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REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA E A LINGUAGEM:

A música brasileira na visão de Heitor Villa-Lobos

Patrícia Muniz Mendes


Priscila da Costa Pinheiro∗

“O novo é o desejo do novo, não o novo em si.


Essa é a maldição de tudo o que é novo”.
Adorno, Teoria da Estética.

Resumo: O presente artigo visa um breve estudo da obra de Villa-Lobos e sua posição
em meio ao contexto modernista -característico de uma época de transformações- e ao
cenário do governo de Getúlio Vargas.
Palavras-chave: Modernismo; Villa-Lobos; Música.

Abstract: The present article seeks an abbreviation study of the work of Villa-Lobos
and your position amid the -characteristic modernist context of a time of
transformations - and to Getúlio Vargas's government's scenery.
Keywords: Modernism; Villa-Lobos; Music.

INTRODUÇÃO

Iniciando um processo de modernização ligado à reorganização das economias e


das estruturas políticas a partir da década de 1920, a maioria dos países latino-
americanos têm a intervenção do Estado como fator decisivo, especialmente no que
tange à industrialização. A estrutura política necessária ao projeto modernizador seria,
segundo Barbero, configurada a partir da intensificação do centralismo e do papel
central que o Estado adquire (MARTIN-BARBERO: 1997). Tal centralismo será
responsável não apenas pela unificação, mas também pela uniformização de
temporalidades, de linguagens, de gestos. Como conseqüência, a heterogeneidade tão
fortemente presente nos países que compõem a América Latina sofreu um processo de
funcionalização, onde a diferença será projetada sobre o conjunto da nação, ou será
folclorizada, sendo entendida como modo de afirmação de uma identidade nacional. Em
relação à função assumida pelo Estado no período, cabe ressaltar que este acabou por
transformar-se numa personalização da Nação, impondo “o acesso político e econômico
das massas aos benefícios da industrialização” (MARTIN-BARBERO: 1997, p.219).


Acadêmicas de graduação do sexto período do curso de História da Universidade Federal de
Juiz de Fora.
É em meio a mudanças ocorridas na sociedade que o Modernismo surge, em
nosso país, com o intuito de expressar o novo Brasil. Os artistas e intelectuais
procurarão “colocar a cultura brasileira coerente com a nova época, além de torná-la um
instrumento de conhecimento efetivo de seu país” (ZILIO: 1997, p.38). Destarte, o
presente trabalho objetiva uma reflexão sobre a linguagem musical perseguida por
Villa-Lobos através de uma breve análise de aspectos de sua vida e de sua obra -sob um
ângulo geral- levando-se em conta as características advindas do contexto vivido pelo
país, envolvendo o movimento Modernista e o advento da intensificação do
nacionalismo a partir da chegada de Vargas ao poder.

A música é, possivelmente, a mais antiga forma de expressão humana. Ao


estudar-se a trajetória feita por esta mesma arte e sua relação com a história das
sociedades, observa-se que aquela sempre teve papel fundamental na vida do Homem
que, através deste modo de expressão, transmitiu o que de mais profundo possuía1.

Villa-Lobos esteve em contato constante com a hibridização da língua e da


linguagem. Mesclou elementos da música erudita com a música popular criando uma
musicalidade nacional: suas atitudes revelam suas posições políticas - entendidas aqui
num contexto mais amplo- e deixam transparecer uma época de mudanças: mudanças
na forma de retratar o Brasil.

1. POLÍTICA E LINGUAGEM: O COTIDIANO DE UMA SOCIEDADE

A idéia de política decorre da Antiguidade Clássica, sofrendo modificações


conceituais com o passar do tempo. Segundo Hannah Arendt (1998), pensadora e
filósofa contemporânea,

a política é algo como uma necessidade imperiosa para a vida humana e, na


verdade, tanto para a vida do indivíduo maior para a sociedade. Como o
homem não é autárquico, porém depende de outros em sua existência, precisa
haver um provimento da vida relativo a todos, sem o qual não seria possível
justamente o convívio. Tarefa e objetivo da política é a garantia da vida no
sentido mais amplo.

