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CAPÍTULO 1 – COMO LER UM TEXTO ARGUMENTATIVO

Antes de escrever, é preciso ter lido bastante – você só será capaz de


escrever seus próprios textos argumentativos com facilidade e com qualidade
após ter lido uma quantidade razoável de textos do mesmo gênero. Isso porque,
em primeiro lugar, o gênero argumentativo é essencialmente um gênero de
disputa, e para entrar numa disputa você precisa conhecer as posições de seus
adversários (que serão apresentadas em textos, os quais você deverá ser capaz de
ler muito cuidadosamente). E, em segundo lugar, porque fazemos uma coisa
melhor quanto melhor conhecemos as características que ela deve ter para ser
considerada boa. A melhor forma de dominar as características do gênero
argumentativo é entrando em contato com ele da maneira mais prática possível:
lendo-o.
Alguma vez na vida você já deve ter visto, pessoalmente ou em cenas de
filmes, um médico fazer o seguinte gesto: pegar uma chapa de raios X (ou um
outro exame de imagem), levantá-lo até a altura dos olhos, observar a imagem e
após brevíssimos instantes anunciar de maneira assertiva um diagnóstico do tipo
―esse paciente tem tal e tal problema‖. Ao fazer isso, o médico ―leu‖ (o que
significa que ele identificou, interpretou e compreendeu) o que está ―escrito‖ na
imagem – aquilo que para um sujeito não-treinado é um mero emaranhado de
manchas e formas (que nada representa), para o médico é uma mensagem clara e
manifesta. Um bom médico consegue lê-la facilmente e compreender o que ela
diz, independente de quem seja o paciente ou de qual seja a doença que o
acomete. Assim como um bom médico é um leitor competente de exames de
imagem em geral, você deverá treinar para se tornar um leitor competente de
textos argumentativos em geral (o que significa treinar para ser capaz de ler e
compreender textos argumentativos em geral, independentemente de quem seja o
autor ou de qual seja o assunto abordado). Isso é fundamental para que você se
torne um escritor competente de textos argumentativos.
Buscando auxiliá-lo nesse treinamento, esse capítulo traz breves
orientações sobre a leitura de textos argumentativos.

1.1. Desfazendo alguns mitos


Você provavelmente já teve que ouvir, em algum momento de sua
trajetória, uma certa ideia, bastante disseminada em nosso senso comum,
segundo a qual textos filosóficos originais são extremamente difíceis de ler e
frequentemente requerem um esforço muito grande por parte do leitor para serem
verdadeiramente compreendidos – um esforço que apenas os já iniciados, ou os
―iluminados‖ (o que quer que isso seja) são capazes de executar. Nunca é demais
salientar que a segunda parte dessa ideia não passa de uma concepção folclórica e
equivocada (não é verdade que um leitor precisa possuir qualquer qualidade
especial, ou já ser um iniciado, isto é, já ter recebido ensinamentos de filosofia,
digamos, para estar apto a ler e compreender um texto filosófico original).
Já a primeira parte dessa anedota merece atenção e devemos conceder que
ela diz verdades – de fato textos filosóficos originais tradicionalmente são textos
difíceis de ler e compreender. E devemos acrescentar que no interior do próprio
ambiente filosófico essa ideia popular tem uma segunda camada, que diz que os
textos de estilo mais argumentativo costumam ser ainda mais difíceis de ler e
compreender do que os de estilo não-argumentativo. Infelizmente não podemos
determinar se essa segunda camada diz ou não uma verdade, porque não temos
bons parâmetros para fazer uma comparação entre estilos (o argumentativo e o
não-argumentativo) em termos da dificuldade inerente a cada um. Com isso não
podemos determinar se há algum (e qual seria) mais difícil. Mas podemos dizer
com justiça que essa fama dos textos argumentativos não é gratuita – sim, eles
são difíceis. Agora, o que isso quer dizer? O que é, para um texto, ser difícil?
Bem, isso pode significar muitas coisas diferentes.
Em alguns casos, significa que o texto não será integralmente
compreendido na primeira leitura (e, portanto, precisará ser lido mais de uma
vez) devido à sua profundidade e complexidade – no caso dos textos
argumentativos essa necessidade se deve ao fato de que eles quase sempre são
especializados, e raramente são gerais. Isto é, textos argumentativos quase
sempre abordam de maneira minuciosa e articulada itens bastante específicos,
coisas a respeito das quais nós não costumamos pensar de maneira muito
aprofundada ou detalhada. Tal característica faz com o que o texto argumentativo
apresente, para o leitor pouco familiarizado, um certo ―excesso‖ de informação
que simplesmente não poderá ser assimilado todo de uma só vez e que precisará,
por esse motivo, ser fracionado, revisitado. Isso não se deve a nenhum atributo
peculiar do material argumentativo, e nem mesmo do material filosófico, mas é,
antes, um fato a respeito de materiais especializados em geral (ou seja, de
qualquer área): se você pegar um texto especializado da área médica que contém
informações muito detalhadas sobre uma cirurgia cardíaca, por exemplo,
dificilmente poderá assimilar todo o seu conteúdo de uma só vez (será preciso
fazer pausas durante as quais você provavelmente terá de ir atrás de certas noções
básicas de anatomia ou de fisiologia, para ajudar na compreensão do que está
lendo).
Em outros casos, um texto filosófico ser ―difícil‖ significa que o autor
utiliza um vocabulário com o qual temos pouca familiaridade, o assim-chamado
―jargão‖ filosófico. O jargão nada mais é do que um conjunto de termos e
construções (isto é, formas de expressão) pouco comuns ou mesmo inexistentes
no nosso linguajar ordinário. Muitas vezes um filósofo se apropria dessas formas
estranhas de expressão (ou cria suas próprias) por necessidade – porque ele
acredita que esse é o único meio que lhe permitiria transmitir as ideias que
precisa transmitir. Filósofos fazem isso frequentemente quando expressões
adequadas para transmitir aquilo que precisam transmitir não estão disponíveis
no vocabulário corrente ou no repertório de expressões utilizadas na
comunicação ordinária. Muitas vezes, ao ler textos que fazem uso de jargão,
temos o trabalho ―extra‖, digamos assim, de descobrir e procurar compreender o
que cada termo ou forma de expressão significa, o que torna a leitura mais
trabalhosa. Textos de caráter mais argumentativo classicamente possuem menos
jargão; mas, em compensação, costumam ser bastante técnicos (mesmo quando
não contêm muitas palavras ou construções desconhecidas), o que significa que
utilizam vocabulário especializado e que você terá o trabalho ―extra‖ de buscar
conhecer esse vocabulário.
Há ainda as ocasiões em que um texto remete diretamente a outros textos,
ou a outros autores, porque faz parte de uma discussão. Nesse caso compreender
o texto pressupõe compreender minimamente a discussão na qual ele está
inserido (o que significa que o texto não poderá ser integralmente compreendido
se for lido isoladamente – será preciso ler os demais textos que compõem a
discussão para ter uma ideia clara acerca do que o autor queria dizer). Essa
situação é a situação default dos textos argumentativos – eles foram escritos pelo
autor não meramente como forma de se expressar, ou de dizer o que ele pensa
sobre algo, e sim como meio de participar em algum debate, ou seja, como meio
de estabelecer o seu ponto contra aqueles que pensam diferente. O texto é como
se fosse a fala pública do autor, concordando com algumas pessoas e discordando
de outras, numa reunião ou sessão de debate. Procurar saber que debate é esse
(ainda que somente em seus contornos mais básicos) lhe dará um pouco de
trabalho extra, mas diminuirá consideravelmente a dificuldade de se
compreender o texto.
Por fim, note que as três situações que acabam de ser descritas podem
ocorrer simultaneamente num mesmo texto, e frequentemente isso é o caso nos
textos argumentativos de filosofia: eles unem o alto grau de especialização a um
vocabulário não-ordinário e trazem a tiracolo toda uma discussão extensa e
complexa com outros textos e outros autores. Dada essa tripla característica, um
fator extra entra em cena como co-responsável pela nossa dificuldade particular
de leitura do gênero filosófico argumentativo nos primeiros contatos com esse
tipo de texto: a pouca familiaridade que a maioria de nós, em geral, possui com
disputas sérias, maduras e longas sendo travadas no âmbito do discurso.
Textos argumentativos de filosofia são textos de disputa. Toda disputa
envolve o choque entre opiniões ou interesses diferentes (isso é essencialmente o
que caracteriza uma disputa e, por tabela, o que caracteriza o texto argumentativo
por oposição a outros tipos de texto). Disputas fazem parte da vida e todos nós já
estivemos envolvidos em disputas verbais de algum tipo em algum momento. No
entanto, a maior parte das disputas verbais das quais participamos na nossa vida
ordinária, sejam elas orais ou escritas, não chega a se aproximar (em seriedade,
complexidade ou extensão) das disputas que constituem o núcleo duro de um
texto argumentativo de filosofia. As disputas que travamos em nossas vidas
ordinárias frequentemente urgem para o seu fim, isto é, os participantes nutrem
um desejo compartilhado de chegar logo ao resultado, ou ao final, onde uma
parte ―venceu‖ e a outra ―foi derrotada‖; e não raramente esse desejo se sobressai
em detrimento do rigor técnico, de modo que cada argumento acaba não sendo
examinado de maneira minuciosa pelos participantes, mas apenas naquilo que
tem de essencial ou de mais óbvio. Ou seja, temos pouca familiaridade com o ato
de dissecar e escrutinar cuidadosamente cada parte de cada argumento que é
colocado em jogo.
Além disso, quem tem pouca familiaridade com disputas sérias, maduras e
longas também costuma ter pouco domínio prático das regras que regem uma
discussão (sim, para uma discussão funcionar ela precisa estar submetida a regras
práticas, que determinam que tipo de argumento vale e que tipo não vale, para
cada tipo de situação). Isso significa que a pessoa tem pouco afinamento para
detectar e demonstrar quando um participante comete um erro argumentativo ou
deixa de atender a alguma de suas ―obrigações‖ enquanto debatedor. Tudo isso
cumula para o pouco traquejo que muitas pessoas têm quando precisam lidar com
disputas sérias, maduras e longas; e torna a tarefa de ler e compreender textos
argumentativos uma tarefa difícil. Infelizmente não conhecemos um antídoto
único ou simples para essa dificuldade.
Mas temos uma boa notícia: esse conjunto de habilidades que
normalmente falta àqueles que têm pouca familiaridade com disputas sérias,
maduras e extensas pode ser adquirido e aprimorado através de treinamento, e é
para isso, entre outras coisas, que você está com esse livro em mãos. Certas
dicas, estratégias e um pouco de instrução, como as que esse livro traz, existem
justamente para promover a aquisição da familiaridade com a disputa e, com
isso, facilitar a tarefa de leitura e compreensão (e posteriormente de escrita) de
textos argumentativos.
Essa tarefa continuará sendo difícil, e você continuará tendo que se
esforçar um bocado, porque a verdade é que o tipo de reflexão que somos
convidados a fazer ao lidar com disputas sérias, maduras e extensas representa
um desafio intelectual grande, se comparado ao tipo de reflexão que estamos
acostumados a fazer em nossa vida ordinária. Mas certamente vencer esse
desafio será algo muito gratificante, porque ambientes argumentativos são
capazes de nos proporcionar um prazer enorme quando começamos a navegar
bem neles, sobretudo já que, a partir desse momento, sentimos também que
adquirimos uma ferramenta nova para tomar parte em (e para tornar muito mais
proveitoso) qualquer tipo de debate, mesmo nos debates mais sérios, maduros e
extensos a respeito dos problemas do nosso mundo.

