêm. visão cosmo-teo-ândrica da realidade, na qual o divino, o
Outro terreno em que as comparações podem ser es- humano e o cósmico fiquem integrados em um todo, o qual
clarecedoras: o das relações do homem com a natureza89. tem maior ou menor harmonia conforme exerçamos mais
Embora os antropólogos insistam em denunciar os escopos ou menos completamente os nossos verdadeiros 'direitos
prometéicos dos ocidentais, ainda assim isso não significa humanos'."90
que toda a experiência ocidental na matéria deve ser rejei- Para consegui-lo, teremos de navegar nos estreitos do
tada, sendo as sociedades tradicionais as únicas detentoras arquipélago planetário. E fazer escala em portos pouco visi-
da verdade, numa sabedoria que não é mais infinita do que tados: aqueles onde vivem as minorias. É verdade que se fala
nossa desrazão. Essas sociedades costumam pensar que o muito delas há pouco, por tê-las por muito tempo ignorado,
homem é um elemento da ordem natural, com a qual deve e facilmente condenado em nome do desenvolvimento e da
,
ficar em harmonia, perturbando-a o menos possível. Ela tem lógica política dos Estados, que tiveram muita dificuldade em
. '
seus méritos.,, e seus inconvenientes: tentar compreender a tolerá-las, quando não viam nelas um insuportável perigo
: natureza e utilizar mais ativamente suas potencialidades para a unidade deles.
não tem em si nada de infamante. A tendência do Ociden- E, no entanto, a reflexão sobre as minorias está ligada
te é considerar a ordem natural imperfeita, inacabada: o ser àquela sobre os direitos do homem e sobre o desenvolvi-
humano deve desempenhar um papel preponderante na mento. De um lado, a ascensão dos particularismos de que
busca de sua maior perfeição, é o co-criador do mundo. Isso elas podem ser os veículos é em geral uma forma de reação
r B

não é, tampouco, condenável. Em compensação, são criticá- a um desenvolvimento de que estão excluídas, ou que as faz
veis os excessos cometidos nessas duas direções. A visão vítimas dele (inúmeros povos autóctones se tornaram pro-
cosmocêntrica pode levar ao imobilismo e à injustiça; a vi- letários nos Estados industrializados ou em vias de sê-lo).
:.'• são antropocêntrica, à destruição tanto do homem quanto do De outro lado, em geral são as tradições culturais dessas mi-
norias que podem formar um contraponto útil para as re-
presentações do homem e do universo que inspiram nossas
88. Cf. supra, pp. 275-86.
89. Cf., nesse sentido, R. Vachon, Introduction, in: Altematives au dévelap-
pement,op.cit.,2-l 90. R. Panikkar, op. dl, n. 82,112.
296 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 297

concepções dos direitos do homem. Enfim, fica claro que es- questão de direitos do homem por muito tempo, enquanto
sas concepções são insuficientes para proteger essas comu- mal se desenham as linhas de uma nova ordem internacio-
nidades: muitos povos autóctones desaparecem diante de nal, ainda mais fundamentada no direito91. E se fosse o con-
nossos olhos, enquanto sua proteção, há que convir, parece trário? Se, tendo chegado amanhã a um esgotamento moral
tão digna de interesse quanto a das baleias ou dos papa- em cuja comparação o dos campos petrolíferos seria apenas
gaios-do-mar. Refietir sobre os direitos das minorias é, por- um pecadilho, voltássemo-nos para essas culturas hoje ne-
tanto, não só elaborar garantias às quais elas têm direito, gadas e ridicularizadas, acusadas de todos os males do "tri-
mas também construir uma teoria intercultural dos direitos balismo"? Ninguém o pode excluir, e nosso dever consiste,
do Homem. pois, em tomar medidas conservatórias a respeito delas. An-
tes de dizer em que o direito pode contribuir para isso, ava-
liemos primeiro o que está em jogo.
O século das minorias: aberturas Tendo a atenção despertada pelas mídias, os franceses
se comovem com a sorte das minorias étnicas maltratadas
Menos de dez anos nos separam: o estatuto das mino- pelos Estados que as englobam. Deixando de falar dos curdos,
rias, como decerto o renascimento da indagação religiosa, massacrados depois da guerra do Golfo, o infortúnio dos
marcarão profundamente o século XXI. Na França, quase ianomâmis aparece - com toda a razão - na primeira página
não o sabíamos, pois as reivindicações das minorias, autócto- dos jornais, Danielle Mitterrand recebe o líder deles. Desde
nes ou não, referiam-se a países para nós longínquos. Mas 1987, a situação deles deteriorou-se bruscamente. Compa-
o novo papel desempenhado pelas minorias nacionais no nhias mineradoras e prospectoras perceberam que a princi-
Leste da Europa liberto de seus regimes comunistas nos obri- pal reserva ianomâmi continha ouro, urânio e estanho. As
ga a tomar consciência delas, ao mesmo tempo que aviva os ocupações ilegais de terras se multiplicaram, e os vírus con-
temores. tra os quais essas populações não estavam protegidas as di-
Essas minorias estão em busca de direitos que as decla- zimaram. Os militares não se mexem, na expectativa de que
rações parecem impotentes para proteger eficazmente. Duas esse movimento redundará no povoamento dessas zonas
interpretações são possíveis. Ou - e esse é o argumento o por uma população mais sedentária do que os ianomâmis, que
mais das vezes avançado - essas minorias usufruiriam um não ligam para as fronteiras entre os Estados. O desprezo
estatuto aceitável se essas declarações fossem plenamente pelas fronteiras: não será esse o pecado de que acusam tam-
aplicadas: os direitos do Homem, para todos os homens. bém os tuaregues, metralhados na Nigéria e no Mali? É mui-
Ou - essa é a tese de muitos antropólogos - a proclamação to mais fácil ter pena desses povos porque representam fi-
guras míticas (o tuaregue, "senhor do deserto"... mas também
de direitos individuais não basta diante dos meios de ação de
escravagista, costuma-se esquecer de acrescentar), e porque
que dispõem os Estados modernos. Cumpre proceder a de-
sua defesa não atrapalha ninguém, já que estão longe de nós,
clarações de direitos coletivos: os direitos dos povos são o
o que permite experimentar sem ónus nobres sentimentos.
complemento obrigatório dos direitos do homem.
Mas as coisas mudam quando se desenrolam no interior de
Atenção! Adverte Cassandra. Esse é o género de ideia
generosa que resulta nas piores catástrofes. Se se reconhe-
cem direitos coletivos às mais microscópicas etnias, todo 91. Escrevi essas linhas em março de 1991, algumas semanas somente
o sistema internacional vai voar aos pedaços, e já não será após o fim da guerra do Golfo...
••w.
298 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 299

nossas fronteiras: movimentos regionalistas, atenuados faz A avalancha das minorias: alguns pontos de referência
uns vinte anos, mas sobretudo um problema corso. Em 1990,
o artigo l do projeto de lei referente ao estatuto da coletivi- É impossível evitar alguns conceitos, tantas são as mi-
dade territorial da Córsega enuncia que "A República Fran- norias: étnicas, nacionais, religiosas, autóctones etc. Alguns
cesa garante à comunidade histórica cultural viva constituída números impressionam pela desproporção. O número total
pelo povo corso, componente do povo francês, os direitos à das nações, povos ou grupos étnicos se avizinharia de 5 mil
preservação de sua identidade cultural e à defesa de seus in- (alguns dizem 20 mil), enquanto o mundo conta só com cer-
teresses económicos e sociais específicos". Portanto, o texto ca de 160 Estados independentes94: compreende-se a ampli-
emprega o termo comunidade, hoje execrado pela intelligent- tude do problema. Tanto mais que as modalidades históricas
sia; qualifica os corsos de povo. E, aqui, nenhum mito positivo: de constituição das minorias são extremamente diversas95,
preguiça e agressividade são, para muitos franceses, traços daí uma multiplicação de estatutos particulares. Algumas
frequentes na população da ilha. O projeto provoca a tem- ficaram em seus próprios territórios (índios e esquimós da
pestade. Seu sopro desloca as divisões políticas habituais: América do Norte); outras eram estranhas à origem do país
partidários e adversários do texto se opõem tanto a direita em questão, ou por terem sido deportadas para ele (negros
quanto à esquerda. O direito já não oferece certezas, e os pro- da América), ou por terem chegado como refugiadas (po-
fessores se contradizem. Fará L. Favoreu, a adoção do texto pulações birmanesas que passaram para á Tailândia) ou imi-
exige uma reforma constitucional, pois é um atentado contra grantes (trabalhadores estrangeiros dos países industriali-
a unidade da República. A. Demichel vê em toda essa agitação zados). Os critérios territoriais são igualmente múltiplos.
apenas uma "falsa tempestade para um verdadeiro povo"92: Certas minorias se identificam ao território que ocupam e
o Conselho Constitucional decidirá de outra maneira em maio apenas são minoritárias porque suas fronteiras não coin-
de 1991. cidem com as dos Estados existentes (curdos, saaráuis): elas
Cada um com seus índios. são minorias nacionais, não Estados. Noutros casos, podem
Mas o problema é mundial. O relatório 1990 da Anistia ser minoritárias em dado território estatal, mas ligadas a um
Internacional enfatiza a violação dos direitos civis e políticos Estado-nação vizinho onde pertencem à maioria: majoritá-
de comunidades inteiras93 pelos Estados. Na América, 1992 rios na província do Kosovo, os albaneses constituem uma
será marcado por comemorações contraditórias, que cele- minoria do Estado iugoslavo, enquanto formam o Estado-
bram a descoberta do Novo Mundo pelos europeus, mas nação da Albânia. A referência territorial se complica ainda
também denunciam o etnocídio de suas populações. Em 18 mais quando se percebe que ela pode dividir-se. Os judeus
de dezembro de 1990, a Assembléia-Geral das Nações Uni- da diáspora mantêm relações tanto com o Estado de Israel
das decide que 1993 será o Ano Internacional das Popula- quanto com a antiga terra dos hebreus. Enfim, ao inverso,
ções Autóctones. Muitas aberturas ao século das mino- umas minorias muito dispersadas, como os ciganos, não têm
rias. Podemos apostar que haverá outras. Mas o que é uma base territorial em comum.
minoria?
94. Cf. R. Stavenhagen, Droits de l'homme et droits dês peuples: Ia
question dês minorités, Interculture, Montreal, XXII-2,1989, 3.
92. Cf. L. Favoreu, H faut réformerla Constiturion, Lê Monde, 22 nov. 1990 95. Cf. J.-P. Razon, sub. v° "Ethnies minoritaires", m: Dictionnaire de
2; A. Demichel, Fausse tempête pour un vrai peuple, Md. 1'ethnologíe et de 1'anthropologie, org. P. Bonte e M. Izard, Paris, PUF, 1991,
93. Amnestry Intemational - Rapport 90, Paris, 1990, 6-10. 244-7.
300 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 301
Em sua nudez, o critério aritmético discriminará melhor ferem a um ideal tradicional, marcado pela hesitação à mu-
todas essas situações? As minorias seriam pura e simples- dança. Mas uma minoria étnica, sob a pressão da História,
i* mente populações menos numerosas do que aquelas que as pode modificar seu projeto e entrar na modernidade: ficará
englobam. Elemento de definição válido em muitos casos, então nacional, permanecendo minoritária ou não, tornan-
essa referência é insuficiente em outros. Na Bolívia, como do-se estatal ou não, ao sabor das circunstâncias97,
em muitos outros países da América do Sul, 90% da popula- Mas qualquer que seja o projeto político que a embase,
ção é indígena ou mestiça... enquanto o tipo "ideal" veicula- essa consciência coletiva pode ter maior ou menor intensi-
do pelas mídias é o do branco com cabelos louros96; na Áfri- dade. Um dos meios de medi-la e de determinar-lhe o nas-
ca do Sul, os negros são majoritários, e, contudo, submetidos cimento para a vida jurídica é verificar se a referida minoria
a uma relação político-jurídica de minoria.
é suficientemente institucionalizada. Pois, sob pena de desa-
A história, o território, o número não podem portanto, parecimento, cumpre pôr limites à extensão da noção de mi-
por si sós, definir minorias. Para evitar ser submergido por norias: as reivindicações das mulheres, dos velhos, dos jo-
sua avalancha, deve-se recorrer a critérios mais abstratos, de
ordem política e jurídica. vens, dos homossexuais serão a expressão de lutas minoritá-
rias? Serão, se elas se formalizam e transitam por instituições
Não existem minorias em si: elas só se definem estrutural- de referência comuns ao conjunto da categoria envolvida tais
mente. São grupos postos em situação minoritária pelas relações como associações, cartas, estatutos, cadernos de reivindica-
de força, e de direito, que os submetem a outros grupos no seio de
ções etc. Logo, é preciso uma organização, práticas, repre-
uma sociedade global cujos interesses são assumidos por um Es-
sentações nas quais se reconheça explicitamente a maior
tado, que opera a discriminação seja por meio de estatutos jurídi-
parte da categoria visada. Senão, trata-se de entidades sociais
cos desiguais (políticas de apartheid), seja graças aos princípios
(cuja luta pode ser, por outro lado, perfeitamente legítima),
de igualdade cívica (privando de direitos específicos coletividades
mas não minorias. Argúcias de jurista? É certo que não. Pois,
cuja situação social e económica é particular, a igualdade cívica
pode criar ou perpetuar desigualdades de fato). Malgrado seu assim definidas, as minorias constituem ordens jurídicas, o
que lhes aumenta a legitimidade e fundamenta sobretudo
comprimento, essa definição reclama alguns comentários.
suas pretensões em ver reconhecidos seus direitos subjetivos
Notemos a princípio que, se as minorias são grupos, sua
existência implica necessariamente que tenham consciência perante a sociedade dominante e os Estados aos quais per-
de formar um, condição cuja realização pode variar no curso tencem. Sem sujeitos de direito, não há direitos subjetivos...
da História: os bretões foram uma minoria há vinte anos, será Mas como é possível pretender que essas minorias for-
que o serão ainda, e o que dizer dos picardes? E a conclusão mem ordens jurídicas, quando o direito positivo dos Estados
sobre os corsos ou os bascos será diferente. Em matéria de envolvidos, com muita frequência, não as reconhece? Graças
identidade, o sinais sem as práticas vão parar no folclore... às teorias do pluralismo jurídico, que assinalamos"8; para ter
e nos museus. Acrescentemos que, mesmo quando existe, acesso à existência jurídica, é preciso e basta que um grupo
essa consciência coletiva pode mudar de natureza. Concor- social preencha certas condições, com ou sem o reconheci-
da-se em considerar que as comunidades ditas étnicas se re-
97. Cf., nesse sentido, A. Fenet, La question dês minorités dans 1'ordre
du droit, m: Lês minorités à Vage de 1'État-nation, org. G. Chaliand, Paris, Fayard,
96. Cf. I. Ramonet, La solitude dês "invisibles", Lê Monde Diplomatique, 1985, 45.
jun. 1989,17.
98. Cf. supra, pp. 185-8.
302 NOS CONFINS DO DIREITO
DIREITO E VALORES 303

mento de sua existência pelo direito estatal. É esse o caso das


dos de qualquer sujeição corporativa ou comunitária e cons-
minorias tais como definidas aqui.
tituídos cidadãos da nação, livres e iguais em direitos. O que
. Mesmo separadas assim, as minorias têm tamanha di-
- foi confirmado ainda recentemente pelo Conselho Constitu-
versidade que não se poderia, em alguns parágrafos, tratar cional, guardião do princípio de igualdade de tratamento100.
de todas. Como escolher? O caso da França é interessante, de
Este zela, aliás, pela indivisibilidade da República. Em
tanto que nossa tradição nacional é marcada de hostilida-
maio de 1991, declara inconstitucional o artigo primeiro do
de ao fato minoritário.
projeto de estatuto da Córsega. Não se pode reconhecer a
existência de um povo corso, pois só há um único povo fran-
cês, composto de cidadãos que não se devem distinguir pela
A República contra as minorias: dos mitos às realidades
origem, nem pela raça, nem pela religião. Rigoroso quanto
aos princípios, o Conselho Constitucional é mais maleável
"Sem negar as diferenças, sabendo levá-las em conta sem
no que se refere à aplicação deles. Avaliza a parte mais im-
)' : '' as exaltar, é nas semelhanças e nas convergências que uma
r portante do texto, que dota a ilha de instituições muito dife-
!
política de integração dá ênfase, a fim de, na igualdade dos
rentes daquelas das regiões do continente, o que nada tem
direitos e das obrigações, tomar solidários os diferentes com-
de jacobino: os corsos se tornam âe iure mais próximos dos
ponentes étnicos e culturais de nossa sociedade [...] o Alto
polinésios do que dos provençais ou dos auvérnios.
Conselho afirma sua convicção de que a concepção francesa
O princípio de unidade e de indivisibilidade da Repú-
da integração deve obedecer a uma lógica de igualdade e não
blica se aproxima portanto daquilo que os antropólogos no-
a uma lógica de minorias [grifo do texto]. Os princípios iden-
meiam um mito: não elucubrações, mas uma lei fundamen-
titários e igualitários que remontam à Revolução e à Declara-
ção dos Direitos do Homem e do Cidadão impregnam nossa tal que convém lembrar e transmitir. Mas os mitos se trans-
formam, de diversas maneiras. Os costumes e práticas os
concepção, fundamentada assim na igualdade dos indivíduos
perante a lei, sejam quais forem suas origens, sua raça, sua re- modelam. Eles podem repeti-los, mas também afastar-se
ligião... com a exclusão de um reconhecimento institucional deles de um modo mais ou menos palpável.
das minorias."99 No caso da França, a intransigência sobre os princípios
Em seu primeiro relatório, entregue ao Primeiro-Minis- mascara mal uma realidade mais matizada. A República pro-
tro em 1991, o Alto Conselho para a Integração não tem pa- duz mesmo, sem o dizer, um direito das minorias quando
pas na língua. Tomada de posição importante, pois expressa estatui, juridicamente, em certas matérias: línguas regionais,
pareceres de legeferenda. E perfeitamente conforme com a estatuto da Córsega, regime jurídico dos Departamentos de
tradição francesa na matéria. Apóia-se na Declaração dos Di- Ultramar, imigrados, regime dos cultos, reconhecimento dos
reitos do Homem de 1789, como o salienta o Alto Conselho. casamentos poligâmicos, destinação de quadras especiais aos
Esta não menciona em lugar nenhum as minorias, e não é muçulmanos nos cemitérios etc. Por trás dessa enumeração
um esquecimento: os indivíduos deviam ser desembaraça- aparecem três grandes categorias de minorias francesas101.

100. Ver notadamente a decisão do Conselho Institucional de 22 de ja-


99. Premiar rapport du Haut Conseíl à 1'lntégmtion, fevereiro de 1991,10.
neiro de 1990.
A integração tende a se tornar um conceito-guia. Não só urn Alto Conselho lhe
101. Para uma abordagem geral, cf. Diversité culturelle - Société indus-
é expressamente consagrado, mas também ela se beneficia de uma secretaria
trielk- État national, org. G. Verbrunt, Paris, UHarmattan, 1984; Lês minorités à
de Estado no governo de E. Cresson, nomeado em maio de 1991.
l'âge de 1'État-nation, org. G. Chaliand, Paris, Fayard, 1985; e sobretudo Lês mino-
304 DIREITO E VALORES 305
NOS CONFINS DO DIREITO
volucionários pouco viveu: tropeçava muito na realidade e
Primeiro, minorias regionais, para as quais o elemento territo-
em suas coerções sociológicas. De fato, constata-se que o di-
rial é constitutivo de sua identidade (corsos, bretões, bascos
reito positivo francês multiplica os estatutos derrogatórios
em graus diversos), que compartilham também uma língua é
tradições culturais em comum. do direito comum, recorta o corpo social em diversas cate-
gorias que recebem tratamentos jurídicos diferentes, sendo
Depois, minorias étnicas e religiosas que não são arraiga-
essa uma das razões da multiplicação contemporânea das
das num território específico na França: judeus, arménios, ci-
normas. Mas é com uma grande prudência, e de modo mui-
ganos. As comunidades magrebinas de trabalhadores imi- to progressivo, que o constituinte, o legislador e o juiz aceita-
grados se aproximariam delas, mas cumpriria raciocinar aqui, ram discutir os mitos fundamentais da República. Pois, entre
em termos de gerações, a identificação com os valores domi- 1789 e nossa época, notadamente sob a influência do mar-
nantes da sociedade francesa, que parece até agora aumentar xismo, a ideia de justiça social mudou de conteúdo: o direito
com o tempo em que moram na França. já não tem somente a missão de instaurar a igualdade cívica,
Enfim, populações autóctones, instaladas em territórios ex- mas deve compensar os efeitos mais gritantes das desigual-
teriores à metrópole: canacas da Nova Caledónia, índios da dades de fato (Voltaire era contra as ordens, mas a favor dos
Guiana, cujas insatisfações podem exprimir-se com violência. proprietários). Por conseguinte, teve-se de admitir que o
Como conter-lhes as reivindicações, sejam elas linguís- princípio de igualdade não implicava tratar todos da mesma
ticas, territoriais ou religiosas? Alguns países vizinhos, como forma: a diferença de tratamento pode restabelecer a igual-
a Grã-Bretanha e os Países Baixos, optaram em favor de um dade de fato (são beneficiários da RMI [Renda Mínima de
reconhecimento institucional de suas minorias. Os revolu- Inserção] apenas as categorias sociais mais desfavorecidas).
cionários de 1789 decidiram de maneira diferente. Quem não Apenas continua proscrita a diferença de tratamento ilegítima:
tem na memória a famosa invectiva do conde de Clermont- é preciso tratar de modo idêntico os que se encontram em si-
Tonnerre (a alta nobreza era em geral conquistada pelas ideias tuações semelhantes. Tal atitude poderia ter aberto caminho
"avançadas"): "É mister recusar tudo aos judeus como nação para uma lógica de reconhecimento das minorias. Não foi
e conceder tudo aos judeus como indivíduos; [...] é mister re- esse o caso, tão grande permaneceu a desconfiança do legis-
cusar a proteção legal à manutenção das pretensas leis de sua lador francês para com os grupos: aceita-se admitir diferen-
corporação judaica; é mister que eles deixem de constituir no ças de tratamento fundamentadas em diferenças de situação
Estado corpo jurídico ou ordem: é mister que sejam indivi- contingentes (medidas em favor dos deficientes, das viúvas,
dualmente cidadãos." A França não é uma terra de asilo para das mães de família numerosa), mas permanece a recusa das
suas minorias: a igualdade é a uniformidade. prioridades concedidas aos membros de um grupo definido
Ilusões. Faz muito tempo, a despeito de Siéyès e Cler- pelo fato de pertencer a uma etnia ou por uma origem geográ-
mont-Tonnerre, a lei já não é igual para todos. Resta saber fica. Enquanto nos Estados Unidos reconhecem-se às mulhe-
de que maneira. Pois, embora os princípios gerais do direi- res, às minorias étnicas e até às raças cotas para a entrada em
to francês sejam hostis à diferença, formou-se um direito da diferentes instituições (as universidades, principalmente).
diferença. A igualdade pura e dura dos primeiros textos re- Isto no plano dos princípios. Mas, na prática, o fato de
pertencer a uma cultura, a uma religião e às solidariedades
comunitárias fizeram seu aparecimento no direito francês. Em
rités et leurs droits depuis 1789, org. A. Fenet e G. Soulier, Paris, L'Harmattan, matéria religiosa, o direito positivo teve de transigir com a in-
1989; D. Lochak, Lês minorités et lê droit public français: du refus dês diffé- diferença implicada pelo princípio de bieidadc (as crenças
rences à Ia gestion dês différences, ibid., 111-84.
306 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 307

religiosas não devem acarretar nenhuma diferença de tra- E, já que faço alusão aos territórios exteriores à metró-
tamento) em nome do respeito à liberdade de consciência pole, gostaria de salientar que a França também tem suas
dos membros de grupos minoritários: muçulmanos e judeus reservas, e seus índios. Em razão dos acontecimentos dra-
podem ser autorizados pelo empregador a ausentar-se nas máticos que conhecemos, os canacas da Nova Caledónia
datas de suas festas religiosas; deverão ser fornecidos car- saíram do esquecimento. O caso deles é interessante. Mostra
dápios casher nos hospitais, nas casernas e nas escolas. Nu- que em outros tempos o direito à diferença (não o denomi-
ma fase superior, o nosso direito pode reconhecer que existem navam assim) pôde ser utilizado não para compensar, mas
ordens jurídicas minoritárias, na medida em que autoriza para agravar diferenças de fato104. A França toma posse da
uma norma, puramente interna a essas ordens, a produzir Nova Caledónia em 1853. Em 1868, uma portaria estabelece
efeitos na ordem estatal. A Corte de Cassação admitiu as- em princípio que os canacas só conhecem a propriedade co-
sim que o comerciante que vendia, sob a denominação ca- letiva das terras. Invenção pura e simples - a etnografia o
sher, carne proveniente de animais que não haviam sido aba- mostrou - que facilita as operações de instalação às quais a
tidos segundo os ritos era culpado de delito de fraude na mer- administração pública quer dedicar-se para levar a cabo a co-
cadoria102; ela confirmou o aresto de um tribunal que recusava lonização: é mais fácil entender-se com um chefe de tribo do
qualificar de abusiva a demissão, por um estabelecimento que com uma multiplicidade de titulares de direitos; como os
católico, de uma professora divorciada que se casara de novo103 indígenas não podem alienar livremente suas terras aos co-
(comportamento que viola o direito canónico). Enfim, em ca- lonos, o governo conserva o domínio do património imobi-
sos limitativos, o direito estatal cede ao pluralismo admitin- liário. O Decreto de 18 de julho de 1887 tirará as consequên-
do a existência de ordens jurídicas autónomas, conquanto cias disso, autorizando-o a fixar a delimitação das reservas
subordinadas, que expressam a identidade de minorias; a des- indígenas. Portanto, trata-se mesmo de uma espoliação de
peito dos grandes princípios, é realmente o fato de perten- terras, e podemos lembrar aqui as frases do líder africano J.
cer a esses grupos que se acha juridicamente constatado. Kenyatta: "Quando os brancos vieram à África, tínhamos as
Citemos, nesse sentido, o regime dos cultos na Alsácia-Lo- terras e eles tinham a Bíblia. Ensinaram-nos a rezar de olhos
rena, onde a lei de separação entre Igrejas e o Estado não fechados. Quando os abrimos, os brancos tinham as terras e
foi introduzida; o reconhecimento do pluralismo linguístico, nós, a Bíblia." Mas a política das reservas teve efeitos impre-
operado por uma série de leis desde a lei Deixonne de 1951, vistos: formaram para os canacas conservatórios de seus cos-
que autoriza os professores primários a utilizar os dialetos tumes e de suas tradições e foram os lugares de perpetuação
locais, leis posteriores que privilegiam particularmente as da identidade deles. Nisso está a fonte dos movimentos atuais
línguas corsa e polinésia; adaptações - em geral substan- de reivindicações.
ciais - das leis e regulamentações às condições dos Depar- Menos numerosos (cerca de 4 mil), os ameríndios da
tamentos de Ultramar; princípio de "especialidade legis- Guiana Francesa retiveram menos a atenção do que os ca-
lativa" dos Territórios de Ultramar, que lhes vale estatutos nacas105. O etologista dos índios e esquimós da América do
particulares que resultam numa ampla autonomia.