1
Questão bem discutida por Y. Menuhine e C.W.Davis em “A Música do Homem”.

2
O ser humano passa a ser percebido como sendo essencialmente um ser político,
pois as mais diversas ações e decisões vividas cotidianamente possuem motivações de
tal caráter.
As relações sociais, por sua vez, se estabelecem efetivamente a partir do
desenvolvimento dos elementos de comunicação que permitem a compreensão de uma
mensagem pelo emissor e pelo receptor. Uma língua, por exemplo, é um código que
utiliza variados signos que se combinam através de regras, formando um todo que é
compartilhado por determinado conjunto de indivíduos. De acordo com Morse (1990),
“a língua é algo perpetuamente criado pelos falantes, cuja contribuição, porém, não é
individual, e sim dirigida a um outro ou outros, ainda que em pensamento ou
solilóquio”. A língua, assim como os conceitos, é híbrida e se relaciona com a formação
de identidades que não se desatrelam das políticas de representação sobre os sujeitos e
grupos sociais.
Portanto, as identidades lingüísticas vão sendo consolidadas no choque entre
sujeito e o mundo, nos conflitos cotidianos, nas lutas políticas em prol da cidadania. De
acordo com Foucault, “os discursos não somente refletem as lutas, são também o
próprio objeto por que lutamos”. Política e linguagem são indissociáveis, pois agindo
conjuntamente as pessoas comprometem-se politicamente. Nessa conjuntura, “a
linguagem assume uma conotação política de liberdade, porque ela age contra as formas
impostas em favor de um conjunto disperso, porém poderoso, de forças sociais que
condicionam tanto o ato de fala quanto o discurso que ele utiliza”. Deste modo as
identidades lingüísticas, culturais e nacionais são ações políticas cultuadas e
reverenciadas conforme as conveniências sociais.
No início do século XX o contexto brasileiro encontrava-se marcado por
oposições (branco-mestiço, campo-cidade, cosmopolita-brasileiro) e como resposta às
condições nacionais, diversos autores, artistas plásticos, compositores -entre outros-
mostraram através de suas obras as inquietações que então surgiam e ganhavam
destaque. Tornava-se preciso (re)pensar o Brasil.
O Movimento Modernista brasileiro- que desponta em meio a este contexto-
procura combinar as particularidades nacionais com as tendências artísticas mundiais,
bem como as heranças culturais e os impulsos de modernização. A Antropofagia- idéia

3
difundida por Oswald de Andrade- defende o “devorar” aquilo que a cultura ocidental
tinha a oferecer, porém sem perder a identidade nacional brasileira2.
A ação política encontra-se presente nos diversos campos da vida de um indivíduo
e da sociedade da qual faz parte. Sob esta perspectiva, vale pensar o Modernismo não
apenas como uma linguagem particular, mas também como um ideal político assumido
pelas vanguardas dos vários países, buscando uma identidade nacional. Nesse contexto
de difusão modernista, a música, vista como uma forma de linguagem capaz de ser
codificada e de transmitir uma mensagem, necessitava também integrar-se ao
movimento. Ela deve ser compreendida como uma linguagem associada ao fato social, à
dinâmica das culturas e das sociedades.
O projeto musical modernista defendido por Mário de Andrade mantinha a
tradicional hierarquia entre o erudito e o popular. Porém, não seria possível a
constituição de um estilo musical brasileiro sem a inserção do “populário”. Destarte,
torna-se preciso submeter o que de melhor havia no popular aos ditames da forma
erudita do fazer musical. O compositor que mais se aproximou deste ideário foi Heitor
Villa-Lobos.
Tal compositor, apreendido enquanto um agente ativo na sociedade, esteve
também ligado aos ideais da política promovida pelo presidente Getúlio Vargas, assim
como às transformações observadas no contexto brasileiro e em outras partes do mundo.

2. O SÉCULO XX E A MODERNIDADE

De 11 a 18 de fevereiro de 1922 realiza-se no Teatro Municipal de São Paulo a


Semana de Arte Moderna que procura dar início a um novo período nas artes brasileiras.
Convidado por Graça Aranha, Villa-Lobos foi o único compositor a participar da
Semana.
O Brasil, inserido num contexto de modernização da América Latina, passava por
rápidas transformações, onde as idéias de modernidade e liberdade rondavam o
imaginário da população. Nota-se, em meio a este cenário nacional, um ambiente
propício para mudanças estéticas na linguagem musical.

2
ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. RJ: Globo, 1995. Tal idéia, característica do
momento vivido no início do século XX, encontra-se presente na obra de Oswald e de outros modernistas.
O livro em questão reúne diversos artigos que discutem o projeto antropofágico.

