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Sociedade Brasileira de História da Medicina

-1997-
Jornal Brasileiro de
História da Medicina ISSN 1516-0386

2019 - Vol 19 N 1
Sociedade Brasileira de História da Medicina

-1997-
Jornal Brasileiro de
-1997-
História da Medicina ISSN 1516-0386

Sociedade Brasileira de
História da Medicina Editorial
DIRETORIA
Presidente
Lybio Martire Junior (SP) Como seres humanos temos a capacidade trazer
ao presente fatos e acontecimentos que aconteceram
Vice Presidente
João Bosco Botelho (AM) num tempo distante, lá no passado. Observando e
registrando atentamente os eventos, foi como criamos
Secretário Geral
Jose Marcos dos Reis (MG)
nossas primeiras histórias. Também da observação e
registro detalhado de sinais e sintomas é que se
1º Secretário fizeram histórias acuradas de cada doença conhecida.
Daniel Pinheiro Hernandez (RJ)

Tesoureiro
Dary Alves de Oliviera (CE)
Registrar e manter a informação referente a
Biblioteca História da Medicina é o papel do Jornal Brasileiro de
Jorge Cury (RS) História da Medicina, e sua instituição
mantenedora, a Sociedade Brasileira de História da
Departamento Acadêmico da Medicina.
SBHM

Bruno de Matos Freire Procuramos mostrar como os Médicos


Camila Motta Coli Putti
Douglas Nunes Cavalcante dedicaram seus esforços ao longo dos séculos na nobre
Leonardo Damalio Luís arte de cuidar de seu semelhante.
Nicolas Marques Oliveira
O JBHM também tem como objetivo a divulgação
dos principais eventos e notícias relacionados à
Artigos para publicação
deverão ser enviados
História da Medicina, no Brasil e no mundo
para:
Em sua nova edição, em formato digital, traz a
agilidade da internet e sua consequente popularização
em larga escala e mantém seu compromisso com
publicação de artigos sobre a História da Medicina, em
Visitem o Museu Histórico
todos os seus aspectos.
“Prof. Carlos da Silva Lacaz”
Faculdade de Medicina da USP
Av. Dr. Arnaldo, 455 - Cerqueira
Essa Edição traz em especial, além de vários
César - São Paulo/SP - 01246- artigos de renomadas personalidades da Medicina, a
903 - Metrô Clínicas - sessão Histórias Protagonizadas – Relatos, onde
Estacionamento mais próximo expoentes da Medicina brasileira apresentam sua
na Av. Dr. Enéas Carvalho de vivência como profissional da nobre arte de cuidar.
Aguiar, atrás da Faculdade.
Ótima leitura a todos!
Jose Marcos dos Reis
Secretário Geral da SBHM
Artigo Original
A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL E A MEDICINA BÉLICA PARA OS MÉDICOS
BRASILEIROS

Mateus Tatsch de Mello 1

Resumo
No dia 26 de outubro de 2017 fez 100 anos da declaração de guerra do governo brasileiro contra a Alemanha. Esse primeiro grande
conflito beligerante envolveu países do mundo todo e pôs a medicina em um campo ainda desconhecido. Em que cada batalha,
novos desafios médicos iam surgindo e as lições eram aprendidas na prática. Os conhecimentos adquiridos pelos médicos eram
divulgados para o mundo todo por meio da imprensa geral e específica. Quais foram as lições médicas trazidas para os médicos
brasileiros? O periódico Brazil-Medico veiculou diversos artigos sobre as principais técnicas da medicina de guerra e com isso
trouxe ao conhecimento dos médicos do país as ações médicas na Primeira Guerra Mundial.
Abstract
On October 26, 2017 made 100 years of the Brazilian government's declaration of war against Germany. This first major belligerent
conflict involved countries all over the world and put medicine in a field still unknown. In each battle, new medical challenges were
emerging, and lessons learned in practice. The knowledge acquired by doctors was disseminated to the world through the general
and specific press. What were the medical lessons brought to Brazilian doctors? The journal Brazil-Medico published several articles
on the main techniques of war medicine and with that brought the doctors of the country to the medical actions in the First World
War.
Palavras-chave: Guerra Mundial; Medicina de Guerra; Periódicos Médicos.
Keywords: World War; War Medicine; Medical Papers.

1 – A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL: BREVE fizeram a declaração de guerra. Essa atitude pode ser
RELATO considerada como uma das causas do rompimento da
Na manhã de domingo, dia 28 de junho de 1914 neutralidade brasileira, pois em 11 de abril de 1917 foi a vez
quando o arquiduque austro-húngaro Francisco Fernando e do governo brasileiro romper relações diplomáticas com a
sua esposa chegaram na estação de trem de Sarajevo, a Alemanha. Mas somente após o torpedeamento do navio
Europa estava em paz. Apenas 37 dias depois estava instalada brasileiro Macau com o respectivo desaparecimento do
a Guerra.1 comandante e da tripulação, ocorrido em 18 de outubro, é que
o governo brasileiro muda a posição que adotara e em 25 de
Os beligerantes, no momento do estopim do conflito,
outubro de 1917, declara guerra à Alemanha.3
eram os Impérios Centrais formado pela Alemanha e o
Império Austro-Húngaro e a as potencias da Entente, No decorrer da Primeira Guerra Mundial, o governo
compostas pela França, Rússia, Reino Unido, Bélgica e brasileiro organizou e enviou uma missão médico-milit ar
Servia. O cenário estava formado, de um lado um bloco para a França com o objetivo de auxiliar na abertura de um
compacto com 120 milhões de homens e de outro 238 hospital em Paris. Esse pelotão médico brasileiro teria atuado
milhões de homens divididos geograficamente em três em diversos locais da Europa e auxiliara no combate à “Grip e
massas separadas por grandes distâncias.2 Hespanhola”, doença epidêmica em diversas partes do mundo
e em particular na Europa em conflito. O pelotão prestava
Com a eclosão da guerra, todos os países da América
serviços clínicos e cirúrgicos, farmácia, intendência,
optaram por permanecer neutros. No entanto, no dia
secretaria e enfermaria, reunindo médicos, farmacêuticos e
04 de fevereiro de 1917, os Estados Unidos romperam
enfermeiros, totalizando 112 missionários, além de 30
relações diplomáticas com a Alemanha e em 06 de abril

1
Farmacêutico Bioquímico Clínico. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo - RS

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soldados que seriam os responsáveis pela guarnição do O periódico Brasil-Medico: Revista Semanal de
hospital. Essa talvez tenha sido a mais significativa Medicina e Cirurgia 3 foi uma publicação brasileira que
contribuição brasileira no conflito.4 circulou entre os anos de 1887 e 1971. Publicado pela
Policlínica Geral do Rio de Janeiro, em seus 86 anos de
A Guerra terminou em 11 de novembro de 1918,
história promoveu a comunicação científica brasileira na área
sendo declarados vencedores os Aliados. Tão logo a Guerra
da saúde e outras relacionadas. De periodicidade semanal,
chegou ao fim, iniciou uma batalha para determinar qual foi
tinha o médico e professor Azevedo Sodré como fundador e
ou quais foram as razões que deram origem ao conflito. O
diretor. É considerada uma publicação de grande importância
resultado foi a produção de uma vasta bibliografia e de
para a ciência brasileira, veiculando em suas páginas
diversas teorias.5
trabalhos de importantes pesquisadores do Instituto Oswaldo
Esse artigo tem como principal objetivo mostrar Cruz, da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e de
quais foram as notícias da Guerra que chagaram aos médicos inúmeras outras instituições nacionais e internacionais. Era
brasileiros através do principal periódico médico da época. composto de várias seções, as quais, além das pesquisas,
As citações, no decorrer do texto, mantêm a grafia original da traziam anúncios ou propagandas de boticas, serviços de
publicação. balneoterapia, medicamentos, notícias da área médica,
crônicas da saúde, resumos de obras estrangeiras e de atas de
2 – BRAZIL-MEDICO: O PERIÓDICO COMO FONTE
associações científicas.9
Atualmente é de amplo conhecimento que a
Antônio Augusto Azevedo Sodré graduou-se em
imprensa escrita, sendo na forma de jornais, revistas ou
medicina aos 21 anos de idade pela atual Universidade
periódicos, serve de importante fonte dentro da história. Em
Federal do Rio de Janeiro no ano de 1885 e no ano seguinte
um passado não muito distante, havia enorme desconfiança
iniciou seus trabalhos no Hospital da Beneficência
da credibilidade das informações contidas em um jornal, por
Portuguesa e como professor da cadeira de clínica médica, a
exemplo, pois o mesmo poderia trazer o ponto de vista dos
qual ocupou por 39 anos. Em 1887, ou seja, dois anos após
interessados no impacto da informação veiculada. Podemos
sua formatura, ingressou como médico-adjunto do Hospital
dizer que um documento histórico oriundo da imprensa não
da Misericórdia e fundou a revista Brasil-Médico, sendo
pode ser considerado o reflexo da realidade, mas o lugar que
diretor do periódico por 42 anos. Também atuou em prol do
traz a representação acerca do real.6,7
governo do país. Como chefe da Comissão Sanitária Federal,
Conforme Barros, uma fonte histórica pode ser coordenou o combate da cólera e juntamente com o médico
produzida voluntariamente ou involuntariamente, tendo cada sanitarista Oswaldo Cruz, foi delegado brasileiro na
uma dessas posições uma determinada implicação. Com o negociação da Convenção Sanitária com os governos da
advento da Escola dos Annales 2 , as fontes ditas involuntárias Argentina, Paraguai e Uruguai. Na política, nomeado por
são preferidas frente as voluntárias. Com base nessas Wenceslau Braz, foi prefeito do Rio de Janeiro de maio de
informações, hoje temos a segurança em trabalhar com 1916 até janeiro de 1917. Também foi deputado federal por
periódicos como fonte histórica.8 duas legislaturas pelo partido de Nilo Peçanha.11