2.1. Indicações práticas para leitura de textos argumentativos


Uma vez que a leitura de textos argumentativos é, por sua própria
natureza, uma tarefa que visa a um aprofundamento, toda empreitada de
compreender trajetórias argumentativas será facilitada e tornada mais produtiva
se você conscientemente deixar de lado alguns dos hábitos de leitura
―preguiçosos‖, que você certamente desenvolveu ao longo dos anos enquanto
lidava com textos não-argumentativos ou com textos não-filosóficos, e que
tendem a nos manter num nível mais raso de compreensão (mesmo que esses
hábitos tenham funcionado bem até hoje para lidar com esses outros gêneros de
texto).
Um desses hábitos é vulgarmente conhecido como ―leitura dinâmica‖ –
trata-se de correr o olho, de forma rápida e seletiva, sobre a extensão bruta de um
texto a procura de capturar, de forma quase instintiva, certas palavras-chave ou
ideias-chave, para então memorizá-las. Por que, no caso da leitura de textos em
filosofia, em geral, e de textos argumentativos em particular, isso não funciona?
Por que – você deve estar se perguntando – uma ferramenta tão útil e tão
facilitadora da lida com textos em geral não serve para lidar com textos
argumentativos? A resposta simples para essa pergunta é: porque a leitura de
textos filosóficos (em geral) e argumentativos (em particular) não é uma leitura
para informação, e sim aquilo que poderíamos chamar de leitura para
compreensão.
Na leitura para informação, lemos algo que, por mais longo que seja,
requer pouco esforço para ser compreendido – uma notícia de jornal, que reporta
um acontecimento; uma receita culinária, um anúncio publicitário, um romance,
dentre outros. Essas peças nos informam sobre algo (o acontecimento, no caso da
notícia; o como-fazer, no caso da receita; o que está sendo vendido, no caso do
anúncio; o que está acontecendo na vida dos personagens, no caso do romance),
mas não discutem esse algo. Quando um material discute um assunto, é preciso
um grau maior de comprometimento por parte do leitor no sentido de
acompanhar a discussão e tentar extrair dela os prós e contras, por assim dizer.
Ler um material que discute algo (como é o caso do texto argumentativo) é,
portanto, uma tarefa de leitura para compreensão; uma tarefa que, se for realizada
nos moldes da leitura dinâmica, simplesmente não levará o leitor a lugar nenhum,
porque não lhe permitirá manter-se inteirado com cada passo dado pelo autor
para estabelecer seus argumentos.
Um outro vício de leitura recorrente é dar o texto por compreendido a
partir de uma só leitura – embora isso possa funcionar muito bem para textos
informativos, frequentemente textos argumentativos demandarão mais de uma
leitura para terem seu sentido suficientemente compreendido, ou, em outras
palavras, para que se consiga ―ver os argumentos funcionando‖ (para o fim a que
destinam). Nas primeiras leituras, e sobretudo na primeira, costumamos
conseguir ver apenas partes dos argumentos, mas não a integridade do
―mecanismo‖ do qual eles fazem parte. Pense nos argumentos como um conjunto
de engrenagens: para conseguir visualizá-las funcionando perfeitamente será
preciso ―olhar mais de uma vez‖, isto é, fazer mais de uma leitura.
Por fim há o vício da leitura despretensiosa: aquela atitude que adotamos
quando lidamos com um material escrito sem expectativas (e sem o projeto) de
obter algo. Você já teve a experiência de passear por um parque, andar numa
trilha, ou num campo, e ir simplesmente seguindo adiante, mas sem pretender
chegar a nenhum lugar específico? Pois então, muitas vezes fazemos a mesma
coisa quando estamos ―navegando‖ por um material escrito: lemos por mera
distração. Embora alguns textos filosóficos possam ser lidos assim sem que com
isso a leitura deixe de ser proveitosa, no caso específico dos textos
argumentativos esse hábito precisará ser abandonado. Argumentos são
apresentados como meios para se atingir determinado objetivo, para estabelecer
determinado ponto. Você deve ter isso sempre em vista, enquanto lê (e se
possível ter em vista qual é o ponto que o autor pretende estabelecer através de
seus argumentos), do contrário a leitura não será proveitosa, porque você, leitor,
não atingirá o objetivo pretendido pelo autor para você.
Uma vez abandonados esses vícios de leitura, há algumas dicas práticas
que você pode implementar para facilitar ou otimizar sua leitura e compreensão
dos textos argumentativos.

Conheça o objetivo central do autor o quanto antes. Essa dica pode


soar bastante contra-intuitva, sobretudo porque tendemos a imaginar que o que
ela recomenda irá tirar parte do prazer na leitura, como se o objetivo final do
autor no texto fosse uma espécie de ―spoiller‖, uma informação que só deve ser
apreendida ―quando chegar a hora certa‖. Na verdade é exatamente o contrário. É
comum os autores de textos argumentativos declararem logo nos primeiros
parágrafos qual é o seu objetivo central. Esteja atento a frases como ―meu
objetivo nesse artigo é...‖ ou ―ao final, pretendo mostrar que...‖, que devem
aparecer nos momentos iniciais do texto. Destaque-as e memorize seu conteúdo.
Tenha sempre em mente, ao longo da leitura, que tudo o que o autor apresentar
conspira, direta ou indiretamente, para o objetivo central já declarado. Isso
facilitará a tarefa de compreender de que modo cada argumento contribui para o
êxito ou fracasso do autor em realizar seu objetivo central (ou seja, ajudará a
entender o papel e a razão de ser de cada argumento). Caso o autor do texto não
tenha declarado explicitamente nos parágrafos iniciais qual é o seu objetivo,
execute a leitura tendo essa pergunta como norte, isto é, procure responder você
mesmo, procure explicitar para você mesmo, qual é o objetivo do autor no texto.
Você também pode dar uma olhadela nos parágrafos finais do texto – lá objetivo
central costuma ser reiterado e vir acompanhado de um diagnóstico, isto é, lá o
autor costuma dizer se atingiu ou não o objetivo e de que modo.
Destaque as palavras ou construções que te parecerem esquisitas.
Como já tivemos ocasião de pontuar, uma das principais razões da dificuldade de
ler textos argumentativos em gral é a perplexidade que se instala em nós diante
dos primeiros contatos com o vocabulário especializado, até que o mesmo seja
devidamente assimilado. Se você estiver lendo um autor que não define seus
termos com cuidado na primeira vez em que eles aparecem, ou se estiver lidando
com uma edição que não contenha notas de rodapé sobre esses termos ou um
glossário, então você precisará quebrar a perplexidade tentando descobrir o
significado destes termos esquisitos por conta própria – através de seus contextos
ou recorrendo a alguma fonte externa, para obter ajuda. É possível, por exemplo,
que um termo especializado já tenha um significado cristalizado ao longo de uma
discussão que vem se estendendo pelos últimos anos, ou pelas últimas décadas.
Por exemplo, um termo pode ter sido definido por um autor lá atrás, no começo
do debate, tal que sua definição foi aceita e se tornou canônica. Nesse caso você
precisará dar uma olhada nessa discussão para descobrir se se trata disso ou não.
Se for esse o caso, conhecer o contexto em que o termo teve seu significado
originalmente estabelecido ajudará. Se não for, uma outra estratégia que pode ser
aplicada a título de antídoto contra a perplexidade é destacar todas as ocorrências
de cada palavra ou construção desconhecida ou esquisita na primeira leitura
(sublinhando-as com um lápis ou com uma caneta marca-texto, por exemplo –
desde que o exemplar seja seu, é claro!) e em seguida observar o que as frases
(isto é, os contextos) em que tais o palavras ou construções aparecem têm em
comum. Também é possível utilizar um dicionário para consultar eventuais
acepções pouco conhecidas ou pouco usuais de termos, bem como um dicionário
bilíngue, caso o texto original seja em língua estrangeira, para ver como o termo
original é usado na língua a que pertence. Adquirir familiaridade com o universo
semântico do autor ajuda bastante a compreender o ―espírito‖ de seu pensamento,
digamos assim.

Não apavore ao se deparar com trechos mais complicados. Não tente


apressar a leitura pensando que tais e tais sessões são difíceis, mas que o texto
ficará mais fácil mais pra frente. Facilmente caímos em desespero quando um
texto começa a ficar difícil demais e temos a tentação de avançar por nossa conta,
dando pouca atenção ou mesmo pulando os parágrafos mais complicados e indo
direto para sessões ou partes mais à frente no texto (exatamente como fazemos
quando estamos realizando uma prova, por exemplo, e nos deparamos com um
pergunta difícil demais: a tendência é pulá-la e ir direto para a pergunta seguinte).
Tente tanto quanto possível resistir a essa tentação. Quase sempre textos
argumentativos possuem um caráter cumulativo: compreender adequadamente os
parágrafos ou sessões mais à frente depende, realmente, de ter compreendido os
parágrafos ou sessões anteriores. Assim, em vez de avançar por conta própria na
esperança equivocada de que o texto ficará mais fácil mais à frente, tente fazer o
oposto: diminua o ritmo da leitura, concentrando-se individualmente em cada
frase e procurando identificar qual é o papel que ela desempenha em relação ao
objetivo final. Releia a parte difícil algumas vezes, norteando-se pela seguinte
pergunta: ―como exatamente isso ajudará o autor a obter o seu objetivo central?‖.
Mesmo se você não sentir que conseguiu compreender a totalidade do trecho
complicado, se você conseguir ao menos esboçar, para você mesmo, uma
resposta para essa pergunta você já terá avançado consideravelmente.
Não há problema algum em obter ajuda. Se você estiver achando
simplesmente impossível compreender o texto que você se propôs a ler, não se
acanhe, peça ajuda. Você sempre pode pedir ajuda ao seu professor, orientador,
monitores ou mesmo à bibliografia secundária (outras pessoas que já leram o
texto que você está tentando ler e que escreveram sobre ele). Muitas vezes o
ambiente acadêmico desencoraja o aluno iniciante a consultar bibliografia
secundária antes de ter lido a bibliografia primária, sob justificativa de que a
bibliografia secundária distorce e ultrassimplifica as ideias do texto original,
viciando o leitor. No caso específico de textos argumentativos, porém, recorrer à
bibliografia secundária frequentemente é recomendável e mesmo preferível. Isso
porque essa bibliografia possivelmente também terá um caráter argumentativo
(será um outro texto argumentativo sobre o texto que você está lendo) no qual o
autor tentará esclarecer (e não distorcer) os argumentos do texto original, de
modo que entrar em contato com essa bibliografia contribuirá de maneira mais
sólida para você se tornar um leitor autônomo de textos do gênero argumentativo.
Se você não souber que tipo de bibliografia secundária consultar, peça indicações
a quem for mais experiente.

Fique atento a palavras e expressões indicadoras de conclusões.


Argumentos são constituídos de premissas e conclusão (teremos ocasião de ver
isso de forma mais detalhada mais à frente). Termos como ―portanto‖, ―logo‖,
―tal que‖, ―de modo que‖, ―deste modo‖, ―assim‖, ―assim sendo‖, dentre outros,
normalmente são usados para indicar o momento em que uma conclusão será
anunciada; e nas proximidades da conclusão normalmente é fácil encontrar o
argumento inteiro. Fique atento a esses termos; destaque-os, se quiser, de modo a
demarcar o ―lugar‖ onde a conclusão está estabelecida. Observe que depois deles
normalmente vem a conclusão de um argumento (que no contexto do texto
inteiro é uma conclusão parcial); e antes deles normalmente vêm as premissas
(ou razões que permitem que essa conclusão seja estabelecida). A soma de todas
as conclusões parciais ao longo de um texto constitui uma espécie de ―resumo‖
de seu conteúdo.

À medida que for conseguindo visualizar os argumentos, faça breves


anotações. Quando você perceber um argumento, ou aquilo que você pensa ser
um argumento, uma boa dica é tentar reproduzi-lo por escrito com suas próprias
palavras. Se isso não for possível, tente pelo menos anotá-lo ou indicar, para você
mesmo, o que o autor parece estar estabelecendo através do argumento e porquê.
Essas anotações podem ser feitas num caderno à parte ou mesmo nas margens do
próprio texto (caso o exemplar seja seu!), mas devem ser sempre organizadas.
Preferencialmente dê um título a cada argumento ou esboço de argumento que
você conseguir transcrever, usando palavras como ―contra‖ e ―a favor‖; ―para
mostrar que é possível‖ e ―para mostrar que é impossível‖; ou ―para mostrar que
é melhor‖ e ―para mostrar que é pior‖. (Ao ler, por exemplo, um texto que o autor
tenta mostrar que o universo é infinito, tente reproduzir o argumento que você
pensa ter identificado e coloque o título ―argumento para mostrar que o universo
é infinito‖ ou ―argumento a favor de que o universo é infinito‖). Essas anotações
podem ir sendo alteradas à medida em que você for melhor compreendendo o
texto (a partir da segunda leitura, por exemplo).
Fique atento a menções a outros argumentos e a outros autores.
Quando o nome de um outro autor for mencionado, ou quando um outro
argumento, que você não conhece, for nomeado (mas não reproduzido), anote
essas menções para pesquisar à parte e compreender do que se trata. Muitas
vezes o autor de um texto argumentativo parte do pressuposto que nós, leitores,
estamos familiarizados com certos argumentos clássicos, ou considerados
clássicos dentro da discussão, que têm a prerrogativa de serem apenas nomeados
e não reproduzidos. O mesmo se dá com certos autores. Se você se deparar com
isso, lembre-se de procurar se inteirar acerca desses argumentos, para conhecê-
los. E se vir mencionado o nome de um autor que você desconhece, anote seu
nome e obra para pesquisar depois. Procure saber qual é a tese central defendida
pelo autor na obra mencionada. Fazer isso levará você a, aos poucos, construir
um panorama geral da discussão da qual o texto que está sendo lido faz parte.