104. Cf. J. Dauphine, Lês spoliationsfondères en Nouvelle-Calédonie (1855-


102. Crim. 4 de maio de 1971, Habib, JCP, 1971, II, 16814. 1913), Paris, UHarmattan, 1989.
103. Cass. 19 de maio de 1978, Dame Roy c/Assoe, pour 1'éâuc. Populaire 105. Cf. La question amérindienne en Guyane Française, Ethnies, 1-2,
Saintr.-Marthe, Dalloz, 1978, p. 541. maio de 1988.
308 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 309

S; Norte fica impressionado com a identidade dos fundamen- ticular, e o Ocidente, em geral, seriam mais do que outras
"Í;
tos jurídicos das reivindicações avançadas106. Referência é fei- nações culpados para com suas minorias. Justiça bem orde-
ta pelos índios franceses a seus direitos aborígenes de pri- nada que começa por si mesmo, achei normal falar primei-
meiros ocupantes dos territórios, que assimilam a direitos de ro de nossa responsabilidade. Mas a questão das minorias,
soberania; rejeição da qualificação desses direitos em termos sobretudo quando se trata das populações autóctones, trans-
de simples usufruto; vontade de domínio do desenvolvi- cende alegremente as fronteiras. O que se entende por po-
mento pelos autóctones etc. Não se vê bem como esse "pro- pulações autóctones? Os critérios são diversos e numero-
blema índio" poderia ser resolvido sem o recurso ao pluralis- sos108: são descendentes de povos originalmente instalados
mo jurídico. Assim, os autóctones requereram que as terras num território mais tarde conquistado; essas populações são
-y;
m cujo domínio coletivo eles ainda têm sejam, reconhecidas nómades ou seminômades e praticam uma cultura voltada
&•< para o autoconsumo; seu sistema político não é centralizado
l, inalienáveis. Petição rejeitada em 1984 pelo comissário da
República pelo motivo de não existir possibilidade de aca- e dá um amplo espaço ao consenso; compartilham uma cultu-
tar isso no direito francês. Em oposição, o anteprojeto de lei ra e um território comuns mas estão sob a dominação de uma
entregue no mesmo ano pela seção francesa de Survival In- sociedade que as engloba; pretendem dominar por si sós
ternational à Secretaria de Estado nos Departamentos de seu desenvolvimento. No total, 200 milhões de indivíduos,
Ultramar-Território de Ultramar prevê notadamente que ou seja, cerca de 4% da população mundial, cuja maioria
cada grupo ameríndio viverá sob o domínio de seu costu- vive na Ásia. Isto quer dizer que, no plano quantitativo, o
me, salvo renúncia expressa e individual, que a comunidade problema das minorias autóctones é sobretudo o dos Esta-
aldeã receberá direitos de fruição coletivos e exclusivos so- dos não ocidentais. Ora, estes não se distinguem da Améri-
bre suas terras, sendo, porém, o pertencer a esses grupos ca ou da Europa por uma política mais delicada, sendo até o
compatível com a qualidade de cidadão francês107. inverso em geral verdadeiro. Alguns exemplos o provam.
Sem dúvida seria abusivo pôr corsos, canacas e índios O pensamento tradicional chinês não conhece o con-
no mesmo pé de igualdade a pretexto de que constituem ceito de minoria étnica. Pertencer ao género humano dos não-
minorias. Entretanto, não se pode evitar constatar que, em- han é impossível, mas o critério de diferenciação, como na
bora os primeiros tenham mais chance do que os segundos Antiguidade greco-romana, é mais cultural do que étnico: os
de verem aceitas suas reivindicações, é simplesmente em ra- bárbaros são os não-dvilizados, aqueles que não vivem nas
zão de sua maior proximidade étnica, cultural e geográfica cidades ou não praticam a agricultura. Aliás, em 1949, os co-
da metrópole. Todos eles argumentos de fato significativos, munistas fundam não uma União das Repúblicas Soviéticas
mas sem justificação moral, ou mesmo jurídica: há minorias da China, mas um Estado unificado, sob a direção da na-
mais minoritárias do que outras. ção han. As minorias nacionais agrupam 91 milhões de indi-
í i- Neste ponto do debate, há que se dissipar um eventual víduos (número do recenseamento de 1990), que ocupam
mal-entendido. Poder-se-ia acreditar que a França, em par- 60% do território chinês, em zonas fronteiriças estratégicas
e amiúde dotadas de importantes riquezas energéticas. O
regime comunista sempre buscou assimilá-las. Primeiro a
106. Cf. N. Rouland, Lês Inuit du Nouveau-Québec et Ia Convention de Ia
Baie James, Quebec, Université Lavai, 1978.
107. Cf. ]. Hurault, Pour un statut dês populations tribales de Guyane 108. Cf. J. Burger, Reportfrom the Frontier. The State ofthe World's Indige-
Française, Ethnies, op. cit. supra, n. 105, 42-53. nous Peoples, Londres, Zed Books, 1987, 9.
310 DIREITO E VALORES
311
NOS CONFINS DO DIREITO

longo prazo, e por meios relativamente brandos. A partir duzentos grupos, que falam mais de cem dialetos principais.
de 1958 e do Grande Salto para frente, o poder decide ace- Elas vivem sobretudo nas regiões florestais e montanhosas;
lerar o ritmo. Os hans vão conduzir o resto da população ao em geral seu nível de vida e suas condições sanitárias são
socialismo fazendo as minorias renunciar às suas tradições inferiores aos da população geral. Estão muito ameaçadas pe-
e religiões, que constituem um obstáculo ao progresso (can- las políticas de desmatamento. Entretanto, a política de co-
tilena conhecida). Em 22 de agosto de 1958, o Diário do Povo tas própria da índia dá-lhes direito a empregos reservados
troveja: "Não há mais Deus no céu do que fadas na terra. na administração pública, e a assentos nos parlamentos lo-
São os povos em pé que são os deuses e as fadas. Temos a di- cais e nacional.
reção do Partido, Podemos sustentar os céus com uma única, Nas Filipinas, contam-se cerca de 6,5 milhões de mem-
mão. Os cereais cultivados pelas mulheres não serão comi- bros de populações autóctones, repartidos em uns cinquen-
dos por Budas." Os sucessores de Mão mostrarão menos ta grupos. Até por volta dos anos 1960, essas populações
pressa, e a Constituição de 1982 concede garantias às mi- usufruíram boas condições de existência e puderam preservar
norias. Mas o objetivo perseguido permanece a assimilação, sua identidade. Mas, a partir dessa data, as grandes empresas,
como bem sabem os tibetanos. em especial multinacionais, fizeram acordos com o governo
A doutrina muçulmana clássica ignora a ideia de direi- para a exploração agrícola intensiva, que redundaram em ex-
pulsões maciças dos autóctones de suas terras ancestrais. A
tos concedidos a comunidades minoritárias garantindo-lhes
partir de 1979, grandes implantações hidroelétricas deram
uma igualdade de tratamento com a maioria, o que não a im-
pede de reconhecer a existência de uma hierarquia de comu- origem a resultados igualmente danosos.
Na Papuásia Ocidental (Irian Jaya), os direitos das po-
nidades subordinadas no interior de um Estado. Pois a rela-
pulações autóctones costumam ser desconsiderados pelo go-
ção de dominação, necessária, nada tem que ver com as no-
verno indonésio, que procede ao deslocamento forçado de-
ções de minoria e de maioria: apenas conta a preeminência
las, para alojar nas melhores terras a população excedente
da Verdade. As minorias étnicas como tais não são levadas
de Java. O Irian Jaya, para sua infelicidade, contém além dis-
em consideração; em compensação, há religiões minoritá-
rias hierarquizadas conforme a proximidade delas com o Islã. so importantes jazidas petrolíferas.
E poderíamos ainda acumular muito mais exemplos.
O critério principal aqui é, pois, religioso, e é a desigualda- Provam suficientemente que poucos Estados, seja qual for
de que dele resulta. Meu colega B. Etienne, um dos melho- sua localização, podem ter consciência limpa: dos subúrbios
res especialistas franceses do Islã e pouco suspeito de an- de Montreal aos de Sydney, passando pelas imensidões asiá-
tipatia para com os muçulmanos, escreve assim: "Parece-me ticas, o aborígene quase sempre se encontra na parte mais
mesmo assim surpreendente que os ocidentais continuem, baixa da escala. O Ocidente não é aqui o primeiro para ser
apesar dos trabalhos científicos a esse respeito, a desarvo- incriminado, ainda que maneje de bom grado a raça como
rar-se num sentimentalismo erróneo a propósito disso [...] critério de discriminação. Mas, aqui também, a concepção do
As minorias jamais podem esperar ter um lugar que não desenvolvimento económico está na origem de muitos es-
seja subalterno numa sociedade muçulmana."109 tragos irremediáveis. Não foi um acaso se, em numerosos lo-
A índia conta, por sua vez, com 51 milhões de indivíduos cais do mundo, o renascimento dos movimentos identitários
pertencentes a diversas populações "tribais", divididas em tenha sido a consequência direta das espoliações de terras
e dos transtornos ecológicos provocados pela execução de
109. B. Etienne, L'istamisme radical, Paris, Hachette, 1987, 77. grandes projetos de desenvolvimento.
312 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 313

Diante das barragens de concreto, as barreiras das decla- Estados Unidos, dos países da América Latina (seus repre-
rações dos direitos do homem em geral foram insuficientes. sentantes sustentavam que não havia minorias na América
O recurso à noção de direitos coletivos traria mais garantias Latina), da França e da Grã-Bretanha (temiam que fosse rea-
a essas populações? vivada na Europa a questão das nacionalidades). As ideias de
assimilação e de direitos individuais prevaleceram portanto,
mas não inteiramente. Foi criada uma subcomissão dos di-
Rumo ao reconhecimento de direitos coletivos reitos do homem, encarregada da luta contra as medidas dis-
criminatórias e da proteção das minorias. Apareceram de-
A Declaração Universal dos Direitos do Homem é obra pressa dois campos: o primeiro era formado pelos Estados
da ONU. Esta é uma organização de Estados, não de nações ocidentais, os da África e da Ásia, hostis ao reconhecimento
ou de povos110. Ora, os Estados têm tendência a considerar as de direitos específicos das minorias; o segundo, por países do
minorias com desconfiança: temem que elas contestem a Leste e alguns Estados ocidentais, ao contrário, favoráveis.
unidade estatal, como prova o apego do Estado francês ao O trabalho da subcomissão tropeçou muito tempo na defi-
princípio de indivisibilidade da República. Segue-se que, nição da noção de minorias. Longos anos de discussão re-
após a Sociedade das Nações - cujo pacto não menciona em dundaram no artigo 27 do Pacto Internacional Relativo aos
absoluto as minorias -, a ONU considerou com a maior re- Direitos Civis e Políticos (1966), assaz decepcionante, na me-
serva a noção de direitos coletivos dessas minorias, com mui- dida em que visa direitos somente individuais e não men-
tos Estados sustentando que a aplicação integral dos direitos ciona as minorias nacionais, nem os povos autóctones, Ou-
do homem bastava para garantir o respeito dos direitos e li- tros dados comprovam a reserva da ONU. Assim, as Nações
berdades de seus membros. Portanto, a Declaração não fala Unidas qualificaram o genocídio de crime internacional, mas
dos direitos coletivos dos povos ou dos grupos. Durante as a destruição cultural de um grupo étnico, que os antropó-
sessões de trabalho, o representante índio se levantou contra logos denominam etnocídio, e do qual nossa época oferece
essa omissão voluntária, assim como a URSS, a Jugoslávia e tantos exemplos, não foi levada em consideração em ne-
a Dinamarca. Foram de encontro à oposição determinada dos nhum instrumento de salvaguarda. Todavia, pode-se esperar
que, após o massacre dos curdos operado em 1991 pelo re-
gime iraquiano, o reconhecimento de um dever de ingerên-
110. A propósito dos desenvolvimentos a seguir, será útil reportar-se-a: cia fundamentado num dever de assistência humanitária
E. Jouve, Lê droit dês peuples, Paris, PUF; R. Stavenhagen, Droits de 1'homme provocará uma reflexão mais geral sobre os direitos coletivos
et droits dês peuples. La question dês minorités, Interculture, Montreal, XXII- das minorias, que resulte em formas de reconhecimento des-
2,1989, 2-18; N. Delanoe, "Minorités", "Populations" ou "Peuples"? La Dé-
daration dês Droits dês Peuples Autochtones, Recherches Améríndiennes nu
ses direitos.
Québec, XIX-4,1989,37-42; A. Bissonnette, L'ONU prend part à Ia promotion et Outra norma internacional criada pelas Nações Uni-
à Ia défense dês droits dês peuples autochtones, Bulletin Trimestriel de l'Asso- das consiste no princípio de autodeterminação dos povos,
dation Ccmadienne pour lês Nations Untes, 16-4, fev. 1991, 9, 14. F. Morin, mencionado na carta, mas não na Declaração Universal. Di-
Vers une dédaration universelle dês droits dês "peuples autochtones": 1'état versas resoluções o especificaram, mas de modo muito sele-
actuei dês travaux de l'ONU, Commimication au Colloqne International Droits
Linguistiques/Droits de iHomme, Estrasburgo, Conselho da Europa, 15-17 de
tivo, qualificado por certas pessoas de teoria "Blue-Water"
novembro de 1990; N. Rouland, L'émergence historique et anthropologique da autodeterminação: foi a princípio concebida para o uso
de Ia notion de "droits collectifs", Revue Internationale dês Sciences Socíales de exclusivo dos povos colonizados. Desde então, considera-se
1'Unesco. que o direito à autodeterminação se aplica a todos os povos,
314 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 315

que vivem ou não sob um regime colonial. O inconvenien- aceitou levar essas reivindicações em consideração. Em 1977
te é que não se conseguiu chegar a um acordo sobre uma e 1981, ela organizou conferências de ONGs relativas a es-
definição jurídica do termo "povo", ficando entendido, por sas questões e criou em 1982 um grupo de trabalho sobre
outro lado, que o direito à autodeterminação concerne aos as populações autóctones. Ele devia elaborar em 1985 um
Estados, ao passo que a palavra Nação foi descartada. A ten- projeto de Declaração Universal dos Povos Autóctones. Este
dência dominante consiste, porém, em não confundir "po- não foi adotado atualmente, mas contém disposições ino-
vos" e "minorias étnicas, religiosas ou linguísticas". Nesse vadoras: reconhecimento do direito à autodeterminação, do
caso, a insatisfação dos povos minoritários decepcionados direito à proteção contra o etnocídio, dos direitos coletivo
com a interpretação dada pela ONU de seus direitos do ho- e individual de propriedade e de posse dos territórios tradi-
mem apresenta o risco de aumentar. Ainda mais que outras cionais, do direito à autonomia etc.
organizações internacionais são igualmente conservadoras. Paralelamente, a Organização Internacional do Trabalho
A Organização da Unidade Africana também fundamentou (OIT, instituição especializada da ONU que zela pelos di-
sua política oficial no imperativo de unidade estatal, ligada reitos dos trabalhadores) modificou sua posição relativa às
ao desenvolvimento. E sabemos que muitos Estados africa- populações autóctones. Em 1957, expressara numa conven-
nos pouco recomendáveis qualificam imediatamente de "tri- ção (n. 107) sua preocupação em proteger as populações
balismo" os problemas étnicos que se lhes apresentam: sin- aborígenes e tribais, mas no sentido de uma integração nas
gular convergência com os posicionamentos de certos líderes sociedades e Estados dominantes: com a ajuda do desen-
da intelligentsia francesa, que abriram a caça às comunidades. volvimento económico, os particularismos identitários desa-
Contudo, os princípios dominantes do direito interna- pareceriam naturalmente. O inverso se produziu durante as
cional contemporâneo - os primeiros sujeitos desse direito décadas que seguiram: falência, em muitos casos, do desen-
são os Estados, o Estado moderno é o único titular da sobe- volvimento económico; multiplicação das reivindicações mi-
rania - são justamente produtores de minorias. Com efeito, noritárias. Em 1989, a OIT adotou uma convenção (n. 169)
essa ordem internacional exclui povos que se definem de que modificava a precedente e dizia respeito às populações
maneira diferente ou foram secionados pelas partilhas colo- indígenas e tribais nos países independentes. Torna obriga-
niais. Ora, em nossos dias, a existência desses povos é fre- ção dos Estados desenvolver os valores e instituições próprias
quentemente ameaçada, culturalmente e às vezes fisicamen- dos povos autóctones, assegurar a colaboração deles nos pro-
te, pelos Estados que os englobam. jetos de desenvolvimento, garantir seus direitos às terras. No
Dentre as diferentes minorias, as populações autóctones entanto, a Convenção 169 não vai tão longe como o projeto
costumam estar mais em perigo. Por intermédio de diversas de Declaração Universal dos Direitos dos Povos Autóctones.
ONGs, elas ressaltam que seus problemas são diferentes da- Certos estudiosos assinalam que ela continua assimiladora
queles das outras minorias. Em certos países (América Lati- na medida em que seu artigo 8, ai. 2, descarta a noção de plu-
na), são não minoritárias, mas majoritárias; dispõem em seus ralismo jurídico, quando estipula que "os povos interessados
territórios de direitos aborígenes; são em geral as primeiras têm o direito de conservar seus costumes e instituições desde
vítimas de projetos de desenvolvimento económico reali- que não sejam incompatíveis com o sistema jurídico nacio-
zados unicamente no interesse das sociedades dominantes. nal". Ora, os conflitos de leis são inevitáveis. Entre os bos-
Reclamam em consequência ser reconhecidas como povos sis da Guiana Francesa, a herança é repartida por procedi-
e, portanto, admitidas ao benefício do princípio de autode- mentos divinatórios entre todos os membros do grupo de
terminação. A Subcomissão dos Direitos do Homem da ONU parentes. Se os filhos do falecido, apoiando-se no direito
Ptíí. 316 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO E VALORES 317
M
francês, exigirem a totalidade da sucessão, esse grupo come- clarações dos direitos do homem condições sempre neces-
çará a dissolver-se. Aqui, ainda, a igualdade civil resulta na sárias e em geral insuficientes do respeito aos direitos das mi-
diminuição dos direitos autóctones. norias: os direitos dos povos as completam. Longe de dever
De fato, parecemos confrontados com uma dupla evo- combater um ao outro, esses dois tipos de direitos se corri-
lução. Na prática, a sorte das minorias e das populações au- gem, formam o duplo rosto do mesmo deus.
tóctones foi degradando-se: a ação daqueles que pretendem O homem deve certamente poder caracterizar-se por
defender a unidade do Estado recorrendo à uniformidade, uma série de invariantes, que a antropologia pode distinguir
um desenvolvimento económico amiúde descuidado do ho- por via comparativa, o que pressentiam os juristas em busca
mem, são a causa disso. De outro lado, a opinião internacio- de um direito natural, ainda que tenham fracassado muito
nal se comove com a sorte dessas populações, dentre as quais amiúde ao defini-lo. Nesse sentido, a ideia de direitos uni-
algumas souberam encontrar os meios de se fazer ouvir, no- versais do homem não é ilegítima, nem moral nem cientifi-
tadamente graças às ONGs e às organizações humanitárias, camente. Mas o homem natural sonhado pelos filósofos ou
seguidas pela ação positiva das mídias. Certas aberturas pa- que os exploradores acreditaram descobrir não existe. O ho-
recem, pois, agora possíveis no plano do direito internacio- mem só realiza as invariantes de que é portador no seio de
nal, desde que seja resolvida melhor do que pelo passado a sociedades concretas, datadas e localizadas, sujeitas como
difícil equação entre direitos do homem, direitos coletivos e nós à morte. Elas são mais do que a soma dos indivíduos
direitos dos povos. que as compõem e formam totalidades culturais. Estas não
A noção tradicional dos direitos do homem (direitos ci- têm menos direito a uma proteção específica, que apenas
vis, políticos, sociais, culturais) aplica-se sobretudo aos indi- lhes pode conceder seu reconhecimento coletivo. Apenas os
víduos, como o manifesta a Declaração Universal de 1948: homens podem inventar os direitos do homem.
quando direitos coletivos ou particulares são concedidos para
salvaguardar os interesses das minorias, os titulares desses
direitos são o mais das vezes os membros dos grupos mino-
ritários, e não esses próprios grupos. Os direitos coletivos são
prioritariamente reservados aos Estados. Tudo o que precede mostra que, para o pior ou para o
As minorias se encontram em desvantagem, mesmo que melhor, juristas e antropólogos não recuam diante do juízo
em princípio as declarações dos direitos do homem devessem de valores. E isso é bom. Se a nossa vida e a das sociedades
premuni-las contra os abusos, como o afirmam os Estados. têm um significado, se tendem para algo, devemos desco-
Para certos autores, essas declarações são necessárias bri-lo. Se o sentido está ausente, temos de criá-lo. Essa al-
e suficientes. J. Julliard afirma que "o direito dos povos tor- ternativa ontológica necessita da observação do real, tal como
nou-se o principal instrumento de estrangulamento dos direi- nos é dado. Contudo, mais ainda do que nas ciências "exa-
tos do homem"111; A. Burguière estima que, "defendendo os tas", nossa observação o modifica: declarar direitos é fazê-
direitos dos povos, enterram-se os direitos dos cidadãos"112. los nascer, enquanto eram somente concebidos. E esse ato
A noção dos direitos dos povos seria, portanto, o veículo de criador procede por sua vez do sentido que damos à nossa
uma nova forma de opressão. De minha parte, vejo nas de- presença neste mundo.
E decerto também ao próprio mundo.

111. Citado por E. Jouve, op. cif., 106.


112. Md,

k
li; Capítulo VI

É precisamente a transformação da natureza pelo homem, e


não a natureza sozinha como tal, que é o fundamento mais es-
sencial e mais direto do pensamento humano, e a inteligência do
homem cresceu na medida em que aprendeu a transformar a na-
tureza. É por isso que, sustentando que é exclusivamente a natu-
reza que atua sobre o homem, que são exclusivamente as condi-
ções naturais que em toda parte condicionam-lhe o desenvolvi-
mento histórico, a concepção naturalista da história é unilateral e
esquece que o homem reage sobre a natureza, transforma-a e
cria para si condições novas de existência.
F. ENGELS, Dialética da natureza.

A vida futura será a repetição da vida terrestre, mas todos fi-


carão jovens, a doença e a morte serão desconhecidas e ninguém
se casará nem será dado em casamento.
MITO ANDAMANÊS, Golfo de Bengala.

Jesus respondeu-lhes: [...] os que forem julgados dignos de


tomar parte do outro mundo e da ressurreição dos mortos não
tomarão nem mulher, nem marido...
Lc, 20, 35.

O homem sempre procurou linguagens para se comu-


nicar com o mundo que o rodeia e do qual o corta a sua con-
dição. Poder pensar suas relações com o universo é primeiro
distinguir-se dele, antes de tentar comunicar-se com ele. Os
mitos, essas "almofadas amortecedoras"1 da realidade, o do-
mesticaram. Evocam um tempo em que homens e animais
podiam falar uns com os outros, explicam como as mesmas
regras determinam os bons casamentos e a posição das es-
trelas. O homem antigo - ou longínquo - não é o único a cul-
tivá-las: o pensamento mítico é de nosso tempo.
Oito séculos antes de nossa era, Hesíodo cantava Gaia,
criadora do Universo, genitora dos primeiros deuses e da raça

1. O termo é de C. Lévi-Strauss, Triste tropiques, Paris, Plon, 1955, 452.


320 NOS CONFINS DO DIREITO 321
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA

dos homens. Ela ressuscita hoje, graças à ciência. Os dados fí- clon Cárter faz a aposta inversa e enuncia o princípio "an-
sicos mostram que a manutenção da vida na terra depende trópico"5. A existência e a duração do universo (cerca de 20
de mecanismos de auto-regulação ajustados com muita exa- bilhões de anos) pressupõem ajustes extremamente acura-
tidão, que comandam a produção do oxigénio, a do plane - dos entre as diferentes forças que o regem. Simulações de
Njf. ton, a salinidade dos oceanos etc. Alguns deduzem daí que criações de universos realizadas por computador mostraram
a Terra, na época rebatizada Gaia, é um ser vivo, estando to- que uma pequena variação de alguns parâmetros redunda-
dos os seus elementos em interação2. A ecologia se apodera va apenas em universos não viáveis (muitos mitos afirmam
da ideia, a antiga aliança se reforma.
que Deus só conseguiu criar o homem e o mundo depois de
Pois o conhecimento científico da natureza, desenvol- vários fracassos). Logo, há poucas possibilidades de que o
vido no decorrer destes últimos séculos, nos pôs diante de
Jif: universo e a vida sejam devidos ao acaso: correspondem a
uma realidade menos sorridente: a natureza nos é indiferen-
um projeto, a emergência da consciência e da inteligência,
te, cega à nossa presença e aparentemente vazia de todos os
cuja realização mais avançada hoje é constituída pelo ho-
companheiros com os quais poderíamos falai' verdadeiramen-
mem. De ciganos do universo, tornamo-nos os filhos das es-
te. A revolução copernicana já havia dado um sério golpe na
humanidade do universo. Mas, até o início do século, podía- trelas, em harmonia com o cosmos.
mos pegar-nos na visão de um mundo hierarquizado, de di- A cada qual compete escolher. Mas, através do diálogo
.(i? 5 [
mensões modestas e imutável. Em 1915, A, Einstein dá fim ao que o homem ata com a natureza, sentimos bem que ele for-
espaço estático de Newton e revoluciona as relações entre a mula a questão do sentido de sua existência, que ele não
matéria e o tempo ao formular a teoria da relatividade geral. pode separar daquela do universo que o rodeia. Não somos
Alguns anos mais tarde, o astrónomo americano E. Hubble - menos sensíveis a esse fato do que o caçador magdaliano ou
um antigo advogado - observa a constelação de Andrô- o aborígene da Austrália, e decerto somos ainda mais. A au-
meda e descobre a expansão do universo. Este adquire di- sência ou o afastamento de Deus não são os únicos em pau-
mensões incomensuráveis para nós e vê enfrentar em seu ta. Outro fato deve reter-nos a atenção, o do princípio de
seio forças gigantescas que o levam para um futuro insondá- crescimento exponencial das inovações materiais na história
vel, do qual há todas as possibilidades de o homem estar de nossa espécie6: foram necessários 2 milhões de anos ao
ausente. Pois talvez ele seja apenas um acaso, na imensidão homem para domesticar o fogo; menos de dois séculos sepa-
de onde não lhe chega nenhum sinal. Em 1970, J. Monod ram a invenção do motor das inovações da sociedade pós-in-
desfere que nos tornamos os "ciganos do universo"3. Difícil, dustrial (informática, engenharia genética etc.). Ademais, a
desde então, não ceder ao desespero, já que nada tem sen-
tido4. Quatro anos mais tarde, o astrónomo britânico Bran-
«1: aceitá-lo; e então a paz que o assalta se funde no silêncio que o contém, o
Universo não é uma auto-estrada, nem um painel de sinalização. Ele não vai
'ifáfl J a lugar nenhum; não quer dizer nada. Mas é amável, para quem o ama, e é
2. Cf. J. E. Lovelock, La Tem est un être vivant, Paris, Lê Rocher, 1989. isso a que chamamos sua beleza talvez, e a única graça." A. Comte-Sponville,
3. Cf. J. Monod, Lê hasard et Ia necessite, Paris, Lê Seuil, 1970. LOJnivers a-t-il un sens?, Ciei et Espace, 248, jul.-ago. 1990, 38-41.
•» 4. Difícil, mas não impossível, pelo menos para alguns autores: "Felicidade,
ao contrário, se Deus não existe, para aqueles que amam o real, todo o real: feli-
5. Para mais detalhes, cf. J. D. Barrow e F. J. Tipler, The Aiithrepological
Cosmological Principie, Nova York, Oxford University Press, 1986.
cidade para aqueles que amam o Universo! [...] E não pelo que ele quer dizer, 6. Cf. nesse sentido J. Poirier, L'Hoirune, 1'objet, Ia chose, m: Hisloire dês
mas pelo que é! Quem, uma noite, contempla muito tempo as estrelas acaba por mceurs, org. J. Poirier, I, Paris, Gallimard, 1990, 919-21.
322 DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 323
NOS CONFINS DO DIREITO

civilização mecânica, a urbanização multiplicaram os obs- biológicos que, por sua pureza, nos levam de volta à harmo-
táculos ou os intermediários entre o mundo natural e nós. nia com o universo. A obrigação de juventude é, aliás, sexua-
Por conseguinte, compreende-se que o homem moderno da: a maior parte dos produtos de maquiagem são femini-
sinta a nostalgia da natureza. nos; 10% das mulheres - e muito menos de homens - re-
E que a idealize ipso facto. Alguns exemplos o compro- correm ao lifting. Em resumo, cumpre sacrificar muito aos
vam. A publicidade recicla o mundo rural ao gosto dos ur- novos deuses. E afastar realidades bem incómodas: o corpo
banos: nela, o modo de vida camponês já não é apenas di- doente, ou degradado pela velhice (as clínicas de repouso,
ferente daquele da cidade, é sobretudo seu inverso, o que felizmente, os encarceram), e, pior ainda, o cadáver, para o
reflete as representações do consumidor urbano. O queijo qual já não se suporta olhar. Mas tudo isso não basta - e com
Chaume [Choupana], os cereais Quakers fazem dos trabalhos razão - para reatar com a natureza. Pede-se então socorro às
no campo um quadro idílico: as mais penosas atividades sociedades tradicionais, desta vez com o fundo musical do
físicas são realizadas sem esforço e com alegria. O cassoulet Bom Selvagem. Esquecidos a infibulação e o infanticídio, a
Saupiquet prega as virtudes do arraigamento. Uma criança antropofagia e os sacrifícios humanos. Últimos recursos de
contempla um carvalho, perto do qual um grupo banqueteia. uma modernidade desnorteada, elas são espontaneamente
Mas uma voz adverte: "As melhores coisas podem morrer se inocentes e naturais. Tendo escapado do pecado mecânico,
não lhes prestamos atenção." Significado: Saupiquet toma integram-se facilmente numa natureza acolhedora, em diá-
muito cuidado em utilizar produtos naturais, consagrados pela logos enamorados pontuados de oferendas campestres.
tradição (à qual fazem alusão a velha árvore e a criança). A re- Mas não há paraíso selvagem.
ferência à Mère Denis também contava com a necessidade A natureza não é dada mais às sociedades tradicionais
de estabilidade. Uma constatação importante: enquanto as do que às modernas. São menos separadas dela: mas essa
publicidades utilizam largamente qualidades eróticas do cor- intimidade resulta mais de certo número de coerções do que
po feminino para prender o olhar, as que põem em cena o de uma adequação espontânea, nas quais o direito tem a sua
mundo rural são exceção à regra. Será porque, a despeito da parte. Por outro lado, as sociedades modernas não renuncia-
liberação dos costumes, a sexualidade guarda para muitos ram em absoluto ao seu projeto secular de dominação da na-
um caráter chocante, de todo modo contraditório com as tureza: também, aí, o direito fornece inúmeras comprovações.
imagens perfeitas de uma vida idealizada? Nesse caso, essas
publicidades iriam ao encontro de muitos mitos do paraí-
so, onde a vida é assexuada (Jesus o descreve como um lu- As sociedades tradicionais e a humanização da natureza
gar onde já não haverá homens, nem mulheres).
A exaltação dos corpos jovens e saudáveis também pro- O homem não está em casa na natureza. O "primitivo"
cede de uma visão idealizada da natureza. A robustez já não assim como o homem moderno devem utilizá-la para sub-
assenta bem. Não só porque prejudica a saúde, mas porque sistir. Mas, enquanto o segundo a entrega à sua tecnologia
representa uma desvantagem para o dinamismo da "verda- material para sujeitá-la, o primeiro a concilia consigo por ou-
deira vida", a do movimento. Daí a forte pressão cultural an- tro procedimento, tirado do esoterismo e da magia.
tigordo; a inimaginável dimensão social dos regimes (torna- Os seres animados, em primeiro lugar. Para os esqui-
dos um dos temas favoritos de conversa) e o florescimento dos mós, a primeira das leis consiste em nunca contrariar as
tabus alimentares que eles instituem; o recurso aos produtos diversas manifestações da força vital (Silo) na origem do
324 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO. NATUREZA E SOBRENATLIREZA 325