2 Movimento iniciado na França com o objetivo de promover uma nova https://www.obrasraras.fiocruz.br. Provavelmente devido ao estado de
espécie de história e em 1929 deu origem a um periódico. Conforme palavras conservação do documento original, algumas partes dos textos que foram
do autor, a historiografia jamais será a mesma.10 digitalizados ficaram ilegíveis e quando uma informação necessária ao
3 Todas as edições do periódico em análise estão disponíveis no portal presente contexto se enquadrar nessa situação, o leitor será informado.
denominado Obras Raras Fiocruz: Acervo digital de obras raras e especiais,
o qual pertence ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e
Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), disponíveis em

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O período escolhido para avaliação das informações minorar as desgraças causadas pela primeira e velas
pela conservação da especie humana.13
sobre a Primeira Guerra Mundial foi de 1914 até a metade do
ano de 1919, para se ter certeza que o assunto não entraria
mais em pauta no periódico. Todas as referências sobre o Na edição de 1º de novembro de 1914, na seção que
conflito bélico foram selecionadas e serão apresentadas no traz informações acerca das associações científicas, temos o
decorrer do texto, informando o conteúdo e a seção que resumo da ata da sessão do dia 10 de setembro do mesmo ano
veiculou o relato. da ANM. O médico Nascimento Gurgel faz uso da palavra

3 – A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL NAS PÁGINAS sobre a assistência médica pública na Argentina e após

DO BRASIL-MÉDICO comenta sobre a guerra “que ensanguenta a Europa quase


inteira”. Encerra seu discurso com as palavras de um poema
A primeira menção da guerra é feita pelo secretário
de Ruy Barbosa sobre a paz.14
geral da Academia Nacional de Medicina (ANM), Dr.
Olympio Fonseca. Intitulada A Medicina e a guerra, o Ao iniciar o 29º ano de circulação, a introdução do

pronunciamento foi realizado na sessão da ANM em 13 de periódico externa a comoção de seus colaboradores com o

agosto de 1914 e está veiculada na seção que traz o resumo momento bélico europeu. Para eles, a comemoração do 28º

das atas das associações científicas, na edição de 15 de ano de publicação não pode ter a mesma alegria sentida nos

setembro de 1914. Fonseca faz menção ao discurso proferido anos anteriores, pois “não pode haver verdadeiro jubilo na

pelo então presidente da ANM, Dr. Miguel Couto na ocasião época dolorosa que ora atravessamos”. As relações

do aniversário da instituição. Segundo ele a comparação internacionais são afetadas pela Guerra e com isso os úteis

antagônica feita entre as palavras “medicina” e “guerra” intercâmbios comerciais e sociais entre as nações ficariam

expressa de maneira simples a gravidade do conflito e frente prejudicados. Mesmo o Brasil estando geograficamente

a tal acontecimento, deveria a ANM fazer votos para que a distanciado do confronto bélico, sofre danos. O periódico, por

Guerra cesse o quanto antes, pois essa roubaria da manter relações com instituições francesas e alemãs, também

humanidade milhares de vidas. A proposta foi recebida com teria se prejudicado diante das dificuldades dos intercâmbios

simpatia pelos membros da Academia.12 Em 08 de outubro de entre as nações. Nesse texto a conflagração é considerada “a

1914, na seção denominada Congressos Médicos, temos o mais iniqua e injustificável das guerras”.15

relato da participação do Brasil no VII Congresso O médico francês Georges Brouardel, um dos
Internacional de Eletroctologia e de Radiologia Médica de relatores do periódico, informa como os hospitais de Paris e
Lyon, o qual ocorreu no mês de julho do mesmo ano, seus profissionais estariam se organizando para fazer o
começando um dia antes do conflito bélico. O texto é escrito atendimento dos exércitos em guerra. A primeira referência
pelo Dr. Toledo Dodswoth e traz diversas considerações sobre
feita diz respeito ao tratamento da febre tifoide 4 , uma doença
as novidades mundiais acerca dos exames radiográficos. No
muito comum entre os militares que fez com que hospitais
início do relato, o médico faz alusão ao clima de tensão que
provisórios fossem criados especificamente para tratamento
tomava conta de todos os participantes do congresso frente a
dessa moléstia. A ideia dos diretores hospitalares seria de
iminência da guerra e diz que: realizar o tratamento dos civis em separado, com o claro

A brutalidade da força jamais poderá invalidar a intuito de evitar a disseminação da infecção. O autor reforça
utilidade da sciencia: aquella cessa deixando a
lembrança de perdas irreparaveis e dolorosas
recordações, esta permanece eterna e grandiosa, para

4 Doença causada por uma bactéria que é transmitida por água ou alimentos

contaminados, além do contato próximo com o doente.

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a importância da realização de limpezas periódicas nos nas pessoas predispostas. O tratamento sugerido é o
ambientes destinados a internação desses pacientes.16 afastamento imediato do meio de guerra e se necessário, o uso
de sedativos. Por fim, o artigo recomenda que o doente não
Na 5ª edição de 1915 temos a conclusão do relato do
retorne mais para o campo de batalha. 18
Dr. Brouardel sobre a assistência médica francesa. A doença
referida dessa vez é o tifo exantemático 5 , conhecida aqui no Em artigo escrito pelo Prof. H. Hartmann extraíd o
Brasil por febre maculosa. O doente ou ferido de guerra da revista Paris Medical, a cirurgia de guerra é descrita para
deveria ser atendido em uma sala bem iluminada, com piso os leitores do Brazil-Medico. O professor Hartmann afirma
lavável e angulado para permitir o fácil escoamento da água que a guerra surpreendeu todos os médicos militares. As
no momento da limpeza. Preferencialmente esse local tinha orientações preliminares eram para a simples limpeza e
que ser isolado do restante do hospital para evitar a realização de curativos nas lesões, mas a realidade foi
disseminação dos parasitas transmissores, caso esses completamente diferente, os feridos chegavam aos serviços
estivessem presentes. Todo e qualquer atendimento deveria de saúde em estado muito crítico e com as feridas totalmente
ser procedido de uma rigorosa inspeção em todo o corpo do infectadas, sendo os casos mais severos passíveis de
paciente para identificar a presença de piolhos. Se esses amputação do membro. O tétano era uma preocupação
fossem encontrados piolhos no corpo, um banho com água recorrente dos médicos de guerra e a injeção profilática de
quente e “sabão negro” seria dado e após um tratamento com “serun” auxiliaria muito no combate dessa doença. Nos casos
a aplicação diária de álcool canforado. Se os piolhos fossem de “gangrena gasosa” a orientação era para limpar os
na cabeça, os cabelos teriam que ser cortados o mais curto ferimentos e injetar água oxigenada. Para o professor
possível e após incinerados. Com exceção dos cílios, as Hartamann, o exame de radiologia é fundamental para
demais partes cabeludas do corpo, deveriam ser raspadas e localizar balas e estilhaços e assim removê-los com maio r
sofrerem aplicação de uma mistura de água fervida, vinagre a precisão.19
álcool, duas vezes ao dia durante três dias. No caso dos
Na 8º edição do ano de 1915, Dr. Carlos Seidl 6
hospitais criados próximos aos campos de batalha, os
aborda informações sobre as ações médicas realizadas nos
médicos parisienses se colocaram à disposição das
países participantes do conflito. Após fazer um breve relato
autoridades militares para auxílio sanitário se necessário.17
sobre a cidade francesa de Lyon, informou que lá, até 30 de
“Psychiatria e guerra” é outro tema sobre veiculado novembro do mesmo ano, mais de 16.000 feridos e doentes
no número 5 do ano de 1915 do periódico. O texto faz menção haviam passado e triados para um atendimento adequado.
a uma publicação alemã de um importante jornal médico Devido a esse grande contingente humano, o maior hospital
daquele país. Segundo o estudo, o número de moléstias do município foi militarizado e transformado em um local
mentais aumentam significativamente nos períodos de guerra exclusivo para feridos da guerra, dispondo de 1.255 leitos.
e isso geraria um impacto considerável na disciplina milit ar. Prestando atendimentos como internos 7 , estariam dois
Caberia uma avaliação rigorosa dos recrutas na busca de brasileiros, os quais tiveram a oportunidade, rara para
qualquer evidência de doença mental, porém, é reforçado que estrangeiros, de obter uma vaga, graças a partida de todos os
determinados sinais somente surgiriam na tensão do campo internos franceses para os campos de batalha. São feitas
de batalha. A guerra não causaria um tipo específico de várias considerações sobre os procedimentos médicos
patologia, atuaria exacerbando o aparecimento de doenças realizados com os feridos, desde o recebimento do paciente

5 Doença bacteriana transmitida pela picada de um carrapato e também pelo 7 Diz-se ao estudante de medicina do último ano e também no contexto
piolho. utilizado, ao médico graduado realizando aperfeiçoamento, que seria como
6 No texto o autor relata que estava na cidade de Lyon na França no início da o atual curso de residência médica.
conflagração.