4
Villa-Lobos foi aluno do Instituto Nacional de Música e teve contato com
diferentes estéticas: a “nobreza” da ópera italiana, a "modernidade" de Wagner e Saint-
Saëns, a estética "revolucionária" de Claude Debussy. Paralelamente, conviveu com os
"chorões", grupo de músicos que se reunia para tocar -por prazer- à noite em eventos da
periferia. Conseqüentemente, Villa não chegou a possuir um estilo definido,
obedecendo, por isso, ao próprio impulso interior para compor: chegou a afirmar que
sua música era natural, podendo ser comparada a uma cachoeira3.
Antecipando-se aos modernistas, Villa viajou o Brasil entre os anos de 1905 a
1912, percorrendo o Nordeste, o Mato Grosso, Goiás e Minas. Tais viagens permitiram
ao compositor não apenas um maior contato com a diversificada cultura popular
brasileira, mas também lhe conferiram a oportunidade de construir um amplo repertório
musical popular, incluindo o melhor do folclore nacional. Canclini (1998, p. 78-79)
destaca que o moderno se conjugara com o interesse de conhecer e definir o brasileiro,
construindo assim uma linguagem própria, ligada a nossa “verdadeira” identidade,
buscando, para isso, fontes internacionais e nativistas. Barbero, de igual forma, destaca
que o projeto nacionalista musical operava sobre um eixo interior- boa música popular,
ligada principalmente ao campo- e sobre um eixo exterior, a fim de “proporcionar ao
mundo civilizado uma música que, refletindo a nacionalidade, [pudesse] ser ouvida sem
estranhamento” (MARTIN-BARBERO: 1997, p. 240). Neste sentido, Villa-Lobos
soube criar um estilo que fosse “síntese” entre o melhor do folclore nacional e o melhor
da tradição erudita européia: em conformidade com os cânones da época, Villa
almejava a construção do nacional numa linguagem que pudesse ser também apreciada
pelo mundo exterior, inserida nos “padrões aceitos” por este último.

2.1 A busca por uma identidade nacional: a música de Villa


Apesar do contato com estéticas musicais européias e da posse de uma escrita
semelhante àquela realizada no Velho Continente, Heitor Villa-Lobos não abandonava
aspectos da música realizada no Brasil. Fazia uso de características presentes nas
composições indígenas e africanas, assim como nos sambas, choros e cantigas de roda.
A imitação de elementos da natureza, como os pássaros, e a utilização da percussão
popular também marcam a obra do compositor.

3
Heitor Villa-Lobos. Disponível em <http:// www.wikipedia.org>. Acesso em junho de 2007.

5
As Bachianas exemplificam o caráter antropofágico da obra de Villa-Lobos. Sua
intenção era construir uma versão nacional dos Concertos de Brandemburgo, usando
ritmos ou formas musicais de várias regiões do Brasil. Todas as peças receberam dois
títulos, um bachiano e outro brasileiro. São trechos famosos de Bachianas a Tocata (O
Trenzinho Caipira), quarto movimento das n° 2; a Ária (Cantilena), que abre as de n° 5;
o Coral (O Canto do Sertão) e a Dança (Miudinho), ambos nas n° 4. Ele não apenas
compõe novas músicas, como também (re)arranja canções ligadas a temas folclóricos.
As Bachianas Brasileiras de número 5 tem inspiração nas serestas, enquanto as
Bachianas Brasileiras de número 2 demosntram um original colorido orquestral, que
evidencia a impressão deixada pela música sertaneja no compositor.
Seus concertos foram alvos da crítica, que os considerava "modernos demais" para
o público brasileiro. Mas suas composições acabaram ganhando notoriedade e, por isso,
tornou-se um compositor "moderno e diferente". Considerava suas obras como cartas
que escrevia à posteridade, sem esperar resposta4. Durante a Semana de 1922, estréia
como "modernista", entre vaias e urros de uma platéia atrelada aos modelos tradicionais,
apresentando Sonata Nº2, Danças Características Africanas, Quarteto Simbólico e
Impressões da Vida Mundana.
Podemos ainda pensar os Choros, compostos entre os anos de 1920-1929 e que
tem inspiração direta da música urbana carioca da virada do século XIX para o XX,
como uma forma de se retratar a “realidade brasileira”. O de número 10 termina em um
“samba-enredo sinfônico”: possui um acompanhamento coral ritmado e bateria de
similares de escola de samba.
Nesta época o violão era ainda um instrumento não bem aceito5. Lima Barreto
demonstra tal fato ao narrar a história de Policarpo, em 1911, onde destaca: “a
vizinhança conclui logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um
homem tão sério metido nessas malandragens!”6 (grifo nosso).
Mas o major não se preocupa com tal preconceito, pois

estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical


característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e
filósofos e adquiriu certeza de que era a modinha acompanhada de violão.