Verbalize suas dúvidas. É natural que a leitura de um texto dê origem a


dúvidas, afinal de contas há muitas coisas que não compreendemos. Aquilo que
nós não compreendemos pode ser de dois tipos: pode ser algo que simplesmente
não ficou claro, ou pode ser fruto de um efeito curioso da compreensão, quando
começamos a adquiri-la: cada nova coisa que compreendemos nos abre um
universo de novas coisas a compreender. Isto é, cada coisa que você passa a
entender inaugura um certo número de coisas que você não entendeu ainda (e que
você não imaginava que existiam antes de ter compreendido a coisa que as
inaugurou). Você vai se tornando cada vez mais consciente dessas coisas ainda
não compreendidas (e que surgiram a partir do que você já compreendeu) à
medida que vai lendo. Agora, certamente você já teve a experiência de ver um
aluno se manifestar para dizer que não entendeu alguma coisa e, quando
questionado pelo professor sobre o que é que não entendeu, respondeu: ―tudo!‖.
Ou então: ―nada.‖. Ou: ―eu não entendi nada.‖. Pois bem, é sobre isso que você
precisará trabalhar: respostas genéricas e vagas sobre o que é que não se está
entendendo precisarão ser evitadas a todo custo. É muito importante que você
seja capaz de i) dizer o que é que você não está entendendo; ii) identificar se isso
que você não está entendendo você não está entendendo porque não ficou claro,
ou porque acabou de nascer a partir do que você entendeu e não foi discutido
ainda. Em outras palavras: você precisa saber falar o que é que você não está
entendendo, e precisa saber por que é que você não está entendendo. A melhor
maneira de adquirir essas habilidades é tentando verbalizar (preferencialmente
por escrito) as suas dúvidas. Reflita sobre elas e tente formular o que você não
está entendendo em uma frase. Leia e releia esta frase, altere-a, capriche. Busque
especificar exatamente o que é que você não está entendendo. Anote, ou numa
folha à parte ou na margem (desde que o exemplar seja seu!) ou em qualquer
outro lugar aonde você possa voltar futuramente para tentar responder. E em
seguida procure observar se essa dúvida surgiu porque o texto não está muito
claro, ou porque ela é uma consequência daquilo que você passou a entender
precisamente lendo o texto. Acredite, isso te ajudará muito a começar a entender
o que quer que seja que você não esteja entendendo.

Pratique a caridade hermenêutica. Se aquilo que um autor disse te


pareceu completamente absurdo ou estapafúrdio, você provavelmente não o
compreendeu. Deve-se sempre adotar uma ―regra de ouro‖, que vale para a
leitura de todo e qualquer texto filosófico. Essa regra pode ser enunciada nos
seguintes termos: ―tudo o que todo autor diz faz sentido‖. Aplicar essa regra
significa partir do pressuposto que as ideias de alguém quase sempre admitem
mais de uma interpretação, e que você, leitor, deve sempre se nortear por aquela
interpretação que for mais razoável.

3.1. Exercícios
A seguir temos alguns textos de caráter e estilo predominantemente
argumentativo. Alguns estão transcritos na íntegra e outros são apenas
fragmentos. São textos de diferentes épocas, abordando assuntos variados, e com
contornos bastante diversos. Apesar dessas diferenças, eles possuem algo em
comum: todos são textos com pretensões argumentativas e difíceis, nos três
sentidos que delimitamos. Isso significa que tudo o que dissemos até aqui sobre a
leitura desse tipo de texto se aplica a eles. Leia cada um deles atentamente,
procurando adquirir uma noção do que é que cada autor estava querendo, no
momento em que os escreveu. Em seguida procure responder, a respeito de cada
um deles, às perguntas seguintes. Sugestão: experimente responder por escrito,
numa folha avulsa, e anexe-a ao material.

▪ Você conseguiu identificar o objetivo central do autor no texto ou


fragmento? Ele foi explicitamente declarado, ou não? Se sim, aonde exatamente?
Se não, como você fez, ou como alguém poderia fazer, para descobri-lo? Você
poderia resumi-lo e enunciá-lo com suas palavras?
▪ Você se deparou com palavras ou expressões ―esquisitas‖ durante a
leitura? Se sim, você consegue determinar o significado destes termos a partir do
seu contexto? Se não, como você procedeu ou como alguém poderia proceder
para melhor compreender essas palavras ou expressões?
▪ Quais foram os trechos mais complicados, na sua opinião? Por que esses
trechos são difíceis? Como exatamente alguém pode proceder para amenizar a
dificuldade de leitura desses trechos?
▪ Você sentiu a necessidade de obter ajuda para ler o texto? Se sim, como
você procedeu e que tipo de auxílio você procurou?
▪ Você identificou no texto palavras e expressões indicadoras de
conclusões? Você conseguiu enxergar as conclusões após (ou próximas a) essas
palavras e expressões?
▪ Você sentiu que conseguiu ―visualizar‖ argumentos, ao longo do texto?
Se sim, você consegue reproduzir com suas palavras alguns deles? Que título
você daria para cada um deles?
▪ O texto faz menções a outros argumentos e a outros autores? Você já
conhecia esses outros argumentos e autores?
▪ À medida que leu, você teve dúvidas? Se sim, como você verbalizou
essas dúvidas?
▪ Qual é a disputa que está por trás desse texto? Nessa disputa, quem está
contra quem?
TEXTO 1 - Carta de Epicuro a Heródoto (fragmento)
Autor: Epicuro
Tradução: Lisiane Pohlmann
Disponível em: https://tenhaumatoalha.wordpress.com/2011/08/31/traducao-
carta-de-epicuro-a-herodoto/

Para aqueles, oh Heródoto, que não podem ter um conhecimento


perfeitamente exato de cada um de meus escritos sobre a Natureza, e estudar a
fundo os principais livros, maiores, que escrevi, fiz um resumo de toda minha
obra que permite reter mais facilmente as principais teorias. Poderão, assim,
evitar ter que fazê-lo, eles mesmos, com minhas idéias principais na medida em
que se interessam pela Natureza. De outro modo, os que já conhecem a fundo
minhas obras completas, necessitam ter presentes na memória as linhas gerais de
minha doutrina; muitas vezes temos mais necessidade de um resumo que de
conhecimento particular dos detalhes.
Há que avançar passo a passo, retendo constantemente o conjunto da
doutrina para compreender bem seus detalhes. Esse duplo efeito será possível se
forem bem compreendidas e se o reterem em sua verdadeira formulação as idéias
essenciais, e se as aplica seguido aos elementos, às idéias particulares e às
essenciais. Conhece a fundo a doutrina quem pode obter partido rapidamente das
idéias gerais. Pois é impossível colocar em seu completo desenvolvimento a
totalidade de minha obra se és incapaz de resumir para si mesmo e em poucas
palavras o conjunto daquilo que se quer aprofundar particularmente, detalhe a
detalhe.
Já que este método resulta útil para todos que estudam seriamente a física,
aconselho a todos os homens decididos, que se entregam assiduamente ao estudo,
e que buscam nele o meio de obter tranquilidade na vida, que façam um resumo
similar do conjunto de minhas teorias. Há que começar, Heródoto, por conhecer
o que se oculta nas palavras essenciais, a fim de poder, relacionando-as com as
coisas mesmas, formular juízo sobre nossas opiniões, nossas idéias e nossas
dúvidas. Deste modo, não corremos o risco de discutir até o infinito sem
resultados e de pronunciar palavras vazias. Com efeito, é necessário estudar
primeiramente o sentido de cada palavra, para não ter necessidade de um excesso
de demonstrações, quando discutimos nossas perguntas, nossas idéias e nossas
dúvidas.
Depois há que se observar todas as coisas, confrontando-as com as
sensações e, de modo geral, com as intuições do espírito ou qualquer outro
critério. Igualmente pelo que diz respeito às nossas afeições presentes, para poder
julgar segundo os signos dos objetos de nossa atenção e os objetos ocultos.
Quando já se viu tudo isso, se está preparado para estudar as coisas invisíveis, em
primeiro lugar, podendo dizer que nada nasce do nada, já que as coisas não
tiveram necessidade de semente, tudo poderia nascer de tudo.
De outra forma, se o que desaparece volta ao nada, todas as coisas
pereceriam, já que não poderiam converter-se em mais que nada, do que resulta
que no universo tenha sido sempre e será sempre o que é atualmente, já que não
há nenhuma coisa em que se possa converter, e tampouco há, fora do universo,
nada que possa atuar sobre ele para provocar uma troca. O universo está formado
por corpos. Sua existência é mais que suficientemente provada pela sensação,
pois é ela, repito, a que serve de base ao raciocínio sobre as coisas invisíveis. Se
o que chamamos de vazio, a extensão, a essência intangível, não existisse, não
haveria lugar em que os corpos poderiam mover-se; como efeito, vemos que se
movem. À margem destas duas coisas não se pode compreender nada, nem por
intuição, nem por analogia com os dados da intuição – de que existe como uma
natureza completa, já que não estou falando de acontecimentos fortuitos ou de
acidentes.
Entre os corpos, uns são compostos, outros são os elementos que servem
para fazer os compostos. Estes últimos são os átomos indivisíveis e imutáveis, já
que nada pode converter-se em nada e é necessário que subsistam realidades
quando os compostos se desagregam. Estes corpos estão completos por natureza
e não têm neles lugar nem meio pelo qual poderão se pode destruir. Do que
resulta que tais elementos devem ser, necessariamente, as partes indivisíveis dos
corpos. Ademais, o universo é infinito. Em efeito, o que é finito tem um extremo
e o extremo se descobre por comparação com o outro. Assim que, necessitando
de extremo, não tem, em absoluto, fim: e não tendo fim, é necessariamente
infinito e não finito. O universo é infinito desde dois pontos de vista: pelo
número de corpos que contém e pela imensidão de vazio que contém. . Se o vazio
fosse infinito e o número de corpos limitado, estes se dispersariam em desordem
pelo vazio infinito, já que não haveria nada para sustentá-los e nada para uní-los
às coisas. E se o vazio fosse limitado e o número de corpos infinito, não haveria
lugar onde poderiam se instalar.
De outra forma, os corpos completos e indivisíveis, dos que estão
formados, e nos que se resolvem nos compostos, apresentam formas tão diversas
que não podemos conhecer seu número, já que não é possível que tantas formas
diferentes provenham de um número limitado e compreensível de figuras
semelhantes. Ademais, cada figura apresenta um número infinito de exemplares,
porém, pelo que diz respeito à sua diferença, tais figuras não alcançam um
número absolutamente ilimitado. Seu número é, simplesmente, incalculável.
Ademais, os átomos estão animados de movimento perpétuo. Uns estão
separados por grandes intervalos; outros, pelo contrário, conservam seu impulso
todas as vezes que são desviados, unindo-se a outros e convertendo-se nas partes
de um composto. É a consequência da natureza do vazio, incapaz por si mesma
de imobilizá-los.De outro modo, sua inerente solidez os faz ressaltar em cada
choque, ao menos na medida em que sua integração em um composto lhes
permita ressaltar logo após um choque.
O movimento dos átomos não teve começo, já que átomos são eternos
como o vazio. De outra forma, há uma infinidade de mundos, sejam parecidos
com o nosso, sejam diferentes. Em efeito, sendo os átomos infinitos, como se
acaba de demonstrar, são levados por seu movimento até os lugares mais longes.
E tais átomos, que por sua natureza servem, já por si mesmos, por sua ação, para
criar um mundo, não podem ser utilizados todos para formar um único mundo,
ou um número limitado de mundos, nem para os semelhantes a esse, nem para os
diferentes, de modo que nada impede que exista uma infinidade de mundos.
TEXTO 2 – O Gramático (fragmento)
Autor: Santo Anselmo de Cantuária
Tradução: Ruy Afonso da Costa Nunes. Publicado no livro VII da Coleção ―Os
Pensadores‖ (Editora Abril, 1973, pP. 177-203).