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até o manejo das lesões mais graves. Para o Dr. Saidl a figura que não existiriam psicoses específicas da guerra e mesmo
humanitária do médico tem um papel de suma importância na em períodos de paz mas com algumas condições alteradas,
minimização dos terríveis danos causados pela Guerra.20 como o sono, alimentação inadequada e excitação extrema,
os distúrbios iriam surgir da mesma forma. Todos os
Informações sobre lesões em nervos periféricos
portadores desses sintomas deveriam ser considerados
produzidas por armas de fogo são trazidas em comunicação
inaptos ao serviço militar.22
feita à Sociedade Médica dos Hospitais de Paris pelo
professor Henri Claude. Segundo ele, a maioria dos Um artigo do periódico Paris Medical publicado em
ferimentos rompe completamente os nervos ou geram lesões 13 de novembro de 1914 e escrito pelo Dr. Mencière é
que provocam paralisias e perda de toda a sensibilidade do apresentado aos leitores do Brazil-Medico. O assunto é o
membro atingido. O tratamento recomendado vai do controle tratamento nas grandes dilacerações de membros com base
da dor até a tentativa de recuperação da motilidade 8 .21 nas experiências de campo do autor. Temos uma descrição
dos procedimentos aplicados nos casos em que a amputação
A questão psiquiátrica é retomada pelo periódico
do membro é o único tratamento que pode evitar a morte do
com a apresentação de um artigo que foi publicado em uma
paciente, pois dessa maneira, a disseminação da infecção é
revista médica alemã 9 no dia 03 de novembro de 1914. No
contida. O autor ressalta que as amputações deveriam ser
texto do Dr. Wollemberg, as psiconeuroses nas tropas são
deixadas para os casos mais graves e o cuidado pós operatório
apresentadas na forma de dados coletados em uma pesquisa
com o coto 10 seria vital para o doente.23 Na parte inferior das
de campo. Os pacientes que foram atendidos no hospital de
páginas, parte do texto está suprimido provavelmente por
Estrasburgo durante as primeiras sete semanas do conflito
danos no material original, porém sem causar prejuízos na
foram observados em três grupos considerando o período do
leitura e compreensão do assunto.
aparecimento dos distúrbios. O primeiro grupo foi o de casos
ocorridos durante a mobilização para o conflito, o segundo Na seção denominada Revista de Clinica Cirurgica,
grupo no início das hostilidades e o terceiro dentre os feridos a qual apresenta resumos de trabalhos científicos da área
e enfermos da guerra. O primeiro grupo foi formado por clínica e cirúrgica publicados ao redor do mundo, do dia 08
indivíduos com pouca adaptação a vida militar e que, segundo de maio de 1915, traz o texto publicado em um jornal francês
o autor, foram colocados sem nenhum preparo na que aborda novamente o tema das feridas causadas por armas
mobilização para o conflito. Dentre eles, pessoas em que o de fogo. Os médicos Delorme e Gosset descrevem as técnicas
fato apenas apressou o aparecimento de um distúrbio que cirúrgicas que fazem uso nos casos de fratura no nervo ciático
surgiria de no decorrer da vida, pessoas com delírios e reforçam a necessidade de agir o mais rápido possível, pois
alcoólicos e indivíduos com grave estado de excitação, o tempo é crucial no sucesso do tratamento e manutenção da
incluindo casos de exaltação religiosa. O segundo grupo vida do doente.24
incluía os pacientes que a excitação e a emoção do combate
No contraponto de algumas publicações já
tiveram um papel desencadeante do distúrbio e doentes em
discutidas, Sicard e Gastaud descrevem as “Falsas
que as doenças psíquicas tiveram ligação com fadiga extrema
recuperações motoras rapidas depois da resecção e sutura de
gerada no campo de batalha. O terceiro grupo era muito
nervos, principalmente do nervo mediano”, originalment e
uniforme, formado por doentes em que o distúrbio estava
apresentado em fevereiro de 1915 como uma comunicação
relacionado com traumatismos súbitos. A conclusão tirada foi

8 Temos os primórdios da criação e oficialização da profissão de 9 Chama atenção o fato da pesquisa ter sido feita em um hospital francês e

fisioterapeuta. publicada em um periódico alemão, visto que ambos os países eram


inimigos no conflito.
10 Resultante da amputação do membro.

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feita a Sociedade Medica dos Hospitaes de Paris. São ocorra. A demora no recolhimento dos feridos, extensão dos
descritos casos em que os doentes demonstraram sinais de ferimentos e suas complicações e a falha no processo de
melhora com a recuperação dos movimentos nas mãos após o limpeza da ferida seriam os principais. Para Cheyne, a
procedimento cirúrgico pós-trauma por arma de fogo. limpeza correta seria fundamental, além da manutenção da
Segundos os autores, não é a sutura do nervo que promoveria estabilidade do paciente e somente após isso é que novos
a recuperação do movimento e sim que o tecido cicatricial procedimentos, como a busca por projéteis, deveriam ser
ainda conserva um pouco de condução nervosa. Os autores realizados.27
reforçam a importância de operar com o cuidado de cortar o
Após um hiato de praticamente 8 meses, a Guerra
nervo, pois esse processo dificulta muito o processo de
volta a ser assunto no periódico. Na edição de 08 de julho de
regeneração.25
1916, na seção que resume as atas das associações científicas,
Apresentado com um título que salta aos olhos, o temos a ata de 08 de junho da ANM. A referida ata traz os
Boletim da Semana do dia 08 de setembro de 1915 diz “É resultados de um prêmio proposto pela academia,
licito o medico provocar aborto nas mulheres violadas na denominado “Premio Alvarenga”, no qual concorriam as
guerra?”, trazendo um questionamento levantado pelo jornal melhores memórias 11 científicas. Uma das concorrentes ao
carioca O Imparcial. Segundo o autor, que assina “F. S.”, o prêmio, compilou trabalhos de médicos franceses sobre a
jornal estaria questionando uma realidade que não seria a profilaxia da febre tifoide e o uso de uma vacina para a
brasileira e que estaria relacionada com as áreas de guerra. A doença. O referido trabalho foi considerado apenas um
opinião médica, segundo o autor, seria de que o aborto é relatório das publicações existentes na época, não trazendo
crime, salvo quando coloca uma das vidas em risco. Para ele nenhuma novidade aplicável à realidade médica do país e por
toda a mulher que entra em contato com o recém-nascido irá isso não foi o ganhador do prêmio. O envelope com o nome
desenvolver o amor materno, independente da origem dessa do autor do trabalho foi incinerado ao término da reunião.28
gestação. A coluna é encerrada com uma dura crítica ao O
No ano de 1916, ao contrário de 1915, a Guerra não
Imparcial, que com essas publicações “podem contribuir de
esteve muito na pauta do Brazil-Medico. A segunda e última
certo modo para que as raparigas violadas pratiquem aborto,
publicação desse ano sobre o assunto veio na edição de 30 de
supondo erradamente que não poderão amar o produto do
setembro. Na seção de Imprensa Medica Estrangeira temos
crime”.26
o resumo do artigo intitulado “Eczemas artificiaes duraveis
O Brazil-Medico também trazia uma seção causados, em torno dos ferimentos de guerra, pelo abuso dos
denominada Imprensa Medica Extrangeira, a qual, assim antisepticos" escrito pelo Dr. R. Sabouraud e veiculado
como a seção Revista de Clinica Cirurgica, também originalmente na revista francesa La Presse Médicale. O
informava os leitores brasileiros acerca das publicações autor tece comentários sobre o uso excessivo de antissépticos
médicas do exterior. Novamente é publicado um resumo de nos ferimentos, os quais acabariam por lesionar a pele e
um trabalho que aborda os ferimentos de guerra. Cheyne indica uma fórmula que seria eficaz no controle das infecções
publicou em 21 de novembro de 1914 na revista Lancet um sem causa danos a pele.29 Em muitos dos textos analisados, a
artigo com suas considerações sobre a melhor abordagem preocupação com a limpeza das lesões era muito presente,
para evitar a infecção de um ferimento. Segundo ele, após mas esse artigo mostrou que o excesso de produtos
decorridas 48 horas do ferimento, a assepsia seria quase
impossível e alguns fatores corroborariam para que isso

11 Com base no explicado no texto, as dita memórias seriam como as atuais


revisões sistemáticas, muito comuns na área da saúde.