mundo7. Esta reside, entre outros, nos animais. Abatidos na te é útil demais para que possa privar-se dele. A solução do
caça, não são realmente mortos: deixam-se matar para vi- dilema consiste em dar aos ferreiros um estatuto muito par-
sitar os humanos e alimentá-los. Daí a obrigação de acolhê- ticular, nas margens do grupo. São em geral cativos de guer-
los bem. Leva-se à foca uma tigela de água doce para matar- ra. Ou então passam, como entre os songhais de Níger, por
lhe a sede. O urso é objeto de ainda mais considerações. Todos uma iniciação que termina com uma condenação à morte
sabem que ele gosta de fumar: acende-se um cachimbo e lho simbólica, seguida da atribuição de uma nova identidade.
põem na boca. Às vezes, até colocam perto dele um equi- Esse estatuto específico permite-lhes realizar operações pe-
pamento de caçador, já que pode assumir forma humana. rigosas. Manipular o fogo, mas também proceder às circun-
Essa solicitude se estende às outras formas de vida. Para cisões e excisões (as fazedoras de excisão costumam perten-
os esquimós, Nuna (a Terra) é viva e sensível, e afligida pela cer à casta dos ferreiros), prestar arbitragens (estancio fora do
morte. A aldeia é ligada a ela. Portanto, convém colocar nu- grupo, não são sujeitos aos clãs e às linhagens). Isto também
ma boa distância de seus limites as peles de animais mortos acontece nas sociedades rurais europeias, em que os ferrei-
diretamente no chão. Sob outros céus, malgaxes e mói (Viet- ros tinham papéis complexos. Sinal de sua importância, os
nã) pedem autorização aos espíritos da floresta antes de
patrônimos mais difundidos na França são os que signifi-
efetuar as queimadas. Os próprios limites naturais devem ser cam "forgeron" [ferreiro] (Fabre, Lefèvre, Fabrega, Faure, Fai-
domesticados e até sacralizados. Os romanos tinham seus vre etc.)8.
deuses das encruzilhadas; nossos ancestrais punham orató- O próprio espaço deve ver-se aplicar representações sig-
rios no cruzamento dos caminhos. Pois os itinerários hu- nificativas. A primeira operação consiste em fundamentar a
manos podem contrariar os desenhados pela natureza. Por possibilidade de sua utilização. Todas as sociedades tradicio-
exemplo, os cursos de água: atravessá-los, mais ainda cobri- nais são estruturadas em duas dimensões. Uma. vertical, á
los com uma ponte, é perturbar uma ordem. Daí o costume bem conhecida: une antepassados e vivos. A outra, horizon-
atestado em todas as culturas europeias de jogar moedas tal, em geral é ignorada: é a comunidade formada pelos ho-
no rio antes de atravessar um vau. Daí resultam igualmente mens e pelos espíritos da terra, num âmbito territorial preci-
numerosos ritos religiosos que cercam a construção de uma so. Antepassados e vivos colaboram, como o veremos. Mas
ponte: na língua francesa, o fazedor de ponte (pontifex) é si- os espíritos telúricos e os homens interagem de modo não
nónimo de padre (pontífice). E começamos a sonhar quando menos eficaz. Os primeiros asseguram a reprodução dos ve-
constatamos que, em nossos dias, os movimentos reivindi- getais e dos animais. Os segundos, ocupantes a título precá-
cativos dos autóctones costumam iniciar depois de projetos rio, devem fazer-se aceitar pelos génios da terra e efetuar
de grandes obras, notadamente hidrelétricas (represamen- contraprestações no âmbito dos cultos agrários. Mas isto não
to do rio Alta entre os lapões; construção, no Quebec, das basta: sacralizado, o espaço também deve ser humanizado.
grandes barragens da baía James etc.). O pensamento mítico opera, no e pelo espaço, a junção en-
O estatuto do ferreiro também comprova essa necessi-
dade de respeitar a natureza ao mesmo tempo que se serve
8. Esses poucos exemplos não devem levar-nos a uma visão demasiado
dela. A priorí, sua arte é um sacrilégio: ele arranca seu fruto idílica dos homens da pré-modernidade. Veremos que o homem pré-históri-
das entranhas da terra e o cozinha para obter metal. Mas es- co em geral caçou sua presa sem comedimento. E certos autores mostraram
que o homem das sociedades tradicionais nem sempre é um inofensivo ecolo-
gista: cf. Roy F. Ellen, What Black Elf Left Unsaid: on the Illusory Images of
7. Cf. J. Malaurie, Lês derniers róis de Thulé, Paris, Plon, 1989, 405-6. Green Primitivism, Anthropology Today, 2-6,1986, 8-12.
DIREITO, NATUREZA E SOMENATUREZA 327
NOS CONFINS DO DIREITO

ire elementos que a modernidade nos ensinou a separar. En- trás palavras, se o humano pode objetivar-se, o objeto tem
tre os índios zunhis, o ar, o inverno, a guerra e o guerreiro são em si uma parte de humano, que frequentemente o impede
do Norte, ao passo que pertencem ao Sul o fogo, o verão, a de ser completamente uma coisa. A magia o prova facilmen-
medicina e a agricultura. Os wotjoballucks (Austrália), dividi- te: manipulando objetos estreitamente ligados ao corpo (len-
dos em treze clãs, separam o espaço em treze partes. Abun- ços, roupas), pode-se agir sobre a pessoa; os prepúcios e cli-
dam os exemplos desse tipo. Participam de uma visão holís- tóris excisados são cuidadosamente depositados em certos
lugares (às vezes na soleira da choça).
tica e cosmológica, que une o universo à sociedade e ao in-
Também o direito leva em conta essa subjetivação do
divíduo. Como umas práticas de orientação, fundamentais
objeto. Conforme o grau de participação do objeto no sujei-
em tantas formas de agrupamentos humanos, desde o kraal
dos hotentotes até a Notre Dame de Paris. Elas não se refe- to, a alienação é difícil, até mesmo impossível10. Como os bens
que expressam a própria identidade da comunidade (terra
rem apenas aos edifícios: o próprio corpo é unido ao mundo.
dos ascendentes entre os agricultores) são em princípio ina-
Quando sobrevêm um falecimento, os aborígenes austra-
lienáveis fora do grupo ao qual pertencem, os contratos re-
lianos colocam e mantêm o corpo na situação e na direção
ferentes a eles são muito formalistas. Os bens ligados à
do espaço que são as do clã do defunto. Estaríamos errados
pessoa podem circular com mais facilidade mas não estão
em sorrir dessas práticas: por elas, o homem faz o universo
totalmente dentro do comércio: muito amiúde, as jóias se
falar (o sucesso atual da astrologia em nossas sociedades não
transmitem de mãe para filha (nós mesmos hesitamos em
se deve apenas às suas "qualidades" previsionais: faz-nos
vender jóias ou uma casa de família, escrúpulos ausentes
também reatar a antiga aliança com o cosmos).
quando se trata de uma carteira de ações). Os outros bens são
Essa vontade de sinergia explica que as sociedades tra-
realmente objetos, largamente fungíveis, que não expressam
dicionais estabeleçam um continuum entre as coisas e as
nenhuma identidade particular. Portanto, podemos aliená-
pessoas, ao passo que o direito moderno e certos direitos an-
los livremente, sem nenhum formalismo: o consentimento
tigos as separam. No direito romano dos primórdios, os juris-
e a detenção da coisa bastam para validar o contrato.
tas englobam pessoas e coisas nas mesmas categorias. As-
Em todos esses casos, reina a ficção. Longe de nos en-
sim, a. família abrange a um só tempo pessoas e bens de uma
ganar, ela opera sobre a natureza as transformações simbó-
casa: parentes submetidos ao poder do pai de família, rnas
licas que a humanizam. Portanto, ela age in abstracto, em vez
também terras, construções, fundos de exploração, escravos.
de forçar a natureza em sua realidade, como o homem mo-
Mais tarde, o direito romano clássico separará pessoas e coi-
derno aprendeu a fazer. Este e o homem das sociedades tra-
sas. Nas sociedades tradicionais, as composições utilizadas
dicionais não se diferem pelo fato de que um atuaria sobre
para dar fim à vingança também operam identificações se-
a natureza ao passo que o outro se ateria a reverenciá-la, mas
melhantes: o "preço do sangue" é frequentemente o mesmo
na essência e nas modalidades da intervenção deles. O exem-
que o de um dote; mulheres costumam ser dadas aos paren-
plo do parentesco o mostra bem".
tes da vítima assassinada para prover à sua substituição pro-
criando um filho varão.
Isso pode chocar: os seres humanos seriam então coisas? 10. Cf. N. Rouland, Anthropologiejuridique, Paris, PUF, 1988, 274-6.
É que de fato os objetos, muito amiúde, não são coisas9. Nou- 11. Cf. N. Rouland, Lês dimensions culturelles de Ia parente, Commu-
nication à Ia VIÍ Conférence Mondiale de Ia Société Internationale du Droit de Ia
Famille: Parente: Ia signification juridique de Ia matemité et de Ia paternité dans
9. Cf. J. Poirier, op. ai. supra, 924-6.
une société en évolution, Opatija, 13-18 mai. 1991, em Actes du Colloque. Sobre
328 NOS CONFINS DO DIREITO

A natureza, nesse campo, pode mostrar-se cruel e recusar direito positivo francês conhece o casamento póstumo, mas
ao homem aquilo a que em geral ele é mais apegado: o filho. este permanece excepcional e destinado a legitimar filhos
Em toda parte, inclusive na França, a esterilidade é identifi- concebidos antes do falecimento de seu autor).
cada a uma maldição: masculina ou feminina, é vivida por Ter um filho, mas também escolher seu sexo: isto nos
aqueles a quem aflige como uma perda substancial de sua será tecnicamente possível logo. Até meados deste século, os
identidade sexual, que extingue a parte de imortalidade que esquimós o conseguiam por outros meios, decidindo a in-
temos o poder de transmitir. Donde a inflação da palavra, si- versão do sexo dos filhos se aquele dado pela natureza não
nal da angústia latente: meras dificuldades temporárias para lhes convinha. Essas crianças eram denominadas tikkaalia
gerar desencadeiam repetidas consultas por "esterilidade". ("fabricado, transformado em menino") ou muliakaalia ("fa-
Esse desejo de filho encontrou modernos vetores: os "novos bricado, transformado em menina"). Mas essa ficção se inse-
modos de procriação" que se baseiam na manipulação con- ria profundamente na realidade. A criança adquiria os sinais
creta dos mecanismos da reprodução. Em face do mesmo exteriores de seu sexo de empréstimo (roupas, penteado),
problema, as sociedades tradicionais utilizavam certamen- era educada para realizar as tarefas que lhe correspondiam.
te a farmacopeia, mas também a ficção. Um provérbio samo No século XX, meninos e meninas recobravam na adoles-
(Burkina Fasso) o expressa de modo admirável: "É a fala que cência seu sexo biológico, em geral com problemas psicoló-
faz a filiação, é a fala que a retira." A prática tira todas as con- gicos. Estes podiam chegar ao suicídio: o natural não volta a
sequências desse princípio, o que liberta quase totalmente das galope.
condições iniciais da natureza. Superação da esterilidade, dos sexos: cumpre acrescen-
Os nueres (Sudão) concluem casamentos entre mulheres. tar-lhes o das gerações e da morte.
Uma mulher estéril toma uma esposa, paga um dote a seus A adoção serve com muita frequência de remédio para
pais e possui a autoridade paterna sobre os filhos que esta a esterilidade. Os esquimós podiam utilizá-la com outro ob-
tem de genitores varões. Essa mulher estéril é considerada jetivo. Avôs ou seus colaterais adotavam crianças da segunda
um homem: pode herdar gado e receber uma parte dos dotes geração descendente. Esse tipo de adoção opera um acava-
pagos por ocasião.do casamento das filhas de sua linhagem. lamento vertical entre as gerações, sendo outra modalidade
Sempre no leste da África, os quicuios vão ainda mais longe sua baseada no sistema de transmissão dos nomes dos fa-
ao instituir casamentos fantasmas. Idosa demais para ter com lecidos aos recém-nascidos: o fluxo dos nomes dos mortos
um amante um filho que herdaria de seu marido falecido, desce, o das crianças torna a subir no tempo. Pois o sistema
uma viúva compra uma mulher com os bens do falecido, a dos nomes é um modo de libertação da morte: os nomes
faz procriar com genitores varões. A mulher é considerada atribuídos são os dos ancestrais falecidos, que transmitem
a esposa do morto, e seus filhos, os herdeiros do defunto (o às crianças seus traços de caráter, o que atesta assim certo
parentesco. As representações que embasam esses procedi-
mentos não nos são totalmente alheias. Na Provença, o cos-
as modalidades da mudança de sexo entre os esquimós, devem-se ler: J. tume exige que o neto tenha o nome do avô falecido, em sua
Robeit-Lamblin, "Changement de sexe" de certains enfants d'Ainmassalik (Est
Groénland): un rééquilibrage du sexe ratio familial?, Eludes Inuit, 5-1, 1981,
memória. A maioria dos nomes franceses são os de santos, o
117-26 (as dificuldades psicológicas são evocadas nas pp. 117-21); N. Q. B! que supostamente nos associa aos seus méritos e nos con-
Saladin d'Ang!ure, Du foetus au Chamane: Ia constmction d'un "troisième sexe" cede sua proteção. Notar-se-á também o sucesso de certas
Inuit, Eludes Inuit, 10/1-2,1986, 25-113. obras que ensinam aos pais que o nome dado aos filhos lhes
330 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 331

influenciará a personalidade. Dar nome a um ser é incorpo- cepas. Portanto, foi também o tempo que nossos antepassa-
rá-lo ao mundo12: o dos vivos, mas igualmente o dos mortos, dos tiveram de capturar e domesticar: é de duvidar que o ho-
que lhe são misteriosamente presentes. mem moderno o tenha conseguido melhor do que eles.
Mas alguns séculos bastaram para suprimir essas alianças. Alguns vislumbres esclarecem esses processos plurimi-
lenares14. A caça de animais tornou-se gradualmente mais
seletiva: a fim de permitir a manutenção e a reprodução das
A ruptura da aliança
hordas caçadas na proximidade do lugar onde moravam, os
homens aprenderam a só caçar certas espécies, em certos
Durante os períodos de festa, os romanos da época clás- momentos. Assim, também, a coleta dos vegetais privilegiou
sica observam um número impressionante de tabus13. Mui-
certas plantas, e os homens praticaram técnicas apropria-
tos são de ordem técnica. Alguns se relacionam com a cul-
das para protegê-las ou para favorecer-lhes a multiplicação.
tura do solo. É vedado "abrir o solo", semear, ceifar o feno,
Assim, foram impostas proibições sazonais sobre povoa-
podar as árvores, cavar fossas de irrigação. Outros visam à
mentos espontâneos de plantas alimentares: é de fato uma
domesticação dos animais. Não se podem lavar os carneiros
forma de agricultura, por intermédio de prescrições mágico-
para lhes limpar a lã, nem os tosar (a menos que se sacrifique
um cão jovem); não se devem atrelar os animais. De um jurídicas.
modo geral, deve-se evitar novumfierí, fazer algo novo. Os Mas, até então, e por milénios ainda, o homem manifes-
tabus são a lembrança de uma Idade de Ouro: aquela em tou a capacidade de fazer aliança com uma natureza sobre
que se supunha que o homem vivia feliz, sem ter necessi- a qual ele desenvolvia sua dominação: a maioria das socieda-
dade de forçar a natureza a produzir, tampouco, aliás, de re- des tradicionais a concluiu, enquanto pastores e agricul-
correr às leis, aos juizes e aos castigos para levar uma vida tores estão pelo menos tão representados nela quanto os ca-
aprazível. çadores-apanhadores. Quando apareceram as primeiras fa-
Idealização de um passado longínquo, que remonta à lhas? Talvez mais cedo do que se pensa. Pois o homem não
transição neolítica, da qual 10 mil anos nos separam. Pois esperou a Revolução Industrial para agredir a natureza. Como
pastoralismo e agricultura realizam uma domesticação da na- o vimos, este evadiu-se três vezes da África nos tempos pré-
tureza sem medida em comum com os procedimentos utili- históricos. Ora, sua penetração nos continentes onde não
zados antes, durante milhões de anos. Foi preciso aos caça- havia nascido teve efeitos devastadores sobre certas espé-
dores-apanhadores do final do paleolítico não só um grande cies animais, em particular os grandes mamíferos. Nas duas
conhecimento do meio, mas também a vontade e as capaci- Américas e na Austrália, estes desapareceram em massa
dades criativas necessárias para a sua transformação. Os ce- numa época tardia da era glacial, mais por causa dele do que
reais selvagens não eram comestíveis; a domesticação dos das modificações climáticas. Apenas as espécies que pude-
animais exige urna projeção do pensamento no tempo a fim ram reproduzir-se rapidamente resistiram à ameaça do ho-
de que seja imaginada a seleção graças ao cruzamento das mem. Exceto na África, cuja fauna sobreviveu muito melhor,
graças ao fenómeno da co-evolução: tendo o homem nasci-
12. Segundo a Génese, o primeiro ato do homem depois de sua criação
loi dar nome às criaturas vivas: Gn, l, 20. 14. Cf. J. Barrau, Lês hommes dans Ia narure, 111: Histoire áes Mceurs, org.
13. Cf. P. Braun, Lês tabous dês "Feriae", 1'Année Sotíologique, 1959,49-125. J. Poirier, I, Paris, Gallimard, 1990, 30-5.
33?
NOS CONFINS DO DIREITO
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 333
do ali, os animais evoluíram ao mesmo tempo que ele e pu-
deram adaptar-se a ele. Ao menos até a nossa época. Pois o dos de desvítalização. Chegou o nosso reinado, mas não será
homem pré-histórico não dispunha, apesar de tudo, de um a morte a vitoriosa, pela perda de sentido? A ecologia, como
poder sobre a natureza equivalente ao nosso. o veremos16, opera aí uma reação salutar.
i ara apreender o início do processo proveniente da mo- Mas nem todas as modalidades de intervenção do ho-
dernidade e que conduziu à ruptura da aliança, devemo mem sobre o espaço e a natureza são igualmente mortífe-
LOS
realmente remontar à nossa Antiguidade ocidental. ras e reagem da mesma maneira sobre as nossas concepções
Naquele momento, os gregos separam o homem da na- jurídicas. Estas, como já o disse17, são ligadas às visões reli-
tureza. O espaço é pensado de outra maneira15: torna-se geo- giosas e cosmológicas. Parece que também correspondem,
métrico, Virtualmente decomposto em partes ou parcelas, com muita lógica, às relações atadas com a natureza.
nca mensurável, a fim de permitir suas partilhas quer entre O pastoralismo e a agricultura correspondem a modos
as famílias, quer entre o Estado (ele nasceu) e os particulares. de intervenção diretos: os rebanhos são conduzidos com auto-
Apenas a terra bem delimitada pode ser objeto de proprie- ridade, o animal atrelado é sujeitado, o campo é aberto e co-
dade privada. Nem por isso é plenamente racionalizada no lhido em massa. Aristóteles nos diz: "Não há amizade possí-
sentido moderno do termo, ou seja, reduzida ao que parece. vel com as coisas inanimadas, assim como não há justiça para
A sacralízação é, ao contrário, manifesta: há deuses das casas com elas, assim como não as há do homem para com o cavalo
e dos campos, que tomam posse de uma terra que só se tor- e o boi, ou mesmo do senhor para com o escravo enquanto es-
na jal por recorte e cercamento. Mas esta se integra numa cravo."18 Singular contraste com o discurso de muitas socieda-
visão do mundo mais maleável do que a das sociedades tra- des tradicionais!19 Mas a horticultura procede de outro espirito:
dicionais, sobre a qual o homem, e mesmo o indivíduo, tem nela, homem e natureza mais colaboram do que se confron-
mais domínio. Mais tarde, o modo de espacialização bar- tam. O homem zela de muito perto pelo crescimento de cada
roca, e, mais ainda, o do capitalismo liberal, ultrapassará esse planta do jardim (não se fala ainda, entre nós, daqueles jar-
ponto de equilíbrio/num movimento que não se pode com dineiros que têm "a mão verde"?). E ficamos tentados a se-
toda a segurança qualificar de progresso: a forma e a mate- guir A. G. Haudricourt quando ele estabelece paralelismos
na se separam, o sujeito e o objeto se distinguem; a essên- entre "os deuses que comandam, as morais que ordenam,
cia se confunde com a existência. Essa existência adquire uma as filosofias que transcendem", familiares às civilizações do
dimensão largamente económica: os lugares são determi- ager e do pascuum, ao passo que "as morais que explicam e
nados por seu valor económico ou de troca (dizemos que as filosofias de imanência" teriam mais que ver com as civili-
uma Aterra tem maior ou menor valor conforme sua classi- zações do hortus. Será, aliás, por acaso que as nossas socie-
ficação no plano de ocupação dos solos). Decerto essa se- dades pós-modernas descobrem simultaneamente a ecologia
paração acompanha uma maior eficácia do homem sobre o e um direito não imperativo? Em todo caso, a horticultura tem
espaço. Mas de qual eficácia se trata, e o homem moderno que ver com a Idade de Ouro. Os paraísos terrestres são em
não ganharia em voltar a ser um pouco magdaleníano? Pois geral jardins... como talvez os celestes: as visões dos indiví-
os espaços modernos nos parecem hoje largamente atingi-
16. Cf. infra, pp. 358-65.
17. Cf. supra, pp. 63-88.
15. Cf. R. Ledmt, L'homme et l'espace, ibid., 105-13.
18. Citado por J. Barrau, op. cit., 42.
19. Cf. supra, pp. 326-7,
334 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 335

duos que voltaram do coma costumam aludir a um além que o excedente, portanto, tirar um partido máximo desse direi-
se parece com um maravilhoso jardim20. to de propriedade. Adam Smith (1723-1790) sustentará teo-
As transformações operadas pela modernidade nas rias similares: ambos passam da primazia das relações entre
representações do espaço acompanham a transição do ob- os homens para a das relações entre o homem e a natureza.
jeto para a coisa. Para J. Poirier, "nas sociedades tradicionais, a Mas é essencialmente através das trocas mercantis que essas
maior parte dos objetos não é verdadeiramente coisa; a mo- relações são concebidas. O económico tornou-se uma cate-
dernidade aparece quando as coisas se tomam as mais nume- goria autónoma. Em 1804, o Código Civil ratificará essa auto-
rosas"21. Como sempre, trata-se de uma diferença de grau: há nomia. Seu Livro I é consagrado às pessoas (514 artigos num
coisas nas sociedades tradicionais (ferramentas e utensílios de total de 2 283); seu Livro II, aos "Bens e às diferentes modifi-
importação), e objetos nas sociedades modernas (fotografias cações da propriedade"; seu Livro III, às "diferentes maneiras
de entes queridos; edifícios de culto: cumpre dessacralizar pelas quais se adquire a propriedade".
uma igreja antes de destiná-la a um uso leigo; bandeira: nas E o corpo? Qual será seu destino em todas essas trans-
cerimónias militares, apresenta-se o regimento à bandeira, formações?
e não o inverso; navios: os navios de guerra são bentos etc.). Seu estatuto é ambíguo. Mesmo nas sociedades tradi-
O direito registra essa ruptura da aliança, inaugurada cionais, ele é raramente magnificado... em vida. Mas a mor-
pelas diversas transições e separações que acabei de citar. te o transforma em cadáver, e em objeto: longe de ver nele
Aqui, ainda, deve-se voltar à época das Luzes e aos seus pre- uma coisa, consagram-lhe muita atenção e ritos23. Nas socie-
cursores22. Já Francis Bacon (1561-1626) definia: "A natureza dades modernas, é o inverso: seu culto é celebrado quando
é uma mulher pública; devemos amestrá-la, penetrar seus está em plena vida, sob suas formas mais agradáveis (ainda
segredos e acorrentá-la conforme nossos desejos." Para Locke que do culto do corpo ao corpo-coisa de uma sexualidade
(1632-1704), Deus deu a terra à espécie humana para se apro- sem estética seja rápida a passagem). Mas a partir da mor-
priar dela; o próprio homem é propriedade de Deus, mas te, afastam-se dele, abandonando-o aos papa-defuntos (a
todos os homens são livres e iguais entre si. A apropriação expressão é significativa), ou aos cirurgiões, para fins de dis-
secação (terminologia não menos probatória, a dos médicos,
da natureza é, portanto, desejada por Deus, e soberanamen-
que falam então de "carne").
te operada pelo homem. Ademais, ela é condição de sua liber-
O direito não foi tão longe na reificação. O Código Ci-
dade perante outros homens, a moeda que permite negociar
vil de 1804 (arts. 637, l .780) põe o corpo ao abrigo da proprie-
dade e das trocas: não se pode encadear uma pessoa ao ser-
20."... eu estava caminhando num jardim cheio de grandes flores. Se tives- viço de um imóvel, nern alugar sua força de trabalho por um
se de descrevê-las, diria que se pareciam com dálias com enormes flores e caules período indeterminado. Por outro lado, deduziu-se do Có-
muito altos. Fazia calor naquele jardim e havia muita luz; era belíssimo." R. Moody, digo (arts. 1.108,1.126 a 1.130) o princípio de indisponibilida-
La lumíère de 1'au-delà, Paris, Laffont, 1988,82.0 fenómeno parece transcultural. de que proíbe que o corpo ou suas partes sejam objeto de co-
Encontramos descrições dessa ordem entre os ianomâmis (cf. E. Biocca, Yanoama, mércio. Entretanto, essas proteções estão cada vez menos se-
Paris, Pion, 1968,159-60; para as referências a outras culturas, cf. igualmente I.
guras faz uns vinte anos: o aborto terapêutico (Leis de 1975 e
Wilson, Expéríences vécues de Ia suruie après Ia mort, Paris, Belfond, 1988,202). Os
III 1979), sob reserva de um estado de desespero, dá à mãe o di-
resultados dos estudos efetuados na índia são analisados por K. Osis e E. Haralds-
son, Ce qu'Us ont vu... au seuil de Ia mort, Paris, Éd. du Rocher, 1982. reito de dispor de si mesma e do embrião. E os novos mo-
21. J. Poirier, L'homme, 1'objet, Ia chose, in: Histoire dês Mmurs, op. cif., 926.
22. Cf. J. Fauchere, Corps, espèce et société, Droits et Cultures, 20,1990,
233-41. 23. Cf. infra, pp. 401-2.
336 NOS CONFINS DO DIREITO DIRE.ITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 337