COMO O GRAMÁTICO É SUBSTÂNCIA E QUALIDADE

DISCÍPULO — Peço-te que me esclareças com certeza a respeito do


gramático: se é uma substância ou uma qualidade, a fim de que, conhecida essa
questão, eu saiba o que deva pensar de outras coisas que, semelhantemente, se
dizem por derivação.
MESTRE — Dize-me, primeiramente, por que duvidas.
D. — A razão da minha dúvida é que parece que se podem provar as duas
alternativas com razões necessárias, ou seja, que é e não é.
M. — Prova-o, portanto.
D. — Não te apresses a contradizer tudo o que eu disser, mas aguarda que
a minha exposição chegue ao fim e, em seguida, aplaude ou corrige.
M. — Seja como queres.
D. — Com efeito, para que se demonstre que o gramático é uma
substância basta considerar que todo gramático é um homem e todo homem é
uma substância. De fato, tudo que o gramático tem para que a substância o siga,
ele não o tem a não ser pelo fato de ser homem. Por isso, uma vez concedida tal
coisa, isto é, que é um homem, todas as coisas que acompanham o homem
acompanham o gramático. Que o gramático, porém, seja uma qualidade,
confessam-no abertamente os filósofos que trataram desse assunto, e seria um
atrevimento contestar-lhes a autoridade a respeito dessas matérias. Do mesmo
modo, porquanto é necessário que o gramático seja ou uma substância ou uma
qualidade, de tal maneira que, se é uma destas coisas, não é a outra, e se não é
qualquer uma delas é necessário que seja outra; tudo o que serve para asseverar
uma parte destrói a outra, e tudo o que enfraquece uma delas, fortalece a outra.
Por conseguinte, uma vez que dessas duas partes uma é verdadeira e a outra é
falsa, rogo-te que me expliques a verdade, descobrindo a falsidade.

II

M. — Os argumentos que apresentaste para as duas partes são necessários,


exceto o que dizes com afirmar que, se uma delas se admite, a outra não pode ser
admitida. Por isso, não deves exigir de mim que demonstre que uma das partes é
falsa — o que não pode ser feito por ninguém —, mas explicarei como não existe
contradição entre uma e outra, se isso puder ser feito por mim. Mas,
primeiramente, eu queria ouvir de ti mesmo o que achas que se pode opor a esses
teus argumentos.
D — Isso que exiges de mim, eu já esperava de ti atentamente, mas
porquanto asseveras que as tuas próprias demonstrações são irrepreensíveis,
compete a mim, que duvido, explicar o que me provoca dúvida; cabe a ti, porém,
demonstrar a firmeza e a conveniência de ambas as partes.
M. — Dize-me, pois, o que achas e eu tentarei fazer o que pedes.
D. — Com efeito, aquela proposição que diz que o gramático é um
homem, eu julgo que se deve rejeitar deste modo: "Nenhum gramático pode ser
entendido sem a gramática e todo homem pode ser entendido sem a gramática".
Ainda mais: "Todo gramático recebe um mais e um menos, e nenhum homem
recebe mais e menos". Da união dessas duas proposições tira-se uma conclusão,
isto é, nenhum gramático é homem.

III

M. — Isso não se segue.


D. — Por quê?
M. — Parece-te, porventura, que o nome animal signifique outra coisa que
substância animada sensível?
D. — o animal nada mais é absolutamente do que uma substância animada
sensível, e a substância animada sensível não é outra coisa senão o animal.
M. — Assim é. Mas dize, também, se todo aquele que não é outra coisa
senão uma substância animada sensível pode ser entendido sem a racionalidade e
não seja racional por necessidade.
D. — Não o posso negar.
M. — Por conseguinte, todo animal pode ser entendido sem a
racionalidade e nenhum animal é por necessidade racional.
D. — Não posso dizer que isso não seja conseqüência do que foi admitido,
embora eu tema bastante aquilo que suspeito que pretendas.
M. — Mas nenhum homem pode ser entendido sem a racionalidade e é
necessário que todo homem seja racional.
D. — De ambos os lados vejo-me em apuros. De fato, se concedo o que
dizes, concluis que nenhum homem é animal; se nego, não só dizes que eu não
posso ser entendido, como que realmente existo sem a racionalidade.
M. — Não temas. Com efeito, não se tira a conclusão que imaginas.
D. — Se assim é como prometes, concedo de boa mente tudo o que
propuseste; do contrário, eu o farei de mau grado.
M. — Combina, pois, tu mesmo, as quatro últimas proposições que
formulei, em dois silogismos.
D. — Sem dúvida, elas podem ser dispostas nesta ordem: "Todo animal
pode ser entendido sem a racionalidade. Mas nenhum homem pode ser entendido
sem ela". Ainda mais: "Nenhum animal é racional por necessidade. Todo homem,
porém, é racional por necessidade". Dessas duas ordens de duplas proposições
vejo que as proposições não parecem vacilar em coisa alguma. De fato, as duas
que têm por sujeito o termo homem são de tal modo tão evidentes por si mesmas,
que seria imprudência demonstrá-las, enquanto as duas que têm por sujeito o
termo animal parecem de tal modo comprovadas, que seria um atrevimento negá-
las. Mas vejo que a união desses dois silogismos pode ser tomada como
semelhante em tudo aos outros que já apresentei, a não ser que, quando eu
perceber claramente a falsa conclusão desses silogismos, eu repare que a mesma
coisa ocorre igualmente com aqueles que eu havia formulado.
M. — Assim é.
D. — Demonstra-me, pois, em que consiste tanto engano aqui e ali, uma
vez que as proposições parecem verdadeiras e unidas conforme a natureza dos
silogismos, embora nenhuma verdade ampare as suas conclusões.
TEXTO 3 - Suma Teológica (fragmento – artigos 1 e 2)
Autor: Tomás de Aquino
Tradução: Alexandre Correia
Disponível em: https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-
teolc3b3gica.pdf

Art. 1 — Se, além das ciências filosóficas, é necessária outra doutrina. (IIa
IIae., q. 2, a. 3, 4; I Sent., prol., a. 1; I Cont. Gent., cap. IV, V; De Verit., q. 14, a.
10). O primeiro discute-se assim — Parece desnecessária outra doutrina além das
disciplinas filosóficas. 1. — Pois não se deve esforçar o homem por alcançar
objetos que ultrapassem a razão, segundo a Escritura (Ecle. 3, 22): Não procures
saber coisas mais dificultosas do que as que cabem na tua capacidade. Ora, o que
é da alçada racional ensina-se, com suficiência, nas disciplinas filosóficas; logo,
parece escusada outra doutrina além das disciplinas filosóficas. 2. — Ademais,
não há doutrina senão do ser, pois nada se sabe, senão o verdadeiro, que no ser se
converte. Ora, de todas as partes do ser trata a filosofia, inclusive de Deus; por
onde, um ramo filosófico se chama teologia ou ciência divina, como está no
Filósofo. Logo, não é preciso que haja outra doutrina além das filosóficas. Mas,
em contrário, a Escritura (2 Tm 3, 16): Toda a Escritura divinamente inspirada é
útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça. Porém, a
Escritura, divinamente revelada, não pertence às disciplinas filosóficas,
adquiridas pela razão humana; por onde, é útil haver outra ciência, divinamente
revelada, além das filosóficas.
SOLUÇÃO. — Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina
conforme à revelação divina, além das filosóficas, pesquisadas pela razão
humana. Porque, primeiramente, o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe
excede a compreensão racional, segundo a Escritura (Is 64, 4): O olho não viu,
exceto tu, ó Deus, o que tens preparado para os que te esperam. Ora, o fim deve
ser previamente conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as
intenções e atos. De sorte que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina
revelação, tornarem-se-lhe conhecidas certas verdades superiores à razão. Mas
também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi
necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre
Deus, exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de
longo tempo e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade
depende toda a salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais
conveniente e segura adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por
divina revelação, ensinados nas coisas divinas. Donde foi necessária uma
doutrina sagrada e revelada, além das filosóficas, racionalmente adquiridas.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora se não
possa inquirir pela razão o que sobrepuja a ciência humana, pode-se entretanto
recebê-lo por fé divinamente revelada. Por isso, no lugar citado (Ecle 3, 25), se
acrescenta: Muitas coisas te têm sido patenteadas que excedem o entendimento
dos homens. E nisto consiste a sagrada doutrina.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O meio de conhecer diverso induz a
diversidade das ciências. Assim, o astrônomo e o físico demonstram a mesma
conclusão, p. ex., que a terra é redonda; se bem o astrônomo, por meio
matemático, abstrato da matéria; e o físico, considerando a mesma. Portanto,
nada impede que os mesmos assuntos, tratados nas disciplinas filosóficas,
enquanto cognoscíveis pela razão natural, também sejam objeto de outra ciência,
enquanto conhecidos pela revelação divina. Donde a teologia, atinente à sagrada
doutrina, difere genericamente daquela teologia que faz parte da filosofia. Art. 2
— Se a doutrina sagrada é ciência. (IIa IIae., q.1, a. 5, ad 2; I Sent., prol., a. 3. qa
. 2; De Verit., q. 14 a. 9, ad 3; in Boet., De Trin., q. 2, a. 2) O segundo discute-se
assim — Parece não ser ciência a doutrina sagrada. 1. — Pois toda ciência
provém de princípios por si evidentes, ao passo que procede a doutrina sagrada
dos artigos da fé, inevidentes em si, por serem não universalmente aceitos;
porque a fé não é de todos, diz a Escritura (2 Ts 3, 2). Logo, não é ciência a
doutrina sagrada. 2. — Ademais, do indivíduo não há ciência. Mas a doutrina
sagrada trata de fatos individuais, como sejam os feitos de Abraão, Isaac, Jacó e
semelhantes. Logo, não é ciência a doutrina sagrada. Mas, em contrário,
Agostinho: A esta ciência só aquilo se atribui com que se gera, nutre, defende e
corrobora a fé salubérrima. Ora, a nenhuma ciência pertence tal, senão à doutrina
sagrada. Por onde, é ciência a doutrina sagrada.
SOLUÇÃO. — A doutrina sagrada é ciência. Porém, cumpre saber que há
dois gêneros de ciências. Umas partem de princípios conhecidos à luz natural do
intelecto, como a aritmética, a geometria e semelhantes. Outras provém de
princípios conhecidos por ciência superior; como a perspectiva, de princípios
explicados na geometria, e a música, de princípios aritméticos. E deste modo é
ciência a doutrina sagrada, pois deriva de princípios conhecidos à luz duma
ciência superior, a saber: a de Deus e dos santos. Portanto, como aceita a música
os princípios que lhe fornece o aritmético, assim a doutrina sagrada tem fé nos
princípios que lhe são por Deus revelados.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os princípios de
qualquer ciência, ou são por si mesmos evidentes, ou se reduzem à evidência de
alguma ciência superior. E tais são os princípios da doutrina sagrada, como
dissemos.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Na doutrina sagrada, os fatos individuais
não são tratados principalmente, senão apenas introduzidos a título de exemplo
prático, como nas ciências morais; ou também no intuito de apurar a autoridade
dos homens que nos transmitiram a revelação divina, na qual se funda a Sagrada
Escritura ou doutrina.
TEXTO 4 – A Revolução Darwiniana
Autor: Daniel Dennett
Tradução: Álvaro Augusto Fernandes
Disponível em: http://ateus.net/artigos/filosofia/a-revolucao-darwiniana/
Original: A Perigosa Ideia de Darwin. Lisboa: Temas e Debates. 2001, pp. 20-24.

Não há futuro num mito sagrado. Por quê? Por nossa curiosidade. […]
Seja o que for que consideremos precioso, não podemos protegê-lo da nossa
curiosidade porque, sendo quem somos, uma das coisas que consideramos
preciosa é a verdade. O nosso amor pela verdade é sem dúvida um elemento
central no sentido que damos à nossa vida. Em qualquer caso, a ideia de que
possamos preservar o sentido da nossa vida à força de nos enganarmos é uma
ideia mais pessimista, mais niilista do que eu, pela parte que me toca, consigo
engolir. Se isso fosse o melhor que se pode fazer, concluiria que afinal nada tinha
importância. […]
A nossa curiosidade sobre as coisas assume diferentes formas, como
Aristóteles assinalou no tratado da ciência humana. O seu esforço pioneiro para
classificá-las ainda faz muito sentido. Aristóteles identificou quatro questões
básicas sobre qualquer coisa que queiramos responder, e chamou-as aitia, um
termo grego verdadeiramente impossível de ser traduzido, tradicional mas
desajeitadamente traduzido por quatro ―causas‖.

1. Podemos ter curiosidade sobre aquilo de que algo é feito, a sua


matéria ou causa material.
2. Podemos ter curiosidade sobre a forma (ou estrutura ou
configuração) que essa matéria assume, a sua causa formal.
3. Podemos ter curiosidade sobre a sua origem, como começou, ou
sobre a sua causa eficiente.
4. Podemos ter curiosidade sobre o
seu propósito ou objetivo ou finalidade (como na pergunta ―Será que
os fins justificam os meios?‖), a que Aristóteles chamou o seu telos,
que por vezes se traduz em português, desajeitadamente, como ―causa
final‖.