4
Heitor Villa-Lobos. Disponível em <http:// www.wikipedia.org>. Acesso em junho de 2007.
5
Wilson Lemos afirma que uma parcela da música popular não ligada ao tema do folclore
nacional sofreu também posteriormente com a ação do DIP, que enxergava um problema na postura
boêmia do artista. O maior símbolo da música boêmia era o violão.
6
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Barcelona: Editora Sol90, 2004. p.12.

6
Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento
genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha7.

Poder-se-ia supor que a posição de Villa, levando-se em conta os riscos aos quais
tal indagação poderá nos conduzir, seria uma forma de transformar o tabu em totem8?
Talvez. Porém, Lemos destaca certo tom de indignação presente numa fala de Villa
onde, frente a uma parcela da cultura popular, o compositor afirma que a produção
musical brasileira fora sempre usada enquanto passatempo, sem ser “cultivada com fins
exclusivamente artísticos”. Destarte, de acordo com Heitor Villa-Lobos, nem toda a
música brasileira poderia ser considerada como merecedora de respeito em âmbito
nacional: seria preciso um exame de aspectos tais como ritmo, combinação de sons,
letras, levando-se em conta até mesmo a postura do artista diante da sociedade9. Assim,
talvez possamos aventar a hipótese de que a composição destes choros foi realizada com
o intuito de demonstrar ao mundo algo tipicamente nacional, entretanto produzido de
maneira bem trabalhada10.
Magdalena, aventura musical em dois atos, foi composta tendo por base não
apenas temas originais, mas também o rearranjo de temas folclóricos já anteriormente
utilizados por Villa. Vale ressaltar, ainda em meio a obra do compositor, temas
relacionados ao folclore infantil e o refinamento que dava a tais melodias.
Heitor Villa-Lobos chegou a afirmar que não escrevia dissonante para ser
moderno: suas composições eram resultados dos estudos que realizara, de uma síntese
que se tornava capaz de refletir uma natureza tão diversificada como a do Brasil.
Estudou o mapa do país, o caráter de seus habitantes e depois as maravilhas naturais da
terra. Por fim, confrontou seus estudos com obras estrangeiras, construindo assim uma
linguagem que visava ser tipicamente brasileira.

3. A APROXIMAÇÃO COM O “PODER”

7
Ibidem, p. 19.
8
Já que através da antropofagia conjugaria o uso deste instrumento tão caracteristicamente
popular (e nacional) com o melhor da música erudita.
9
LEMOS JR., Wilson. Canto Orfeônico: uma investigação acerca do ensino de música na escola
secundária pública de Curitiba (1931-1956). Curitiba, 2005. Tese de Mestrado. p. 38. Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br. Acesso em Junho de 2007.
10
Tais músicas são “trabalhadas” mas, ao mesmo tempo, não causam grande estranhamento em
meio ao público. Desta forma, pode-se concluir seu caráter “comercial”.

7
Zílio afirma que a Semana de 1922 suscitou mais em uma polêmica pública do
acontecimento, pois os artistas ainda não demonstravam plena compreensão do
significado e da linguagem da arte moderna, estando apenas ligados a uma
desobediência desorientada às velhas regras.
A primeira fase do modernismo brasileiro englobou como pontos principais a
preocupação em afirmar a arte moderna no Brasil, para a partir de meados da década de
20 assumir uma postura nacionalista. Numa segunda fase, os modernistas conseguem
avançar na ocupação das instituições culturais, aproximando-se, de certa forma, do
poder governamental que, por vezes, se apropriou da obra de tais artistas para difundir
seu próprio projeto nacional.
O autor destaca que a política cultural sofreu uma deslocação, ou seja, foi
transposta das mansões paulistas (década de 20) para as instituições culturais presentes
no Rio de Janeiro (instituições estas que, no momento de origem do Modernismo, foram
vistas como “obstáculos” que dificultavam o rompimento com a ordem artística
tradicional). Destarte, os modernistas avançam na ocupação de tais instituições, avanço
este facilitado pelo “aumento do espaço político e cultural da classe média, o que foi
resultar num crescimento de contingente e de poder para o Modernismo” (ZILIO: 1997,
p. 57), não obstante seu convívio com a arte denominada “acadêmica”.
Diferentemente do ocorrido na França, por exemplo, no Brasil os artistas optaram
por uma reforma das instituições culturais governamentais a partir de dentro, aspecto
este que reflete “o poder do estado no Brasil como veiculador ideológico”. Se por um
lado tal situação resultou em uma afirmação e divulgação da arte moderna, por outro o
governo acaba por angariar “uma imagem dinâmica e modernizadora.” (ZILIO: 1997, p.
57-58).
Villa-Lobos aproxima-se do “poder” ao apresentar um programa de educação
musical à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em 1930. Tempos
depois se tornou responsável pela organização da Superintendência de
Educação Musical e Artística (Sema), que tinha como um dos objetivos difundir
a moderna música brasileira entre a população.
O Canto Orfeônico (que consistia na formação de grupos vocais sem
acompanhamento de instrumentos musicais) foi implementado nas escolas
públicas e particulares, de primeiro e segundo graus. Sua implantação no curso
ginasial deveu-se, principalmente, à atuação de Villa junto ao governo: o