dos de reprodução, a noção - muito pouco jurídica - de "di- gia moderna e vindoura nos entrega, e que as sociedades
reito à criança" criam problemas não menos agudos. Deve- tradicionais não tinham. Talvez o façamos se refletirmos que,
remos, aliás, mostrar-nos tão surpresos com isso? A indispo- continuando no segundo caminho, arriscamos perder-nos.
nibilidade da pessoa e do corpo humano procede de inten-
ções legítimas: é um ferrolho que não se deve arrombar. Mas
o sentido da evolução - inaugurada há muito tempo - não se Com o risco de nos perder
situa nessa direção. Pode-se recear, ao contrário, que, tendo-
se separado da natureza e constituído em indivíduo, tendo dis- Em dezembro de 1990, o Comité Nacional de Ética deu
sociado completamente sacralidade e reprodução, o homem um parecer favorável à utilização no homem de terapias ge-
v,. chegue também a distinguir-se de seu próprio corpo. Vários néticas, cujo emprego definiu com limitações. Fica autoriza-
- sinais nos fazem temer isso. Mas, inversamente, outros plei- da a introdução de um ou de vários genes nas células somá-
teiam em favor da busca de uma nova aliança. Estamos na en- ticas do corpo humano, espécie de enxerto microscópico que
cruzilhada dos caminhos. em nada modifica a identidade dos doentes. Em compensa-
ção, o Comité se pronunciou contra qualquer alteração das
Antes de prosseguir, delimitemo-los bem. O primeiro é
células germinais (óvulos ou espermatozóides), na medida
o seguido pelas sociedades humanas desde os primórdios
em que ela poderia transmitir-se e modificar assim o geno-
até os nossos dias, no qual elas cobriram uma grande distân-
ma da espécie humana, o que redundaria eventualmente na
cia, cada qual em seu ritmo e segundo etapas diferentes.
fabricação de novos escravos. Portanto, o homem se coloca
Todas tiveram de se situar ern relação a um dado natural,
aqui como limite de suas próprias manipulações da nature-
ora conciliador para com o homem, ora coercitivo ou mesmo
za. Mas certas práticas vão muito além. Algumas semanas
hostil. Este reagiu com procedimentos de aliança ou de do-
mais tarde, em Birmingham, uma jovem virgem se fez inse-
minação. Mesmo que já na Pré-História o homem não tenha
minar, e a mesma clínica dispensou esse serviço a lésbicas que
hesitado em afirmar seu direito sobre o meio ambiente, por recusavam a penetração masculina24. O direito ao filho se opõe
vezes de modo brutal, a aliança predominou sobre a força. A aqui aos direitos do filho. Sentimos realmente legítimas in-
ficção, de seu lado, operou transformações que a tecnologia quietações quanto à educação recebida por este a partir de
não permitia, procedimento que autoriza a reversibilidade premissas tais como a recusa da sexualidade. Pode-se admi-
í- :', delas: uma dominação, mas razoável. Hoje, trata-se de outra tir que o desejo de maternidade tenha apenas uma remota
coisa. Pois adquirimos os meios técnicos de modificar a na- relação com a sexualidade, mas esta faz parte da aprendiza-
tureza - e nossa natureza - na realidade, de maneira talvez gem da condição de homem e de mulher, havendo o risco da
irreversível: esse é o segundo caminho. Felizmente delineia- certeza da infelicidade. Até onde modificar a natureza, e nos-
se um terceiro, que permitiria concluir uma nova aliança. sa natureza, sem pagar um preço pesado demais?
Sem renunciar às vantagens da tecnologia moderna (existem Lacunas dos direitos do homem: estes não definem o
inúmeros processos de despoluição, sem falar das aquisições homem, seu próprio objeto, e neles a natureza é concebida
da medicina), poderíamos aproximar-nos dos ideais das so- de modo abusivamente antropomórfico, ou seja, negada25.
ciedades tradicionais, desejosas de viver em harmonia com a
natureza. Não se trataria, contudo, de uma "volta" qualquer.
Pois, no caso das sociedades pós-modernas, esse comporta- 24. Cf. J. P. Dubois, La vierge à 1'enfant, Lê Nouvel Observateur, 21-27
; .: • mento resultaria de uma escolha livre e responsável, que im- mar. 1991,1ÍO.
plica que renunciemos aos enormes poderes que a tecnolo- 25. Cf. infra, p. 361.
•v, .-
338 - NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 339
Em tudo isso, ninguém precisa pregar a importância do mado (vegetal, animal, homem) era sagrado, e excluído do
direito: todos estão bem convencidos dela. Mas a que título campo da lei sobre as patentes: mesmo as plantas obtidas
deverá ele intervir? Mais precisamente, qual sentido dar às artificialmente eram produtos "naturais". Mas os vegetais re-
definições e classificações jurídicas? Elas implicam um juízo, presentam uma forma de vida que aprendemos'a considerar
mais do que pretendem expressar a verdade. O direito pode- distante da nossa (enquanto as sociedades tradicionais po-
ria decidir que um útero é um objeto de locação para que se dem fazer de um vegetal um ancestral totêmicò). A passagem
possa alugá-lo, que os muros das portas e das cidades têm para outra concepção do vivente deu-se, portanto, à custa
um caráter religioso (o direito romano as tinha por rés sanc- deles. Em 1930, o Congresso americano vota o PhntAct. Des-
tae), que a filiação deriva da realidade biológica ou de um de então, cumpre distinguir não mais entre as coisas vivas e
conjunto de comportamentos sociais: tudo isso pode ser dis- inanimadas, mas entre os produtos da natureza - viventes
cutido - os juristas têm razão de fazê-lo -, mas o direito toma ou não (o mineral é expressamente visado) - e as invenções
posição a fim de que sejam traçadas fronteiras entre o dese- do homem (por exemplo, a descoberta de uma planta: em-
jável, o permitido, o lícito e o proibido. Logo, estabelece li- bora viva, ela deve o essencial ao homem, já que a natureza
mites aos direitos subjetivos. Uma mulher pode desejar ser não pode repeti-la sem sua ajuda). Portanto, o homem se in-
inseminada com o esperma congelado do marido falecido, troduz juridicamente no vivente: seu poder de modificar a
estimar que é "seu direito": em 1991, um tribunal se opôs natureza - cuja realidade técnica ninguém contestava - re-
num caso em que o falecido tinha morrido de Aids. O direi- dunda na possibilidade jurídica de sua apropriação. Mudan-
to é, pois, uma arma terrível: conforme a maneira pela qual é ça vertiginosa. Antigamente o homem estava incluído na na-
utilizado, pode construir o homem, ou destruí-lo; dissociá-lo tureza animada, com o vegetal e o animal. Agora distingue-se
do mundo, ou reuni-lo a ele. O direito positivo francês dá deles em nome de sua capacidade inventiva, o que lhe dá
exemplos dos dois tipos de processo. direitos - no sentido técnico do termo - sobre essa natureza,
Os tribunais franceses por muito tempo limitaram o primeiramente submetida dentro do reino vegetal. Isso com
domínio do homem sobre a natureza, decidindo que a na- finalidades de exploração. Os romanos, que qualificavam os
tureza e suas leis não podiam ser apropriadas por ele. Con- escravos de instrumentos dotados da fala, seguiam o mes-
sequência: os mecanismos naturais não podem ser paten- mo raciocínio: distinguir para submeter. Meio século mais
teados. Posição lógica, na medida em que a patente é ana- tarde, um novo passo foi dado. Em 1980, a Corte Suprema dos
lisada como um monopólio de exploração temporária que Estados Unidos foi avocada por uma lide referente à pos-
permite apenas ao inventor pôr sua invenção no mercado. É sibilidade de patentear uma bactéria (decisão Diamond v.
possível patentear processos de fermentação, mas não a pró- Chakrabarty). Alguns pesquisadores haviam aperfeiçoado
pria fermentação. uma nova bactéria capaz de controlar os poderes de degrada-
A mudança veio dos Estados Unidos, onde reina mais do ção do petróleo, introduzindo numa bactéria simples (existen-
que alhures a lógica do mercado26. Até 1930, todo vivente ani- te no estado natural) certos plasmídeos, unidades hereditárias
fisicamente separadas dos cromossomos da célula. O proce-
26. Sobre todas essas questões, cf. C. Labrusse-Riou e J. L. Baudouin,
Produire 1'homme, de quel droit?, Paris, PUF, 1987; L'homme, Ia nature et lê droit, la condition juridique de 1'embryon humain, Persona y Derecho, 23, 1990, 65-
orgs. B. Edelman e M. A. Hermitte, Paris, C. Bourgois, 1988; Biologie, personne 76; X. Labee, La condition juridique du corps humain avant Ia naissance et après Ia
et droit, Droits, 13,1991, 3-122; A. Seriaux, Entre justice et droits de 1'homme: mort, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1991.
340 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 341

dimento tinha importantes consequências comerciais, daí o Mas qual é a força que preside a essas inovações? O
pedido de patente pelos pesquisadores. A Corte deu-lhes progresso técnico as permite, não necessita delas. Logo, é
ganho de causa, decidindo que a nova bactéria não era uma noutro lugar, na cultura, no sentido antropológico do termo,
obra da natureza, mas do homem. Era reconhecer uma nova que devemos procurar. E sabemos que nossa civilização fez
categoria de vida, artificial, devida ao homem, distinta da a escolha cultural do económico, cuja autonomia ela procla-
vida natural. A decisão da Corte Suprema opera, pois, um mou já no século XVIII. Subterfúgio, destinado a libertá-la
reconhecimento crescente do domínio do homem sobre a de coerções suscetíveis de refrear a "lógica" do mercado,
natureza (pode concorrer com ela na produção da vida). cujos efeitos vimos aqui. Pois a extensão do campo da paten-
Também toma mais curto o prazo de sua própria dissociação: teabilidade traduz o poder crescente do mercado. E, mais
as bactérias, seres unicelulares, representam uma forma de precisamente, o peso do negócio sobre a propriedade.
vida pré-animal. Foram necessários cinquenta anos para efe- No final do século XVIII, o homem já está numa relação
tuar essa transição a partir do vegetal. Bastam sete para pas- de dominação relativamente à natureza. Mas reconhece-lhe
sar da bactéria ao animal: em abril de 1987, o Departamento certos limites: certos elementos (o ar, o fogo) não podem ser
Americano do Comércio anuncia que se poderão registrar apropriados por ele, pois formam o património comum da hu-
patentes que protegem novas formas de vida animal obti- manidade. A Revolução supervaloriza o direito de proprie-
das mediante manipulações genéticas. Alguns meses mais dade (a Declaração dos Direitos do Homem de 1789 o trans-
tarde, é criada uma companhia privada, Genome Corporation, forma num direito inviolável e sagrado), no qual vê a garan-
cujo objeto social será seqúenciar partes do genoma huma- tia da liberdade. Daí a extensão de seu campo, dos bens
no para vender as informações postas no computador a materiais às obras do espírito, bens imateriais. Mas aqui
quem quiser comprá-las, o que implica a apropriação delas ainda impõem-se limites: são consideradas inapropriáveis
pela empresa27. Em 1988, o escritório americano de patentes as ideias, os métodos terapêuticos ou de ensino, os planos
aceitou patentear "Myc-Mouse", um camundongo cujos cro- e combinações de crédito etc. O que cria sérios entraves à
mossomos foram manipulados de modo que aparecesse nele exploração comercial das técnicas nascidas das revoluções
um gene que favorece o desencadeamento de certos cânce- industriais do século XIX. Logo dão-se conta disso: o con-
res, para poder testar tratamentos contra essa doença. ceito de propriedade industrial começa a desviar para uma
Decerto ainda não se chegou a esses extremismos na direção tendente a sacralizar não mais a natureza ou o espí-
França: as limitações trazidas pelo Comité de Ética para as rito, mas os mecanismos do mercado. A propriedade se au-
terapias genéticas o comprovam. Mas a jurisprudência fran- tolimita com base no modelo da propriedade imobiliária? Há
cesa segue, com um tempo de atraso, o encaminhamento que se afastar da ideia de propriedade: os industriais pre-
das autoridades americanas. Em 1965, o tribunal de Aix-en- zam menos a propriedade de uma técnica do que a possibi-
Provence retomou o raciocínio do Plant Act ao julgar que lidade de ter acesso ao mercado. Daí em diante se falará mais
uma variedade floral podia ser patenteada se resultasse de de direitos intelectuais (fim do século XIX), de direitos de
uma intervenção humana cujos efeitos não podiam ser atin- clientela (anos 1950) e de reserva de valor (anos 1980): a fun-
gidos pelo simples jogo das forças da natureza. ção cria o conceito, e seus órgãos terminológicos.
Assim, no decorrer de nosso século, o direito dessacrali-
zou a natureza e o vivente. Para utilizá-los, o homem moder-
27. Cf. Liberation, 12-13 set. 1987. no já não escolhe aliar-se a eles, mas submetê-los, cada vez
342 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 343

mais imperiosamente, criando os instrumentos jurídicos ade- gral de que, já nos primeiros segundos seguintes à concep-
quados. Por conseguinte, por que não subjugar também a ção, o embrião era fundamentalmente um humano, o di-
pessoa humana ao mercado? reito poderia tomar distância dessa realidade. Na dúvida,
Pois alguns de seus elementos podem ser dotados de um nossos predecessores estabeleciam uma ficção em proveito
valor económico. O corpo, por exemplo, e, por extensão, a da criança. Pois é terrível o dilema, bem como a escolha que
matéria humana. Pois se reconhece de iure por intermédio deve dar-lhe um termo: jamais a decisão de interromper uma
da patenteabilídade que o homem podia produzir nos reinos vida deveria poder ser banalizada. Pelo menos estamos cer-
vegetal e animal algo vivo artificial. Por que sua intervenção tos de que o aborto dá fim a uma vida. Mas essa vida será a
ativa sobre alguns de seus constituintes não os faria transi- de um ser humano? Duas respostas são possíveis.
tar do vivo natural para o artificial, rumo ao mercado? Certa- Suponhamos que se considere que a humanidade co-
mente, os direitos da personalidade (a voz, a imagem) são meça já na concepção, na medida em que esta põe em mo-
negociáveis e cotados no mercado. Mas o sujeito continua vimento os processos biológicos que lhe são a sustentação
a exercer sobre eles certo controle e pode opor-se a uma ex- e a expressão (notadamente a formação muito precoce do
ploração indevida: desmembrados da pessoa, esses direitos sistema nervoso). Paradoxalmente, a Lei de 1975 que suprime
continuam a pertencer-lhe. De outro lado, todo indivíduo o caráter penal do aborto parece supô-lo. Seu artigo primei-
pode dar ou legar um de seus órgãos: mas no direito fran- ro estipula que "a lei garante o respeito de todo ser humano
cês, apenas a doação é autorizada, não a venda, o que os desde o começo da vida", o que repete a presunção romana.
faz escapar da lógica económica do mercado. Hoje, trata-se No mesmo sentido, o Conselho de Estado, num relatório so-
de algo muito diferente: o genoma humano poderia ser en- bre a bioética, decidiu claramente que o embrião não podia
carado como um material biológico, certos genes mais dese- ser considerado uma coisa; o Comité Consultativo Nacional
jados do que outros conforme as culturas comercializadas, de Ética afirmou que o embrião era, já na concepção, uma
embriões humanos sem filiação juridicamente constatada "pessoa humana potencial". Mas este nem por isso se bene-
utilizados para fins diversos. Certas hipóteses ainda são da ficia de uma inabalável proteção.
ordem da ficção. Mas já se transpuseram importantes etapas Em primeiro lugar, um ser humano vivo não é automa-
rumo à dessacralização do humano. Eis alguns exemplos. ticamente uma pessoa, no sentido jurídico do termo, ou seja,
O aborto, primeiro, sem caráter penal, ainda que certos um sujeito de direitos. O ausente ou o desaparecido podem
movimentos, nos Estados Unidos e na Europa, demonstrem continuar sempre vivos, pode-se não obstante retirar-lhes a
com maior frequência do que antes sua contestação. Infans qualidade de sujeitos de direitos. X. Labbee, autor de uma
conceptus pró nato habetur, ponto de vista dos romanos adota- tese recente sobre a condição jurídica do corpo humano,
do pela Corte de Cassação em 1929 e por ela elevado, em 1985, pensa mesmo que, à luz do direito positivo, a criança conce-
a princípio geral do direito: "A criança concebida é considera- bida não é em. absoluto dotada ab initio de uma personali-
da como já sendo nascida na medida em que o exige seu in- dade que anteciparia seu nascimento. Ao contrário, é este
teresse." A ciência nos ensina que já em suas primeiras se- último que, retroativamente e por intermédio de uma ficção,
manas o embrião adquire caracteres biologicamente fun- faria remontar à concepção o início da personalidade. Antes
damentais. Será um ser humano? Sabemos que o direito é do nascimento, o embrião seria juridicamente apenas uma
mais ato de juízo do que constatação de verdade. Noutras parte do corpo da mãe, uma pessoa por destinação (assim
palavras, mesmo que tivéssemos a prova científica inte- como os juristas falam de um imóvel por destinação para de-
' ' " -

344 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 345


signar um objeto móvel por natureza, mas cuja situação par- criança leva tempo para se tornar realmente humana; daí o
ticular o faz qualificar de imóvel: por exemplo, uma estatue- costume frequente de dar-lhe um nome apenas depois cie
ta chumbada numa parede). Ademais, mesmo fugindo des- vários anos. Está certo. Mas o princípio de progressividade
sa discussão, encontramo-nos diante de outra dificuldade tem seus riscos. Que fazer dos velhos, cujos enfraqueci-
quanto à proteção do embrião. Pois podem apresentar-se mento ou senilidade poderiam ser interpretados como uma
dois casos. Seja o respeito que lhe é devido absoluto, seja regressão do processo de humanização? As sociedades tra-
relativo.
dicionais em geral respeitam seus idosos, ao passo que nós
Decidindo que certos casos justificam que se possa tirar já somos por demais propensos a nos distanciar deles.
a vida do embrião, o legislador francês optou pela segunda Além disso, assinalar um termo preciso para o início
solução. Combinando esses casos com a fixação de prazos, do humano é tão perigoso quanto datar o dia exato da de-
ele igualmente relativizou a garantia concedida ao ser hu- cadência do Império Romano.
mano desde o início da vida. A mulher grávida pode de fato Os únicos pontos de referência precisos que temos são
pedir para sofrer uma interrupção da gravidez até a décima os da concepção e do nascimento. O direito positivo privile-
semana, se está em estado de desespero, mas é a única que gia o nascimento: ele é que separa o aborto do infanticídio;
pode apreciar esse estado. Portanto, ele constitui uma noção em direito sucessório, a criança nascida só é plenamente her-
puramente subjetiva, solução de que se afastam várias legis- deira desde que seja viável.
lações estrangeiras, que não pode, na prática, ser obstáculo É exato que o nascimento confirma a existência de um
aos abortos ditos de "complacência", dos quais está ausen- ser humano ao decidir sua viabilidade fora do ventre ma-
'pfííí
i*V:í te o desespero. Mais além de dez semanas, e em qualquer terno. Entretanto a concepção é mais seu ato iniciador, pela
época, a interrupção poderá ser praticada se dois médicos junção dos gametas dos pais. Daí a antiga presunção. De ou-
admitirem que o prosseguimento da gestação representará tro lado, a jurisprudência, em acórdãos pouco conhecidos,
sério perigo para a saúde da mulher, ou se existir uma forte aumentou a distância com a natureza. Como se sabe, a espé-
probabilidade de a criança ao nascer ser atingida de uma cie humana se reproduz segundo um modo sexuaclo, que im-
afecção grave e incurável.
plica o encontro do óvulo com o espermatozóide. Biologica-
Ser vivo, humano e ao menos pessoa potencial, o em- mente, portanto, a criança é filha de seus dois autores. Ora, o
brião só se beneficia portanto de um direito à vida relativo, Conselho de Estado, num acórdão de 31 de outubro de 1980,
que deve notadamente inclinar-se, em caso de contrarieda-
ÍÉIí de, diante do direito subjetivo materno.
decidiu que o pai não tinha nenhum direito de se opor a uma
IVG [Interrupção Voluntária da Gravidez]; algumas semanas
Também se poderia decidir que só adquire a humanida- mais tarde (em 13 de dezembro de 1980), a Comissão Euro-
de progressivamente, o que constitui a segunda grande res- peia dos Direitos do Homem estatuiu no mesmo sentido (ao
posta possível. Falando da alma, Aristóteles e Santo Tomás passo que em 1991 e na França, 68% dos homens de 25 a 35
compartilhavam essa opinião. Esse também é o caso de mui- anos consideraram que a paternidade é o momento mais im-
tas sociedades tradicionais: nelas o infanticídio pode ser uma portante de sua vida). O direito sobre o embrião é, pois, um
prática amplamente difundida. O próprio nascimento pode direito subjetivo materno, fundamentado no direito de cada
perder o caráter primordial que conserva entre nós. O infan- qual, homem ou mulher, dispor do próprio corpo.
ticídio por certo se realiza em geral pouco tempo após o par- Então, o que fazer? Devemos voltar às fazedoras de an-
to. Mas essas sociedades costumam pensar que a própria jos, às agulhas de tricô e abandonar as mães em desespero?
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 347
346 NOS CONFINS DO DIREITO

Não, mas adotar uma legislação mais respeitosa do huma- opõe a que uma mudança de estado civil siga essas mani-
no. A proibição absoluta do aborto poderia igualmente ir pulações. Quando ela é sofrida (experiências feitas em prisio-
de encontro a ele ao fazer pouco caso da mãe e ao obrigá-la neiros, durante seu cativeiro, por exemplo), a ordem pública,
a pôr no mundo um ser que seria seu produto, mas não seu em compensação, deixa de ser atingida. Nos anos que se
filho. Mas a transformação do aborto num direito subjetivo, seguiram, jurisdições do Sudoeste (Toulouse, Agen) aborda-
sua possível Canalização, não deixam de constituir extremos ram o problema de modo mais flexível. Em Agen, principal-
lamentáveis. Dizem, é verdade, que, mesmo sem o cará ter mente, o juiz admitiu que o sexo era uma realidade não so-
penal, a maior parte do tempo o aborto é um drama para as mente fisiológica, mas psicológica e social. Mas, em 1990, a
mulheres que a ele recorrem. Mas até quando? Pode vir o Corte de Cassação confirmou com quatro acórdãos o rigor
hábito e dissipar muitas angústias. E, sobretudo, talvez seja de sua posição: o sexo psicológico não deve prevalecer sobre
apenas um começo: puxando uma malha, pode-se desfazer o sexo físico (tal como é constituído pelos genes, pelos hor-
toda a roupa. O respeito pelo humano implica o de certos li- mônios e pela anatomia). Deve-se insurgir contra a insensibi-
mites: o direito é todo-poderoso, essa não é uma razão para lidade dos juristas aos sofrimentos humanos, contra sua hos-
permitir-lhe fazer tudo. Observemos que estamos vivendo tilidade pelos marginais? Não o penso. De um lado, não bas-
simultaneamente os excessos do direito à criança e os do di- ta dar fim a certos caracteres sexuais (notadamente mediante
reito à sua supressão: é que legalizamos nessas áreas a sa- intervenções cirúrgicas ou colocação de próteses) para pas-
tisfação do desejo. Ora, ele deve medir-se com o princípio de sar para o outro sexo. Do outro, no plano da técnica jurídica,
realidade: o Humano faz parte dela. Isso implica distingui-lo o reconhecimento da mudança de sexo criaria problemas
da coisa ou do vivente não humano e proteger a pessoa, se consideráveis, mas que se podem resolver. Será uma causa
necessário limitando os direitos subjetivos, operação que de anulação do casamento, talvez possa ser invocada a títu-
nada tem de escandaloso, tamanha é sua frequência em to- lo de falta pelo cônjuge não anuente desejoso de divorciar?
das as áreas do direito (a propriedade privada pode ser ex- Um transexual cujo estado civil é modificado poderá casar-
propriada; a teoria do abuso de direito veda ao titular de um se? Tudo isso poder-se-á decidir. Tanto mais que, diferente-
direito usá-lo para prejudicar o próximo). mente do aborto, o transexualismo só atinge uma minoria
A supressão do caráter penal do aborto cria o problema de pessoas. Sim, mas seu reconhecimento jurídico seria um
do respeito pela condição humana em sua origem. O transe- atentado a um princípio que, ele, diz respeito a cada um de
xualismo, meu segundo exemplo, a aborda no nível de sua nós. Pois, aqui ainda, hão que se temer os fenómenos de
diferenciação, que rege não só a nossa reprodução, mas a (ar- ressonância.
ticulação da nossa família. Aqui, ainda, o direito pode fazer Em todas as sociedades conhecidas, a diferenciação se-
tudo, inclusive mudar um homem em mulher, e vice-versa. xual se estendeu a outros níveis, que estruturam o humano:
Os esquimós o perceberam antes de nós28. divisão do trabalho, representações do feminino e do mas-
Em 1975, a Corte de Cassação não deixou de limitar essa culino, regras de parentesco, sem contar sua importância no
potencialidade. Quando a transformação física é deliberada desenvolvimento psicológico da criança. Ora, o reconheci-
(indivíduo que se submete voluntariamente a um tratamen- mento jurídico do transexualismo, longe de somente aliviar
to hormonal ou a operações cirúrgicas), a ordem pública se alguns sofrimentos individuais cuja realidade ninguém con-
testa, pode abalar todo esse edifício. Ou, como o propõem
certos autores, ele redunda na definição de um terceiro sexo
28, Cf. supra. p. 332.
348 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 349

em que seriam inseridos todos aqueles cujo sexo não é ho- Mas existem outros casos, mais frequentes do que o tran-
mogéneo: trememos à ideia de um gueto desses. Ou, como sexualismo, em que se manifesta atualmente o nosso dese-
é o caso mais frequente, ele não modifique a posição bisse- jo de domínio da natureza, sem que saibamos onde traçar
xuada de nossa espécie, mas opere a transferência de um seus limites, daí o apelo aos juristas. São os novos modos de
sexo para o outro. Mesmo nessa segunda hipótese, deixa-se procriação, meu terceiro exemplo.
mesmo assim esfrangalhar a fronteira entre os sexos. E por Paradoxalmente, recorrem a ele por um desejo de apro-
que não?, retorquirão. A divisão sexual do trabalho se atenua; ximação com a natureza: querem um filho seu, de seus pró-
nas sociedades pós-modernas, segundo pesquisas efetuadas prios genes. E o que a natureza, em sua imperfeição, pode
na Franca em 1990 e 1991, 58% dos homens consideram de recusar, vão coagi-la a dá-lo mesmo assim, à custa de certo
modo positivo a redução das diferenças de comportamentos número de manipulações físicas e jurídicas. Isto nos incita a
entre homens e mulheres, com o que concordam 62% das perguntar o que é um filho. A natureza sempre responde: o
mulheres (mas, entre os jovens de 20-25 anos, é a tendência produto do encontro dos gametas de seus autores, operado
inversa que se constata); as famílias monoparentais matri- depois de relações sexuais, terminado pela gravidez no ven-
centradas e, mais ainda, recompostas se multiplicam. Fenó- tre da mãe, manifestado pelo nascimento, e cuidado pelos
menos que marcam bem a distância tomada com os dados pais. Mas essa resposta é a um só tempo falsa e incompleta.
naturais da família; elas são apenas um dos elementos de sua Falsa porque a tecnologia possibilita dissociar relações se-
humanidade. Um filho, uma famflia se constróem: por que xuais, concepção, gravidez e nascimento. Incompleta porque,
não o sexo? Os antropólogos repetem muito amiúde que o na espécie humana, a vontade de ser pais, a posse de estado
humano provém mais da cultura do que da natureza... Está podem contar tanto quanto a simples relação sexual. O di-
certo, mas a cultura também tem seus limites/ que ela deve reito romano, ao privilegiar a adoção, ou ao permitir ao pai
respeitar sob pena de implosão. O que se tornarão família e recusar o filho que lhe nascera, concedia à vontade toda a sua
parentesco se se fragiliza excessivamente a diferenciação se- importância. Assim, também na Europa cristã do século XVI
xual, um de seus principais fundamentos? Ao menos seria ao XVIII, o culto dedicado a São José valorizava a paternida-
preciso, antes, ter definido estruturas antropológicas de subs- de voluntária em detrimento dos laços naturais. Os novos
tituição, o que não é o caso. Enfraquecida sem ser renovada, a modos de procriação dariam, portanto, uma chance inesti-
família corre dois perigos inversos, mas igualmente atrofian- mável à criança, tornando-a acima de tudo um ser querido,
tes. Quer o de sua dissolução: a análise sociológica da crimi- desejado, para além das determinações biológicas. Nessa área
nalidade mostra o que pode resultar disso. Quer, mais prová- pelo menos, o domínio da natureza resultaria na felicidade.
vel, o de sua esclerose: é o que atesta a difusão atual da "fa- Não devemos ir tão depressa no caminho. É rompendo
mília-casulo", encerrada dentro dos muros do parentesco. laços que se toma consciência de tudo o que eles enlaçavam.
Isso seria o fim das funções que a antropologia e a história Em 1987, a corte de Nova Jersey, nos Estados Unidos,
nos mostram que ela realiza faz milénios. Em muitas socieda- teve de se pronunciar sobre a validade de um contrato em
•-•.;
des, ela serviu de modelo para a organização política e econó- cujos termos o casal Stern, cuja mulher era estéril, havia re-
mica; em todas foi a condição primeira da constituição do querido por contrato os serviços da Sra. Whitehead. Me-
>
vínculo social: a aliança, cujo significado social foi fundamen- diante remuneração, esta deveria ser artificialmente insemi-
tado pela proibição do incesto, a estrutura, bem como a filia- nada pelo Sr. Stem, gestar a criança e pô-la no mundo, depois
ção, e repousa na diferenciação bissexual. entregá-la ao Sr. Stern e à sua esposa. Ora, nascida a criança,

i
350 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBKENATUREZA 351
ela recusou-se a entregá-la. O tribunal obrigou-a a isso, dades do casamento. Ora, sob as aparências da fidelidade à
pelo motivo de que o contrato era perfeitamente válido. O natureza, essa decisão nos afasta dela de modo vertiginoso.
Sr. Stern era o pai biológico da criança, gerada a partir de De um lado, separa sexualidade e geração, procriação e fe-
seu sémen, o que excluía a hipótese, proibida pelo direito, de cundação, o que, aliás, pode-se recriminar em geral aos no-
que tivesse comprado o filho. O preço pago à Sra. Whitehead vos modos de procriação, que diferem nessa dissociação das
era a mera remuneração de um contrato de empreitada: o ficções elaboradas pelas sociedades tradicionais29. Ao que se
dono da obra trazia o material - o esperma -, o empreitei- pode responder que os casais que a eles recorrem não o fa-
ro seu trabalho, a gestação. Mas em nome de que descartar zem com o objetivo de anular a sexualidade, mas porque as
a incontestável maternidade biológica da Sra. Whitehead, carências da natureza não lhes deixam outra escolha. E per-
que havia não só gestado a criança, mas também a gerara a feitamente exato, mas voltamos aqui ao problema das re-
partir de seu óvulo? O juiz respondeu que a vontade do ca- percussões: no futuro, a legalização desses procedimentos
sal Stern de ter um filho era mais forte do que esse fato na- pode efetivamente permitir a separação deliberada da sexua-
tural. Essa decisão ilustra a onipotência do contrato, traço lidade e da reprodução, como o mostra bem o caso da "vir-
característico da mentalidade jurídica norte-americana: tudo gem-mãe" de Birmingham. Do outro, o tribunal de Créteil sa-
pode ser acertado por um acordo de vontades, inclusive a li- crificou os direitos da criança ao direito materno à criança, já
berdade de dispor do próprio corpo. Por conseguinte, enfra- que autorizou a concepção de uma criança que, antes mes-
queceu-se a distinção entre as pessoas e os bens, e a lógica do mo de existir, perdeu o pai biológico.
mercado pode desenvolver-se: pois o interesse económico en- Outro sinal inquietante: em 15 de junho de 1990, a Cor-
contra então sua expressão jurídica. Os tribunais franceses te de Apelação de Paris julgou que a maternidade de substi-
não seguiram essa argumentação. Lembraram numa série de tuição é o meio lícito de satisfazer o direito natural à funda-
acórdãos que apenas as coisas estão no comércio e podem ção de uma família mediante a procriação. O fim justifica os
ser objeto.de convenções: todo contrato que toma o corpo meios. Felizmente, a Corte de Cassação decidiu de outra ma-
humano por objeto e por causa é nulo por ordem pública. Esse neira. Em 31 de maio de 1991, prolatou um aresto conde-
rigor pode parecer injusto, pois impede casais de ter um fi- nando firmemente tais práticas. O advogado-geral recusou a
lho, quando isso se lhes tornou tecnicamente possível. Por noção de direito ao filho, assim como a referência aos direi-
que sacrificar o desejo de um filho, uma das maiores felicida- tos do homem operada pelos partidários do recurso às mães
des permitidas ao homem, a um princípio abstrato? A respos- de aluguel. A Corte o seguiu. Para ela, esses procedimentos
ta é simples: porque, abolindo os princípios, preparam-se so- são contrários à indisponibilidade do corpo humano e do es-
frimentos e injustiças maiores ainda. Mas, infelizmente, como tado das pessoas e redundam, além do mais, no afastamen-
em todos os exemplos já citados, o direito não tem as anes- to da instituição da adoção (o esquema de fato é o seguin-
tesias da cirurgia que deve praticar. te: uma mãe substituta assina um contrato com o casal, é in-
Entretanto, a jurisprudência francesa não assinala em seminada com o esperma do marido, abandona a criança
tudo a mesma constância. Noutros casos, dirimiu seguindo no nascimento; esta é reconhecida pelo pai biológico e ado-
uma inspiração diferente. Em 1984, o tribunal de Créteil au- tada por sua esposa). A proibição vale para todas as transa-
torizou uma viúva a fazer inseminação com o esperma que o ções, sejam elas operadas a título gracioso ou oneroso (na
marido mandara congelar antes de morrer, justificando sua
decisão com a ideia de que a procriação era uma das finali- 29. Cf. supra, pp. 330-4.
352 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 353