É preciso alguma ginástica para fazer estas quatro aitia aristotélicas


corresponderem a respostas às típicas perguntas portuguesas ―o quê, onde,
quando e por que‖. A correspondência é apenas aproximada. As perguntas que
começam com ―por que‖, contudo, normalmente pedem a quarta ―causa‖ de
Aristóteles, o telos de uma coisa. Por quê?, perguntamos. Para que serve? Como
dizemos às vezes: qual é a sua razão de ser? Os filósofos e os cientistas
reconheceram, durante centenas de anos, que estas perguntas pelo ―por que‖ são
problemáticas e de tal modo distintas que o estudo a que dão lugar merece um
nome: teleologia.
Uma explicação teleológica é a que explica a existência ou ocorrência de
algo fazendo apelo a um objetivo ou propósito a que a coisa serve. Os artefatos
são os casos mais óbvios; o objetivo ou propósito de um artefato é a função que o
seu criador concebeu para ele. Não há controvérsia sobre o telos de um martelo:
serve para martelar e tirar pregos. O telos de artefatos mais complexos, como
câmaras de vídeo, caminhões ou scanners é, na pior das hipóteses, mais óbvio.
Mas mesmo nos casos mais simples, podemos ver que sempre há um problema
de fundo presente:

— Por que razão estás a serrar essa tábua?


— Para fazer uma porta.
— E para que é a porta?
— Para proteger a minha casa.
— E por que razão queres proteger a tua casa?
— Para poder dormir descansado.
— E por que razão queres dormir descansado?
— Vai passear e deixa de me fazer perguntas tolas.

Essa troca de palavras revela um dos problemas da teleologia: para que


isso tudo? Que causa final podemos apresentar para completar essa hierarquia de
razões? Aristóteles tinha uma resposta: Deus, o Motor Imóvel, o para-quê no
qual acabam todos os para-quês. A ideia, que foi aproveitada pelas tradições
cristãs, judaicas e islâmicas, é que todos os nossos propósitos derivam em última
análise de Deus. A ideia é sem dúvida natural e atraente. Se olharmos para um
relógio e nos perguntarmos por que razãotem um vidro transparente, é óbvio que
a resposta remete às necessidades e desejos das pessoas que usam relógios, que
querem saber as horas olhando para o mostrador etc.. Se não fossem estes fatos
sobre nós — para quem o relógio foi criado —, não haveria explicação do ―por
que‖ do vidro transparente. Se o universo foi criado por Deus para cumprir os
seus propósitos, então todos os propósitos que possamos encontrar no próprio
universo têm, em última análise, de estar subordinados aos propósitos de Deus.
Mas quais são os propósitos de Deus? Isso é algo misterioso.
Uma maneira de afastar o desconforto acerca desse mistério é mudar
ligeiramente o assunto. Em vez de responder a pergunta pelo ―por que‖ com uma
resposta do tipo ―porque‖ (o tipo de resposta que ela parece exigir), as pessoas
substituem muitas vezes a pergunta ―por quê?‖ pela pergunta ―como?‖, e tentam
responder esta última contando uma história sobre como Deus criou a nós e ao
resto do universo, sem perder demasiado tempo com a questão de saber
exatamente por que razão poderá Ele ter desejado fazer tal coisa. A pergunta pelo
―como‖ não se encaixa na lista de Aristóteles, mas já eram perguntas e respostas
populares muito antes de Aristóteles ter apresentado sua análise. As respostas às
maiores perguntas pelo ―como‖ são cosmogonias, histórias sobre como o
cosmos, o universo inteiro e tudo o que ele contém, passou a existir. O livro do
Gênesis é uma cosmogonia, mas há muitos outros. Os cosmólogos que exploram
a hipótese do Big Bang, e que especulam sobre os buracos negros e as
supercordas, são criadores atuais de cosmogonias. Nem todas as cosmogonias
seguem o padrão de um artífice. Algumas envolvem um ―ovo do mundo‖
depositado nas ―Profundezas‖ por uma ave mítica qualquer, e outras envolvem
sementes que se deitam à terra e se cuidam. A imaginação humana não dispõe de
muitos recursos de que lançar mão quando se confronta com uma questão tão
intrigante. Um mito antigo da criação fala de um ―Senhor que existe por si‖ e
que, ―com um pensamento, criou as águas, depositando nelas uma semente que
se transformou num ovo dourado, nascendo ele próprio desse ovo como Brama, o
progenitor dos mundos‖ (Muir 1972, Vol. IV, p. 26).
E qual era o objetivo de todas essas posturas de ovos, sementeiras e
construção de mundos? Ou, já agora, qual é o objetivo do Big Bang? Os
cosmólogos atuais, à semelhança de muitos dos seus antecessores ao longo da
história, apresentam uma história divertida, mas preferem fugir da questão
teleológica do ―por que‖. Será que o universo existe por uma razão qualquer?
Será que as razões têm um papel qualquer que se possa compreender nas
explicações do cosmos? Será que algo poderia existir por uma razão, sem que se
tratasse da razão de alguém? Ou será que as razões — as causas do tipo 4 de
Aristóteles — só são apropriadas nas explicações das obras e feitos de pessoas ou
de outros agentes racionais? Se Deus não é uma pessoa, um agente racional, um
Artífice Inteligente, que sentido poderá ter a mais grandiosa pergunta pelo ―por
que‖? E se a maior pergunta pelo ―por que‖ não tem qualquer sentido, como
poderão outras perguntas pelo ―por que‖, menores e mais simples, ter sentido?
Uma das contribuições fundamentais de Darwin é mostrar-nos uma nova
maneira de dar sentido às perguntas pelo ―por que‖. Queiramos ou não, a ideia de
Darwin oferece-nos uma maneira — clara, convincente e espantosamente versátil
— de dissolver estes velhos enigmas. É preciso tempo para nos habituarmos à
sua ideia, e ela é muitas vezes mal aplicada, mesmo pelos seus amigos mais
dedicados. […] O que ganhamos é, pela primeira vez, um sistema explicativo
estável que não anda às voltas nem entra numa espiral infinita de mistérios.
Aparentemente, algumas pessoas preferem a regressão infinita de mistérios, mas
hoje em dia o custo desta estratégia é proibitivo: deixar-se enganar. Podemos
enganar a nós próprios, ou deixar essa tarefa a outras pessoas, mas não há uma
forma intelectualmente defensável de reconstruir as poderosas barreiras à
compreensão que Darwin derrubou.

TEXTO 5 – Revisitando o debate entre os sistemas de governo (fragmento)


Autor: Caetano Ernesto Pereira de Araújo
Disponível em: www.senado.leg.br/estudos. Acesso em 26 de fevereiro de 2019.
Referência completa: ARAÚJO, C. E. P. de. Revisitando o debate entre os
sistemas de governo. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado,
Setembro/ 2016 (Texto para Discussão nº 210).

4 O DEBATE SOBRE PARLAMENTARISMO E PRESIDENCIALISMO


NO BRASIL
A inclusão do plebiscito sobre regime de governo, previsto no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e
realizado em 1993, deu ensejo a um amplo debate sobre o tema. A polêmica
dividiu partidos e seus expoentes além das clivagens político-ideológicas
tradicionais. Apesar da intensidade da discussão, os argumentos dos dois campos
principais não primaram pela diversidade.
No campo parlamentarista, assinala-se a falência histórica do
presidencialismo no Brasil. No período em que funcionou com certa
normalidade, de 1946 a 1964, a vida política brasileira foi permeada de crises
com pouca ou nenhuma capacidade de resolução institucional, culminando com o
golpe militar de 1964. A regra, no período, foi o conflito permanente entre
Executivo e Legislativo, resultando em paralisia decisória, subordinação do
Congresso ao Presidente e na impossibilidade de institucionalizar um verdadeiro
sistema partidário.
Na vigência da Carta de 1988, o desempenho do sistema não foi melhor. O
presidencialismo, aliado a um sistema partidário considerado, de forma geral,
como indisciplinado e excessivamente fragmentado, teria produzido um padrão
de relacionamento Executivo–Legislativo fundado na negociação individual com
cada parlamentar. O processo decisório, nessas condições, absorve parte
considerável do 15 capital político – tempo e recursos de toda ordem – e torna-se
moroso. O Executivo ágil, que toma as decisões no tempo preciso, informado por
uma racionalidade técnica, como apresentado pelos presidencialistas, dissipa-se,
portanto, logo que o Legislativo assume parcela do poder.
A fraqueza do sistema partidário, por sua vez, nas condições do
presidencialismo nacional, manifestou-se em diversas ocasiões. A eleição de
Collor mostrou que a influência partidária na eleição do presidente era nula. No
mesmo ano de 1989, o PMDB e o PFL, que detinham, em conjunto, dois terços
da Câmara dos Deputados, não alcançaram a marca de 5% dos votos para
presidente.
A opção parlamentarista permitiria fortalecer o sistema partidário e
reduziria a prática da negociação a varejo com os congressistas. É importante
lembrar que esse tipo de barganha entre Executivo e Legislativo é percebido
pelos parlamentaristas como inevitável numa conjuntura que combina
presidencialismo, congresso forte com atomização e indisciplina partidária.
Nessa situação, ou se dá o passo decisivo para o parlamentarismo, e ao poder do
Congresso corresponderão responsabilidades com a governabilidade, ou retiram-
se poderes do parlamento e volta-se, no limite, ao regime de exceção.
Uma segunda linha de argumentação explora a complexidade maior da
sociedade brasileira hoje. Uma sociedade complexa, diferenciada, com múltiplas
linhas de clivagem teria menor possibilidade de suportar a dura maioria que o
caráter plebiscitário do presidencialismo produz. Uma sociedade de variadas
minorias teria menos facilidade de conviver com o sistema de ―ao vencedor
tudo‖, próprio do presidencialismo. Assim, o parlamentarismo seria mais
compatível com uma democracia de consenso, necessária nas sociedades
complexas da modernidade, no dizer de Lipjhart (1991), que a democracia
majoritária, desenvolvida nos sistemas presidencialistas.
O argumento presidencialista básico é o caráter diferenciado do voto
brasileiro segundo os mandatos eletivos. A ideia é que, quanto mais próximo do
plano local, mais o voto se encontra sujeito a influências externas à vontade do
eleitor, subordinando-se à patronagem e à oligarquia. O voto para presidente
seria, nesse raciocínio, aquele em que a vontade popular se manifesta de maneira
mais límpida. Daí o caráter progressista do Poder Executivo na história brasileira,
em contraste com o conservadorismo, a corrupção e o fisiologismo presentes,
conforme esse ponto de vista, no Legislativo.
A mudança no País, o desenvolvimento, dependeria de um Executivo
forte, independente do parlamento, historicamente uma trincheira oligárquica. O
argumento cinde a vontade do eleitor e preza o voto ―puro‖ para presidente,
necessário para fazer o País avançar, apesar do voto ―corrompido‖ que gera o
Legislativo, ou mesmo contra ele. Os defensores dessa posição consideram
inimaginável a ideia de as câmaras federal, estaduais ou municipais assumirem a
responsabilidade de nomear e demitir o executivo em seus respectivos níveis.
Na verdade, o argumento está ancorado em uma antiga vertente do
pensamento político brasileiro que considera a mudança e o desenvolvimento
funções de um Estado forte e centralizado. E, realmente, a industrialização do
Brasil, após a Revolução de 1930, ocorreu sob os auspícios de um Estado desse
tipo. Segundo essa interpretação, o Brasil deveria ao presidencialismo o
desenvolvimento econômico e as conquistas sociais alcançadas até 1964.
Implícita, nos argumentos de alguns dos defensores dessa posição, encontra-se a
ideia de que, mais importante que a democracia, que afinal vigorou por um
período relativamente curto na história do Brasil presidencialista, é a suposta
eficiência do presidencialismo, seja em termos de desenvolvimento econômico,
seja em termos de promoção da justiça social, ou qualquer outro bem
considerado ―maior‖.
A resposta parlamentarista é que o regime alternativo é capaz de abrigar
processos de desenvolvimento econômico e político mesmo em países de cultura
política semelhante à nossa, como o demonstra o desenvolvimento recente da
Itália. E consegue esse feito sem os riscos do retrocesso político, riscos esses
cada vez maiores, à medida que a sociedade se torna mais complexa e
diferenciada, e que, quando efetivados, reduzem a pó, de imediato, qualquer
conquista social porventura já atingida.