8
compositor volta sua atenção não apenas às diretrizes do ensino do Canto
Orfeônico nas escolas, mas também à formação de professores qualificados
para tal. Para Villa, a música seria uma forma eficaz de propaganda do país
para o exterior.
A instituição do Canto como uma disciplina obrigatória visava atender a
certos objetivos relacionados não apenas ao desenvolvimento musical e
estético dos alunos, mas era visto ainda como um elemento disciplinador e
socializador: a solidariedade era identificada no esforço de coletividade e na
fusão de experiências dos componentes do Coro; produzia também uma forma
de sentir e de agir em massa, fazendo surgir determinada consciência, qual
seja, a de que um indivíduo era parte de um todo. Por fim, havia no ensino do
Canto Orfeônico justificativas relacionadas ao desenvolvimento do corpo dos
jovens (já que, por exemplo, trabalhava a respiração) e às perspectivas de
recreação.
O ideal de homogeneização presente neste período visava moldar a
Nação. O ensino do Canto Orfeônico nas escolas encontrava-se estritamente
ligado à tentativa de homogeneização cultural, “na qual uma cultura elitista
(Música erudita) que contemplava os elementos folclóricos era eleita como arte
ideal” (LEMOS JR: 2005, p. 51).
Não obstante a afirmação desta disciplina nas escolas como um fator
capaz de gerar a “harmonia social”, o ensino da música ia além da simples
execução de hinos pátrios, pois em Villa-Lobos torna-se perceptível a
preocupação com a qualidade do ensino, ultrapassando assim a mera função
utilitarista. A educação musical estava em consonância com a pátria de modo a
possuir uma continuidade incondicional frente à política getulista: mesmo após
a queda de Getúlio e o fim do regime do Estado Novo o Canto Orfeônico
encontrou permanência nos currículos escolares- caso que exemplifica a real
complexidade do período.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO

Villa-Lobos teve uma produção intensa. Procurou retratar o Brasil musicalmente,


criando algo que fosse tipicamente nacional. Apesar de não ter chegado a possuir um

9
estilo estritamente definido, Villa esteve bastante próximo dos ideais modernistas,
tornando-se parte importante do movimento. Apesar da defesa do novo e de sua
oposição às composições não trabalhadas e não “pensadas” -características de grande
parte das canções populares que, divulgadas através do rádio, por exemplo, vão
transformando-se em “mercadoria”- muitas de suas músicas tornaram-se também algo
“consumível”, ou ao menos, o “estranhamento” diminuíra: músicas anteriormente tidas
como “modernas demais” não eram mais tão estranhas ao ouvido, pois as harmonias
utilizadas haviam já sido assimiladas11.
Vale destacar que para Adorno, os compositores não teriam outra alternativa
senão a atitude de opor-se a tudo o que era “fácil”, ou seja, tudo aquilo que seduzia a
audição. Desta forma, a produção musical erudita do século XX isolou-se da cultura de
massas: adquirindo um caráter “estranho” ao ouvido, perdeu público e tornou-se arte de
elite. Tal tendência contrastava com a explosão da música popular no âmbito da cultura
de massas. Através de uma tendência nacionalista, Villa percorreu a estrada da busca
por “novos caminhos” procurando, assim, romper com a produção musical
despreocupada. O trabalho realizado sobre temas folclóricos ilustra bem tais questões.
Tais aspectos, a nosso ver, demonstram a complexidade do compositor, uma vez
que possuía contato com a cultura popular (chorões), mas opunha-se à feitura de uma
música “sem compromisso”. Por outro lado, defende o novo e segue por este caminho a
fim de mostrar as riquezas de nossa música, incluindo aí os ritmos e sons brasileiros.
Apesar de tornar-se um compositor “elitista”, várias de suas composições não causam
mais estranhamento ao serem escutadas: peças como “Valsa da Dor” são perfeitamente
assimiláveis.
Em relação à aproximação com o governo de Getúlio Vargas, demonstrou-se
aqui que o Canto Orfeônico não possuía apenas ideais cívicos, mas seu ensino
encontrava-se também voltado à preocupação com a sensibilidade musical e o “bom
gosto”. Mais uma vez cabe destacar a continuidade de tal disciplina frente à queda do
Estado Novo: o Canto Orfeônico (assim como outras instituições) encontrou
permanência independentemente da política getulista.