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antissépticos não gerava benefícios e inclusive, lesionava brasileiras, temos o resumo da reunião do dia 08 de novembro
ainda mais os ferimentos. de 1917 da ANM, ou seja, a primeira reunião após a
declaração de guerra do Brasil a Alemanha, que como vimos
Entramos no ano de 1917, penúltimo ano do
no início deste artigo, foi em 26 de outubro desse ano. O título
conflito. A primeira referência à Grande Guerra aparece na
da ata é “Demonstrações de solidariedade ao Governo pela
edição de 12 de maio. Na seção que traz o resumo de livros,
declaração de guerra à Allemanha”. Como de praxe, o início
denominada Bibliographia, temos a resenha da obra “A
dos trabalhos é realizado com a comunicação do presidente
neurologia na guerra” escrita pelo médico português Dr. Egas
da associação, Dr. Miguel Couto. Segundo ele, os fatos
Moniz. A obra composta por nove capítulos traz um apanhado
concernentes que culminaram nesse ato do governo seriam de
dos progressos da neurologia obtidos no decorrer da Guerra.
conhecimento público e que “o Brazil fôra obrigado a acceitar
As lesões nervosas são amplamente discutidas, bem como os
a guerra que lhe era imposta”. A moção da academia foi lida
ferimentos no crânio. Chama atenção o último capítulo da
pelo Dr. Carlos Seidl e diz o seguinte:
obra que trata sobre os direitos dos feridos de guerra, primeira
menção desse cunho no periódico.30 A Academia Nacional de Medicina, cônscia
dos seus deveres sociaes e sem desmentir
Novamente encontramos um intervalo nas seu programa de apologia da paz e da
harmonia entre os homens, como supremo
publicações sobre a Guerra. O assunto volta na edição de 18 ideal do progresso, declara-se plenamente
de outubro na mesma seção da publicação anterior. Dessa vez, solidaria com o Governo da Republica, nos
actos de defeza de sua soberania e de sua
a obra resumida é intitulada “La cure solaire des blessures de liberdade, representados pela declaração de
guerre” escrita pelo médico francês Dr. Maurice Cazin. O guerra á nação allemã, que as ofendeu. A
Academia congratula com o Governo e o
livro aborda os resultados obtidos pelo médico no tratamento povo, pela incorporação do Brazil no grupo
das lesões pela exposição ao sol e tem o objetivo de das nações que, neste momento, luctam
pela defeza do direito e pela victoria da
disseminar entre os demais médicos os benefícios da luz solar civilização.
na cicatrização de feridas. O método é denominado
“helioterapia”.31
A aprovação da moção foi unanime. Caberia a mesa
Na seção Imprensa Medica Estrangeira da edição de diretora a nomeação de um responsável para entregar o
10 de novembro de 1917, o Brazil-Medico traz para seus
referido documento ao governo.33
leitores a resenha de um artigo publicado no Paris Medical
pelo Dr. Henri Leclerc sobre o uso de uma planta denominada Na primeira edição de 1918, novamente no resumo

“marrubio branco” no tratamento da bronquite. A referência da ata da ANM, temos nova referência à guerra. O médido e

que temos sobre a Guerra é que o autor obteve seus resultados general Dr. Ismael da Rocha relatou na reunião realizada em

aplicando o tratamento em soldados combatentes que 29 de novembro de 1917, ter recebido diversos exemplares de

apresentaram sintomas brônquicos. Após a descrição máscaras contra gases asfixiantes utilizadas por soldados

detalhada dos casos, a fórmula utilizada é apresentada para ingleses, as quais seriam apresentadas em um congresso

que outros profissionais interessados façam uso em seus específico. Na mesma comunicação, Dr. Rocha apresenta os
resultados de procedimentos cirúrgicos realizados na linha de
pacientes.32
batalha, no que tange ao tipo de curativo a ser empregado. Os
A última publicação do ano de 1917 traz umas das dados foram levantados por um médico militar de um hospital
mais importantes comunicações, do ponto de vista não
de campanha.34
médico, sobre a conflagração. Na seção do periódico que
veicula o resumo das atas das associações científicas

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As últimas menções encontradas sobre a Guerra no periódico Brazil-Medico, foram encontradas 25
apareceram na edição do dia 12 de janeiro de 1918. Chama publicações, sendo 4 no ano de 1914, 12 em 1915, 3 em 1916,
atenção o fato que o conflito se estendeu até o final desse ano 1917 e 1918. Dessas 25 publicações, a grande maioria, trouxe
e nenhuma outra menção sobre a batalha foi publicada. A para os leitores brasileiros assuntos relacionados com os
primeira referência surge na transcrição do resumo da ata da ferimentos de guerra e quais eram as técnicas utilizadas no
reunião da Sociedade de Medicina e Cirurgia, a qual foi tratamento. Nota-se uma grande preocupação com a limpeza
realizada em 13 de novembro de 1917. Nela, o Dr. José Maria dos ferimentos e coma necessidade do atendimento ocorrer
Coelho propõe o envio de uma moção de solidariedade ao em local adequado, mostrando que mesmo antes do advento
Governo pela atitude tomada em relação a declaração de dos métodos de controle de infecções hospitalares, esses
guerra feita pelo Brasil. Todos os presentes aprovaram a cuidados já eram propagados. Ressaltamos também que anos
proposta. Para encerrar o assunto da Primeira Guerra Mundial após o conflito surgiram os primeiros antibióticos. A questão
nas páginas do Brazil-Medico, temos na mesma edição, na da declaração de guerra por parte do Brasil, gerou duas
seção de Imprensa Medica Estrangeira o resumo de um moções de apoio de duas importantes entidades médicas, a
trabalho publicado na revista francesa Le Progres Médical, o Academia Nacional de Medicina e a Sociedade de Medicina
qual foi escrito pelo Dr. Gendron. No estudo sobre o e Cirurgia, certamente entidades de grande importância na
tratamento da sífilis com um composto chamado “galyl”, elite nacional. Não foi verificada nenhuma forma de
ótimos resultados foram conseguidos no tratamento de 60 preferência, durante a neutralidade brasileira, por algum dos
soldados portadores da doença que foram atendidos no países combatentes. Por fim, concluímos que os médicos
ambulatório do Dr. Gendron. brasileiros puderam ter boas noções sobre a medicina de
guerra, principalmente na questão dos tratamentos cirúrgicos
4 – CONCLUSÕES
e importância da assepsia dos ferimentos considerados
Como podemos verificar, no período escolhido para contaminados.
análise dos assuntos relacionados à Primeira Guerra Mundial

5 – REFERÊNCIAS

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em torno dos ferimentos de guerra, pelo abuso dos
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medicina e cirurgia, Rio de Janeiro. Anno XXX, n. 40,
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medicina e cirurgia. Rio de Janeiro, Anno XXXI, n. 41,
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de frente. Brazil-Medico: revista semanal de medicina e
cirurgia. Rio de Janeiro, Anno XXXII, n. 1, 5 Janeiro

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Artigo Original
LIÇÕES DE ANATOMIA – PARTE II

Elaine Maria de Oliveira Alves 1


Paulo Tubino 2

RESUMO
“Lições de Anatomia” ou “Aulas de Anatomia” são quadros ou gravuras elaborados, em sua maioria, por artistas consagrados que
apresentam dissecções anatômicas feitas desde a Antiguidade. Se examinadas cronologicamente contam, de certo modo, a história
da Anatomia por meio de seu principal método de ensino, ou seja, a dissecção i . Assim fazemos uma revisão das principais obras
sobre o tema que trazem também a presença dos anatomistas responsáveis por essa história. Há uma extensa iconografia a respeito
nos museus e na literatura e na análise de cada imagem acrescentamos um pequeno relato e comentários dos principais momentos
dessa evolução tão importante para a Medicina e para as Artes. Esta é a segunda parte de uma história fascinante.
Palavras-chave: Anatomia. Dissecção. História da Medicina. Educação médica.

ABSTRACT
The "Lessons of Anatomy" are pictures or engravings elaborated mostly by consecrated artists who present anatomical dissections
made since antiquity. If examined chronologically have, in a sense, the history of anatomy through its main teaching method, i.e.,
dissection. Thus we make a review of the main works on the subject that also bring the presence of the anatomists responsible for
this history. There is an extensive iconography about it in museums and literature and in the analysis of each image we add a small
report and commentary on the main moments of this evolution that is so important for Medicine and for the Arts. This is the second
part of a fascinating story.
Key Words: Anatomy. Dissection. History of Medicine. Education, Medical.

Introdução
A partir do século XV, graças às dissecções anatômicas, o estudo da anatomia se consolidou e floresceu nos séculos
seguintes. Não apenas médicos e cirurgiões, mas também artistas se dedicaram ao estudo anatômico. No início do Renascimento,
os artistas – interessados principalmente em músculos, ação corporal e postura – fizeram todos os esforços para dissecar quando e
onde possível e dentre esses se destacaram Leonardo da Vinci (1452-1519) e Michelangelo Buonarotti (1475-1564). Talvez tenham
sido feitas mais dissecções pelos artistas do que pelos próprios anatomistas entre 1400 e 1543.1,2 Mas, em 1543, Andreas Vesalius
(1514-1564) publicou seu memorável trabalho “De humani corporis fabrica libri septem”, mudando a história da anatomia ao rever
a morfologia humana até então ensinada nas universidades europeias.3

1
Professora Associada da Universidade de Brasília (UnB). Doutora em M edicina pela Escola Paulista de M edicina–Unifesp. Titular do Colégio
Brasileiro de Cirurgiões, da Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica, Sociedade Brasileira de Pediatria e Sociedade Brasileira de História
da M edicina. Coordenadora das disciplinas Anatomia da Criança e História da M edicina, Faculdade de M edicina (FM )–UnB.
2
Professor Emérito da UnB. Doutor e Livre-Docente pela Universidade de São Paulo. Vice-Presidente da Academia Nacional de Cirurgia
Pediátrica. Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões. M embro Honorífico da Sociedade Brasileira de Anatomia. Titular da Sociedade
Brasileira de História da M edicina. Professor das disciplinas Anatomia da Criança e História da M edicina, FM –UnB.

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Frontispício de “De Humani Corporis Fabrica libri septem”

Figura 1 – Frontispício (xilogravura colorida à mão) de “ Vesalius, Andreas: Andreae Vesalii Bruxellensis, scholae medicorum Patavinae professoris, de Humani
corporis fabrica Libri septem. Basileae: [ex officina Ioannis Oporini], [Anno salutis reparatae 1543]” (fonte: Universitätsbibliothek Basel, AN I 15,
http://doi.org/10.3931/e-rara-20094).