França, o preço de um "aluguel de útero" é de cerca de 50 mil uma das particularidades do homem: já que podemos pen-
francos). sar a nós mesmos, também nos percebemos como distintos
Alguns dias depois de ter sido dada a sentença da Cor- do mundo vivo e inanimado que nos rodeia. Distintos, mas
te de Cassação, a Sra. Noélle Lenoir, num relatório enviado não forçosamente desunidos. A natureza não é humana e,
ao chefe de Estado referente à codificação da bioética, reco- entretanto, em nós ela intervém e limita-nos a existência e
mendava a adoção de uma "lei-cadre". Esta deveria reafir- a identidade. Como constituir nossa humanidade, tarefa ain-
mar que o corpo humano, seus elementos e seus produtos da mais árdua porque o homem moderno recusou funda-
estão fora do comércio e não podem ser objeto de um direito mentá-la em Deus? Decerto pela busca de um equilíbrio, in-
patrimonial. Seria incriminada a intermediação em matéria cessantemente por reinventar, entre a cultura e a natureza.
de mãe de aluguel, assimilada a uma exploração do corpo Eu o disse já no início deste livro: o direito pertence à cultu-
da mulher. ra e intervém na hominização, na medida em que confere
Esse rigor é louvável. Pois onde a demanda é intensa - ao homem uma identidade relacionada com tudo o que o
e esse é o caso dos casais que têm a infelicidade da esterili- cerca. É um dos instrumentos de sua auto-instituição. No
dade - a lógica puramente económica do mercado ameaça, entanto, ele não o tira do nada. O espírito, em nós, se comu-
e não tem o que fazer com a indisponibilidade do corpo hu- nica com o mundo exterior, que inclui nossos semelhantes,
mano. B. Lemennicier, professor de economia na Universi- por certo número de sentidos e de faculdades biologicamen-
dade Paris-Dauphine, o diz sem rodeios. O corpo humano te determinadas. A natureza não nos ancora no material de
não passa de uma máquina biológica na qual está preso o modo perfeito, pois inclui a doença, a atrofia, os monstros
espírito; cada qual é proprietário de seu corpo e de seus ele- e, finalmente, a morte. É por isso que temos perfeitamente
mentos e, portanto, pode fazer com eles o que quiser: já que o direito de modificá-la, por meio de diferentes artes. Mas o
se tolera a prostituição, por que proibir aos pobres enrique- abuso do direito, aqui também, pode desintegrar esse direi-
cer-se vendendo seus órgãos? E nosso autor continua: "Um to. Corrigir a natureza, sim; alterá-la, a ponto de desfazê-la,
feto, uma criança ou um deficiente mental, até mesmo um so- significa também perder a nós mesmos. Visto a importância
nâmbulo, não são pessoas [...] A personalidade de um indiví- do desafio, o jurista não pode contentar-se em lançar ad-
duo ou a pessoa não se confunde com o ser humano. Senão a vertências. Espera-se dele, com razão, soluções. C. Labrus-
inviolabilidade do corpo humano vedaria praticar o aborto."30 se-Riou sugere algumas31.
Sugere um meio inesperado de salvar as minorias étnicas O genoma humano poderia ser protegido pela qualifi-
ameaçadas: congelando embriões e preservando-lhes o ma- cação de património, entendido no sentido da teoria clás-
terial genético, ser-lhes-ia assegurada a sobrevivência. (Em sica de Aubry e Rau: uma universalidade jurídica ligada à
que temperatura?)... pessoa durante todo o tempo que dura a personalidade, in-
Será necessário comentar? transmissível entre vivos, inalienável enquanto conjunto de
Nunca saberemos se os animais, nossos primos, con- direitos, e indivisível. Por outro lado, o respeito de certos li-
'li»:;: seguem conceber-se diferentes do mundo que os rodeia. Mas mites, e dos seres vivos em geral, poderia ser mais bem ga-
sabemos que o desenvolvimento da consciência reflexiva é rantido se se consentisse em distinguir três categorias de

30. B. Lemennicier, Lê corps humain: propriété de 1'État ou propriété de 31. Cf. C. Labrusse-Riou, L'enjeu dês qualifications: Ia survie juridique
sói?, Droife, 13,1991,114. de Ia personne, ibid., 28-30.
354 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 355

sujeitos: os sujeitos de disposição, que conhecemos bem, cer inscrever-se na própria definição do direito: um processo
cujos direitos podem afirmar-se plenamente e de modo au- cultural, pelo qual o homem, já na Pré-História, começou a
m tónomo; o ser humano adulto e capaz. Mas também os su- distanciar-se da natureza. Sem dúvida, mas podemos per-
jeitos de fruição, que têm direitos virtuais: crianças antes de guntar-nos se não se deve parar quando as transformações
nascer, defuntos e até animais. A esses sujeitos sem fala, operadas sobre a natureza atingem urn ponto tal que o ho-
mas dignos de atenção, sujeitos de exercício (administrado- mem perde as referências de sua humanidade: também a
res, tutores etc.) confeririam a voz e os poderes do direito. cultura tem seus limites.
Tudo isso são só ficções? É claro. Mas são elas que fazem Admiti-lo é entrar no terceiro caminho traçado há pou-
o mundo sensível e o mundo das ideias comunicar-se e, de- co: o de uma nova aliança.
finitivamente, encarnam estas últimas.
Vamos resumir. O homem não está espontaneamente
de acordo nem consigo mesmo nem com o universo; isto em A nova aliança
qualquer sociedade, tradicional ou moderna. As primei-
ras não estão totalmente do lado da natureza, como se crê Num livro recente, o filósofo M. Serres convida a huma-
muito amiúde. Mas, para domesticá-la, utilizam a cultiira nidade a fazer um contrato com a natureza32. Uma nova
de maneira diferente das sociedades modernas. Apelam mais aliança. Até aqui, o contrato social, firmado somente entre
para as fícções, que, em sua abstração, violentam menos o os homens, fundador da modernidade, bastara para erigir,
ciado natural e autorizam mais facilmente arrependimentos de um modo ou de outro, proteções contra as empreitadas
e perdões. Sem lhes desdenhar o emprego, as sociedades de autodestruição do género humano. Mas o homem mo-
modernas empreendem modificar a realidade da natureza derno investiu sobre a natureza com mais força do que em
em seus equilíbrios e em seus processos de reprodução. todo o seu passado. Forçando-a, despertou-a tão bem que
Admite-se de bom grado fixar limites aos comportamentos se torna necessário elaborar um pacto com ela. Daí certo nú-
dos indivíduos, aos interesses económicos e à tecnologia mero de recomendações em que o filósofo se une aos antro-
em matéria de meio ambiente: a ecologia é um tema popu- pólogos: o homem deve elaborar procedimentos de aliança
lar. Já não se dá o mesmo quando se abordam assuntos tais com a natureza e, em vez de afrontá-la, reinventar o sagra-
como o aborto, os novos modos de reprodução, até mesmo do, considerar que os seres vivos têm direitos, e o homem,
o transexualismo. Pois, aqui, toca-se muito mais direta- deveres para com eles. A nova aliança inclui os direitos do
mente na liberdade individual, valorizada pela modernidade, homem, não se reduz a eles.
e à qual devemos muitos progressos. Ter um filho, recusá-lo, O respeito pela "natureza natural" contrasta aqui com
viver-se homem ou mulher: são escolhas em que já não ad- os empreendimentos evocados acima. A tese remete mais
mitimos que uma coerção exterior possa exercer-se sobre o uma vez ao debate entre as Luzes e o Romantismo. O pensa-
nosso livre-arbítrio. E, no entanto, isso põe em jogo o futu- mento das Luzes reduz o mundo ao estatuto de puro dado:
ro de nossa humanidade da mesma maneira que a camada
de ozônio. Mas nós o admitimos menos, porque isso pode
32. Cf. M. Serres, Lê contraí naturel, Paris, F. Bourin, 1990. Poder-se-ão
custar-nos muito mais: o indivíduo aqui fica tentado a exa- ler as resenhas de dois juristas: E. Putman, Revue de Ia Recherche ]uridique et
cerbar seus direitos... e o poder do direito. Pois, afinal de Droit Prospectif, 3, 1990, 687-688; F. Ost, Nature et Humanité - À propôs de
contas, o projeto de dominação da natureza poderia pare- deux ouvrages récents, RIE], 24,1990,125-31.
356 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBEENATUREZA 357

o homem só se institui separando-se dele e dominando-o. dinados à sua salvaguarda; o princípio segundo o qual a tec-
O Romantismo torna mais contratuais suas relações: o ho- nologia deve servir às comunidades humanas - e não o in-
mem espiritualiza a natureza, a natureza o transcende. Mas verso - afirmado.
a modernidade não acarretou transformações irreversíveis, No entanto, o emprego do termo património, num tex-
que relegam à utopia a visão romântica? Pois entre a natu- to tão intensamente jurídico, não é inocente. Pois o patri-
reza natural e nós, a tecnologia criou um terceiro mundo, o mónio é uma noção precisa: designa a reunião dos bens de
dos artefatos, cuja amplitude não tem medida em comum um mesmo proprietário, direitos com caráter pecuniário cujo
com que conheciam as sociedades do passado ou aquelas titular é um mesmo sujeito de direito. Portanto, situamo-
dos etnologistas: a natureza em estado bruto quase não exis- nos sempre dentro de uma lógica em que o homem trata a
te mais. Não somos forçados a reservar-lhe "parques", sinal natureza como objeto de propriedade e a imagina de modo
da distância que nos separa dela agora? Mas suponhamos antropomórfico. Á prática o confirma. Costuma-se prote-
que não seja tarde demais. Resta uma outra dificuldade. O ger mais as espécies domesticadas, próximas do homem,
contrato natural não seria uma mera extensão do contrato ou cujos constituintes têm um forte valor económico (cro-
social? Pois o jurista opõe que a natureza só pode ser um ob- codilos), do que as outras (os insetos, em geral). Quanto ao
jeto, e não sujeito de direito: então o contrato desaparece, Conselho de Estado francês, cuja surdez às considerações
por falta de contratantes. Pode-se sair por várias vias des- ecológicas é espantosa, sabe-se que ele admitiu a classifica-
sa contradição. Mas, em todos os casos, precisamos parar de ção de uma campina... por ela ter inspirado Manet33! O re-
conceber a natureza à maneira de Bacon, como nossa filha flexo antropomórfico também atua em direito internacio-
submissa. Como o direito poderá dar-lhe um novo rosto? nal. Em 1974, a Austrália e a Nova Zelândia processaram a
As ideias evoluem, os códigos também. O Código Civil França perante a Corte Internacional de Justiça em razão de
data de 1804. Seu art. 544 enuncia que "a propriedade é o di- atentados contra seu meio ambiente e suas populações,
reito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, causados pelas experiências nucleares francesas no Pacífico.
contanto que não se lhes dê um uso proibido pelas leis e pe- Fundamentavam suas petições na Declaração Universal dos
los regulamentos". É certo que a lei pode limitar o desejo do Direitos do Homem e noutras Convenções que implicam
sujeito: mas a afirmação de seu domínio sobre as "coisas" é esses direitos. Ora, nessas diversas declarações, a natureza
primeira. Em 1990 surge o Código do Meio Ambiente. A or: tem o homem como centro. Ademais, a argumentação delas
dem das prioridades já não obedece à mesma hierarquia: "É baseava-se implicitamente na ideia de que Estados podem
dever de todos zelar pela salvaguarda do património natural comportar-se relativamente ao seu meio ambiente natural
no qual vivem. As atividades públicas ou privadas de organi- como a pessoa ao seu corpo. Mas, opor-me-ão, o direito in-
zação territorial, de equipamento e de produção devem con- ternacional também está na origem de uma noção que torna
"KÍilfP- formar-se às mesmas exigências. A realização desses objetivos a sacralizar a natureza: a de património comum da humanidade,
fffií?' deve igualmente assegurar o equilíbrio harmonioso da popu- firmemente declarado não aprdpriável. Vários tratados lhe
lação residente nos meios urbanos e rurais" (art. L-200-1).
inseriram expressamente a Antártica, o espaço extra-atmos-
Os dois textos não são contraditórios: os imperativos
do segundo podem muito bem entrar nas condições consi-
deradas pelo primeiro. Mas o espírito já não é o mesmo: a 33. Cf. M. A. Hermitte, Lê concept de diversité biologique et Ia création
ênfase é dada aos deveres do homem para com a natureza; d'un statut de Ia nature, m: Uhotnme, Ia nature et Ic droit, org. B. Edclman e M.
os imperativos da produção são dessacralizados, pois subor- A. Hermitte, Paris, C. Bourgois, 1988, 243,

VSSíiíí;1:
358 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 359

férico, a Lua e os outros corpos celestes, as profundezas der a um inventário antes de entrar em gozo do bem, deve-
submarinas e seu subsolo mais além dos limites da jurisdi- se elaborar um estudo de impacto antes de qualquer obra
ção nacional. Tudo isso tem, contudo, pouco que ver com o de infra-estrutura capaz de influir sobre o meio ambiente35.
contrato natural de M. Serres. Nem os indivíduos, nem os Todavia, a natureza continua definida pela ideia de recurso.
Estados podem certamente apropriar-se desses diversos bens A referência económica está igualmente presente nas senten-
patrimoniais. Mas estes permanecem submetidos à huma- ças e convenções que começam, aliás, a quebrar a carapaça
nidade cujos tratados afirmam e protegem os direitos exclu- da coisa que encerra a natureza. Em 1973, um petroleiro der-
sivos à exploração, à gestão e à utilização deles. Portanto, rama petróleo, que vem poluir uma floresta pantanosa de
trata-se menos de uma nova sacralização do que de sua neu- Porto Rico, deserta, sem nenhum valor. Ela não tem pro-
tralização política: o homem, aqui, contrata só consigo mes- prietário, não há prejuízo económico. No entanto, o Estado
mo, a propósito de uma natureza que não foge de sua con- porto-riquenho, que se definira como "tutor da natureza",
dição de coisa. obtém na justiça uma indenização. O que equivale a separar
Aliás, sua reificação facilita-lhe o recorte. A maior par- a natureza do homem: reconhece-se que ela pode sofrer um
te das regulamentações refere-se hoje a elementos isolados prejuízo, ainda que o homem não o experimente. Em 1988,
do património vivo (tal planta, tal animal etc.) e não ao mun- a Colômbia, para diminuir sua dívida externa, vende zonas
do vivo corno sistema, ao passo que é justamente essa es- de diversidade biológica sem valor agrícola a associações
trutura sistémica atestada pela ciência, na qual se funda- americanas de proteção da natureza que se comprometem
rn;-::Uam certas pessoas para personificar a Terra, reativan- a deixá-las inexploradas36: a instituição da natureza, também
do o mito cie Gaia34. A Carta da Natureza, adotada pela ONU aqui, opera-se mesrno, mas graças a uma venda motivada
cm 1982, também se inspira numa visão cosmológica, e não pelo interesse económico do Estado colombiano.
mais antropocêntrica da natureza: nela o homem é visto como O económico está presente, mas de forma nova, pois
parte e não como dono do mundo, as espécies vivas são si- integrado numa lógica que escapa à sua própria racionali-
tuadas no seio de ecossistemas. Mas esse texto não tem - dade. Daí a relativização de sua autonomia, decretada pela
ainda não? -valor jurídico. Entretanto, certos sinais mostram modernidade. Nisso, aproximamo-nos da visão holística das
que, aos olhos dos juristas e dos juizes, a natureza talvez sociedades tradicionais. Mas decerto trata-se apenas de uma
já não seja realmente um objeto, que se desperta. Olhemo- etapa: se a natureza se tornar sujeito de direito, então co-
la abrir os olhos. meçarão realmente os achados.
O homem fez a natureza à sua imagem. Ela ainda traz Os juristas norte-americanos já se perguntavam há vinte
a marca de suas rnãos, Primeiro porque os juristas, mesmo anos se as árvores podem atuar na justiça37. Ainda não esta-
libertando-a, sempre procuram inseri-la nas categorias do mos nesse ponto. Mas certos juristas franceses, como M. A.
direito romano. Assim, para M. Rémond-Gouilloud, a na- Hermitte38, pleiteiam em favor do reconhecimento do estatuto
tureza não pode tornar-se um sujeito de direito. Mas nem
por isso temos a sua propriedade. O homem não dispõe 35. Cf. M. Remond-Gouilloud, Ressources naturelles et choses sans
para com ela senão de um direito de usufruto, muito mais maítre, op. cif. supra, n. 33, 231-5.
limitado. Como o usufrutuário do Código Civil deve proce- 36. Cf. N. Bonnet, Échange de dette contre reserve écologique, Lê Monde,
13 fev. 1988.
37. Cf. C. Stone, Southern Califórnia Law Review, vol. 45, n. 2,1972.
34. Cf. supra, pp. 322-3. 38. Cf. supra, n. 33.
360 NOS CONFINS DO DIREITO 361
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATIIREZA

de sujeito à natureza, ruptura copernicana com a moderni- de um sólido avanço sobre nós. Não, eu já o disse, que se te-
dade, para a qual apenas o homem é sujeito de direito. nham abstido de intervir na natureza. Mas porque o fazem
Para esse autor, devem-se abandonar as qualificações em geral com menos violência que nós e sobretudo porque
de recursos naturais, que reificam a natureza, ou a noção ha- sua abordagem da morte é diferente. Se a morte é um aniqui-
bitual de património. A natureza é um conjunto vivo, a ser lamento, então fomos nós que a inventamos. Pois, para o ho-
distinguido radicalmente do inerte, situado do lado da coi- mem tradicional, ela opera uma mudança de existência, uma
sa. Por essa razão, assim como o humano, ela não pode ser transformação que conduz a uma sobrevivência através de
sujeitada às leis do mercado. Como a natureza é uma abs- uma modificação de estatuto. É por isso que as sociedades
tração, são os ecossistemas, nos quais ela se realiza, que tradicionais integram a vida humana num continuum que reú-
conviria instituir em sujeitos de direito. Meios terrestres, ne acima do homem do presente seus ancestrais sobreviven-
aquáticos ou aéreos teriam o direito de preservar ou de re- tes, e abaixo seus co-descendentes: é esse continuum que é
constituir seus equilíbrios biológicos, sendo esses direitos expresso pela imortalidade de linhagem. Quanto a nós, mor-
exercidos pelos humanos constituídos em gerentes. Deva- remos porque somos sozinhos.
neios? Já vemos surgir tais soluções em direito positivo: in- Nossa dificuldade de levar em conta o direito daqueles
crementação e regulamentações dos parques naturais; cria- que nos seguirão tem, pois, um fundamento antropológico.
ção de biótopos representados por comissões de gestão; Os princípios de nosso direito não se oporiam entretanto a
constituição, em direito suíço, de servidões estabelecidas em isso. O conceito parece muito impreciso? O direito positivo
proveito de associações de proteção da natureza, que zelam contém outros que não o são menos. Em direito privado, tri-
por que o proprietário de terras onde estão presentes bióto- bunais prolatam todos os dias decisões fundamentadas no
pos particularmente ricos conserve um tipo de exploração "interesse da família". Em direito público, já em 1967, os Es-
extensivo, ou mesmo cesse toda atividade. tados Unidos e a URSS firmaram um tratado que subordi-
A natureza sujeito de direito. Esse conceito se harmo- nava a exploração do espaço, da Lua e dos corpos celestes ao
nizaria bem com um novo tipo de direito do homem, que po- "bem-estar da humanidade". Tampouco incomoda reconhe-
deria inspirar-se em sociedades tradicionais. Em 1991, J.-Y. cer o direito de um sujeito que ainda não existe: o princípio
Cousteau lançou uma campanha em favor do reconhecimen- segundo o qual a criança, assim que concebida, deve ser tida
to, em benefício das gerações futuras, de um "direito a uma por nascida quando se trata de seu interesse irrefutável.
Terra indene e não contaminada", que implica o controle das Tudo isto remete, sob formas modernas, a um pensa-
"consequências do progresso técnico suscetíveis de prejudi- mento antigo, ou longínquo, que harmoniza o homem com
car a vida na Terra, os equilíbrios naturais e a evolução da hu- a natureza mediante o emprego de outras ficções, de natu-
manidade". Será um acaso que, nessa hora, o único Estado a reza religiosa. Para os animistas, certos objetos mais do que
inserir esse direito em sua Constituição seja a Papuásia Nova outros são a sede de energias divinas e vitais. A Terra, em ge-
Guiné? Devemos surpreender-nos com essa declaração dos ral, as concentra, daí condições estritas estabelecidas para
iroqueses da Confederação das Seis Nações: "Segundo um sua inalienabilidade, amiúde impossível. Concepções nem
dos princípios fundamentais de nossa cultura, temos de pen- um pouco superadas, já que hoje muitas populações autóc-
sar constantemente no bem-estar de sete gerações vindou- tones salientam perante os tribunais ou em suas negociações
ras."? Pois as sociedades tradicionais dispõem nesse carnpo com seus governos de tutela que nunca puderam ceder di-
362 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 363

reitos de exploração sobre a Terra, que pertencia somente a si tos de repulsa (as unidades de tratamentos paliativos são
mesma: isto significa que ela é sujeito de direito. raríssimas nos hospitais). Pois nossa civilização detém um
Aliás, o animismo não é a única ideia religiosa que re- triste privilégio: o da covardia em face do fim inevitável. A
dunda nesse tipo de resultados. Pois dotar os deuses de uma exaltação do corpo (pelo menos sadio e jovem), a reabilita-
maior autonomia em relação à natureza ou aos objetos não ção - necessária - da sexualidade decerto procedem em par-
implica de modo algum romper suas mútuas relações. Os te dessa cegueira: cumpre desfrutar o corpo para esquecer
juristas romanos pensavam assim que certos objetos, as coi- que é mortal.
sas de direito divino, eram tão ligadas aos deuses ou aos mor- No entanto, múltiplos sinais indicam que nossas socie-
tos que eles as situavam fora do comércio, ou seja, do domí- dades pós-modernas estão em busca de uma transcendên-
nio do homem. Na Idade Média, os direitos dos proprietá- cia, que o homem recusa deixar-se engolir pelo oceano das
rios celestes (Deus, certo santo protetor) extrapolavam os coisas. Embora a Igreja tradicional veja sua influência de-
dos proprietários terrestres. E poderíamos citar muitos ou- crescer desde os anos 1950, desenvolvem-se novas formas
tros exemplos, que mostram como a ideia de um domínio de espiritualidade cristã (a Renovação Carismática conta-
total do homem sobre a natureza é alheia a muitas tradi- ria na França com 250 mil membros). Contrariamente ao
ções. Objetarão que os deuses as inspiravam, e que já não que se costuma pensar, a perda de apego pelas formas
acreditamos neles. Mas nada impede substituir os deuses tradicionais da religião não acarretou uma derrocada das
crenças na existência de um mundo sobrenatural, mesmo
por ideais decididos pelo homem: o sagrado pode existir
que este seja representado com menos precisão do que nas
fora do religioso. É nessa nova sacralização da natureza,
imagens antigas de santos. Em 1986, 31% dos franceses ti-
que abrange também o humano a ela associado, que con-
nham a existência de Deus como certa, 35% como provável,
vergem sociedades tradicionais e pós-modernas. Mas os ou seja, uma nítida maioria de 66% em seu favor. A mesma
vínculos do direito com a sobrenatureza estarão rompidos pesquisa de opinião revelava que 62% pensavam que havia
para sempre? uma outra vida ou "alguma coisa" depois da morte. Mais
inquietante, o come back de Satã é manifesto: em 1990, 37%
dos franceses (um jovem em dois) julgam sua existência
O homem e o oceano das coisas certa ou provável (ou seja, duas vezes mais do que em
1968); nos Estados Unidos, multiplicam-se as manifesta-
Deverá o homem contentar-se, segundo a frase de Cle- ções de violência cometidas em seu nome. Menos centra-
menceau, em ter um curto instante emergido do oceano das das em Deus ou no diabo, mas conjeturando um mundo
coisas? A morte formula perguntas às quais toda sociedade ou energias que transcendem a natureza familiar, as ciên-
deve fornecer respostas. As sociedades tradicionais e anti- cias paranormais, • propícias à exploração comercial, co-
gas parecem, a esse respeito, mais adultas do que as mo- nhecem um inegável sucesso. Alguns números o provam:
dernas: aceitam olhá-la de frente e escolhem ver nela uma 42% dos homens (contra 49% das mulheres) acreditam
das portas que se abrem para o mundo sobrenatural. em pelo menos um dos fenómenos da categoria paranor-
Faz vinte anos iniciava-se no Ocidente o renascimento mal (feitiços, assombrações etc.); 66% dos franceses têm
dos estudos sobre a morte, conduzido por historiadores. confiança na astrologia; 8 milhões consultam videntes. O
Não penetrou nos costumes: passagem ou beco sem saída, nível de estudos interfere no grau de adesão a essas cren-
a morte sempre é tornada selvagem, e os moribundos obje- ças, mas não no sentido que se podia esperar: 46% das pés-
364 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 365

soas que seguiram um ensino superior nas ciências "exatas" sua ausência de pertinência41; quanto à astrologia, ela en-
são-lhes favoráveis, 54% das que fizeram estudos superiores trou nos mercados bolsistas42.
literários, igualmente39. Em suma, os resultados de muitos desses procedimen-
Nem todas essas manifestações devem ser, evidente- tos não parecem muito estar à altura das expectativas de que
mente, postas no mesmo pé: a Renovação Carismática não procedem. O direito poderia satisfazê-las melhor? A priori,
é o equivalente das "terapias" satânicas. Além disso, o su- a questão parece irrelevante: o direito nada tem que ver com
li' cesso do paranormal não traduz somente uma interroga- a metafísica; os pretórios não são igrejas. Aqui, ainda, a an-
ção - disfarçada ou não - que continuamos a sentir sobre os tropologia e a História nos incitam a muito mais prudência.
fins derradeiros. Deve-se também ao fato de que se tem de O refluxo do direito para fora dos campos do religioso e do
toma-lo... por dinheiro sonante. Em 1988, o faturamento sobrenatural é apenas um fenómeno recente, cujo futuro
da edição esotérica estava avaliado em 24 milhões de fran- não se poderia garantir com certeza. Ademais, muitas socie-
cos; estima-se que o volume das transações que intervêm no dades de nossos dias ainda se recusam a fazê-lo. O direito
comércio do paranormal se situa entre 21 e 32 bilhões de pode ajudar a tecer laços entre o mundo natural, aquele
francos (enquanto os franceses gastam 7 bilhões por ano em que nos é dado, e o sobrenatural, escondido de nossos sen-
consultas a médicos clínicos); a clientela contaria com 10 tidos, mas cuja existência é afirmada por muitas culturas. É
a 12 milhões de pessoas para entre 30 e 50 mil profissionais. por isso que podemos perguntar-nos legitimamente se ele
O poder da oferta amplia a demanda. A lógica do merca- é apenas deste mundo.
do, que vimos introduzir-se na natureza, investe fortemente
no da sobrenatureza. Aqui também ela deforma uma das di-
mensões fundamentais do ser humano: a busca do sentido e O direito será deste mundo?
a procura da transcendência. Mesmo as empresas caem na
armadilha40: a numerologia é pregada por F. Ceyrac, antigo A morte é para o direito uma velha companheira. Faz
presidente do CNPF (Conseil National du Patronat Français); muito tempo que ele considera suas consequências mate-
10% delas recorrem à astrologia como técnica de recruta- riais regulamentando as sucessões. A punção fiscal operada
mento, desconsiderando que todos os trabalhos científicos pelo Estado indica que o falecimento não é um ato pura-
realizados sobre a eficácia desses métodos concluíram por mente privado: a sociedade faz-se lembrar aos próximos do
falecido. Mas o direito não considera a morte só pelo ângu-
39. Serão encontrados dados estatísticos recentes sobre o conjunto des- lo patrimonial. Brandindo a ameaça penal, esforça-se por
ses fenómenos em: Un sondage sur lês Français et Ia religion, Lê Monde, l? prevenir os atentados cometidos contra a integridade física
out. 1986,12; N. Tincq, Dieu n'est plus cê qu'il était, Lê Monde, 2 nov. 1990,10; e a vida. Condena a eutanásia sem fazer do prolongamento
Vous avez parle de Dieu, Panorama, nov. 1990, 49-55; Lês fous du Diable, Lê
da vida um dever absoluto para o corpo médico. Certos ju-
Nouvel Observateur, 20-26 dez. 1990, 8-27; I. Carlander, Crimes rituels et gangs
démoniaques. Essor de Ia violence "satanique" aux États-Unis, Lê Monde Di- ristas propõem que, ein caso de manutenção artificial dá vida
plomatique, fev. 1991, 28; Lês Français et lê surnaturel, UExpress, 20 out. 1989,
52-61; M. de Pracontal, L'art et Ia manière de magnétiser lês gogos, UÉvénement
du]eudi, 26 out.-l? nov. 1990, 74-105; G. Mermet, Francoscopie, Paris, Larousse, 41. Cf. A. Cuniot, Incroyablc... inaisfníix! Essai critique sur 1'obscnrantísmc
1988, 12. inodcrne, Bordeaux, 1989,196.
40, Cf. C. Brun, Lirrationnel dans l'entreprise, Paris, Balland, 1989. 42. La Bourse et 1'astrologie, Business Bourse, 122, 3 fev. 1990, 38.
000 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 367