11
ADORNO, Theodor W. "O fetichismo na música e a regressão da audição". Trad. de Luiz João
Baraúna. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

1
A forma de linguagem -a música- feita por Villa sofreu transformações: adequou-
se ao contexto e interferiu no mesmo, fez parte de um discurso político e foi apropriada
por diferentes indivíduos das mais diversas maneiras.
É preciso ter-se em mente que a arte e a linguagem (advinda da primeira) estão em
constante circulação entre os meios, entre as “classes”, entre as sociedades, entre as
épocas12. A cultura é apropriada a todo o momento- não só pelos “poderosos”, mas
também pelo povo. Villa apropriou e foi apropriado13. E o é até hoje. Ainda é visto
como o maior expoente da linguagem musical tipicamente brasileira. Mesmo perdendo,
em certo sentido, o projeto antropofágico de vista. O Modernismo literário de Oswald e
Mário de Andrade e de Manoel Bandeira rejeita o excesso, recurso bastante utilizado
pelo compositor (variedade de instrumentos; extremos dinâmicos; extensão de
movimentos, etc) . O excesso é associado ao “bacharelismo”: “o lado doutor, o lado das
citações, o lado autores conhecidos. Comovente. (...) O lado doutor. Fatalidade do
primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. (...) o Império
foi assim. Eruditamos tudo”14.
As ações individuais e as diferentes linguagens assumidas se manifestam
de diversas formas, interferindo no coletivo. As linguagens encontram-se
interligadas. Somos seres políticos num sentido que vai além da escolha para
governantes. Os modernistas foram além- mesmo sofrendo limitações. A
linguagem musical brasileira foi além. Villa-Lobos foi além. E mesmo com todos
os cuidados, não se pode negar o valor de sua obra na constituição da
“identidade” brasileira.

BIBILOGRAFIA

ADORNO, Theodor W. (1999). "O fetichismo na música e a regressão da audição".


Trad. de Luiz João Baraúna. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural.

ANDRADE, Oswald. (1995). A Utopia Antropofágica. RJ: Globo.


ARENDT, Hannah. (1998). Da revolução. São Paulo: Ática.

12
Sobre o conceito de “circularidade” ver GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano
e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, p. 15-34.
13
Sobre a idéia de “apropriação” ver CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e
representações. RJ: Bertand, 1990.
14
ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. RJ: Globo, 1995. p. 41.

1
BARRETO, Lima. (2004). Triste fim de Policarpo Quaresma. Barcelona: Editora
Sol90.

CANCLINI, N.G. (1998). Culturas Híbridas. S. Paulo: Edusp.

LEMOS JR., Wilson. (2005). Canto Orfeônico: uma investigação acerca do ensino de
música na escola secundária pública de Curitiba (1931-1956). Curitiba, 2005. Tese de
Mestrado. Disponível em: <http://dspace.c3sl.ufpr.br>. Acesso em Junho de 2007.

MARTIN-BARBERO, Jesús. (1997). Dos meios às mediações: comunicação, cultura e


hegemonia. RJ: Editora UFRJ.

MORSE, Richard (1990): "A linguagem na América". In: A volta de


McLuhanaíma. São Paulo: Companhia das Letras.

RIBEIRO, Santuza. Modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila. Disponível em


<http:// www.cpdoc. fgv.br/revista/arq>. Acesso em junho de 2007.

ZILIO, Carlos. (1997). A Querela do Brasil: A questão da identidade da arte brasileira.


2a Ed. RJ: Relume Dumará.

Heitor Villa-Lobos. Disponível em <http://www.museuvillalobos.org.br>. Acesso em


junho de 2007.

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