O maior anatomista do século XVI foi Andreas Universidade de Pádua, graduando-se médico em cinco de
Vesalius (forma latinizada de Andries van Wesel) ou André dezembro desse mesmo ano; no dia seguinte à formatura foi
Vesálio, em português. Vesálio (1514-1564) nasceu em nomeado “chirurgiæ explicator” (cirurgião explicador),
Bruxelas, na época parte do Sacro Império Romano- responsável pelas aulas práticas de anatomia. Vesálio tornou-
Germânico, no seio de uma família de médicos e se um dos mais ilustres professores da universidade e,
farmacêuticos. Estudou medicina em Paris entre 1533 e 1536, baseado nas numerosas dissecções que fez em cadáveres
onde se tornou o demonstrador de anatomia de um de seus humanos, escreveu a obra fundamental da anatomia intitulada
professores, Jean Guinter de Andernach (1487-1574). É “De humani corporis fabrica libri septem”. A “Fábrica” foi
possível que nessa ocasião tenha começado a apreciar o valor ilustrada, provavelmente, por Jan van Calcar (circa 1499-
da inspeção visual direta e a perceber que algumas descrições 1546) e tinha sete partes consagradas sucessivamente aos
de Galeno (circa 129-201) estavam mais de acordo com a ossos, músculos, aparelho vascular, sistema nervoso, órgãos
anatomia animal do que com a humana. Em 1537 foi para a do abdome, órgãos do tórax e ao cérebro; publicada na

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Basileia (Suíça), foi dedicada a Carlos V, Imperador do Sacro primeira e a terceira está à direita, um tanto distraída por um
Império Romano-Germân ico e também rei da Espanha com o cachorro atrás dela. Talvez a primeira figura seja Galeno, a
nome de Carlos I. A observação direta do corpo humano deu segunda Hipócrates e a terceira Aristóteles. Há também duas
muita autoridade a Vesálio e, não obstante as duras polêmicas figuras sentadas abaixo da mesa que parecem estar
que precisou enfrentar, seus ensinamentos atraíram a atenção discutindo sobre instrumentos. Seriam os barbeiros-
de médicos, artistas e estudiosos. O fato de ter incorrido em cirurgiões que faziam dissecações anteriormente, tornados
alguns equívocos, provavelmente, se explica porque as desnecessários pelo professor dissecador. Na parte de cima do
técnicas anatômicas da época não permitiam uma análise frontispício há uma placa identificando Vesálio como
mais detalhada pela necessidade de dissecções mais rápidas. "Andreae Vesali" de Bruxelas, juntamente com informações
No frontispício da “Fábrica” (figura 1) – diferentemente das sobre o livro. Há dois querubins em cada lado de um brasão
ilustrações em que o professor ficava isolado dos demais, de armas composto por três doninhas, o brasão da cidade de
sentado em sua cátedra, durante a lição de anatomia – Vesálio Wesel (de onde a família de Vesálio recebeu seu nome).
é a figura que ocupa o centro de um teatro anatômico Acima da mesa de dissecção há um esqueleto, enfatizando a
semicircular, retratado no ato de dissecar um cadáver de importância dos ossos no estudo anatômico. Vesálio é
mulher durante uma aula pública de anatomia. Apenas o conhecido por ter introduzido um esqueleto articulado em
anatomista executa a dissecção, rodeado por um grupo suas aulas de dissecção. Há uma figura nua na borda esquerda
agitado, mas atento, composto por religiosos, leigos, do frontispício, presumivelmente, representando a
estudantes e simples curiosos que ocupam plataformas importância do estudo artístico do nu para o entendimento da
escalonadas e se agarram às arcadas para ver melhor. Há três anatomia de superfície do corpo humano. O cão e o macaco
pessoas em vestes antigas na frente: uma com uma cesta nos cantos inferiores referem-se aos animais frequentemente
olhando para Vesálio, a segunda quase escondida atrás da usados na dissecção e também na “Fábrica”.3-5
Aula de Anatomia para os cirurgiões barbeiros de Londres, 1581

Figura 2 – John Banister ministrando uma aula sobre vísceras no “Barber-Surgeons' Hall” em Londres, 1581 (fonte: manuscrito ilustrado da “ Hunterian Collection”,
Universidade de Glasgow, obra de arte em domínio público).

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John Banister (circa 1533-1610) foi um dos passando um instrumento para o da direita, e mais dois
principais cirurgiões ingleses do século XVI, tendo sido assistentes atrás de Banister, também segurando
contemporâneo de William Shakespeare (1564-1616) e instrumentos. Juntamente com esses últimos há mais oito
Francis Bacon (1561-1626). Era cirurgião-barbeiro e médico, pessoas, possivelmente estudantes. Acima dos cirurgiões há
condição incomum na época. Ingressou na Companhia dos dois brasões de armas. A imagem, feita por encomenda,
Cirurgiões-Barbeiros em 1572 e no ano seguinte obteve o retrata o método de ensino da anatomia em Londres, no final
“Medicinae Baccalaureus” (Bacharel em Medicina) na do século XVI. Curiosamente, John Banister esteve no Brasil.
Universidade de Oxford, o que lhe conferia o direito de atuar Além de suas atividades como cirurgião e professor de
como físico (como eram chamados os médicos na época). anatomia, serviu a bordo do navio Leicester durante uma
Banister foi um dos poucos médicos a receber autorização expedição despachada pela Coroa inglesa em 1582, cuja
especial da Rainha Elizabeth I para praticar medicina e intenção declarada era fundar um entreposto comercial na
cirurgia. Henrique VIII, pai de Elizabeth, havia reunido os Ásia. Entretanto, desviada de sua rota original, a esquadra fez
barbeiros e cirurgiões na “United Barber-Surgeons escala na África, cruzou o Atlântico e chegou ao litoral
Company” (Companhia Unida de Barbeiros e Cirurgiões) em brasileiro, em Santa Catarina, de onde retornou à Inglaterra.6-
1540. Também autorizou a Companhia a fazer, anualmente, 9

dissecções públicas dos cadáveres de quatro criminosos


executados e, assim, o ensino da anatomia tornou-se uma As “Lições de Anatomia” do século XVII
importante função da Companhia. John Banister foi nomeado
Diversos pintores do século XVII, dos quais
professor de anatomia em 1581 e ocupou o cargo até 1596.
Rembrandt (Rembrandt Harmenszoon van Rijn, 1606-166 9)
Pouco antes, em 1578, havia publicado sua obra “The
é sem dúvida o mais famoso, retrataram memoráveis “Lições
Historie of Man” (História do Homem) que continha os
ou Aulas de Anatomia” que até hoje despertam o interesse e
conceitos da nova anatomia proposta por André Vesálio. Na
estimulam as interpretações de diferentes pesquisadores. As
gravura que ocupa duas páginas, atribuída a Nicholas Hilliard
“Lições de Anatomia” de Amsterdã são as mais conhecidas e
(circa 1547-1619), Banister é representado fazendo uma
embora haja controvérsia se de fato representam uma
demonstração anatômica no Salão dos Cirurgiões-barbeiros
demonstração anatômica real, porque faltam dados a respeito
(figura 2). Ele está entre um esqueleto, para o qual aponta um
do procedimento ou da sala de dissecção, dão informações
bastão de prata, e um cadáver, em cujas vísceras expostas
confiáveis sobre os professores de anatomia e os principais
descansa sua mão esquerda; usa um boné de veludo com abas
membros da associação (guilda) dos cirurgiões.10 As aulas
estreitas, toga de mestre e mangas brancas de cirurgião, assim
obrigatórias de anatomia eram ministradas pelo “praelector
como seus quatro assistentes. Banister também usa um
anatomiae”, professor escolhido pela Guilda dos Cirurgiões
pingente de ouro com pedras preciosas, suspenso por uma fita
de Amsterdã, e constituíam parte importante do treinamento
de seda preta, em volta do pescoço. Um de seus assistentes
cirúrgico desde o século XVI. As lições eram organizadas
usa uma joia semelhante de esmalte azul e pérolas. Por trás
para os cirurgiões e aprendizes da guilda e o professor fazia
do professor, em uma estante, está o livro do anatomista
as demonstrações no teatro anatômico da associação. As
italiano Matteo Realdo Colombo (1516-1559), discípulo de
dissecções ocorriam uma vez por ano, no inverno porque o
Vesálio e professor da Universidade de Pádua, na época a
frio retardava a decomposição do corpo, geralmente em
mais importante faculdade de medicina europeia. Um médico
janeiro ou fevereiro. As exibições, em que eram usados os
de barba branca com manto de pele e gorro com abas,
corpos dos criminosos executados na ocasião, duravam
provavelmente o Mestre da Companhia para o ano de 1581,
alguns dias e eram patrocinadas pelos conselhos das cidades
aponta a cabeça do cadáver com seu dedo indicador esquerdo.
com ingressos pagos. Durante o século XVII, as aulas de
Há dois assistentes em primeiro plano, o da esquerda
anatomia se tornaram grandes eventos públicos com centenas

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de espectadores. Nos séculos XVII e XVIII, a Guilda dos um modelo vivo. As pinturas eram cuidadosamente
Cirurgiões contratou pintores conhecidos para celebrar os compostas, mas não pretendiam ser representações
preletores e os membros da guilda, dando origem à famosa verdadeiras das demonstrações anatômicas realizadas, aliás
série de dez retratos de grupo com esse tema: as aulas de os cirurgiões pagavam para serem incluídos nos quadros.
anatomia dos professores Sebastiaen Egbertz de Vrij (1603 e Durante séculos foram exibidas na sede da guilda e
1619), Johan Fonteijn (1625/26), Nicolaes Tulp (1632), atualmente estão expostas no “Amsterdam Museum” (em
Johannes Deijman (1656), Frederik Ruysch (1670 e 1683), Amsterdã) e no “Mauritshuis” (em Haia); neste último museu
Willem Roëll (1728) Petrus Camper (1758) e Andreas Bonn se encontra a “Lição de Anatomia do Dr. Tulp”.11
(1798). Os quadros de Sebastiaen Egbertz, de 1603, e Johan Selecionamos dois desses quadros que, a despeito de sua
Fonteijn representam lições de osteologia e o de Andreas grande importância artística e histórica, aparentemente são
Bonn é uma lição de anatomia para estudantes de arte com menos conhecidos.