5 CONCLUSÕES
O argumento presidencialista mais utilizado no debate que precedeu a
realização do plebiscito de 1993 não resiste ao exame dos fatos. O voto brasileiro
é cada vez menos dependente de redes locais de influência, organizadas pelo
poder econômico, notadamente a propriedade fundiária. O voto majoritário hoje
é o urbano, que supera em muito o rural. Os determinantes desse voto são outros,
incluindo os meios de comunicação de massa, o peso dos movimentos sociais, a
concessão de benefícios à localidade por parte dos ocupantes de cargos em todos
os níveis do Executivo.
Em todo caso, não há razão para supor que o voto executivo, para prefeito,
governador ou presidente, obedeça a determinações diferentes daquelas que
pesam sobre o voto legislativo, que elege vereadores, deputados e senadores,
nem que resulte em maiorias com orientação ideológica diversa, do tipo
―executivos progressistas‖ versus ―legislativos conservadores‖.
No entanto, mesmo admitindo alguma diferenciação, não há como supor
que, num sistema em que o Poder Executivo goza de relativa autonomia, o poder
econômico, as oligarquias locais, etc., tenham interesse maior nas eleições
legislativas e não nas que definem o Executivo.
Na verdade, esse argumento presidencialista valoriza a presteza decisória
que, teoricamente, o sistema permitiria ao vencedor da eleição para presidente. O
que se deseja, à esquerda e à direita, é que o poder possa ser exercido sem peias
ou entraves durante o período do mandato; que um projeto de governo, uma vez
sufragado na eleição, disponha de uma garantia mínima de tempo para sua
execução, com o máximo de limitações à ação restritiva da minoria encastelada
no Legislativo. Para os presidencialistas de esquerda, particularmente, a
sociedade pode ser mudada de forma radical e a revolução pode acontecer, desde
que se consiga a vitória numa única eleição para presidente.
A postulação do argumento não é, portanto, apenas a autonomia do
Executivo, mas a fraqueza de um Legislativo incapaz de opor resistência à
maioria que se formou na eleição presidencial. Numa situação ideal, caberia à
minoria apenas a crítica e denúncia do Executivo, enquanto aguarda o confronto
eleitoral seguinte. A pergunta que se impõe, no entanto é: maiorias pontuais,
obtidas numa conjuntura específica, mesmo que fortalecidas pela sistemática dos
dois turnos, podem expressar legitimamente, nas condições contemporâneas, a
vontade da população por períodos maiores de tempo?
Volta-se aqui à argumentação parlamentarista. Sociedades modernas são
sociedades complexas, que estão se tornando ainda mais diferenciadas, numa
velocidade sempre surpreendente. Se, num passado ainda recente, todas as linhas
de oposição, incluindo as clivagens políticas e culturais relevantes,
subordinavam-se, até certo ponto, às divisões de classe, com raízes no mundo do
trabalho, hoje a situação é outra.
Novas temáticas assumem importância e cruzam transversalmente as
divisões de classe. Temas como meio-ambiente, paz, gênero, etnia, religião,
identidade local e idade criam novos atores políticos que emergem no espaço
público com suas próprias reivindicações. Esse movimento, embora incipiente
entre nós, encontra-se avançado nas democracias afluentes do mundo ocidental.
Sociedades com esse grau de complexidade, nas quais as lealdades
políticas tendem a definir-se conforme temas específicos, em que partidos
dividem o espaço da política com movimentos de novo tipo, em que o voto do
eleitor torna-se sensível a uma gama variada de assuntos relevantes, cada vez
menos conseguem se fazer representar por uma maioria simples, obtida de uma
vez para quatro ou cinco anos, no figurino presidencialista. A possibilidade da
produção de déficits de legitimidade, sem solução institucional adequada, torna-
se mais presente.
Numa situação como essa, em que maioria significa, cada vez mais,
coalizão de minorias, e de minorias mutáveis, a flexibilidade do parlamentarismo
acentua-se como vantagem. Eleito o parlamento, cabe aos representantes do povo
a constituição da maioria. Altera-se a conjuntura, o governo não é mais
considerado satisfatório, a mesma composição parlamentar, fruto da eleição mais
recente, busca uma nova maioria. Na impossibilidade política de um acordo,
novas eleições são convocadas e todos os personagens são submetidos ao voto
popular. Não há a possibilidade, corriqueira em países de sistema
presidencialista, de riscos de questionamentos quanto à legitimidade dos
dirigentes de governo a continuarem no cargo em razão de mudanças na
conjuntura e na opinião pública

TEXTO 6 – A homeopatia é uma farsa


Autor: Beny Spira
Publicado em: Jornal da USP, em 15 de maio de 2017
Disponível em: http://jornal.usp.br/artigos/a-homeopatia-e-uma-farsa-criminosa/

Venho expressar a minha surpresa e indignação com a publicação da


reportagem Ensino de homeopatia veterinária é deficiente, afirma pesquisadora
no Jornal da USP. É lastimável que essa entidade representativa da Universidade
de São Paulo seja porta-voz de pseudociência (fake science). A homeopatia,
apesar de ter defensores na classe médica, é uma das mais manjadas
pseudociências.
Poder-se-ia argumentar que o Jornal da USP, democrático como é,
deveria estar aberto a diferentes opiniões. Porém, a divulgação da homeopatia
contribui para a difusão de um conhecimento errado, arcaico e perigoso. A
ciência baseia-se na busca pela verdade, não em opiniões. A ciência não é
democrática. Se a maioria das pessoas decidir que a Terra é plana, isso não fará
com que ela deixe de ser uma esfera imperfeita. Da mesma forma, não votamos
para decidir se um antibiótico é eficiente para o tratamento de uma determinada
doença infecciosa; os testes clínicos dirão se ele funciona ou não. A homeopatia
é considerada, pela grande maioria dos cientistas, uma pseudociência, e há
diversos bons motivos para isso.

Por que a homeopatia é errada, arcaica e perigosa?


Errada, porque o princípio homeopático é baseado em duas premissas
falsas: (1) o princípio dos similares e (2) a lei dos infinitesimais. O primeiro
prega a máxima Simila similibus curentur, que significa ―similar cura similar‖.
Ou seja, uma determinada enfermidade pode ser curada com alguma substância
que cause o mesmo sintoma. Um exemplo: resfriados podem ser tratados com
cebola (Allium cepa), pois a cebola, ao ser picada, causa sintomas parecidos com
os do resfriado (coriza, irritação dos olhos e outros). Então, se o paciente tomar
um remédio baseado em Allium cepa por uma semana, ficará curado do resfriado.
Que maravilha! Imagine o que acontecerá se o paciente não tomar o remédio
cebolístico por uma semana. Você adivinhou: o resfriado passou assim mesmo!
Portanto, o princípio de ―similar cura similar‖ é interessante, mas absolutamente
errado, pois carece de evidências científicas. Mais sobre evidências científicas
abaixo.
Se o primeiro princípio da homeopatia é equivocado, o que dizer, então,
sobre o segundo princípio? Para responder essa pergunta, vamos parafrasear o
grande físico Wolfgang Pauli, que costumava dizer: ―É tão absurdo que nem
errado é‖. A lei dos infinitesimais estabelece que, quanto maior a diluição de um
medicamento, maior a sua capacidade curadora! Se você não entendeu, não se
preocupe. É tão contrário à lógica e às ciências químicas e farmacêuticas, que a
nossa cabeça, dominada pela ―hegemônica ciência racional‖, não consegue
entender a grande sabedoria que está por trás desse princípio!
Explico com mais um exemplo: na homeopatia, trióxido de arsênico é
recomendado para o tratamento de diversos males, entre eles asma, resfriado,
diarreia etc. Mas espere: arsênico é extremamente tóxico, além de ser
carcinogênico. Como pode, então, ser utilizado para a cura de qualquer coisa? Aí
vem a ―grandiosidade‖ do segundo princípio da homeopatia: basta diluí-lo que o
efeito tóxico desaparece! Mas o efeito curativo não somente permanece na
solução diluída, como tem seu potencial aumentado! Por isso, ―remédios‖
homeopáticos são normalmente diluídos 10^30 vezes ou mais. Há, porém, um
pequeno problema: o químico Amedeo Avogadro, do século XIX, demonstrou
que 1 mol de uma solução de qualquer composto contém 6 x 10²³ (o número 6
seguido de 23 zeros) unidades desse composto. Ou seja, um mol de uma solução
de trióxido de arsênico contem 6 x 10²³ moléculas. Uma vez que a solubilidade
máxima de trióxido de arsênico em água é de apenas 0,1 mol/litro, ao diluir essa
solução 10³ vezes, adivinhe quantas moléculas de trióxido de arsênico restarão
no composto diluído? Isso mesmo, nenhuma! Foi como diluir uma gota no
oceano! Sendo assim, como pode um remédio homeopático curar uma
enfermidade? A resposta óbvia é que não pode. Não há nenhum mecanismo que
explique como uma solução homeopática ultradiluída possa ter qualquer efeito
curativo.
Bom, mas você ainda pode estar pensando que a nossa pobre ―ciência
ocidental hegemônica‖ ainda não descobriu o mecanismo de ação dos compostos
homeopáticos, mas que funciona, funciona! Certo? Novamente, sinto desapontá-
lo. Apesar de o artigo ter afirmado que a ―homeopatia não é estudada na
universidade‖, milhares de estudos já foram realizados, em todos os cantos do
planeta. A grande maioria dos estudos clínicos devidamente bem conduzidos
revelou que o tratamento homeopático equivale ao tratamento com placebo, ou
seja, não foi detectado nenhum efeito curativo significativo de qualquer
composto homeopático a não ser aquele causado por autossugestão (veja a meta-
análise escrita por Shang et al. 2005; o editorial da Lancet nesse mesmo fascículo
anunciando o ‗fim da homeopatia‘:The Lancet 2005; ou ainda o documento:
‗Evidence on the effectiveness of homeopathy for treating health conditions‘ do
governo australiano, publicado em 2015). Por esse motivo, alguns países (que
levam a ciência a sério), tal como o Reino Unido, estão em vias de banir a
homeopatia do rol de medicamentos prescritos pelo sistema nacional de saúde
daquele país (NHS).

Por que a homeopatia é arcaica?


Uma das principais características da ciência é o seu progresso. Todos os
dias, milhares de artigos científicos são publicados. Os bons artigos adicionam
conhecimento relevante ao edifício da ciência, outros trazem evidências novas e
até mesmo retificam concepções científicas mais antigas. Os livros-texto das
diversas áreas da ciência são frequentemente reeditados, não somente porque as
editoras querem vender mais livros, mas porque conceitos importantes são
adicionados ou modificados. A homeopatia não evoluiu desde o século XIX,
época da sua fundação. O principal livro da homeopatia, Materia Medica, foi
escrito há 200 anos!

Por que a homeopatia é perigosa?


Muitas doenças são potencialmente debilitantes ou fatais. A medicina
convencional, baseada em evidências científicas, busca administrar o melhor
tratamento, o qual é apontado por testes clínicos e pré-clínicos. Por exemplo, a
pneumonia bacteriana, se não for tratada, pode levar à morte; mas, graças aos
antibióticos, a infecção pode ser contida e o paciente, poupado. Imagine se um
paciente com pneumonia tratar-se exclusivamente com compostos homeopáticos,
que, como já vimos, não têm poder curador além do efeito placebo? Para doenças
benignas ou de baixa gravidade, o tratamento homeopático não causará dano
maior; mas, se a enfermidade for grave, o resultado poderá ser fatal.

Referências

Shang, Aijing et al. ―Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects?
Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy.‖
The Lancet 366.9487 (2005): 726-732.

The Lancet. ―The end of homoeopathy.‖ The Lancet 366.9487 (2005): 690.

Evidence on the effectiveness of homeopathy for treating health conditions.