biológica não autorizada especificamente, se invente uma mas as relações deles com as potências celestes ou infernais.
infração de profanação de cadáver e se amplie a de oculta- Como as sociedades europeias modernas, no decorrer de um
ção de cadáver43: o direito deve reconhecer a fatalidade da período que talvez esteja chegando ao fim, se desinteressa-
morte. Mas atém-se a esse combate, ou diz-nos mais sobre ram dessas potências, seu direito oficial já não controla se-
ela? A priori, a morte não é para ele uma passagem, mas so- não muito indiretamente os atos da vida religiosa. Paralela-
mente o fim da vida. Já em 1899 o grande jurista Mareei Pla- mente, elas estendem o território do direito a outras áreas
niol via na morte o aniquilamento da pessoa. Mais perto de que lhes retêm - com razão - a atenção (meio ambiente, bio-
nós, o Conselho de Estado admitiu que a construção de um logia etc.). Como qualificar esses movimentos de fluxo e de
cemitério perto de um imóvel para uso habitacional dimi- refluxo do direito? Para muitos juristas, fiéis às teorias ob-
nuía-lhe o valor venal, desvalorização a ser compensada pelo soletas do século XIX, existem leis positivas da evolução ju-
pagamento de urna indenização: é um reflexo das mentali- rídica, que comandam a diferenciação progressiva do direito
dades. Paralelamente, o princípio de laicidade domina nos- com relação à moral e à religião. Essa diferenciação se in-
so direito moderno: o Código Civil de 1804 é ateu, o Estado seriria no sentido do Progresso: mais autónomo, o direito
se separou da Igreja no início do século XX. adquiriria assim a possibilidade de dar toda a sua medida.
Se os costumes são decepcionantes, o direito parece E assim, cumpriria acrescentar, entregar-se impunemente a
resignar-se a ver na morte o. que ela parece: a dissolução do muitos excessos: as legislações totalitárias do século XX o
vivente. O direito é deste mundo, mostram suficientemente. Mas, sobretudo, a antropologia
Banal, essa constatação só é porém verificada há pou- jurídica mostra que a crença no progresso resultante de uma
co, e não em toda parte. Grande número dos depoimentos diferenciação do direito não resulta de nenhuma lei da his-
de que dispomos sobre as sociedades longínquas ou anti- tória, e menos ainda da natureza.
gas amarram firmemente, ao contrário, o direito às margens Toda sociedade dispõe de técnicas e meios variados,
do mundo sobrenatural com os laços da religião. De modo tanto metafísicos como físicos, para assegurar sua coerên-
que se deve acrescentar um ponto de interrogação a essa cia e perpetuar-se. O inventário desses meios depende do
proposição; ela constitui uma hipótese... dentre outras, mais sistema de valores em que ela crê, e de sua evolução. Quan-
numerosas. do mudam esses valores, as fronteiras dos campos do direi-
Aceita-se comumente que nossas sociedades moder- to também se modificam, incluindo ou não um mundo sobre-
nas desencadearam um processo de inflação da regulamen- natural, cuja existência é aceita, tolerada ou negada. Quan-
tação jurídica. Exato se permanecemos no nível do mundo do a vida religiosa escapa ao direito, não é portanto sob o
terrestre. Mas há que inverter essa constatação quando se efeito de uma lei de ferro qualquer. Esse recuo significa so-
vai além de suas fronteiras. Com efeito, as sociedades que mente que a sociedade que o efetua já não considera a vida
consideram que as intervenções das potências sobrenaturais religiosa indispensável à sua sobrevivência. Ora, mesmo
podem pô-las em perigo (Antiguidade mediterrânea, Idade essa convicção não é eterna: pode modificar-se, enfraque-
cer-se e até inverter-se, como se vê em vários Estados neste
Média europeia e a maioria das sociedades tradicionais)
controlam não só as relações de seus membros entre eles, final de século.

43. Cf. 1'homme, Ia nature et k droit, op. cif., 333.


368 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 369

O direito divino tatua fora roubada na índia. Ora, o governo requereu que o
próprio ídolo fosse aceito como co-reclamante: segundo o
O invisível tem seus senhores, que denominamos deu- direito indiano, ele possuía personalidade jurídica. O tribu-
ses. Estes vivem entre si, mas os viventes mantêm com eles nal americano deu ganho de causa... Essa concepção parece
relações variadas, que vão do lucro à submissão. Sabe-se que muito rara. Em direito romano, um senatus consulto reconhe-
muitas vezes os humanos fazem-lhes sacrifícios. Mas tam- ceu que certas divindades, como Júpiter Capitolino ou a Dia-
bém os deuses devem aceitar coerções. E principalmente con- na de Éfeso, podiam ser instituídas herdeiras testamentais,
sentir em alguns antropomorfismos. As formulações jurídi- mas a administração dos bens recebidos ficava nas mãos dos
cas fazem parte deles. Invisíveis, os deuses se ancoram no magistrados de Estado e não na dos sacerdotes. No tempo
mundo terrestre usando o direito de propriedade. Possuem do império cristão, Justiniano decidiu que a instituição de
tesouros, escravos e vastas propriedades que os sacerdotes ex- Jesus Cristo como herdeiro significava que a propriedade dos
ploram e mandam cultivar para eles: são os "bens dos deu- bens deveria ser transferida para a igreja do domicílio do
ses". Eles os administram como proprietários atentos, que exi- testador. Na índia, ao contrário, o ídolo é uma verdadeira
pessoa jurídica. Ela nasce para o direito com sua consagração,
gem dos humanos o respeito de suas obrigações. Na Bíblia,
acompanhada de uma doação de bens realizada pelo doa-
Deus se declara proprietário da terra prometida. Mas a atribui
dor. Á cerimónia mais importante é a da vivificação; o Espí-
ao povo de Israel a título precário, mediante a observação do
rito eterno é insuflado na estátua, que se torna ídolo. Parale-
Sabá: "Jeová falou a Moisés em cima do Monte Sinai, disse: lamente, o doador manifesta sua intenção de criar um de-
Fala aos filhos de Israel, diz-lhes: 'Quando entrardes no país terminado culto e renuncia aos bens que destina a esse culto,
que vos dou, a terra descansará um sabá para Jeová [...] A ter- isso nas formas ordinárias das doações ou dos testamentos.
ra não será vendida com perda de todo direito, pois a terra me Aplica-se mesmo ao ídolo a presunção favorável à criança
pertence e sois para mim apenas estrangeiros e hóspedes'."44 somente concebida. Os tribunais indianos modernos tiveram,
Os deuses também podiam intervir nas transações imobiliá- ' de fato, de responder a uma questão delicada: poder-se-ia
rias entre os homens. Os limites das propriedades eram então destinar bens ao ídolo antes de ele ser erigido? Na prática,
colocados sob sua proteção especial: serviam de testemunhas a clareza das operações em geral exigia que a questão dos
perante terceiros. Na Grécia antiga, Zeus Órios, protetor dos bens fosse resolvida antes que a estátua fosse vivificada. O
limites, era qualificado de "testemunha do estrangeiro". juiz indiano respondeu com a afirmativa, assimilando a si-
Aliás, esse tipo de raciocínio não pertence somente ao tuação do ídolo não erigido à da criança concebida, que
longínquo passado. Um caso indiano o mostra bem. Em 1973, deve ser tida por nascida quando o exige seu interesse. Uma
o colecionador de arte norte-americano Norton Simon com- vez viável, o ídolo se torna uma entidade jurídica. Pode pos-
prava num antiquário nova-iorquino uma estátua de bronze suir bens de qualquer natureza (alguns deles são riquíssi-
do século X que representava Nataraja, uma das formas de mos); atuar na justiça para defender seus direitos; tem a
Xiva45. Algum tempo depois, era processado na justiça pelo plena capacidade de receber liberalidades. No entanto, de-
governo indiano: no momento da compra, saberia que a es- ve destinar as rendas que recebe aos usos indicados pelo
doador. Mas necessita, para todas essas operações, de um
órgão humano: seu curador, em geral uma pessoa nomeada
44. Lv, 25, 2; 25, 23.
45. Cf. D. Annoussamy, La personnalité juridique de 1'idole hindotie, Re-
pelo doador. Esse intermediário se situa muito precisamente
vite Historique de Droit Fmnçais et Étranger, out.-dez. 1979, 611-21. na junção entre o invisível e o direito deste mundo.
370 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 371

Por intermédio da propriedade, os deuses ficam, por- Felizmente, encontramos também nas relações com os
tanto, imersos no mundo terrestre. O contrato serve para deuses a união ao lado da fogueira. Conhecemos inúmeros
deixá-los presentes aos vivos. Esses contratos são em geral exemplos de casamentos com os deuses, que concedem sua
sinalagmáticos: às obrigações de uma parte devem corres- proteção em troca da satisfação de suas necessidades sexuais.
ponder as da outra. Sabe-se que os deuses dispõem de meios Essas práticas existiam na Babilónia, no Egito, entre os in-
variados (entre eles a doença) para forçar a parte recalci- ças etc. Segundo os relatos dos jesuítas do Canadá no século
trante a cumprir a promessa. Mas o homem pede não hesi- XVII, os hurões e os algonquinos davam esposas às suas re-
tar em puni-íos46. Os samoiedos chicoteavam seus ídolos e des47. No início da temporada de pesca, casavam duas me-
os jogavam longe; os esquimós da baía. de Hudson priva- ninas com esses objetos. Durante a refeição de núpcias, a
vam de comida e despojavam de suas vestes as estatuetas rede era colocada entre as duas crianças, e rogavam-lhe que
que representavam seus espíritos protetores... A ideia de fa- pegasse muitos peixes.
zer contratos com as potências invisíveis não tem, aliás, nada Pode-se achar graça. Mas a nossa própria tradição cristã
de exótico. Encontramos numerosos exemplos seus na his- não escapa a essas ideias. As religiosas costumam ser qualifi-
tória do Ocidente, sem falar da aliança do povo de Israel com cadas de esposas de Cristo. No século m, são Cipriano conde-
o seu deus. Assim como Clóvis, que, em dificuldade duran- na nestes termos a coabitação das virgens consagradas com
te uma batalha decisiva contra os alamanos, promete ao padres solteiros (o casamento dos clérigos então era autoriza-
deus dos cristãos seu batismo em troca da vitória, pois seus do): "Quão não deve ficar então indignado e enfurecido Cris-
próprios deuses não eram fortes o bastante para fazê-lo to, nosso Senhor e Juiz, quando vê uma virgem, a ele consa-
vencer o combate. Na Idade Média, a Igreja incentiva as grada, deitando com um homem! E com quais castigos ele não
doações imobiliárias em seu favor apelando para a ideia de ameaça relações tão impuras! Aquela que age assim é culpada
retribuição celeste: o doador oferece terras a um santo pa- de adultério, não para com seu marido, mas para com Cristo."
droeiro cuja proteção ele assegura, neste mundo e no outro. Nos exemplos citados até aqui, os homens dão às suas
Em nossos dias ainda, certos mendigos não dizem por oca- relações com o invisível a cor do direito. Noutros casos, são
sião da esmola: "Deus lhe dará em dobro."? E a prática dos as potências invisíveis que intervêm diretamente no mun-
ex-votos pendurados nas igrejas, oferendas feitas em con- do do direito,
sequência de um voto atendido, não é tão antiga. Os pactos Como ocorre com o nome. O direito ao nome, a regula-
com o diabo constituem a parte maldita desses contratos. A mentação de seu uso constituem uma parte considerável de
lenda alemã do Dr. Fausto é um bom exemplo deles. Mas nosso direito positivo. O nome é um dos elementos-chave
tais pactos em geral se traduziram de modo dramático na dos atos do estado civil: a declaração de nascimento deve
realidade. Muitos hereges e feiticeiros, acusados de concluir mencioná-lo, e precisa ser feita muito rapidamente após o
um pacto desses, subiram às fogueiras. Assim, em 1180, quei- nascimento. Essa pressa mostra bem que o nome é o sinal
ma-se um em Besançon. Prova de seu delito, descobrem en- do nascimento jurídico da pessoa, ao mesmo tempo que um
tão embaixo da pele de sua axila pequenos rolos de perga- dos elementos que servem para distinguir cada homem de
minho onde estava inscrito o pacto com Satã. Em nossos dias, seus semelhantes. O nome patrônimo o vincula a uma fa-
as seitas satânicas ainda recorrem a tais contratos. mília, o prenome o distingue, o domicílio o situa. No mesmo

6. Cf. H. Decugis, Lês étapes du droit, II, Paris, Sirey, 1946,143. 47. Ibid., 144-5.
372 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA
O TO
à/à

sentido, as antigas tradições atestam muito amiúde o poder bem pode reconhecer fenómenos supranormais. É o que
criador da nominação. No Génesis, Deus cria o universo e o mostra o seguinte caso. Em 1963, no Gabão, E. Bikeye atira
mundo nomeando-lhes os diferentes elementos: "Deus diz: sobre o que acredita ser um chimpanzé. Na realidade, acaba
Taça-se a luz' e a luz se fez. Deus viu que a luz era boa e Deus de matar J. Akoué, um seu conhecido. Acusado de homicídio,
separou a luz e as trevas. Deus chamou a luz de 'dia' e as tre- salienta que J. Akoué estava de fato mudado em chimpanzé
vas de 'noite'. Houve uma tarde e houve uma manhã: primei- para as necessidades da caça, o que ele não podia saber. O
ro dia."48 Para os gregos do tempo de Homero, as palavras tribunal de Lambaréné aceitou sua argumentação e decla-
eram seres alados que voavam no espaço. A ara, imprecação rou-o inocente, motivando assim sua sentença: "... se o chim-
verbal solene, punia os crimes públicos, desencadeando con- panzé tornou-se um homem depois do tiro, Bikeye já não
tra o culpado forças invisíveis (A ara vai até o fim sem esmo- pode ser preso na prevenção de homicídio [...] é de noto-
recimento, dizia ainda Esquilo, vários séculos depois de Ho-
riedade pública no Gabão que os homens se transformam
mero). Na Ásia, o poder do verbo cresce com sua repetição:
ou em pantera, ou em gorila, ou em elefante etc., para rea-
daí o mecanismo dos moinhos de oração (do mesmo espirito
decerto procede a prática cristã dos terços). Nas sociedades lizar proezas, eliminar os inimigos, ou atrair sobre eles pe-
tradicionais, o nome real dos indivíduos em geral é oculto, sadas responsabilidades, defender suas plantações e devastar
pois nomear alguém é desfrutar um poder sobre ele. O po- as de seus vizinhos e amigos, esses são fatos que são desco-
der mobilizador do nome se revela igualmente nas práticas nhecidos do direito ocidental e que o juiz gabonense deve le-
contemporâneas. Como os "nomes de futebol" no Gabão de var em conta."50 Uma vez mais, não vamos sorrir antes da
hoje49. Claro que o futebol era desconhecido na sociedade tra- hora. Basta pensar em nossas antigas crenças nos lobisomens
dicional gabonense. Seus membros utilizavam diversos tipos e no lugar que ainda ocupam em nosso imaginário, por meio
de nomes, destinados a sustentar atividades específicas: no- dos filmes de "horror", para mostrar mais humildade.
mes de dança, de guerra etc. Introduzido o futebol, aparece- Mas esse caso apresenta um outro interesse. Mostra que
ram os nomes próprios desse esporte. São escolhidos de ma- os processos judiciários, que sancionam o direito, podem ser
neira que se expresse a força, que se intimidem os jogadores uma das instâncias de revelação do invisível.
adversários: são nomes "másculos". Extraem-nos em geral
dos objetos oriundos da tecnologia ocidental, cuja reputação
de força é bem conhecida: Caterpillar, Norte-Atlas, Duas-Ro- As provas sobrenaturais
das etc. Apesar das aparências, a referência ao mundo invisí-
vel está sempre presente: esse modo de nominação pretende Quando sobrevêm uma morte brutal numa aldeia, os
captar a energia que esses engenhos mecânicos manifestam issongos (África central) pensam que sua causa é uma força
de forma sensível.
mm sobrenatural. Um feiticeiro é solicitado: há que encontrá-lo
Ml
tffíí
Entretanto, o invisível pode manifestar-se de modo mais
flagrante e modificar o mundo sensível. Um tribunal tam-
50. Sentença prolatada em 22 de abril de 1964 em Booué - Audiência
popular - Registrada em Lambaréné em 25 de maio de 1964, vol. I, Folio 211,
48. Gn, l, 3-5. divisão 2159. O texto completo da sentença será encontrado em F. Pie, Lês po-
ílffi
49. Cf. I. Nguema, Lê nom datis Ia tradition et Ia législation gabonaise, Tese litiques penates enAfrique noire fmncophone: k cãs áu Gabem, Centro de Estudos
de Estado em direito, Université de Paris I, 417-21. da África Negra, Université de Bordeaux, 1989, Anexo XIV.
374 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 375

e puni-lo, O chefe de clã vai encontrar o adivinho: este pas- Mas os humanos podem não confiar totalmente nas
sa nas pernas pó vermelho. O vermelho é a cor da feitiçaria. forças invisíveis. Quando o acusado é um homem importan-
O adivinho atrai assim as forças más para capturá-las. En- te, hábil caçador, bom guerreiro, ou grande trabalhador, sua
tra então em transes e, dentro de uma cabaça cheia de água, perda seria na verdade prejudicial para a comunidade. Um
vê formar-se a imagem do feiticeiro. Vai para perto dele, imo- ancião pode então levantar-se e interceder em seu favor du-
biliza-o com seu poder mágico e raspa-lhe o crânio no nível rante a prova junto à assembleia, e sobretudo às divindades
da fontanela anterior, por onde falam os ancestrais, Acua- presentes à prova. Se seu discurso convence, o chefe de clã
do, o feiticeiro só tem uma saída: pedir a prova do veneno. pede ao adivinho que faça o acusado beber um antídoto, que
Ele mesmo vai desenterrar as raízes que servirão para sua o transporte para debaixo de uma árvore e o reconforte.
confecção e espera que uma manhã o emissário do chefe Mas posteriormente ele tem de resgatar a morte do homem
de clã venha avisá-lo de que chegou o momento da prova. que matou com feitiçaria: deverá pagar aos parentes da ví-
Maceram as raízes com outros produtos dentro de uma ca- tima uma compensação muito grande, sob forma de instru-
baça. Seu tio materno coloca-lhe na mão esquerda seis ou mentos de ferro, redes de pesca ou diversos animais. Se não
doze pauzinhos, coquinhos ou pedregulhos. O acusado puder pagar, deverá dar uma filha, uma prima ou uma irmã,
pega em seguida a cabaça e diz: "Se estou possuído, se tenho reduzida ao estado de escrava.
em minhas entranhas o likundu, que ás forças divinas me der- Coletado em 198551, este depoimento ilustra uma das
rubem." Depois anda em roda na frente da comunidade reu- numerosas maneiras pelas quais o invisível pode intervir na
nida repetindo essa fórmula e enumerando ás faltas de que o justiça humana. Atestados em inumeráveis tradições, os or-
acusam. Cada vez que é pronunciada essa frase, apanha um dálios podem assumir formas muito variadas. A prova do ve-
pauzinho com a mão direita e o joga no chão. Um membro neno é corrente na África. Nossa Idade Média gostava da
da família da vítima o pega e declara: "Se tu comeste o cora- prova por batalha. O duelo judiciário é mais raro na África,
ção de meu parente, que o veneno te pegue, que morras!" mas também o encontramos lá. Assume entre os borosses
Enquanto isso, o veneno começa a fazer efeito. O acusado fica (povo ali, África central) a forma da prova das zagaias. Se
banhado de suor, é tomado por convulsões, mas deve repe- duas pessoas estão em conflito, as personalidades da aldeia
tir incansavelmente o rito. Se não desaba depois de ter jo- se reúnem e fixam a data do duelo. Na véspera, à noite, o che-
gado os seis primeiros pauzinhos, tem grandes possibilida- fe consuetudinário escolhe duas zagaias, entrega-as ao wa
des de sair vencedor da prova. Os anciões garantem que, se gbo kombo, encarregado de recolher os juramentos sagrados.
o acusado é culpado e cai no chão, a força má que o habita- A noite inteira este se recolhe junto das zagaias, dirige-lhes
va jorra do topo do crânio, no lugar da boca dos ancestrais. feitiços e passa veneno em suas pontas. De madrugada, reu-
Mas. ele pode resistir, Semicomatoso, esgotado, vomita, sinal nida a comunidade, ele traça uma linha que corta a praça
de sua inocência: o veneno não encontrou o likundu e não da aldeia no meio e convida os antagonistas a postar-se um
de cada lado desse limite. O acusador enumera suas quei-
conseguiu apoderar-se dele. Seus caluniadores devem-lhe
xas, depois pega uma zagaia e lança em seu adversário. Se
então reparação, que pagam sob forma de facões ou redes de
o acusado for inocente, ela não o atingirá. Joga então a outra
pesca. Uma refeição de reconciliação é feita, um cabrito é sa-
crificado. Aquele que foi falsamente acusado come-lhe o co-
ração, órgão nobre que lhe dará força de superar seu desejo 51. Cf. M. Raynal, Lê phénomène criminei dans ks sociétés traditiannelles
de vingança. d'Afrique centrale, Tese de Direito, Toulouse, setembro de 1988, 282-6.
376 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 377

.jJH-jgfÇM'!! em seu caluniador, que normalmente deve ser toca- veneno. Contudo, elas não são necessariamente desprovi-
do. Mas a própria justiça divina não é infalível. Se nenhuma das de lógica.
wipit
Kfellwiii- das duas zagaias atinge seu alvo, todos reivindicam a vitória, A intervenção dos espíritos ou dos ancestrais pode pa-
e o afrontamento degenera em guerra interclânica ou em ci- recer-nos pura fabulação. Mas para as populações que crêem
são do grupo52. na presença constante, na vida terrestre, das forças invisíveis,
O juramento também pode implicar o mundo sobrena- é antes a nossa atitude de ceticismo que parece irracional.
tural. Aqueles jurados atestando os deuses são-nos familia- De outro lado, a religião não basta para explicar essas pro-
res: há ainda um século, na França, as testemunhas de um vas transcendentes. Elas também existem em razão da rela-
processo de júri juravam perante Deus e defronte ao cruci- tiva raridade das provas materiais. Como observam alguns
fixo que encimava o tribunal. Mas o juramento também pode antropólogos do direito54, devemos imaginar o conteúdo de
utilizar os recursos das energias que, segundo as tradições nosso próprio sistema de provas privado da escrita. Afora ca-
animistas, circulam nas coisas. Como as "pedras de jura- sos de flagrante delito, do depoimento e da confissão, não
mento" cujas manifestações encontramos em culturas mui- restaria praticamente nenhum modo de prova: o apelo para
to diversas53. A utilização delas repousa na ideia de que, me- as forças sobrenaturais vem preencher um vazio.
diante certos gestos e palavras, os homens podem transmitir Depois, cumpre observar que toda prova judiciária, in-
às suas promessas a solidez da pedra. Na índia, nos casa- clusive em nosso sistema moderno, não tende mormente
mentos de brâmanes, o homem faz a futura esposa efetuar a estabelecer uma verdade, mas a criar uma convicção: a do
três círculos ao redor do fogo; ela deve a cada vez pôr o pé juiz, e do grupo social, cuja adesão à sentença é visada. Aliás,
direito sobre um rebolo de pedra enquanto ele a exorta à a existência de presunções irrefragáveis (aquelas cuja exis-
constância. Na Atenas antiga, os arcontes subiam numa pe- tência não é admitido contestar) mostra o caráter relativo da
dra antes de jurar governar submetendo-se às leis. Na Es- busca da verdade. Ademais, existe uma certa verdade psico-
candinávia da alta Idade Média, os anciões subiam em pe- lógica do ordálio: impressionado, o culpado pode confessar
dras plantadas no chão antes de eleger seu rei. No fim do com mais facilidade; seguro de si, o inocente enfrentará a
século XIX, os camponeses bretões ainda tinham o costume prova em melhores condições. Mas essa verdade psicológi-
de vir jurar em cima das pedras. Aliás, outros objetos po- ca pode ser tão forte... que se opõe à verdade factual, numa
dem servir de acumuladores de energia. Entre os beduínos, singular reviravolta. O ordálio pode de fato convencer um
um dos juramentos mais correntes consistia em agarrar o inocente de sua culpa. Na época colonial, tribunais consue-
mastro da tenda e em jurar "pela vida desta tenda". Na Ida- tudinários dos administradores se encontraram diante de réus
de Média, os juramentos sobre as espadas são frequentes, que confessavam delitos que materialmente não podiam ter
como aqueles sobre os livros sagrados (usados igualmen- cometido. Acreditavam tê-los realizado durante o sono (o
te pelos hindus e muçulmanos). sonho mostra que todo homem pode sair de seu invólucro
É claro, pode-se ver nessas provas "irracionais" sobre- corporal enquanto dorme), ou enfeitiçados por um bruxo.
m tudo o sinal da primitividade das populações que a elas re- Enfim, identificar os diversos ordálios a um meio de prova
correm: é melhor o detector de mentiras do que a prova do no sentido moderno do termo talvez provenha de um mal-

52. Md., 302-306. 54. Cf. J. Poirier, La preuve judiciaire dans lês droits coutumiers de
53. Cf. H. Decugis, op. cit, l, 316-22. 1'Afrique noire, in: "La preuve", Recueils de Ia SléJ. Bodin, XVIII, Bruxelas, 1963,39,
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 379
378 NOS CONFINS DO DIREITO

entendido55. Pensamos (e já era essa a interpretação que lhes No Evangelho, Jesus dá uma descrição bastante parecida do
davam os juristas do tempo de Carlos Magno e de são Luís) Juízo final: "Quando o Filho do homem vier em sua glória,
que essas provas transcendentes revelam o parecer das di- escoltado por todos os anjos, então tomará lugar em seu tro-
vindades sobre os fatos passados, objetos do litígio, substi- no de glória [...] Colocará os cordeiros à sua direita, e os bodes
tuindo assim o juiz terrestre pelo juiz divino. Mas isso é si- à sua esquerda. Então o Rei dirá aos da direita: 'Vinde, bendi-
tuar-se em nossa própria tradição, a dos filhos de Abraão, tos de meu Pai, recebei como herança o Reino que vos prepa-
que crêem na existência de um Deus soberano e justiceiro56. rei desde a fundação do mundo. Pois tive fome e destes-me o
Nas sociedades animistas da África negra, o recurso aos or- que comer, tive sede, e destes-me o que beber' [...] aos da es-
dálios não visa tanto pedir às potências celestes a chave de um querda: 'Ide para longe de mim, malditos, no fogo eterno que
enigma quanto restaurar o contato entre os homens e as ener- foi preparado pelo Diabo e seus anjos [...].' E eles irão, estes a
gias que animam simultaneamente os mundos visível e in- uma pena eterna, e os justos à vida eterna."58 O Apocalipse
visível. Pois a infração rompeu esse contato, como o ates- profetiza: "... Vi os mortos, grandes e pequenos, em pé na
tam as desordens que o seguiram. Por certo deve-se localizar frente do trono; abriram-se livros, depois um outro livro, o da
a ruptura, mas sobretudo fazer o necessário para reparar seus vida; eíitão, os mortos foram julgados segundo o conteúdo
efeitos. O ordálio é reparação e busca de um futuro pacífico, dos livros, cada qual segundo suas obras [...] aquele que não
mais do que punição e investigação sobre o passado. E os se encontrava inscrito no livro da vida, lançaram-no no lago
de fogo."59 Já no Antigo Testamento, Jeová prometia que viria
deuses não são policiais do sobrenatural.
julgar todas as nações60. Todavia, os filhos de Abraão não são
Em todos os casos, o invisível intervém para restaurar
os equilíbrios necessários para a coexistência entre o mundo os únicos que crêem poder ser julgados por esses tribunais do
invisível. No antigo Egito, o Faraó ressuscitado deve subme-
dos homens e o da sobrenatureza. Mas acontece que ele
ter-se ao julgamento perante Ra, o deus-sol, que dá uma sen-
atrai para si todo o visível.
tença motivada na forma das sentenças terrestres. Mais tarde,
colocarão ao lado dos cadáveres um capítulo do Livro dos mor-
tos que especifica os procedimentos utilizados perante o Tri-
Os tribunais do invisível
bunal divino, que compreende o mesmo número de juizes
Pois há tribunais do invisível. As tradições monoteístas existentes nas circunscrições judiciárias do Egito. Encontra-
mos em Homero menção de um tribunal localizado nos infer-
o afirmam com vigor. O Alcorão fala do dia inevitável e ter-
nos61, mas sua função é diferente: julga mais os litígios sobre-
rível em que se abrirá a abóbada do firmamento guardado
venientes entre as almas dos mortos do que a vida terrestre.
pelos anjos, antes que todo o género humano compareça
Em nossos dias, os depoimentos das pessoas que vol-
perante o Eterno: depois do julgamento, os justos ganharão
taram do corna, no qual conheceram estados de consciência
o jardim paradisíaco,:sendo os maus engolfados no Inferno".
modificados, costumam fazer alusão a um julgamento. Mas