Lição de Anatomia do Dr. Deijman, 1656

Figura 3 – “ Lição de Anatomia do Dr. Deijman”, Rembrandt, 1656. Quadro, atualmente, em exposição temporária no “Hermitage Amsterdam” (obra de arte em
domínio público, fotografada pelos autores em 2014, no “ Amsterdam Museum”, Amsterdã, Holanda).

Rembrandt pintou apenas dois quadros com o tema “Lição de (prefeito) da cidade. Ambos foram pintados por encomenda
Anatomia”. O primeiro em 1532, quando tinha apenas 26 da Guilda dos Cirurgiões de Amsterdã em homenagem aos
anos de idade, é a muito famosa “Lição de Anatomia do Dr. seus professores. Infelizmente, a pintura atual corresponde a
Tulp”. Quase um quarto de século depois pintou a “Lição de apenas uma pequena parte do quadro original. A maior parte
Anatomia do Dr. Deijman” (figura 3), um quadro menos da tela foi destruída em um incêndio ocorrido em 1723,
conhecido, mas igualmente memorável. Johannes (Jan) embora a compreensão da composição original tenha sido
Deijman ou Deyman (1620-1666) sucedeu Nicolaes Tulp preservada em um esboço deixado por Rembrandt (figura 4).
(1593-1674) na função de professor de anatomia da Guild a É um Rembrandt muito mais maduro que retrata o Dr.
dos Cirurgiões em 1653, quando Tulp foi eleito burgomestre Deijman, cuja cabeça não é visível, dissecando o cérebro de

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um cadáver cujas regiões plantares estão em primeiro plano, (1621-1664), segura a calota craniana do cadáver. O corpo é
produzindo um efeito ousado que lembra outra pintura de Joris Fonteijn, vulgo “Jan, o Negro” (circa 1633-165 6),
famosa, a “Lamentação sobre o Cristo Morto” de Andrea um alfaiate que serviu durante três anos e meio na Companhia
Mantegna (circa 1431-1506). O corpo do criminoso na mesa Holandesa das Índias Orientais e que após retornar à terra
de dissecção parece se projetar no sentido de quem vê o natal desperdiçou a herança materna e tornou-se delinquente.
quadro, um truque visual em que a figura é encurtada para No final de 1655, foi preso por um roubo em Amsterdã,
incluir o espectador na cena. De acordo com as técnicas condenado à forca em 27 de janeiro de 1656 e executado dois
anatômicas usadas na época, as vísceras abdominais e, dias depois. Posteriormente, seu corpo foi disponibilizado aos
provavelmente, as torácicas já haviam sido removidas e o Dr. cirurgiões e dissecado durante três dias.12-16
Deijman está retirando as meninges e expondo as estruturas
cerebrais enquanto seu assistente, o cirurgião Gijbert Calkoen

Figura 4 – Esboço preparatório do quadro “ Lição de Anatomia do Dr. Deijman”, Rembrandt, 1656 (fotografado pelos autores, em 2014, no “Amsterdam Museum”,
Amsterdã, Holanda)

“Lição de Anatomia do Dr. Frederik Ruysch”, 1683

Frederik Ruysch (1638-1731) nasceu em Haia, nos sendo nomeado para vários cargos: em 1668, instrutor-chefe
Países Baixos, e devido à morte prematura do pai tornou-se das parteiras de Amsterdã; em 1679, médico conselheiro
aprendiz de boticário ainda muito jovem. Assim graduou-se (“Medicus forenses”) dos tribunais de Amsterdã; em 1685,
primeiro em farmácia, chegando a abrir uma pequena loja. professor de botânica do “Athenaeum Illustre” (instituição
Entretanto decidiu estudar medicina na Universidade de precursora da Universidade de Amsterdã) e supervisor do
Leyden, obtendo o grau de médico em 1664. A grande paixão jardim botânico. Apesar de todas essas atividades, Ruysch era
de Ruysch sempre foi a anatomia e em 1666, aos 28 anos de essencialmente um anatomista. Seu grande interesse em
idade, sucedeu o Dr. Deijman como “praelector anatomiae” anatomia e dissecção o levou a descobertas – como as
da Guilda dos Cirurgiões. Ruysch ficou no cargo durante 65 válvulas dos vasos linfáticos e o órgão vomeronasal em
anos, ou seja, enquanto viveu. Sua carreira foi ascendente animais – e ao desenvolvimento de métodos de preservação

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dos espécimes anatômicos, dentre os quais o “licor Em 1717, Pedro comprou a coleção, contendo cerca de mil
balsâmico”, que fazia questão de manter em segredo. Mas itens, pela soma impressionante de trinta mil florins
talvez tenha ficado mais famoso por sua coleção de espécimes (correspondendo, atualmente, a quase um milhão e meio de
anatômicos, o seu “repositório de curiosidades”, dioramas reais) e mais cinco mil florins pelo segredo das técnicas de
com esqueletos, corpos e partes de corpos humanos preservação. Vários dos itens ainda são mantidos no
(geralmente fetos e crianças pequenas) e de animais dispostos “Kunstkammer”, no Museu Pedro o Grande de Antropologia
em paisagens compostas também por plantas e objetos e Etnografia da Academia de Ciências de São Petersburgo.
inorgânicos e orgânicos, inclusive cálculos urinários Ruysch, aos 79 anos, imediatamente começou a montar uma
extraídos dos pacientes de Amsterdã. Nessas composições, nova coleção.17-22
Ruysh foi auxiliado por sua filha Rachel que, posteriormente, Há dois quadros retratando as aulas de anatomia de
foi uma pintora renomada. Eventualmente eram Frederik Ruysch. O primeiro foi pintado em 1670 por Adriaen
acrescentados comentários sobre a brevidade da vida, Backer (circa 1635-1684) e mostra o “praelector anatomiae”
enquadrando as peças em um tipo de obra de arte simbólica dissecando os linfonodos inguinais do cadáver. Trata-se de
chamada “vanitas” (vaidade), uma advertência à condição uma das primeiras pinturas com foco no sistema linfoide e a
efêmera da existência, muito em voga na Holanda do século escolha do tema não foi feita aleatoriamente, sua intenção foi
XVII. Os dioramas, mediante pagamento, podiam ser vistos comemorar a pesquisa pioneira de Ruysch sobre os vasos
pelo público e se tornaram uma grande atração, despertando linfáticos.10,11,23 A outra “Lição de Anatomia do Dr. Frederik
o interesse de muitos visitantes estrangeiros; a exposição era
Ruysch” foi pintada por Jan van Neck (1635-1714) em 1683
chamada de “A Oitava Maravilha do Mundo”. Um desses
(figura 5).
visitantes foi o czar da Rússia, Pedro o Grande (1672–172 5).

Figura 5 – “ Lição de Anatomia do Dr. Frederik Ruysch”, Jan van Neck, 1683. Obra, atualmente, em exposição temporária no “ Hermitage Amsterdam” (crédito da
fotografia: “Amsterdam Museum”, obra de arte em domínio público).

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Ruysch está dissecando um recém-nascido, interpretações: demonstrar a habilidade de Ruysch em
provavelmente natimorto, e mostra o suprimento de sangue preparar suas peças anatômicas, como um símbolo da
da placenta através do cordão umbilical. O abdome aberto “vanitas” e, finalmente, indicar que Hendrick havia sido
contrasta com a pele pálida e a criança parece estar dormindo escolhido sucessor do pai uma vez que parece apontar para
em vez de morta, um efeito obtido pela mão do menino que ambos e tem uma expressão alegre. Os livros de registros da
agarra o cordão umbilical como se estivesse segurando sua Guilda dos Cirurgiões de Amsterdã, nos quais constam todas
salvação. Os remanescentes da membrana coriônica ainda as aulas de anatomia ministradas, evidenciam que nenhuma
estão pendurados na borda da placenta. Ao lado do grupo de delas foi realizada em 1683. Portanto a pintura em questão
médicos está Hendrick Ruysch (1663–1727), filho do não é uma representação exata de uma lição de anatomia
preletor, com o esqueleto completo de uma criança em suas documentada. Na verdade, a dissecção de uma criança e a
mãos. Hendrick, representado como uma criança embora já presença de um menino eram situações muito incomuns em
estivesse com 20 anos na época, também se tornou médico e uma aula de anatomia naqueles dias e, certamente, a escolha
anatomista como o pai. A decisão de apresentá-lo como um de um recém-nascido não foi casual. Ruysch era o obstetra-
menino talvez tenha tido o objetivo de estabelecer uma chefe da cidade de Amsterdã e responsável pela educação das
ligação entre os médicos adultos e as duas crianças mortas. O parteiras cujo conhecimento anatômico era extremamen t e
rapaz tem um chapéu preto com abas embaixo do braço, como precário na época. Assim o tema central do quadro, ao que
o usado por seu pai e que era privilégio exclusivo dos tudo indica, representa o interesse de Ruysch no
médicos, o que poderia estar indicando sua linhagem e futura desenvolvimento humano desde a vida intrauterina e seu
profissão. A presença do esqueleto pode ter várias comprometimento com a educação obstétrica.10,11,24

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Ruysch” of 1670: A Tribute to Ruysch’s Contributions

i
Seguindo Joffre Rezende e Idel Becker, adotamos o termo usar ressecação em lugar de ressecção. Por que, então, dissecação
dissecção em vez de dissecação, forma redundante e desnecessária, em vez de dissecção?” Revendo artigos indexados na BIREM E,
de vez que a língua portuguesa já possui o termo dissecção que é Joffre Rezende cita um caso indexado como dissecação, mas que se
muito mais próximo de sua origem latina e dos termos equivalentes refere à dessecação, cujo significado é inteiramente diverso de
em outros idiomas. Na literatura médica brasileira predomina a dissecção (Rezende JM . Linguagem médica. 4. ed. Goiânia: Kelps;
forma dissecção. Idel Becker argumenta: “Ninguém pensaria em 2011. p. 191-2.).