2015.
https://www.nhmrc.gov.au/_files_nhmrc/publications/attachments/cam02a_infor
mation_paper.pdf

1
TEXTO 7 – O que Mary não sabia
Autor: Frank Cameron Jackson
Tradução: Ricardo Miguel / reimpressão: Osvaldo Pessoa Jr.
Original: JACKSON, F.C. (1986), ―What Mary didn‘t know‖, Journal of
Philosophy 83: 291-5, 148 (janeiro).
Disponível em:
http://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/Jackson-Mary-nao-
sabia-1.pdf

Mary está fechada num quarto preto e branco, é educada por meio de
livros em preto e branco, e de aulas transmitidas numa televisão preta e branca. É
deste modo que ela aprende tudo o que há para conhecer sobre a natureza física
do mundo. Conhece todos os fatos físicos sobre nós e o nosso ambiente, num
sentido lato de ―físicos,‖ que inclui tudo em física, química e neurofisiologia
completas, e tudo o que há para conhecer sobre os fatos causais e relacionais que
resultam de tudo isto, incluindo, claro, os papéis funcionais. Se o fisicismo
[physicalism] for verdadeiro, Mary conhece tudo o que há para conhecer. Pois
supor que não o conhece é supor que há mais para conhecer do que todo o fato
físico, e isto é precisamente o que o fisicismo nega.
O fisicismo não é a tese incontroversa de que o mundo real é em larga
medida físico, mas a tese desafiadora de que é inteiramente físico. É por isso que
os fisicistas têm de sustentar que o conhecimento físico completo é um
conhecimento completo, sem qualificações. Pois suponha que não o seja: então o
nosso mundo tem de se diferenciar de um mundo, M(P), o qual é completo, e a
diferença tem de ser em fatos não físicos; pois o nosso mundo e M(P) concordam
com respeito a todas as questões físicas. Logo, o fisicismo seria falso no nosso
mundo (embora o fosse contingentemente, pois seria verdadeiro em M(P)). 2
Parece, contudo, que Mary não conhece tudo o que há para conhecer. Pois
quando a deixam sair do quarto preto e branco ou lhe dão uma televisão a cores,
aprenderá, digamos, como é ver algo vermelho. Isto é corretamente descrito
como aprendizagem – Mary não dirá ―pois é‖. Logo, o fisicismo é falso. Este é o
argumento do conhecimento contra o fisicismo, numa das suas versões.3 Esta

1
Devo muito a discussões com David Lewis e Robert Pargetter.
2
A afirmação aqui não é que, se o fisicismo for verdadeiro, só o que for expresso em linguagem
explicitamente física é um item de conhecimento. É antes que, se o fisicismo for verdadeiro, então se se
conhece tudo o que é expresso ou exprimível em linguagem explicitamente física, conhece-se tudo. Com
a devida vênia a Terence Horgan (1984), ―Jackson on physical information and qualia‖, Philosophical
Quarterly 34: 147-152.
3
Nomeadamente, o argumento do meu ―Epiphenomenal qualia‖, Philosophical Quarterly 32 (1982) 127-
36. Ver também Thomas Nagel (1974), ―What is it like to be a bat?‖, Philosophical Review 83: 435-450, e
Howard Robinson (1982), Matter and sense (Nova Iorque: Cambridge).
nota é uma resposta a três objeções ao argumento elaboradas por Paul M.
4
Churchland.

I. TRÊS ESCLARECIMENTOS
O argumento do conhecimento não se apoia na afirmação duvidosa de que
logicamente não se pode imaginar como é sentir vermelho a não ser que se tenha
sentido vermelho. As capacidades de imaginação não estão em questão. A
afirmação acerca de Mary não é que, apesar do seu fantástico entendimento de
neurofisiologia e de todas as outras coisas físicas, ela não poderia imaginar como
é sentir vermelho; é antes que, de fato, ela não o saberia. Mas se o fisicismo for
verdadeiro, ela saberia; e nenhuma capacidade excepcional de imaginação seria
necessário. A imaginação é uma faculdade a que precisa recorrer quem não tem
conhecimento. Em segundo lugar, a intensionalidade do conhecimento não está
em questão. O argumento não se apoia em pressupor falsamente que se S sabe
que a é F e se a = b, então S sabe que b é F. O argumento diz respeito à natureza
do corpo total de conhecimentos de Mary antes de ser libertada: é completo, ou
escapam-lhe alguns fatos? O que é relevante é que S pode saber que a é F e saber
que a = b sem, contudo, argumentavelmente, saber que b é F, em virtude de não
estar logicamente atento o suficiente para seguir todas as consequências. Se a
falta de conhecimento de Mary fosse em alguma medida assim, não haveria nela
qualquer ameaça ao fisicismo. Mas é muito difícil acreditar que a sua falta de
conhecimento poderia ser remediada se ela se limitasse a seguir explicitamente
suficientes consequências lógicas do seu vasto conhecimento físico. Dotá-la de
excepcional perspicácia lógica e persistência não é por si suficiente para tapar as
falhas do seu conhecimento. Ao ser-lhe permitido sair, Mary não dirá ―Poderia ter
percebido tudo isto antes, fazendo mais algumas inferências puramente lógicas.‖
Em terceiro lugar, o conhecimento que faltava a Mary e que é de especial
relevância para o argumento do conhecimento contra o fisicismo era o
conhecimento sobre as experiências dos outros, e não sobre as suas. Quando lhe é
permitido sair, Mary tem experiências novas, experiências de cor que nunca teve.
Não é, portanto, uma objeção ao fisicismo que ela aprende algo ao ser-lhe
permitido sair. Antes de lhe ter sido permitido sair, Mary não poderia ter
conhecido fatos sobre a sua experiência de vermelho, pois estes não existiam.
Com isto tanto podem concordar o fisicista como o não fisicista. Depois de lhe
ser permitido sair, as coisas mudam; e o fisicismo pode de bom grado admitir que
ela o descobre; afinal, algumas coisas físicas irão mudar, por exemplo, os seus
estados cerebrais e respectivos papéis funcionais. O problema para o fisicismo é
que depois de Mary ver o seu primeiro tomate maduro, vai perceber quão
empobrecida tem sido, desde o início, a sua concepção da vida mental dos outros.
Irá perceber que havia, a todo o momento que efetuava as suas laboriosas
investigações sobre as neurofisiologias dos outros e sobre os papéis funcionais
dos seus estados internos, algo sobre estas pessoas de que não estava ciente de
modo algum. Desde o início, as experiências alheias (ou muitas delas, as que
tinham origem nos tomates, no céu, etc.) tinham uma característica conspícua
para eles mas até agora oculta para ela (de fato, e não logicamente). Mas ela
conhecia todos os fatos físicos sobre as experiências alheias desde início; logo, o

4
―Reduction, qualia, and the direct introspection of brain states,‖ Journal of Philosophy 82 (1982) 8-28.
Exceto indicação contrária, as indicações seguintes de páginas referem-se a este artigo.
que não conhecia até ser libertada não era um fato físico sobre as suas
experiências. Mas é um fato sobre elas. Esta é a dificuldade para o fisicismo.

II. AS TRÊS OBJEÇÕES DE CHURCHLAND


(i) A primeira objeção de Churchland é que o argumento do conhecimento
tem uma falha que ―não podia ser mais simples‖ (p. 23). O argumento equivocar-
se-ia quanto ao sentido de ―saber acerca de.‖ Como assim? Churchland sugere
que o seguinte é ―uma versão convenientemente rigorosa‖ do argumento do
conhecimento:

(1) Mary sabe tudo o que há para saber acerca de estados cerebrais e suas
propriedades.
(2) Não é verdadeiro que Mary sabe tudo o que há para saber acerca das
sensações e suas propriedades.
Logo, pela lei de Leibniz,
(3) As sensações e as suas propriedades ≠ estados cerebrais e suas
propriedades (p. 23).

Churchland observa, o que é plausível, que o tipo ou espécie de


conhecimento envolvido na premissa 1 é distinto da espécie de conhecimento
envolvido na premissa 2. Podemos seguir a sua orientação e denominar o
primeiro ―conhecimento por descrição‖, e o segundo ―conhecimento por contato‖
[acquaintance]; mas, quaisquer que sejam as denominações, ele tem razão de que
o argumento apresentado envolve um uso muitíssimo duvidoso da lei de Leibniz.
A minha resposta é que o argumento apresentado pode ser conveniente,
mas não é fiel. Não é o argumento do conhecimento. Tome-se, por exemplo, a
premissa 1. Toda a força do argumento do conhecimento está em que Mary (antes
de ser libertada) não sabe tudo o que há para saber sobre estados cerebrais e suas
propriedades, porque não conhece certos qualia que lhes estão associados. O que
é completo, de acordo com o argumento, é o seu conhecimento de questões
físicas. Um modo conveniente e preciso de apresentar o argumento é:

(1)‘ Mary (antes de ser libertada) sabe tudo o que de físico há para saber
sobre outras pessoas.
(2)‘ Mary (antes de ser libertada) não sabe tudo o que há para saber acerca
de outras pessoas (porque descobre algo sobre elas quando é libertada).
Logo,
(3)‘ Há verdades sobre outras pessoas (e sobre ela própria) que ficam de
fora da explicação fisicista.

O que está diretamente em questão não é a espécie, modo, ou tipo de


conhecimento que Mary tem, mas o que ela sabe. O que sabe previamente, de
acordo com a hipótese citada, é tudo o que de físico há para saber; mas será tudo
o que há para saber? Esta é a questão crucial.
Há, porém, um desafio relevante envolvendo questões acerca de espécies
[kinds] de conhecimento. Diz respeito ao que serve a apoio à premissa 2‘. O que
há a favor da premissa 2‘ é que Mary descobre algo quando é libertada, adquire
conhecimento, e isto implica que o seu conhecimento prévio (o que ela sabia,
independentemente de ser por descrição, contato, ou o que for) era incompleto. A
objeção, apresentada por David Lewis e Laurence Nemirow, é que quando é
libertada Mary não descobre algo nem adquire conhecimento no sentido
relevante. O que Mary adquire quando é libertada é uma certa capacidade
representacional ou imaginativa: é um saber como e não um saber que. Logo, um
fisicista pode admitir que Mary adquire algo muito revelador de um tipo de
conhecimento – o que dificilmente se pode negar – sem admitir que isto mostra
que o seu conhecimento fatual anterior é incompleto. Ela conhecia previamente
tudo o que havia para conhecer sobre as experiências dos outros, mas faltava-lhe
5
uma competência até depois de ser libertada.
Ora, é certamente verdade que Mary adquirirá vários tipos de
competências depois ser libertada. Irá, por exemplo, ser capaz de imaginar e
recordar como é ver vermelho, e será capaz de compreender por que os seus
amigos a consideravam tão empobrecida (algo que, até ser libertada, sempre a
intrigou). Mas será plausível que isto seja tudo o que adquire? Suponha-se que
enquanto esteve encarcerada assistiu a uma aula sobre o ceticismo acerca de
outras mentes. Quando é libertada vê um tomate maduro em condições normais e
tem então uma sensação de vermelho. A sua primeira reação é dizer que agora
sabe mais sobre o tipo de experiências que os outros têm ao olhar para tomates
maduros. Depois recorda-se da aula e começa a ficar insegura. Será que sabe
realmente mais sobre como são as suas experiências, ou estará incorrendo numa
generalização infundada a partir de um caso? Por fim, decide que de fato sabe, e
que o ceticismo está errado (ainda que, como muitos de nós, não saiba
demonstrar os seus erros). Sobre o que hesitava ela – as suas competências?
Certamente que não; as suas competências representativas constituíram sempre
uma constante conhecida. Sobre o que hesitava então, se não sobre ter ganho ou
não conhecimento factual sobre os outros? Nada haveria sobre o que hesitar se a
competência fosse tudo o que adquiriu quando foi libertada.
Concedo que não tenho qualquer demonstração de que ao ser libertada
Mary adquire, além de competências, conhecimento factual sobre as experiências
dos outros – e não apenas porque não tenho qualquer refutação ao ceticismo. O
que defendo é que o argumento do conhecimento é um argumento válido a partir
de premissas muitíssimo plausíveis, embora admitidamente não demonstráveis, a
favor da conclusão de que o fisicismo é falso. E isto, afinal, é uma objeção tão
boa quanto se pode esperar nesta área da filosofia.
(ii) A segunda objeção de Churchland (p. 24-25) é que algo tem de estar
errado com o argumento, pois demonstra demasiado. Suponha-se que Mary
assistiu a uma série especial de aulas na sua televisão em preto e branco, dadas
por um dualista convicto, explicando as ―leis‖ que regem o comportamento do
―ectoplasma‖ e falando-lhe dos qualia. Isto não afetaria a plausibilidade da
afirmação de que descobre algo quando é libertada. Assim, se o argumento
funciona contra o fisicismo, também funciona contra o dualismo.
A minha resposta é que aulas de televisão em preto e branco sobre qualia
não ensinam a Mary tudo o que há para conhecer sobre qualia. Podem ensinar-lhe
algumas coisas sobre qualia, por exemplo, que não fazem parte da explicação
fisicista, e que o quale para o qual usamos ―amarelo‖ é quase tão diferente

5
Ver Laurence Nemirow (1980), ―Review of Nagel‘s Mortal Questions‖, Philosophical Review 89: 473-
477, e David Lewis (1983), ―Postscript to ‗Mad pain and Martian pain‘‖, Philosophical Papers, vol. 1
(Nova Iorque: Oxford). Churchland menciona Nemirow e Lewis, e poderá ter pretendido que a sua
objeção seja essencialmente a que acabei de apresentar. Porém, diz bem explicitamente (fim da p. 23) que
a sua objeção não precisa de uma análise do conhecimento relevante em termos de ―competência‖.
daquele para o qual usamos ―azul‖ como é o branco do preto. Mas por que supor
que lhe dizem tudo sobre qualia? Por outro lado, é plausível que as aulas pela
televisão em preto e branco possam em princípio ensinar a Mary todas as coisas
da explicação fisicista. Não é preciso televisão a cores para aprender física ou
psicologia funcionalista. Para se obter um bom argumento contra o dualismo (o
dualismo de atributos; o ectoplasma é uma pequena brincadeira), é preciso
substituir a premissa do argumento do conhecimento, segundo a qual Mary, antes
de ser libertada, conhecia a explicação completa do fisicismo, pela premissa de
que conhece a explicação completa do dualismo. A primeira é plausível; a última
não. Logo, não há a dificuldade da ―paridade de razões‖ para os dualistas que
usam o argumento do conhecimento.
(iii) A terceira objeção de Churchland é que o argumento do conhecimento
afirma ―que Mary nem sequer poderia imaginar como seria a experiência
relevante, apesar do seu exaustivo conhecimento neurocientífico, e portanto deve
ainda faltar alguma informação crucial‖ (p. 25), uma afirmação contra a qual
passa a argumentar.
Mas, como salientámos anteriormente, o argumento do conhecimento
afirma que Mary não iria saber como é a experiência relevante. O que ela podia
imaginar é outra questão. Se o seu conhecimento é incompleto, apesar de ser tudo
o que há para conhecer de acordo com o fisicismo, então o fisicismo é falso,
quaisquer que sejam as capacidades de imaginação dela.