55. Cf. M. Alliot, La signification de Ia preuve judiciaire (sociétés animis-


58. Mt, 25, 31-46.
tes et États d'Afrique noire), Revue Juridique et Politique, Indépendance et Coopé-
59. Ap, 20,12; 20,15.
ration, 1-2, jan.-mar. 1985, 55-61. 60. Jl, 4, 12.
56. Cf. supra, pp. 64-73.
61. Odisseia, canto XI.
57. Alcorão, LX1X, 16-32.
380 NOS CONFINS DO DIREITO IO'l
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA DO l

o próprio sujeito o opera sobre sua própria vida, que vê des- perceber. Ficarão lá para sempre, gritando sem poder sair; e
filar, em presença de uma entidade espiritual benfazeja e nunca verão aqueles a que amam.""
amorosa: "Assim que ele me apareceu, o ser da luz imediata- Assim, a morte poderia ser apenas uma passagem. O
mente perguntou-me: 'Mostre-me o que você fez de sua vida' falecimento: as sociedades tradicionais o mais das vezes o
ou algo parecido. E de imediato começaram as retrospectivas. consideram uma mudança de existência que acarreta não
Perguntei-me o que me estava acontecendo, porque de re- a exterminação, mas uma modificação de estatuto, o pros-
pente encontrei-me bem pequena e, a partir dali, comecei a seguimento da existência no mundo dos ancestrais, cujos
avançar através dos primeiros tempos da minha existência, emissários vêm acolher o defunto, se acreditamos nessas vi-
ano a ano, até o momento presente [...] E durante todo aquele sões do limiar da morte.
tempo, ele [o ser de luz] não perdia uma ocasião de fazer-me Mas os dois mundos que esse limiar delimita se comu-
notar a importância do amor [...] Mas nada daquilo se parecia nicam: a morte não é um simples passo que o falecido cia-
com uma acusação; mesmo quando ele me lembrava das oca- ria. As relações entre mortos e vivos podem assumir fornias
siões em que eu fora egoísta, queria mostrar-me que tirei a li- quase jurídicas.
ção daquilo. Também insistia muito na importância do conhe- Os adangmes e os ewes (Gana e Togo) estimam que a
cimento. Assinalava-me sem parar tudo o que tem relação verdadeira esposa de um homem é aquela com quem se ca-
com 'aprender' [...] Acredito mesmo que o seu objetivo, fa- sou no além. A "esposa do além" pode, pois, ficar com raiva
zendo-me assistir a todo o meu passado, era instruir-me."62 do marido por ter tomado outra mulher após seu falecimen-
Depois disso, o sujeito pode escolher voltar à vida terrestre, to. Ela o persegue, deixando-o doente ou impotente. O úni-
ou essa volta lhe é imposta. As visões que os ianomâmis têm co meio de acalmá-la consiste em reafirmar o laço matrimo-
em circunstâncias similares ("os que perdem consciência, que nial. O marido manda fazer uma estatueta representando a
parecem estar morrendo e em seguida revivem") também fa- esposa falecida, leva-a para casa segundo os mesmo ritos
zem alusão a uma presença sobrenatural e ao fato de que de noivado e de casamento realizados com uma mulher
cada qual segue no outro mundo o destino que se atribuiu na do. inundo terrestre. Poderá então conservar a esposa viva...
vida terrestre: "Depois da morte, o Filho do Trovão chama a medkmle uma espécie de poligamia. Com efeito, o marido
deverá oferecer à esposa do além dinheiro, roupas e víveres,
sombra: 'Vem por aqui' [...] Junto do trovão vivem todos os
cultivar em proveito dela um pedaço de terra e banhar tecles
mortos: estão pintados e são mais belos do que quando mo-
os dias a sua estátua64.
ravam neste mundo [...] Cada qual encontra lá seus mortos se
Se os mortos recebem o culto ao qual têm direito, os
foram bons durante a vida. São todos jovens, sem nunca ne- vivos podem esperar seus benefícios. Mas em caso de não-
nhum sofrimento nem nenhuma doença [...] Aqueles que fo- execução das obrigações, há ameaça de punição, sem que os
ram maus não ouvem o Filho do Trovão que chama; envere- vivos sempre o percebam bem. Surpresos, podem então ma-
dam-se pelo belo caminho. Quando chegam acima do preci-
pício recoberto de belas folhas, caem no Chopariwake sem
63. Esse testemunho foi recolhido no meio do século por H. Valero, uma
criança europeia raptada pelos ianomâmis e criada por eles (cf. E. Biocca, Yan-
62. Depoimento citado por R. Moody, La vie après Ia vie, "]'ai lu", n. 1984, viwia, Paris, Plon, 1968,159-60).
77-9. É corroborado por inúmeras narrativas de pessoas que viveram esse tipo 64. Cf. L. V. Thomas, Géneralités sur 1'ethnologie négro-africaine, m:
de experiência e conheceram um "processo" similar de autojulgamento. Ethnologie regionais, org. J. Poirier, I, Paris, Gallimard, 257.
382 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 383

nifestar sua irritação para com os mortos. Um depoimento exortou as partes: 'Se alguém está mentindo, vai morrer.
vindo dos zulus o mostra bem. Uma criança cai gravemente Os ancestrais estão presentes e ouvindo.'"67
doente. O pai chama o adivinho: a doença é o efeito da cólera O último exemplo data de menos de dez anos. Nem
dos ancestrais. Então o pai exclama: "Por que não avisaram por isso deixa de nos ser "exótico". Pois esquecemos que,
num sonho que necessitavam de alguma coisa, em vez de ma- durante a maior parte de sua história, a nossa civilização oci-
nifestar isso vindo matar esta criança, sem começar por me fa- dental também experimentou esse tipo de crenças.
lar? Esses mortos são uns idiotas. Por que se manifestaram
sem dizer nada? Vamos, traga a cabra que restabelecerá a paz
com os mortos."65 O Ocidente também
Sujeitos às obrigações para com os vivos, os falecidos
também podem avalizar os compromissos assumidos por A começar por um dos corpus fundadores de nossa cul-
estes últimos com seus semelhantes,, em geral sob a forma tura: o direito romano. Nos primeiros séculos de Roma, o di-
de juramento. Como os dualas (Camarões) que tomam os reito resulta de um acordo entre as potências sobrenaturais
ancestrais como testemunhas da sinceridade de sua pro- e os homens: o binómio iusfasque serve para designá-lo. O
messa. Melhor, tornam-nos coobrigados: "inserida na tum- fas é a base religiosa, invisível, do direito. Mas, para os pri-
ba", a palavra está desde aí sob a guarda do ancestral, cha- meiros romanos, o fas também é direito: é a conformidade
mado a sofrer seus efeitos. Sua entrada no mundo dos an- com a ordem cósmica, que inclui os deuses e os homens.
cestrais sacraliza o compromisso que ela anuncia66. Essas não Antes de empreender uma ação (inclusive no sentido judi-
são crenças ultrapassadas. Podem ainda pesar no curso da ciário do termo), estes devem assegurar-se de que ela corres-
justiça moderna: ponde ao fas: há dias fastos e nefastos; nenhum processo é
"A invocação dos mortos que se parece com um jura- permitido durante estes últimos. O ius consiste nos ritos (má-
mento teve, no caso, perante o tribunal em Sandema [oeste gicos, religiosos, jurídicos) que os homens efetuam, usando
da África], em 22 de outubro de 1966, o objetivo de estabe- da sua liberdade dentro dos limites do fas. Todo homem
lecer a verdade de uma declaração. O sandem-naab ques- que procede aos ritos pode dizer: eu fiz o ius. Portanto, o di-
tionou no fim da audiência depoimentos da mulher que era reito nasce do cruzamento desses dois campos, que ordena o
a causa de um conflito: 'Se seu falecido pai viesse aqui, o que universo. Daí o monopólio que no início os sacerdotes exer-
ele diria?' A mulher respondeu: 'Meu pai diria que eu sou na ceram sobre o seu conhecimento e sobre os meios de pô-lo
verdade a mulher de N/ Essa declaração dirimiu o caso em em prática nos processos. Depois disso, o direito romano clás-
favor de N. Assim também, entre os lyelas [Burkina Fasso] sico se laicizou: no derradeiro século da República, Cícero faz
assisti a uma sessão no tribunal de Réo, em 14 de abril de alusão aos augures, que, oficiando, não podiam olhar-se sem
1983, em que dois irmãos brigavam pelo uso de um terreno rir... Cumprirá esperar o império cristão para que de novo di-
em sua aldeia. No início do processo, um dos assessores reito e religião se aproximem. Outro sinal do declínio da re-
ligião: a inobservância gradual dos tabus das feriae®, cujo
65. Cf. H. Decugis, op. cit., t. II, 137.
66. Cf. M. Bekombo, La pratique du serment chez lês Dwala, in: Lê Ser- 67. R. Schott, Serments et vceux chez dês ethnies voltaiques (Lyela, Bul-
ment, org. R. Verdier, Centre Droit et Cultures, Université de Paris X-Nanter- sa, Tallensi) en Afrique occidentale, Md., 247.
re, 1989, 4. 68. Cf. supra, pp. 333-4.
384 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 385

estiolamento é manifesto no fim da República. Ora, era em O Antigo Testamento raramente faz alusão ao futuro dos
termos jurídicos que se definia o dever dos homens de consa- mortos. Entretanto, após o Exílio (séculos VII-VI a.C.) se de-
grar aos deuses esses dias, abstendo-se de qualquer ação pro- senvolverá a ideia cie uma ressurreição da carne e de uma vicia
fana. Foi possível mostrar69 que a obrigação dos homens é eterna reservada aos justos. O tema da ressurreição se tornará
concebida a partir do modelo daquela que liga o liberto ao central no cristianismo, como são Paulo já o explica aos corín-
seu patrão. O antigo escravo deve a seu patrão operae, certo tios, que tinham dificuldade em crer nisso: "... como alguns de
número de serviços a título gratuito. O mesmo termo operae ê vós podeis dizer que não há ressurreição dos mortos! Se não
utilizado para designar os dias consagrados aos deuses. há ressurreição dos mortos, tampouco Cristo ressuscitou,
O direito romano oferece outros exemplos dessa impreg- Vias, se Cristo não ressuscitou, então nossa pregação é vá?: ia,
nação do invisível70. Certos romanistas sustentaram que, em vazia também a vossa fé [...] Mas, direis, como os mortos res-
matéria de propriedade e de posse, os titulares desses direitos suscitam? Com que corpo voltam? Insensato! O que tu se-
só podiam exercê-los materialmente se previamente a vonta- meias, não recobra vida, se não morre [...] Num instante, num
de deles dominava a essência íntima dos objetos visados: es- piscar de olhos, ao som da trombeta final, pois ela soará, a
tes não são inanimados. Quanto aos mortos, eles sabem fa- trombeta, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis..."73.
zer-se lembrados pelos vivos. De modo às vezes desagradá- Alguns séculos mais tarde, o Alcorão promete de novo
vel: se esquecem de lhes celebrar o culto, Ovídio nos garante a ressurreição: "Será que o homem pensa que não nos reu-
que sairão à noite de seus túmulos berrando, para espantar os niremos a suas ossadas? Por certo sim. E podemos pôr de
humanos71. Mas também podem mostrar-se a eles para re- novo em ordem suas falanges [...] Não era um sémen de es-
confortá-los. Uma inscrição nos ensina que uma mãe deses- perma semeado, depois um coágulo de sangue? Deus o criou,
perada pela morte do filho o vê aparecer pouco tempo depois depois formou, e dele tirou um casal, macho e fêmea. Não po-
de seu falecimento, como "uma forma irradiante de uma luz derá então devolver a vida aos mortos?"74
sideral". Resplandecente, o rapaz sossega a mãe: "Seus olhos Mas, na tradição cristã, esperando a ressurreição geral e
ardentes brilhavam, seus ombros estavam como que aureola- o fim dos tempos, os mortos não deixam de conservar víncu-
dos, seus lábios vermelhos proferiam sons para me consolar: los com os vivos. De modo muito particular na Idade Média75.
'Não fui arrastado às sombrias profundezas do Tártaro, mas Aqui, ainda, impõe-se a ideia de obrigações recíprocas. O fa-
fui levado para os astros.'"72 lecido pode voltar ao mundo visível para obter reparação de
As sociedades tradicionais e as dos monoteísmos acre- um dano que lhe causaram, desmanchando as artimanhas
ditam, pois, na existência de um mundo sobrenatural. Mas armadas pelos vivos para que não pudesse reencontrar seu
existem certas diferenças na maneira pela qual o imaginam. caminho. Mas podem também existir trocas positivas... e
Para as primeiras, é o dos ancestrais. As segundas imaginam mútuas. Os mortos deram aos vivos a vida, a terra e a iden-
mais um mundo dos espíritos, ou das almas, que se unirão no tidade pessoal deles. Ora, o fato de dar faz nascer um direito
dia do Juízo aos seus corpos ressuscitados e transfigurados. de crédito do doador sobre o donatário: toda doação deve
ser seguida de uma contradoação. Os vivos podem utilizar

69. Cf. P. Braun, Lês tabous dês "Feriae", UAnnée Sociologique, 1959, 54-6.
70. Cf. C. Faralli, Diritto e magia, Milão, Giuffrè, 1982, 88-9, 94-102. 73. Paulo, l Cr, 15,12-5; 15, 35-7; 15, 52.
71. Ovídio, Fostes, II, 552. 74. Alcorão, Surata LXXV.
72. C(7, VI, 21521; apud M. Meslin, Uhomme romain, Paris, Hachette, 75. Cf. P. Geary, Echanges et relations entre lês vivants et lês moits dans
1978,195-6. Ia société du Haut Moyen Age, Droit et Cultures, 12,1986, 3-17.
386 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 387

três tipos delas. A transmissão da terra constitui a modalida- cia de um mundo sobrenatural. Na melhor das hipóteses,
de mais frequente. Pois mortos, vivos, crianças por nascer são o direito se recusa a conhecê-lo: ele é resolutamente deste
ligados pelas heranças de terra: aqueles que as receberam mundo. Entretanto, ainda podemos, em certas áreas, per-
devem rezar pelos falecidos que lhas transmitiram, a pon- ceber nas concavidades os vestígios de um sagrado religio-
to de poderem ser considerados parentes todos aqueles de so do qual ele se separou.
quem se recebeu a terra, fora até do parentesco biológico. Por exemplo, os ritos do casamento78. Voltaire já reclama-
Os vivos podem, por sua vez, igualmente oferecer terras aos va separar o sacramento do contrato. A Revolução o atendeu,
mortos efetuando por intenção deles doações à Igreja. A e legislou sobre as formas do ato somente civil que se tor-
transmissão do nome também é, como sabemos76, um sinal nara. O Código Civil só considera uma celebração laica e faz
da presença dos falecidos no mundo visível. Enfim, se os vi- da inscrição desse ato nos registros do estado civil a única
vos cumprem suas obrigações, os mortos vêm fornecer-lhes prova da união (art. 194). Mas as formas desse casamento
ajuda e conselho, quer em pessoa, quer através dos sonhos
lembram estranhamente as da união religiosa. As duas pu-.
ou das visões.
blicações previstas pelo Código de 1804 devem ser afixadas
Não falta a tudo isso de pitoresco, e mesmo de poesia.
"na porta da casa comum [...] um domingo" e os banhos pu-
Mas a modernidade tende mais a nos convencer de que é o
homem que cria os deuses. O que, aliás, parece ser reforçado blicados na pregação dominical. O prefeito devia ler aos futu-
por muitos depoimentos já citados. A existência de um mun- ros esposos o capítulo VI do Código, consagrado às suas res-
do sobrenatural não é evidente, nem a sobrevivência dos pectivas obrigações, transposição laica da Epístola aos Efésios
mortos. E ainda seria preciso imaginar que essas divindades, lida pelo padre por ocasião da missa de casamento. Como em
essas forças espirituais e esses falecidos fazem contratos co- direito canónico, é o consentimento dos esposos que cria o
nosco segundo as formas do direito civil, que se dão ao traba- vínculo, não a intervenção do oficiante. De fato, os redato-
lho de se vingar, e se constituem em tribunal celeste? Real- res do Código Civil queriam transformar o casamento num
mente encontramos mais notários do que anjos no mundo ato solene, capaz de rivalizar com seu homólogo religioso.
do invisível: humano, humano demais, não são mais do que Esse objetivo nunca foi atingido. Tampouco em nossos dias:
sonhos. A que sentido o nosso direito se inclina? segundo uma pesquisa de opinião efetuada em 198679,41%
dos franceses desejariam que se pudesse casar somente na
igreja. De fato, o casamento civil perdeu a partida, aliás per-
G direito órfão deu sua solenidade. Ao marcar o casamento com ritos que o
socializam, uma parte considerável dos franceses esco-
"A personalidade se perde com a vida. Os mortos já não lheu vestir roupas religiosas (a fé é outro problema: inúme-
são pessoas; não são mais nada"77: eis o que escrevia em 1899 ros desses casamentos ritualizados são na verdade pagãos,
o grande jurista Planiol, lacrando nossas tumbas sobre o nada. como as missas do galo). Pois suas vantagens simbólicas são
Pois a modernidade é globalmente cética quanto à existên- evidentes: a cerimónia religiosa é mais demorada do que a

76. Cl. supra, pp. 331-4. 78. Cf. C. Pachiaudi-Savelli, Êtiide comparative dti rítuel du mariage civil et
77. M. Planiol, Traité élémentaire de droit civil, Paris, LGDJ, 1915,141 (a religieux, Mémoire pour lê DEA d'Histoire dês institutions, Université d'Aix-
primeira edição data de 1899). A frase será suprimida ao cabo de algumas Marseille III, 1989.
reedições. 79. La Vis, 2-7 mai. 1986.
388 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 589

celebração civil; abrange músicas, preces e cantos que a so- da ausência do acontecimento 80 . Mas em nossos dias muito
lenizam, como as vastas dimensões das igrejas (opostas à poucos pleiteantes têm tanta confiança na consciência do
exiguidade dos locais municipais). O ritual civil é estático, ao adversário: igualmente céticos, aliás, os juizes têm tendên-
passo que o católico implica todo um gestual dos participan- cia a afastar esse modo de prova do fato discutido.
tes: o padre acolhe os futuros esposos no umbral da igreja; Seria porque o juramento perdeu seu núcleo duro, a re-
vestida com uma roupa especial, a noiva entra no edifício ferência formal a uma força superior pertencente ao mundo
dando o braço ao pai, seguida de um cortejo; ela oferece sua sobrenatural? Sabe-se menos que antes o que o sacraliza, e
virgindade a Maria sob forma de flores, que sacraliza assim o que o jurador entrega como penhor. A sacralização sub-
o ato carnal ao redor do qual ronda o demónio. O padre fala siste porém, mas opera no campo das referências ao huma-
também da união dos corações, enquanto o oficial municipal
no. Perante os tribunais de júri franceses, os jurados juram
enumera os termos de um contrato. Enfim, o casamento re-
decidir-se com "a firmeza que convém a um homem probo e
ligioso envolve os esposos na proteção de seus parentes, que
participam dos ritos (o pai acompanha a filha ao altar) e aos livre". E não é dito que, em todos os casos, essa referência a
quais o padre faz muitas alusões. Enquanto a união civil só modelos somente terrestres seja menos operante do que os
considera um casal solitário. juramentos religiosos, pois a ideia de superação continua
Portanto, o casamento sempre parece em busca de uma presente. Assim, as jurisdições que conhecem dos conflitos
transcendência que perdeu, e pode reencontrar nas formas do direito internacional privado validam "gentíeinerís agree-
da união religiosa: o rito coage, e pode também liberar, so- ments" em geral referentes a interesses consideráveis que, em
bretudo quando consagra uma mudança de estatuto. sua conclusão, só empenham a dignidade das partes enquan-
O declínio do juramento parece mais profundo. Nos pri- to parceiras numa troca. Em direito interno, a jurisprudên-
meiros anos da Revolução, o legislador deu-lhe uma grande cia às vezes dá às palavras de honra um alcance superior ao
importância ao impô-lo amiúde na vida pública e política. contrato. Os tribunais superiores admitem mesmo que o
Aqui, ainda, cumpria substituir o juramento fundamentado juramento possa ir contra a ordem pública e instituir uma
na fé cristã por um rito que levasse em conta a ideia nova, partilha de clientela entre médicos, ou fundamentar a re-
nacional e democrática. O fracasso parece repetir-se: hoje núncia à redução de pensão alimentar.
o juramento tem uma importância quase nula em matéria A negação de um mundo sobrenatural não esgota, as-
política, e reduzida no campo administrativo. Em matéria pe- sim, a ideia de transcendência e não suprime o sagrado.
nal, não se admite que o réu nem a parte civil prestem jura- Ocorre que, órfão da religião, o direito positivo deixa apagar
mento, sinal de que, já não tendo medo de deuses imagi- suas marcas. Mas não pode desviar-se completamente das
nários, os homens fariam pouco caso desse compromisso
em relação à defesa dos.seus interesses. No civil, admite-se
80. Cf. R. Pageard, Lê sennent dans Ia vie française moderne, m: Lê Scr-
que, em todas as matérias em que a ordem pública não está ment, op. dt., 191. Cf. também B. Oppetit, L'engagement cThonneur, C/im/i/í/ue
envolvida, uma das partes possa conceder à outra o jura- XVII, Dalloz, 1979; B. Beignier, 1'honnenr et k droit, Tese de Direito, Paris, 1,1991,
mento para estabelecer a verdade de um fato. Esta pode re- multigr.; G. Courtois, Lê sennent: du désenchantement du monde à 1'éclipse du
cusar jurar... e mandar a bola de volta ao campo adversário sujet, em Théories et devenir, ed. do CNRS. As referências aos acórdãos referentes
à possibilidade que um juramento tem de ir contra a ordem pública são os se-
concedendo o juramento ao adversário. Prestado ou recusa- guintes: Conseil d'État, 13/7/1962, Dalloz, 1962,587 (partilha de clientela); Cassa-
do, o juramento estabelece assim a verdade da existência ou
*ll| ção, 27/11/1985, ATDC, 1986, 750 (renúncia à redução de pensão alimentai).

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DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLÍREZA 391
390 NOS CONFINS DO DIREITO
custe o que custar. Assim, os tribunais condenaram numero-
crenças no mundo sobrenatural, na medida em que elas têm
sas práticas: sacrifícios de animais, queima de incenso, missas
prolongamentos no mundo terrestre. Como as ciências ocul-
negras, presença de instrumentos que supostamente permi-
tas, da qual desconfia, tolerando-as ao mesmo tempo": con-
tem a comunicação com o além etc. (mas tudo isso em cer-
to a maré do oculto de boa e má qualidade, ele ergue diques,
mas eles são porosos. ta medida: para ser condenado, deve-se ultrapassar os usos
comumente aceitos na profissão). Outro sinal do ceticismo
do direito francês: a impossibilidade de infração sobrenatu-
O direito e as ciências ocultas ral. Autores eruditos e tribunais se recusam a admitir que
lançar feitiços ou bruxarias constituem infrações... pura e
O direito das ciências ocultas revela um número impres- simplesmente porque consideram que tais práticas não têm
sionante de textos em cujos termos inúmeras práticas delas a menor realidade. Mas acontece que aqueles que se crêem
provenientes poderiam ver-se incriminadas. O art, R.34.7? enfeitiçados sofrem um dano, do qual se pode pedir conta
do Código Penal pune "as pessoas que exercem ofício de adi- ao autor. Estudos antropológicos mostraram, aliás, que pode
vinhar e prognosticar, ou.de explicar os sonhos". Sabe-se muito bem haver enfeitiçados... e não feiticeiros82.
que não é aplicado em todo o seu rigor, que obrigaria a fe- Portanto, há um tratamento penal das ciências ocultas.
char os consultórios não só dos consultores em ciências Mas os direitos civil e comercial também manifestam sua
ocultas, mas também dos psicanalistas. Os tribunais deixa- prevenção a respeito delas, esforçando-se para controlar sua
ram menos rígidas sua norma, mostrando-se muito indul- profissionalização. A adivinhação é considerada contrária à
gentes para com a astrologia, a grafologia, a radioestesia, o moralidade pública e por isso excluída das atividades comer-
emprego dos tarôs, das bolas de cristal e outros acessórios. ciais: afora o exercício clandestino de suas funções, as viden-
Consideram que seus manipuladores dão mais conselhos tes e outros médiuns devem, pois, adotar o estatuto de pro-
gerais a seus clientes do que lhes expõem descrições preci- fissões liberais. Ainda têm de se alojar, o que pode apresentar
sas do futuro (o que nem sempre é verdade). Mais amea- problemas. Com efeito, a jurisprudência estimou incompatí-
çador, o art. 405 do Código Penal reprime o delito de este- vel com qualquer cláusula de moradia burguesa o exercício,
lionato, principal infração pela qual possam ser julgadas dentro dos locais alugados, da profissão de cartomante sem
culpadas as pessoas que utilizam as ciências ocultas para ob- a aprovação do locador. Ser-lhes-á igualmente difícil bene-
ter vantagem financeira. De fato, nosso direito dessacraliza ficiar-se de doações ou de legados da parte de seus clientes:
o irracional vendo nele sobretudo um perigo pecuniário para o os tribunais o vedam àqueles que granjearam uma grande
património de pessoas honestas crédulas demais. O art. 405 influência sobre os doentes em estado de fraqueza e em
visa assim aqueles que empregam "... manobras fraudulentas grande necessidade de assistência. Curandeiros não médi-
para persuadir da existência de falsas empresas, de um poder cos, magnetizadores, feiticeiros que administram um trata-
°u de um crédito imaginário, ou para fazer nascer a esperan-
mento mediante feitiço pertencem a essa categoria.
ça ou o receio de um sucesso, de um acidente ou de qualquer
outro acontecimento quimérico..." Pode-se sonhar, mas não
82. Cf. J. Favret-Saada, Lês mote, Ia mort, lês sorts, Paris, Gallimard, 1977;
J. Favret-Saada e J. Contreras, Corps pour corps - Etiquete sur Ia sorcellerie dans
81. Cf. M. Bmschi, Droil et scienccs occultes, Revue de Ia Recherche Jttri-
k bocage, Paris, Gallimard, 1981.
- Droit Prospectif, l, 1991, 185-261; 2,1991, 491-530.
392 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 393