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Artigo Original
A IMPORTÂNCIA DO ENSINO DA HISTÓRIA DA MEDICINA NA GRADUAÇÃO
1º colocado no "PRÊMIO CARLOS DA SILVA LACAZ" - 2019, de
Monografias sobre História da Medicina, para acadêmicos de medicina.

Cristina Espindola Sedlmaier

Orientador:
Prof. Dr. Daniel Pinheiro Hernandez
Instituição:
Centro Universitário Serra Dos Órgãos (Unifeso) Teresópolis-Rj

RESUMO
A História da Medicina vem sendo construída ao longo das eras, concomitante ao crescimento da própria Medicina. E seu estudo
permite aproximar o estudante de medicina do pensamento humanístico, tão necessário para uma formação plena do médico. Esta
aproximação promove o pensamento crítico, possibilita entender e lidar com as várias mudanças que existiram e existem nos tempos,
constrói valores culturais e de concepção de mundo no graduando, além de oportunizar a construção de uma postura profissional ao
futuro médico enfrentando o tecnicismo excessivo. Neste contexto, debates para a inserção e manutenção do seu ensino são extre-
mamente necessárias, dentro do currículo do ensino da faculdade de Medicina, uma vez que o médico não é apenas um técnico, mas
o portador dos grandes ensinamentos da nobre e sagrada arte hipocrática.
Palavras-chave: História da Medicina; Educação Superior; Medicina.
ABSTRACT
The history of Medicine has been built over the years, along with the growth of medicine itself. It study allows the medical student
to grow closer to the humanistic thinking, much needed for a full medical training. This acquaintance promotes critical thinking,
better understanding e approach of the several changes that occur as the time passes, builds cultural principles and concepts of the
world in the head of the student and also gives the opportunity to build a professional posture, facing the excessive technicality. In
that context, debates of it’s insertion and maintenance are a necessity inside the medical school’s curriculums, once the doctor isn’t
just a technician, but holder of big knowledges of the noble and sacred hippocratic art.
Keywords: History of Medicine; College Education; Medicine.

1 INTRODUÇÃO da transmissão, adiante, das condutas aprendidas. (3) Já o iní-


A medicina é tão antiga quanto o Homem, que, cio da História da Medicina, como ciência documentada, se
quando afligido pelas dores e sofrimentos do corpo, procurou dá na Paleopatologia, passando pela Medicina Arcaica até
utilizar-se de atitudes que permitiram o alívio à carne ou até chegar na Medicina Hipocrática. Na obra Da medicina an-
protelar a morte. Com isso, deu-se início à relação da huma- tiga, integrante do Corpus Hipocraticum, observa-se a reve-
nidade com a Medicina, ciência surgida, então, nos primór- rência ao processo histórico no relato de que à medicina é
dios do ser e da relação homem/meio/processos. Disto ori- fundamental embasar as investigações do presente no princí-
gina-se, portanto, a História da Medicina. (1) Destaque deve pio das conquistas, invocando o chamado patrimônio do pas-
ser dado para o entendimento de que, em seus primeiros pas- sado. (1,3)
sos, a Medicina não tenha se iniciado como ciência, mas Porém, mais do que apenas saber a história de gran-
como arte. E, junto da História e da Filosofia, constitui parte des vultos e seu legado, a História da Medicina é entendida
das Humanidades Médicas. (2) assim (3):
A História é um processo contínuo de interações e (...) A reconstituição histórica das transformações
que ocorreram na teoria e na prática médica baseia-
que tem dois sentidos. Um é o próprio processo histórico e o
se nas relações que unem os conhecimentos médicos
outro é a narração e o debate deste processo, que surge em à filosofia, à ciência e à técnica. Ele dá à História da
Medicina caráter utilitário e filosófico. Utilitário no
paralelo com o aparecimento da Cultura, quando há o início

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sentido de ajudar a compreensão do presente e filo-
sófico no sentido de demonstrar que em medicina o
Mais recentemente, nomes como os de Carlos da Silva Lacaz,
progresso é uma necessidade interna e que a evolu-
ção histórica tem um sentido. (GUSMÃO, 2003, p. Ivolino de Vasconcellos e Lycurgo Santos Filho, são reveren-
148)
ciados como pioneiros e grandes incentivadores dos estudos
de História da Medicina no Brasil. (3,10)
A História da Medicina, como disciplina, teve sua
Estudar História da Medicina é utilizar os métodos
gênese na segunda metade do século XIX, quando possuía
generalistas da pesquisa, tendo em mente que, sendo algo tão
forte relação com historiadores, filologistas, filósofos e mé-
específico, também possui seus problemas e métodos diferen-
dicos, tendo, como primeira diretriz, estudar o início e evolu-
ciados de análise. Tem, como pano de fundo, os processos de
ção das doutrinas médicas e as relações humanas envolvidas.
saúde e doença através dos tempos, os diversos eventos que
(3). Essa relação da filosofia com a medicina remete a tempos
impactam de forma direta e indireta esse processo, além de
passados, tendo como exemplos as figuras de Hipócrates,
inserir o Homem num contexto histórico determinado. (3)
Aristóteles e Avicena. (4)
Portanto, quer fosse uma doença, atribuída a uma possessão
Já na primeira metade do século XX, o alemão Karl
demoníaca ou a um castigo divino, ou a desequilíbrio dos hu-
Sudhoff (1853-1938) legitimou a História da Medicina como
mores, ou a distúrbios físicos, mentais e sociais, o olhar, e o
disciplina no ensino médico, quando criou a Cátedra de His-
tratamento destes, estavam de acordo com o momento histó-
tória da Medicina na Universidade de Leipzig, na Alemanha,
rico daquele indivíduo doente, e com suas relações, tecnolo-
e fundou o primeiro Instituto de História da Medicina, dando-
gias disponíveis e crenças. Logo, é necessário entender todo
lhe, consequentemente, importância ímpar no processo da
o cenário vivido pelo objeto de estudo, incluindo a filosofia,
História da Medicina mundial, estruturando-a e deixando dis-
a literatura, a arte e a música. (3,11)
cípulos que deram continuidade aos trabalhos. (5,6,7)
Muito embora seja reconhecida como uma disciplina
No Brasil, em 1832, com a criação da Cadeira de Hi-
indispensável para a formação plena do médico humanista, a
giene e História da Medicina, nas faculdades de Medicina da
História da Medicina foi sendo retirada, sistematicamente,
Bahia e do Rio de Janeiro, teve início a historiografia médica
das grades curriculares. Gusmão (3) defende ser ela mais do
em nosso país. Infelizmente, com a reforma do ensino na Pri-
que uma matéria, mas uma ferramenta para o profissional que
meira República, em 1891, tal disciplina foi desativada. (8)
almeja a dupla perfeição – homem culto e técnico intelectu-
Ela só retornou à grade curricular anos mais tarde, pela ação
almente ambicioso. Este componente humanístico, que a His-
de Ivolino de Vasconcellos (1917-1995) que, em 1947, foi o
tória da Medicina fornece, traz um sentido de dignidade pro-
responsável pela Cátedra de História da Medicina da Facul-
fissional, muito embora não faça nenhum médico curar com
dade Nacional de Medicina. Tendo um papel de destaque
mais proficiência. (3,12,13,14)
neste tema, Ivolino foi pioneiro e defendia seu ensino:
As grandes tecnologias, valorização da técnica e
A História da Medicina constitui, em verdade, uma
pensamento científico colaboraram para que, na segunda me-
das vigas mestras do correto aprendizado científico desta
tade do século XX, sobressaísse a medicina técnica, como ci-
magna ciência. Parafraseando Cícero, que definiu “A História
ência biológica, não havendo a valorização adequada da His-
é a mestra da vida”, poderemos afirmar que a História da Me-
tória da Medicina. Essa medicina somática, em que o ser hu-
dicina é a Mestra das Artes Sanitárias... Qual a finalidade su-
mano e seu corpo pertencem ao mundo animal, distancia o
prema dos estudos históricos, senão a aspiração em prol do
médico de suas raízes espirituais e humanistas e, por conse-
contínuo aperfeiçoamento, e, nesse sentido, através da histó-
guinte, distancia-o do paciente. (2,3,12,13,14,15,16)
ria das idéias e das grandes figuras que a ilustraram, pelo sa-
A imagem que o médico tem, do passado de sua pro-
ber e pela ética, a consagração dos superiores modelos da de-
fissão, influencia seu pensamento e, portanto, sua ação. E traz
ontologia médica? (AMOROSO, 2005, p. 7) (9)