TEXTO 8 - Ensaio Sobre o Entendimento Humano (fragmento)


Autor: David Hume
Tradução: Anoar Aiex
Versão eletrônica do livro ―Investigação Acerca do Entedimento Humano‖.
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
Disponível em:http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000027.pdf

SEÇÃO IV
DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO
PRIMEIRA PARTE

Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se


naturalmente em dois gêneros, a saber: relações de idéias e de fatos. Ao primeiro
pertencem as ciências da geometria, da álgebra e da aritmética1 e, numa palavra,
toda afirmação que é intuitivamente ou demonstrativamente certa. Que o
quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos dois lados, é uma
proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes cinco é
igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números. As
proposições deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do
pensamento e não de pendem de algo existente em alguma parte do universo.
Embora nunca tenha havido na natureza um círculo ou um triângulo, as verdades
demonstradas por Euclides conservarão para sempre sua certeza e evidência.
Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são
determinados da mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior
que seja, é de natureza igual à precedente. O contrário de um fato qualquer é
sempre possível, pois, além de jamais implicar uma contradição, o espírito o
concebe com a mesma facilidade e distinção como se ele estivesse em completo
acordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão inteligível e não
implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em vão,
todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa,
implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.2
Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a
natureza desta evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma
existência e de um fato que não estão ao alcance do testemunho atual de nossos
sentidos ou do registro de nossa memória. E preciso frisar que este aspecto da
filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como pelos modernos; e,
portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão
importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de
tão difíceis caminhos sem nenhum guia ou direção. 3 Na realidade, podem
revelar-se úteis ao excitar a curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança
que são a ruína de todo raciocínio e de toda investigação livre. Suponho que
descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é motivo de desânimo mas,
pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar alguma coisa
mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta
ao público.
Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na
relação de causa e efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados
de nossa memória e de nossos sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por
que acredita na realidade de um fato que não constata efetivamente, por exemplo,
que seu amigo está no campo ou na França, ele vos daria uma razão, e esta razão
seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento de suas resoluções
e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer outra
máquina numa ilha deserta , concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos
os nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente
supõe -se que há uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele.
Se não houvesse nada que os ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A
audição de uma voz articulada e de uma conversa racional na obscuridade nos dá
segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por quê? Porque estes sons são os
efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão estreitamente ligados a
ela. Se analisamos todos os outros raciocínios desta natureza, encontraremos que
se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha próxima ou
distante, direta ou colateral. O calor e a luz são efeitos colaterais do fogo, e um
dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.
Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta
evidência que nos dá segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como
chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o
conhecimento desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a
priori, porém nasce inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer
objetos particulares estão constantemente conjuntados entre si. Apresente -se um
objeto a um homem dotado, por natureza, de razão e habilidades tão fortes
quanto possível; se o objeto lhe é completamente novo, não será capaz, pelo
exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir nenhuma de
suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de
Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia
ter inferido da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e
do calor do fogo, que este o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas
qualidades que aparecem aos sentidos, tanto as causas que o produziram como os
efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão, sem o auxílio da experiência,
jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um fato.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são
descobertos pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em
relação àqueles objetos de que nos recordamos e que certa vez nos foram
completa mente desconhecidos, porquanto devemos ter consciência de nossa
absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois pedaços
de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural;
ele jamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grande
força para separálos em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão
lateral. Considera-se também indiscutível que o conhecimento dos eventos que
têm pouca analogia com o curso corrente da natureza se obtém por meio da
experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a explosão da
pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira,
quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de
elementos de estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o
nosso conhecimento à experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a
razão última por que o leite e o pão são alimentos apropriados ao homem e não a
um leão ou a um tigre?
Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tão
evidente em relação aos eventos que nos são familiares desde o nosso
nascimento, que têm estreita analogia com todo o curso da natureza e, como se
supõe, dependem das qualidades simples dos objetos, sem a intervenção de
elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira, somos levados a imaginar
que poderíamos descobrir estes efeitos sem o auxílio da experiência, recorrendo
apenas às operações da razão. Imaginamos que, se fôssemos repentinamente la
nçados neste mundo, poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar
comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos
necessidade de observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu
respeito. E é tão grande a influência do costume que, onde ela se apresenta com
mais vigor, encobre, ao mesmo tempo, nossa natural ignorância e a si mesma e,
quando dá a impressão de não intervir, é unicamente porque se encontra em seu
mais alto grau.
No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da
natureza e todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência,
as reflexões que seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse
mostrado, e se fôssemos solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará
dele, sem consultar observações anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve
o espírito proceder nesta operação? Terá de inventar ou imaginar algum evento
que considera como efeito do objeto; e é claro que esta invenção deve ser
inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e pelo
mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente
diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O
movimento na segunda bola de bilhar é um evento bem distinto do movimento na
primeira, já que não há na primeira o menor indício da outra. Uma pedra ou um
pedaço de metal levantados no ar e deixados sem nenhum suporte caem
imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos algo nesta
situação que nos pode dar origem à idéia de um movimento descendente, em vez
de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito
particular é, em todas as ope rações naturais, arbitrária se não consultamos a
experiência, devemos igualmente supor como tal o laço ou a conexão entre a
causa e o efeito, que une um ao outro e faz com que seja impossível que qualquer
outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando vejo, por exemplo,
que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo se
suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o
resultado de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes
eventos poderiam igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas
permanecer em absoluto repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta
ou ricochetear na segunda em qualquer linha ou direção? Todas estas suposições
são compatíveis e concebíveis. Por que, então, deveríamos dar preferência a uma
que não é mais compatível ou concebível que o resto? Todos os nossos
raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento para esta
preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto,
não poderia ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo
ou imaginá-lo a priori. E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a
conjunção do efeito com sua causa deve parecer igualmente arbitrária, visto que
há sempre outros efeitos que para a razão devem parecer igualmente coerentes e
naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar qualquer evento particular
ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da experiência.
Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e
modesto jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural,
ou mostrar distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no
universo. Concordar-seá que o esforço máximo da razão humana consiste em
reduzir à sua maior simplicidade os princípios que produzem os fenômenos
naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares a um pequeno número de
causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na experiência e na
observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão
tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquer
explicação particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos
estão totalmente vedados à curiosidade e à investigação humanas. A elasticidade,
a gravidade, a coesão das partes, a comunicação de movimentos por impulso são
provavelmente as causas e princípios últimos que sempre descobriremos na
natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se, mediante
investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até,
ou quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita
apenas diminui uma pequena parcela de nossa ignorância , a filosofia mais
perfeita — do gênero moral ou metafísico — revela -nos, talvez, que nossa
ignorância se estende a domínios mais vastos. Deste modo, resulta de toda a
filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se nos apresentam
em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.
Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fez
merecidamente célebre, é capaz de remediar este defeito e de nos conduzir ao
conhecimento das causas últimas, quando é solicitada para auxiliar a filosofia
natural. Cada setor das matemáticas aplicadas funciona sobre a suposição de que
a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos, e os raciocínios
abstratos são usados tanto para auxiliar a experiência na descoberta dessas leis
como para dete rminar a ação dessas leis em casos particulares, quando ela
depende de graus exatos de distância e de quantidade. Assim, por exemplo, uma
lei de movimentos descoberta pela experiência é a que diz que o momento ou a
força de um corpo em movimento está em razão ou proporção de sua massa e de
sua velocidade, e, por conseguinte, que uma pequena força pode remover os
maiores obstáculos ou levantar os maiores pesos se, mediante uma invenção ou
mecanismo, pudermos aumentar a ve locidade da força até fazê-la superar a força
antagônica. A geometria auxilia -nos a aplicar esta lei, dando-nos as dimensões
exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo
de máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devida unicamente à
expe riência; e todos os raciocínios abstratos do mundo não poderão jamais nos
levar a dar um passo para chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos a priori e
consideramos um objeto ou uma causa, tal como aparece ao espírito, ou seja,
independente de toda observação, jamais poderia sugerir-nos a idéia de um objeto
distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda mostrar-nos a inseparável e
invio lável conexão entre eles. É preciso que um homem seja muito sagaz para
poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o gelo o
efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes
estados dos corpos.
NOTAS:

1 A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja -se Flew, ob. cit., p. 62) em
comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‗as únicas ciências em que
podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de complicação, e ainda preservar perfeita
exatidão e certeza Ao passo que a ‗geometria não é dotada deste perfeito rigor e certeza, que são
peculiares à aritmética e à álgebra‖ (Tratado, I, iii, 1, p. 71). [N. do T.]

2 Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e sensitivo, e


afirma que ―as idéias da quantidade não são as únicas capazes de demonstração e de conhecimento...‖
(Essay, edição citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a ciência da moralidade, do mesmo
modo que as ciências matemáticas, é passível de demonstração. Como exemplos de proposições tão certas
como quaisquer proposições matemáticas ele cita: ―onde não há propriedade não há injustiça‖ e ―nenhum
governo permite liberdade absoluta‖. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as ―relações de idéias‖,
que devem ser entendidas como comparação de idéias. O conhecimento consistiria precisamente em
comparar idéias, ou melhor, fundamenta -se em ―relações de idéias‖, as quais permanecem invariáveis,
contanto que as idéias não se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem determinadas
―proposições‖ que são ―intuitivamente e demonstrativamente certas‖ e evidentes, na medida em que, no
entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da nãocontradição, se revela pela ―simples operação do
pensamento‖. Trata -se, segundo Hume, dos ―raciocínios demonstrativos‖ (investigação, p. 82),—
empregados unicamente pelas ciências matemáticas e não, como quer Locke, também pelas ciências
morais. Hume coloca, de outro lado, as ―relações de fatos‖, que podem modificar-se sem que haja
qualquer alteração nas idéias (Tratado, idem), pois o ―contrário de um fato qualquer é sempre possível‖, e
não encerra contradição afirmar ―que o sol não nascerá amanhã‖ ou ―que ele nascerá‖. Tanto uma como
outra afirmativa são perfeitamente claras; entretanto, não podemos recorrer, a exemplo do que acontece
nas ―relações de idéias‖, ao método demonstrativo, pois apenas a experiência é que possui jurisdição na
esfera das ―relações de fatos‖. Evidentemente, o núcleo do problema insito nas proposições ―o sol
nascerá‖ ou ‗não nascerá‖, não diz respeito às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas
apenas consiste na indicação de um tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata -se, portanto, da
caracterização da crença, que reina na esfera da opinião, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de
Locke (veja -se N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), é estendida a todas as ―questões de fato e de existência‖.
E assim que Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N. do T.]

3 O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte passagem
do Abstract: ―o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos sistemas de lógica, que
eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento formando demonstrações, mas são
bastante concisos quando tratam das probabilidades e das outras medidas de evidência das quais a vida e a
ação dependem inteiramente‖. (pp.. 7-8; citado também por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]

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