Entretanto, essa prevenção do direito francês é contra- to os forca a manifestar a vontade deles dentro de certos
balançada por uma grande tolerância de fato: os textos só prazos. De um lado, as ações para os mortos são submetidas
são aplicados quando se vai além de certos limites. E, de ou- a certas prescrições. Do outro, o afastamento das gerações
tra parte, ao lado do direito das ciências ocultas, já antigo, lhes é fatal: mais além de certos limites cronológicos, o pre-
parece formar-se em nossos dias um direito para essas mes- juízo já não existe (uma ação dos Bourbons, fundamentada
mas ciências. O recurso às ciências ocultas é cada vez mais no art. 1.382 do Código Civil, que visasse proteger a me-
frequente nas grandes empresas e considerado uma moda- mória de Luís XV dos juízos negativos de certos historiado-
lidade de exercício da liberdade de contratação do empre- res não poderia ser bem sucedida). As sociedades tradicio-
gador. Em nome da liberdade religiosa, as liberdades de as- nais, também elas, acabam por esquecer seus mortos. Nem
J! sociação e de reunião podem beneficiar os meios favoráveis todo falecido se torna automaticamente um ancestral: ainda
®ÍI à proteção e à difusão das ciências ocultas, dentro do res- tem de deixar sobreviventes para garantir os sacrifícios (um
JÉ1 peito da legislação existente e da ordem pública. provérbio bambara diz: "Não há remédio para a morte, a não
Resumindo, o direito positivo não acredita muito no so- ser o filho"). E mesmo os ancestrais não são imortais, pelo
brenatural ou, pelo menos, procede à constatação de sua ca- menos na memória dos vivos. Os tchagas (Tanzânia) os clas-
pacidade para levá-lo em conta. À pergunta "Espírito, estás sificam segundo a data do falecimento. Os mortos recentes
•"iStó aí?", ele não se julga habilitado para responder e presumiria, são chamados "espíritos superiores" ou "espíritos conheci-
antes, a ausência do Espírito. Com muita lógica, recusa-se dos"; os que desapareceram há muito tempo, "espíritos que
também a apostar na possibilidade de uma sobrevivência se afastam". Os mais antigos, dos quais já não se lembram,
após a morte. são chamados os "dispersos": já não têm relações com os es-
píritos superiores, nem com os homens. Quanto à sociedade
dos mortos próximos, ela se parece muito estranhamente
O direito e o nada com a dos vivos... cuja hierarquia ela cauciona. Apenas os
homens preeminentes deste mundo podem manter relações
Para Planiol, os mortos nada mais são83. Só podem ju- diferenciadas diretas com os ancestrais: de ambas as partes
ridicamente sobreviver neste mundo por intermédio de cer- do filtro da morte, duas aristocracias se chamam e se respon-
tos vivos: testamenteiros, próximos (membros ou não da fa- dem. Uma prova a contrario resulta do fato de que os indiví-
mília, que o direito hierarquiza), coletividade nacional para duos empreendedores, desejosos de queimar as etapas que
aqueles que particularmente a mereceram. Se faltam os vivos os separam do poder neste mundo, manipulam as genealo-
que o direito designa para a proteção da memória dos mor- gias de modo que se legalizem suas aspirações, aproximan-
tos, esta deixará de Ser assegurada. Mais, ainda que esses do-se assim dos ancestrais. Estes são mortos vivos demais
vivos existam e pretendam proteger seus mortos, o direi- para serem honestos. Talvez fosse preferível que não pudes-
sem voltar, como acredita o nosso direito.
Entretanto, mesmo que se recuse considerar que os
83. Cf. supra, p. 390. Sobre esse tema, cf. a excelente obra de P. Berchon,
mortos possam sobreviver, ele lhes reserva um lugar, ao
La condition juridique dês morte, Tese de direito, Bordeaux I, junho de 1984,
multigr.; X. Labbee, La condition juridique du corps humain avant Ia naissance et menos por certo tempo.
après Ia mort, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1991; N. Rouland, Lês morts Reconhece a existência de mortos "maus". C Código
et lê droit: variations anthropologiques, wi: Mélanges G. Duby. das Pensões Militares de Invalidez das Vítimas de Guerra
394 NOS CONFINS DO DIREITO
DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 395

eram ainda pessoas \ivas, e não é de todo modo eterna. Es-


colaboração ou estado de degradação nacional não serão ses limites se manifestam em todos os casos em que os mor-
restituídos às famílias. O art. 14 do Código Penal (hoje ab- tos aparecem no direito: casamento póstumo (que a maior
rogado) obrigava as famílias dos supliciados a mandar inu- parte do tempo serve para legitimar o filho concebido); res-
mar seus corpos "sem nenhum preparativo". Pelo menos peito, por intermédio do testamento, da vontade expressa
não sentimos, como as sociedades tradicionais, o medo da pelos mortos em vida; proteção, por diversos meios (dever
volta dos mortos... ainda que incite a refletir o costume an- de gratidão, dever de piedade de certos sucessores), da me-
tigo que queria que as cinzas dos grandes criminosos fos- mória dos mortos etc. Quando muito podemos concluir que,
sem esparramadas, ou seus restos inumados numa quadra se o direito recusa consagrar o princípio de uma vida dos mor-
anónima do cemitério. tos negando a personalidade destes, sanciona, de outro lado, a
Os mortos não voltam, mas podem sobreviver a si mes- presença espiritual dos mortos no mundo dos vivos. Ambigui-
mos, Graças ao congelamento de seu esperma, podem ge- dade, por certo. Entretanto, mais ainda, mistério da morte.
rar depois do falecimento. Certos autores propuseram que as De fato, como as sociedades tradicionais, mas de for-
pessoas que se fazem congelar pouco tempo após a morte, ma menos pronunciada do que elas, o direito positivo fran-
na esperança
\ê que os corpos das pessoas de serem
condenadas mais
por causa de tarde chamadas de volta à vida cês se recusa a confundir a morte e o morrer. Os defuntos
pelos progressos da medicina (criogenização), sejam consi- ficam durante um tempo ao lado dos vivos, mas só podem
deradas incapazes maiores sob tutela, não se extinguindo viver pela lembrança que estes têm deles.
sua personalidade jurídica. Mas esses casos continuam ex- E essa lembrança é a do corpo. Daí o terrível dilema no
cepcionais. Que acontece com os mortais comuns? qual o direito e os vivos se encontram mergulhados em face
O direito os julga inexistentes, mas organiza-lhes po- do cadáver: deve-se ver nele simples vestígios ou, ao contrá-
rém o estatuto. Concede-lhes um sursis, mas a influência de- rio, uma parte indissociável da pessoa?
les é limitada aos fatos, gestos, falas e escritos realizados em Outrora ou noutros lugares, não se hesitava em punir
vida. O fato de morrer, tenha ele lançado o defunto no nada o cadáver no lugar do ser falecido. Exposição dos corpos e
ou noutra vida, condena-o, para o direito francês, ao silên- privação de sepultura são frequentes, mas encontram-se
cio eterno. exemplos mais extremados. Na Roma monárquica, Tarquí-
O Estado não se desvia da morte: deve ser avisado do nio mandava crucificar os corpos dos suicidas. Mais perto de
falecimento dentro de 24 horas, mediante declaração ao pre- nós, Michel Foucault lembrou o suplício de Massola em Avig-
feito da comuna (arts. 78 ss. do Código CM), e arrecada direi- non, onde a justiça mandou torturar minuciosamente um
cadáver. Durante os últimos séculos, ocorreu de enterrarem
tos de sucessão, manifestação sob forma fiscal dos direitos
de bruços as mulheres adúlteras. Entre os axântis (Gana),
que a sociedade à qual ele pertencia possui sobre o falecido.
fazia-se na frente da corte do rei um processo conto o cor-
Por outro lado e sobretudo, todo o direito privado francês se
po do suicida, antes de lhe cortar a cabeça.
recusa, por um tempo, a suprimir completamente os mortos. O direito francês já não tem esses exageros. Mas, em
Se já não são para ele pessoas, permanecem ainda presen- face do cadáver, mostra-se mais ambíguo do que perante a
tes aos vivos, de muitas maneiras. Mas essa presença é se- morte. Decerto porque o cadáver é sua tradução concreta.
veramente limitada: concebida no interesse dos vivos, ela Essa inquietude já é sensível no paleolítico médio (80 mil
só se refere à vontade e à existência dos mortos enquanto anos antes de nossa era), em que aparecem as primeiras
396 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA

inumações: os cuidados dados ao cadáver atestam uma in- caso de acidente ou de incêndio), mas ainda apresentam
terrogação diante da morte. No tocante à história do Oci- uma aparência humana, podem ser objeto de uma inuma-
dente, o cadáver em estado de decomposição surge na arte ção coletiva, primeiro grau de despersonalização dos des-
fúnebre do século XIV. O afresco do Campo Santo de Pisa pojos mortais; senão, constituem apenas escombros, aban-
iíisass fea
representa três cavaleiros que dão com três sepulcros aber- donados no local ou jogados no depósito de lixo. Portanto,
tos, que revelam seus cadáveres em meio ao odor da po- a substância humana é infinitamente menos protegida pelo
dridão e mostram bruscamente aos vivos a vaidade do direito do que a forma, pois, dado o sistema de percepção de
mundo. Olhemos também a escultura encomendada em que nos dotou a natureza, é acima de tudo pela forma que
vida pelo cardeal Lagrange: ele mostra aos vivos seu cadá- identificamos uma pessoa, na morte bem como na vida,
ver, ainda com cabelos, mas com os ossos do crânio apon- Mas, afora esses casos, a solicitude do direito tem de todo
tando sob a pele, enquanto os vermes pululam no largo bu- modo seus limites.
raco aberto em seus flancos. Conferindo mais valor do que A natureza mostra o caminho: o cadáver leva entre três
antes à vida terrestre, o homem tem menos facilidade de a seis anos para se transformar em esqueleto. Este desfruta
levar em consideração o cadáver. O direito positivo francês uma longevidade muito maior, mas os ossos enterrados aca-
comprova esse movimento: em sua ambiguidade, o estatu- bam por reduzir-se a um fino pó de cálcio. O direito positivo
to que concede ao cadáver expressa bem a dificuldade que se recusa a paralisar essa corrupção natural: sem o proibir,
temos em resignar-nos em ver desaparecer - e de que mo- é muito reticente a respeito do embalsamamento, e mais
do - aqueles que amamos em seu aspecto corporal. reprovador ainda com a criogenização, praticamente ilíci-
Esse direito não consegue distinguir claramente o cadá- ta. Mais ainda, pode instituir a necessidade do desapareci-
ver da pessoa, como o queria porém a lógica da supressão da mento do cadáver quando este corresponde ao interesse dos
personalidade na morte. Certos acórdãos antigos da Corte vivos. Em circunstâncias excepcionais: epidemias, catástro-
de Cassação afirmam expressamente que os cadáveres inu- fes. Mas também na generalidade dos casos, como o pro-
mados são pessoas. Em 10 de julho de 1976, apresentando vam certas disposições do Código das Comunas. A prática
sua proposta de lei relativa às doações de órgãos, H. Cailla- da redução dos corpos (mesmo que estes sejam em seguida
vet justificava a necessidade do consentimento do defunto intimados de novo) mostra que os restos mortais que são seu
referindo-se ao princípio "... do respeito à integridade da pes- objeto perderam quase todo vínculo'com a pessoa para se-
soa humana, mesmo após a morte". Mas, sobretudo, o direi- rem reduzidos ao estado de coisas. O direito fixa até com
to positivo aplica ao cadáver os princípios de indisponibilida- precisão o prazo necessário para essa mudança de estatuto:
de e de intangibilidade que o corpo humano usufrui enquanto devem-se esperar cinco anos após a inumação antes de abrir
é vivo. Ilogismo, pois, se se postula a supressão da pessoa com um caixão exumado, ou antes de operar a retomada admi-
a morte, a proteção da integridade física do cadáver já não se nistrativa com a finalidade de nova inumação de uma sepul-
m justifica. A própria sepultura se beneficia de certos caracteres
gerais do domicílio: é indispensável e protegida.
tura designada para serviço ordinário. Ora, é impressionan-
te constatar que esse prazo é o mesmo que o necessitado
Última prova da identificação do cadáver à pessoa: o ca- pela redução do cadáver ao estado de esqueleto. O direito
dáver deve estar num estado de conservação tal que ainda assinala com isso que a inumação só tem o objetivo de per-
se possa ver nele um corpo humano. Mais precisamente, sua mitir a decomposição inexorável e, portanto, a destruição do
forma deve ser a de um corpo. Quando restos mortais já não cadáver. Cabe observar igualmente que as sepulturas, para
são suscetíveis de identificação individual (por exemplo, em além de certo grau de antiguidade, perdem na prática a pró-
NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATUREZA 399
398

teção que o direito continua a conceder-lhes: sob reserva (em Um chefe maori declarava assim ao filho: "Durante três anos,
princípio) de autorizações administrativas, pode-se abrir a será preciso que tua pessoa seja sagrada e que fiques separado
sepultura de mortos conhecidos ou desconhecidos em nome de tua tribo [...] pois minhas mãos, durante todo esse tempo,
de um interesse histórico ou arqueológico. Em certos casos apanharão a terra, e minha boca comerá constantemente ver-
(homens ilustres), é o interesse da coletividade nacional que mes... Depois, quando minha cabeça cair sobre meu corpo,
desperta-me de meu sono, mostra minha face para a luz do
justifica tais práticas. Mas a maior parte do tempo é sim-
dia, ficarás livre." Intervêm então as segundas exéquias, que
plesmente o esquecimento: as relações entre o defunto e os
o confirmam em seu estatuto definitivo. As proibições são le-
vivos deixam de existir, as considerações às quais tinha di-
vantadas, os ossos são exumados e submetidos a diversos ri-
reito já não têm razão de ser. Nosso esqueleto talvez seja um
tuais, práticas que não deixam de ter correspondências na
dia arrancado da terra e exposto nas vitrines de um museu. Europa atual. Em Poggio Real, um cemitério de Nápoles,
A antropologia aqui só pode constatar que, através das oficia um lavador de esqueletos. Dois anos após a inuma-
manifestações diferentes, nossas atitudes se aproximam da- ção, quando o defunto acabou de deneter, ele lava as ossadas,
quelas das sociedades tradicionais. O ancestral que não tem na presença das famílias, para colocá-las depois numa urna
i: (ou não tem mais) vivos para manter seu culto cai na indi- de mármore. O antigo costume, observado há pouco tempo
ferenciação dos manes, esquecimento certamente menos ainda na França, da refeição e da missa de aniversário de-
total que o do nada, não obstante irremediável. Convergên- certo corresponde às mesmas representações de um reor-
cias mais impressionantes ainda aparecem no tratamento denamento necessário. Com esses ritos a vida retoma seus
reservado aos cadáveres, mesmo que, aí também, os ritos se- direitos. E aí, também, a despersonalização do defunto se
jam diferentes. A maior parte das sociedades tradicionais opera: pois, se a inumação provisória sempre é individual, a
confere a mesma importância que o direito positivo francês sepultura definitiva muito amiúde é coletiva.
à passagem do apodrecimento para a mineralização: o cos- O direito positivo francês e as culturas tradicionais ti-
tume dos duplos funerais o prova, ram conclusões similares da universalidade da morte e do
A primeira fase concerne ao tempo do apodrecimento. desaparecimento fora de nosso sistema de percepção comum
Vimos que o direito positivo francês a um só tempo prote- daqueles que por ela passaram. Em sua maioria (inclusive
gia o cadáver e tomava as disposições necessárias para per- em nossas sociedades modernas), os homens crêem que
mitir sua decomposição. Nas sociedades tradicionais, nos esse desaparecimento não destruiu os defuntos. O esqueci-
dias seguintes ao falecimento, os vivos manifestam sua so- mento dos mortos devido ao passar do tempo é, porém, ge-
licitude ao morto (lavam-no, alimentam-no e sobretudo o ral. Os mortos só estão presentes no mundo na medida em
velam). Depois convidam-no a únir-se aos ancestrais, sejam que os vivos os solicitam. Prova, dirão os céticos, de que de
quais forem as reservas supostas (pode-se, conforme o caso, fato nada mais são. O argumento é menos evidente do que
amarrá-lo, furar-lhe os olhos, quebrar-lhe as pernas, ou co- parece. A cosmologia moderna nos faz conhecer um uni-
locar seu cadáver num lugar de acesso muito difícil). Duran- verso cuja origem e cujos parâmetros não se opõem, pelo
te o tempo do apodrecimento, seus próximos são marcados menos, à ideia de Criação84. A qual, mesmo aceita, deixa in-
por um luto que os mantém numa certa distância do resto
da sociedade, de tão grande que é o medo da mácula. Quando
este acabou, cessa o luto, pois a mineralização é o sinal de que 84. Cf., entre outros, Trinh Xuan Thuan, La mékdie secrète, Paris, Fayard,
1988, 308-10.
o defunto cumpriu sua mutação para o mundo do pós-vida.
NÍÍÍÍ;'
400 NOS CONFINS DO DIREITO DIREITO, NATUREZA E SOBRENATLIREZA 401

tacta no campo das crenças a solução do enigma das inten- um pedaço de peixe grelhado. Ele o pegou e o comeu diante
ções do eventual Criador a nosso respeito, assim como a pos- de seus olhos."85 Mas, ao mesmo tempo, esse corpo já não é
sibilidade de uma sobrevivência (individual ou não) além deste mundo: Jesus entra sem dificuldades numa casa com
da morte. A imensidão desse universo nos aponta em todo todas as portas fechadas86; aparece a Maria Madalena que veio
caso a imperfeição de nossos sentidos. O próprio tempo é ao sepulcro87 e aos discípulos a caminho de Emaús88, sem que
ligado ao espaço, de modo que a percepção que temos dele de início eles o possam reconhecer, embora estejam muito
é apenas parcial: a organização da matéria de que somos perto dele. Mais tarde, são Paulo testemunhará no mesmo
constituídos condiciona nossa percepção do tempo. Noutras sentido ao afirmar simultaneamente o vínculo entre os mun-
palavras, não somos construídos na escala do universo, ao dos terrestre e sobrenatural, e a distância que os separa: "A
passo que é nessa escala, e talvez além, que se situa a chave ciência? Ela desaparecerá. Pois imperfeita é a nossa ciência
do enigma da morte. O direito, como produto do pensamen- [...] Hoje, por certo, nós nos vemos num espelho, de uma ma-
to humano, sofre essas coerções. O das sociedades tradi- neira confusa, mas então será face a face."89
cionais conserva mais tempo que o nosso os mortos junto Pode-se já neste mundo tentar passar para o outro lado
«
dos vivos, e personaliza mais suas relações. Mas, ao cabo do do espelho: as construções jurídicas às quais se dedicaram
termo, é ao esquecimento dos mortos que eles conduzem. inúmeras sociedades tradicionais figuram entre essas tenta-
Stricto sensu, esse esquecimento é apenas a constatação tivas, às quais se recusa nosso direito moderno. Por demais
de seu desaparecimento. Não significa sua supressão, nem humanas, elas nos fazem percorrer apenas uma parte do ca-
sua sobrevivência. Pois, de início feito por e para os vivos, o minho. Censurar-lhes-ão por ser apenas puras ilusões. Tal-
direito pode, entretanto, penetrar no universo da fé. Mas vez. Mas elas atestam que os homens não desdenharam uti-
chega a ele um tanto desarmado, e comporta-se de modo lizar o direito em sua busca de transcendência, arrancando-o
por demais antropomorfo para conquistar nossa convicção. assim de sua condição terrestre.
Por exagerar em portar-se como vivos, os mortos perdem a Seja ele deste mundo ou chegue ao da sobrenatureza, o
credibilidade e temos dificuldade em acreditar nesses deuses direito pode, portanto, participar do sagrado. Mas o que será
que selam contratos ou procuram obter reparação dos pre- exatamente o sagrado? Nós o sabemos bem desde Durkheim.
juízos sofridos. É o homem que se projeta no mundo dos Reconhecer uma categoria do sagrado significa aceitar a ideia
deuses. Isso não prova a ausência deles. Mas somente que de que certas coisas, objetos ou seres se prendem a um regi-
nada podemos dizer deles, afora a constatação cada vez mais me diferente daquele do profano: proibições os protegem.
profunda de sua transcendência, que a ciência contemporâ- Assim, o direito sacraliza a pessoa humana quando procla-
nea autoriza. ma sua indisponibilidade, ou o meio ambiente, quando o
A não ser que se acredite que Deus se revelou para nós. subtrai às leis do mercado. Historicamente, o sagrado o mais
O cristianismo, nossa própria tradição, deixa entender das vezes foi religioso: tal ato, tal ser, tal edifício são sagrados
nos textos por demais raros que a morte não aniquila a pes-
soa, mas a transfigura, como o mostram as aparições de Je-
sus ressuscitado. Aos discípulos estupefatos que o tomam por 85. Lc, 24, 39-43.
86. Jo, 20,19.
um espírito, ele lança: '"Vede minhas mãos e meus pés; sou eu 87. Jo, 20,11-18.
mesmo! Tocai-me e percebei que um espírito não tem carne 88. Lc, 24,13-35.
nem osso, como vedes que tenho [...]' Eles lhe apresentaram 89. Paulo, l Cor, 13, 8-9; 13,12.
402 NOS CONFINS DO DIREITO
Conclusão
A tumba de Kelsen
porque dependem mais diretamente de Deus, ou dos deuses.
Mas também pode existir um sagrado laico, que permite aos Talvez descubramos um dia que a mesma lógica é operante
espíritos não religiosos escapar ao relativismo: a busca trans- no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem
cultural dos direitos do homem faz parte dele. sempre pensou do mesmo jeito.
Intervindo nas relações do homem com a natureza ou CLAUDE LÉVI-STRAUSS, Antimpohgie stniciumle l,
com os deuses, decerto o direito encontra um de seus resul- Paris, Plon, 1958, 255.
tados nessa criação do sagrado.

Eu tinha 20 anos quando se abre este livro; ele se fecha


duas décadas mais tarde, sem que acabe a viagem. Esta não
me deixou órfão de minha própria cultura. Pois a antropolo-
gia tem duas caras, Uma voltada para o alto-mar das socie-
dades longínquas, a outra para uma praia rnais familiar.
.
Uma antropologia dos fugitivos não é a minha: se me indago
r sobre as outras sociedades, elas me remetem constantemen-
te para aquela de que venho. Cada qual tem seu caminho de
Damasco. Para mim ele passa pelo Artico e me fez descobrir
o que certos estudiosos denominariam um direito impuro.
Em 1973 desaparecia H. Kelsen, um dos maiores filóso-
fos do direito de nossa época, autor de uma obra célebre, a
Teoria pura do direito. Para ele, uma ciência autêntica do direi-
to deve evitar qualquer sincretismo com outras disciplinas,
em especial a sociologia, muito fraca para trazer respostas
positivas às questões levantadas pela vida das normas. O ju-
rista tem de se ocupar apenas com normas existentes, "efe-
tivas". Deve ficar resolutamente neutro, trate-se do direito
nazista ou dos códigos democráticos. Para dizer o que é o di-
reito, basta examinar o produto de suas fontes, sempre or-
ganizadas hierarquicamente, desde uma misteriosa "norma
fundamental", passando pela constituição, pela lei, e assim
por diante até os mais modestos atos jurídicos infralegisla-
tivos. Produto da Escola Vienense, essa construção foi acli-
matada na França por Carré de Malberg. Inspirou as dire-
trizes dadas por M. Debré aos redatores da Constituição de
1958 e deixou uma marca profunda nos juristas.
404 NOS CONFINS DO DIREITO A TUMBA DE KELSEN 405

Com evidência, essa perspectiva é radicalmente dife- O próprio Estado, muitas vezes criticadopelos especia-
rente Aquilo clue a antropologia jurídica pode ensinar. Ela
, não é o produt5_deJum^fJ2
estájnesmo no lado oposto, já que recusa qualquer aborda- "láTdesvario: muitas__soçi£fiades só^guderam sobreviveria
em mtercultural, permanecealheia a qualquer idélalgjgir -Hgressõés exténõreTõua modificacõesrêpentinasmedlãrv:'
^—^Tãrismo e milita em favor de uma identificação entreVcUreito te~súlTinvençaõTE com ele nasceu toda uma categoria ae
jp Estado Jsfo entanto, apesar de seu sucesso, essas ideias Tégfãs"1^ direito p"úblico - que organizam as relações entre
não me parecem ter resistido às provas do tempo nem às dos os indivíduos e suas instituições, assim como entre seus ór-
fatos. Julguemo-la atando alguns dos fios desta obra. gãos. Mas, se o Selvagem não é forçosamente bom, e o ho-
Uma antropologia da dúvida pôde nascer da angústia mem moderno desvairado num ilusório progresso,para_c|ue
•j*. da modernidade. As sociedades modernas questionaram na pQd£-sea4r-a-antfepelogiajurídica?
• ft segunda metade do século XX a quase -totalidade dos mo- • gv|p rada mn desses sistemas, o da modemi-
•'l delos culturais que lhes davam um significado., Foram assim dade ou o datradiçãajyá longejjemais no sentido "He sua ló^
recusados os privilégios de idade, de sexo, de estatuto e va- gíc^pTopnã: pois7jõ]cabo dessê~processo,_está com certeza'
lorizadas a dúvida e a igualdade em detrimento da fé e da a ~~
hierarquia. Essas reviravoltasjjroduziram naturalmente. a ani. Ás sociedades tradicionais podem aprender com nossa
siedade:não_se_p_odeter ao mesmo tempo a exaltarão da mtu experiência, que não se reduz apenas às invenções tecnológi-
explica, nos anos cas. Pois a cultura da modernidade repousa em certas aquisi-
0, ou^Ss^^mbígmrdcranffõpologia, que se baseava com ções de que não temos de nos envergonhar. Algumas ideias,
mais ou menos consciência na reativação do mito do Bom L ^ título de exemplo: o conflito nem sempre é patológico, mas
Selvagem, concebido como tudo o que estávamos errados e ser tão necessário quanto a harmonia para a reprodu-
em não ser. Hoje, a dúvida não é tão aceita: sem se orientar da sociedade; o domínio das forças naturais pode fazer
para uma impossível volta ao passado, o Ocidente parece o homem viver em melhor entendimento com o inunde;
mais seguro de si mesmo. Seus antropólogos perderam um preocupar-se unicamente com a identidade pode conduzir
pouco de crédito: o fracasso de tantos países do Terceiro a enfrentamentos por outro lado evitáveis; a diferenciação
Mundo, o desabamento dos regimes comunistas não mos- sexual é muito amiúde sinónimo de dominação de um sexo
tramque, apesar de tudo, nossos valores têm vantagens? sobre o outro etc. Outro trunfo, a invenção da antropologia:
/Não existe paraíso selvagem. Não encontramos na flo- embora árabes, chineses e hindus tenham desenvolvido suas
resta amazônica ou nas geleiras sistema jurídico que possa próprias abordagens daj^erldacLe, suas tentativas não as-
sumiram a mesma amplítMé" daquelas realizadas pelo Oci-
'l ter entregue chaves na mão a nossas fronteiras Assim tam-
bém, deve-se pôr fim numa crítica sistemática da tradição dente desde o final do século XIX.
ocidental. Os perigos da tecnologia são equivalentes a seus Mas a experiência das sociedades não ocidentais nos é
progressos, o que seria pueril não reconhecer. O homem não também indispensável. De um lado, porque o século XXI,
pode contentar-se em contemplar a natureza. Deve poder contraciamente ao que se disse, não será o da "aldeia plane -
modificá-la, e a noção de direito é largamente fundamenta- tária" JMuito pelo contrário, o que se delineia é um sistema
da em seu esforço de auto-instituição relativamente ao meio pluripolar: dispomos de meios técnicos ricos de possibilidades
ambiente e em suas relações com seus semelhantes. A tra- para transmitir muito longe e muito depressa informações,
dição ocidental não peca quando afirma que o homem é co- mas somos bem mais fracos quanto à elaboração dos meios
criador do inundo. culturais dessa comunicaçãd/ps procedimentos erráticos do
(H
406 NOS CONFINS DO DIREITO
A TUMBA DE KELSEN 407
desenvolvimento jurídico transferido, as possíveis derrapa- pode contribuir para a ccaíqi-mrãn HP urna ra tp g n rÍR d£L^~
gens das ideologias dos direitos do homem o mostram bem.
Do outro lado/ a antropologia nos fornece elementos Enfim,aarita3p_glogia iurídicapode ser-nos útil para
que^podern ajudar-nos a encontrar soluções para alguns de. descobrir melhor^noss£direitõ7èmBaixo da casca dos có-
" ncgsospípblemas internos. Em 1978, J. Poirier anunciava de digõsT^ensinar^nos a não ter medo das_evolugões"que_sè'
modo~premonitorio, usando um termo que teria merecido fa- iniciam_c[iante de nossos olhos. Um direito mais maleável,
zer sucesso, a emergência das matrias1: as micropátrias cul- punições flexíveisjxansações ou mediação em vez de julga -
turais, por muito tempo desprezadas, ocultas pelo poder mCTtosTreggas que mais formamrnodelos do queenundam
central, que desde então vieram à tona um pouco em toda ~15rcleTisIIudo isso nos iaquielarájnejios
parte. Aqueles que as denunciam, vendo nelas "tribalismos", que_há_muito tempo ou alhures, alguns homen:s,_a_qugrn_cHã-
esquecem que foi o mundo moderno que as criou, e não o mamos primitivos, já recorreram a esses^procedimentos^ou
universo da tradição. Pois essas reivindicações das especi- "os empregam aindZ
ficidades culturais são uma reação JLumformização técnica AT antropologia não é somente diálogo: traz respostas
do mundo contemporâneo. O desaprèçõpèlãs prorríèssãs~clõ necessárias para a elaboração do direito futuro, como atesta
poder político muito amiúde não cumpridas, a desesperança esta obra. A pós-modernidade não consiste em virar a pági-
quanto a um Estado com providência por demais complexa na da modernidade como se fecha um livro, mas em harmo-
ou longínqua contribuem para isso. Com o desaparecimento nizar suas aquisições com as da pré-moclernidade e com os
das antigas comunidades, não é de espantar a força desses novos desafios de poder e de civilização.^ tempo e o espa-
movimentos neo-identitários, o que não autoriza em abso- ço não cavam intransponíveis abismos entre as sociedades
l luto absolver-lhes eventuais excessos. O recursoJymtrogo-
l°gi§ |. Al^goriglág^íurafemo jurídiccTseria aqui altamente
tradicionais e as nossas, como se acreditava há um século.
Ao contrário, percebemos cada vez melhor os grandes fluxos
d e s e j á v e l ' que unem os diversos territórios nos quais o homem desco-
unidade, e osmeíQa-d&^aIiar_seus_excessos. bre e constrói seu destino, de modo que o nosso futuro pode
Ele nos permitiria igualmente dar uma nova dimensão iluminar-se com as experiências de culturas remotas ou de-
ao nosso direito do meio ambiente. O homem das socieda- saparecidas. Cabe a nós continuar a desvelar nossa unidade
des^ tradicionais pensa longe no tempo, em função das ge- profunda a partir da diversidade de suas encarnações. /
rações passadas e vindouras, como o indicam todas as suas
construções de linhagens./Jhegou o momento para nós de
inserir em nossos códigos e instituições o direito dessas ge- OÍA, ctc y u/yv-
rações futuras a uma terra indene, que o progresso técnico
terá melhorado, e não degradado/A lógica do mercado é efi-
caz a curto prazo: para o longo prazo, devemos lançar mão
de outros mecanismos de decisão.. Nesse sentido, o direito

1. Cf. J. Poirier, Dês groupes ethniques aux sociétés hétéroculturelles, in:


Ethnologie régionale II, Paris, Gallimard, 1978,1932-33.

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