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o entendimento que “(...) a importância da História da Medi- ching, com a utilização do operador booleano AND, para for-
cina é afirmar a importância da própria medicina”. (GUS- mar a chave de pesquisa. Tais descritores estão cadastradas
MÃO, 2003, p. 151) (3) Portanto, a formação ética e huma- no MeSH (Medical Subject Headings).
nística devem ser preservadas pois, como reforça o professor Os critérios de inclusão para os estudos encontrados
Carlos da Silva Lacaz: foram artigos, publicados nos últimos 50 anos (1968 a 2018)
Mudam os tempos e as doutrinas, mas não muda a e foco no ensino da disciplina na graduação de estudantes de
natureza e a Medicina é, em essência, sempre a mesma e Hi- Medicina. O período, de 50 anos, foi assim delimitado para
pócrates o mestre de todas as épocas. Felizes os que escolhe- possibilitar uma avaliação de como este ensino se comportou
ram a Medicina para servi-la e amá-la. (LACAZ, 1997, p. 48) durante essas cinco décadas. Foram excluídos artigos biblio-
(14) gráficos.
Indo nessa linha, existe, no Centro Universitário Além desta base de dados, foi utilizado o Jornal Bra-
Serra dos Órgãos (UNIFESO), em Teresópolis, região serrana sileiro de História da Medicina e livros que trazem discussões
do Rio de Janeiro, o Grupo de História da Medicina (GHM). sobre o tema proposto.
Sendo uma atividade de extensão, o Grupo reúne acadêmicos Buscaram-se artigos e discussões que versavam so-
de medicina, do primeiro ao décimo segundo períodos, que bre o ensino da História da Medicina na graduação dos estu-
partilham de um interesse único: a História da Medicina. Os dantes de Medicina, que possibilitassem construir um enten-
alunos são estimulados a produzirem trabalhos referentes ao dimento sobre a importância desta disciplina para o estudante,
tema, com apresentações e discussões semanais. São oito futuro médico.
anos de existência e mais de 200 trabalhos apresentados. Tal
atividade permite aproximar os acadêmicos da sua própria 4 O ENSINO DA HISTÓRIA DA MEDICINA
História e das Humanidades Médicas, imprescindíveis ao mé- Discussões sobre o mérito em ensinar e estudar His-
dico, em qualquer tempo da História Humana. tória da Medicina vem sendo travadas extensivamente, ao
Tendo em vista tais ações para que a História da Me- longo dos tempos. Muito embora muitos falem a favor do seu
dicina seja pesquisada, estudada e debatida na Faculdade de ensino, como meio de instrumentalizar o estudante com o co-
Medicina de Teresópolis, é elementar a pergunta: qual a im- nhecimento necessário para seu crescimento humanístico, ou-
portância deste ensino para o estudante da graduação? tros rebatem tal necessidade, com o argumento de que, o cur-
rículo médico já se encontra completo, não existindo meios
2 OBJETIVO de inserção do tema dentro da carga horária. (17,18,19) Outro
Compreender a importância do ensino da História da argumento, neste sentido, é o de que os alunos já dispensam
Medicina na graduação do estudante de Medicina, levando muito tempo e concentração para o aprendizado das matérias,
em conta o seu valor para a formação dos futuros médicos, com suas complexidades crescentes, e para a produção de
bem como proporcionar reflexões e discussões no campo das pesquisas. (17,18)
humanidades médicas. Quando analisamos a importância do ensino da His-
3 MÉTODOS tória da Medicina para os graduandos, fica evidente que esta
Realizada revisão bibliográfica de modo descritivo, fornece, a esses futuros médicos, o pensamento crítico e o
sobre a importância do ensino da História da Medicina na gra- olhar humanístico que necessitam para uma formação inte-
duação médica. Consultada a base de dados eletrônica Pub- gral. Então, com uma tríade formada pela História, Filosofia
Med, utilizando os descritores: History of Medicine e Tea- e Ética, a disciplina é um requisito mister para a cultura e
completa formação do pensamento médico.
(3,12,13,14,15,16) Isso incentiva ao aluno observar e refletir

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sobre as mudanças ocorridas dentro dos diversos contextos médico. No artigo, os autores afirmam que a profissão mé-
históricos, da epistemologia e das compreensões morais da dica, diferentemente de um comércio, deve saber honrar sua
época. (20) herança histórica. E é neste contexto que é levantada a situa-
Sheard (2006) e Wijesinha e Dammery (2008) rati- ção da medicina atual, em que o tecnicismo excessivo não dá
ficam o entendimento de que o ensino da História da Medi- espaço para seu passado. (24)
cina promove o pensamento crítico. Somado a isso, ressaltam Tecnicismo este criticado por Lacaz (1997) (14) e
que tal estudo estimula os alunos a explorar outros assuntos Ivamoto (2003) (15), uma vez que, constantemente, se exige
fora da medicina clínica, promovendo ideias e opiniões de va- uma postura médica pautada na humanização, contudo, deli-
riados temas, além de instrumentaliza-los para discutir e es- beradamente, há a retirada das matérias que discutem as hu-
crever sobre estes, permitindo entender e lidar com as várias manidades médicas do currículo, deixando apenas a parte téc-
mudanças, sendo uma importante habilidade desenvolvida nica para ser aprendida.
pela História da Medicina. (18,21) Neste contexto, Hafferty e Castellani (2010) apre-
Serpa-Flores (1983) lembra que, para a formação do senta sete tipos de perfis profissionais: o nostálgico, empre-
futuro médico, é necessário leva-lo a adquirir atitudes que endedor, acadêmico, estilo de vida, empírico, irrefletido e o
promovam uma construção dos valores culturais e de concep- ativista. Com base nestes perfis, o ensino de história da me-
ção de mundo. Este sugere que o estudo da História da Medi- dicina promove o surgimento de, pelo menos, dois tipos es-
cina, através das humanidades médicas, é um dos meios mais pecíficos, o nostálgico e o ativista. No primeiro – tendo como
apropriados para esta construção. (22) É a cultura como tera- qualidades a autonomia, o altruísmo, a competência interpes-
pia e a terapia como cultura sendo um dos grandes desafios soal, o domínio profissional e a competência técnica – a his-
para uma medicina que vem, a passos largos, para um tecni- tória permite desenvolver o sentimento de pertencimento e
cismo desenfreado. (23) solidariedade dentro da profissão médica, além de um apreço
História da Medicina é a área do conhecimento mé- aos antecessores, distanciando da visão de comércio. Para o
dico que mune o aluno sobre informações do passado da ci- profissional ativista – que possui qualidades como justiça so-
ência médica e da sua arte, permitindo-lhe a compreensão dos cial, contrato social, altruísmo e moralidade pessoal – há a
acontecimentos do presente, cada vez mais em constante evo- promoção da responsabilidade cívica. (25)
lução. Possibilita, também, que sejam feitas análises dos erros O desenvolvimento do profissional nostálgico traba-
cometidos, interpretando-os, estudando as ações e medidas lha, nos alunos, princípios, virtudes e traços de caráter – que
tomadas, bem como oportuniza evitar que novos episódios são considerados desejáveis – para que o aluno não seja ape-
ocorram. Com isso, se torna importante ferramenta na forma- nas um técnico de saúde, mas um humanista. E mais, a histó-
ção médica, e, consequentemente, na formação integral do ria permite que, principalmente, o graduando entenda o sig-
graduando. (12,13) nificado de ser médico. (24,25) Neste aspecto, há a visão dos
Hernandez (2017) lista alguns dos motivos que tor- heróis, da necessidade das pessoas de os tê-los, e de como as
nam relevante o ensino da História da Medicina, tais como o gerações X (nascidos entre 1965 e 1979) e Y (nascidos entre
conhecimento do passado, atitudes de reverência, identifica- 1980 e 1994) são carentes destes. Sobre isso, há a seguinte
ção de exemplos aos mais novos, incremento da cultura geral referência:
e médica, valorização de vultos nacionais e inter-relação com Sem heróis, muitas vezes as pessoas se contentam
áreas como literatura, artes, filosofia, ética e sociologia. (13) com quem elas são, em vez de aspirar a que eles podem se
Para Bryan e Longo (2013), o estudo da História da Medicina tornar. Um dos lamentos daqueles que estudam Gerações X e
permite a construção de uma postura profissional ao futuro Y é que, como uma geração, eles não têm heróis... A identifi-

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cação dos heróis, a alegria em suas realizações, e o compro- mentos patrióticos existentes nos futuros médicos russos, sal-
misso de mantê-los sempre visíveis em nossos ambientes de vaguardando as prioridades nacionais soviéticas. Era o orgu-
aprendizagem estão entre os grandes desafios para a educação lho nacional e a luta pela ideologia burguesa. (28) Podemos
médica. Heróis formam a imagem final que cada pessoa deve citar, como exemplos desse nacionalismo, a afirmação de que
se esforçar para tornar-se. (BRYAN e LONGO, 2013, p. 98) a descoberta da penicilina não caberia a Alexander Fleming,
(24) em 1928, mas, sim, a dois cientistas russos, Manassein e Po-
Já o ativismo social é estimulado pela História da lotebnov, em 1871, ou seja, 57 anos antes. Além disso, se-
Medicina quando permite que profissionais questionem o sta- gundo o entendimento da fonte, a anestesia e seus estudos fo-
tus quo do cenário atual, tendo o acesso aos serviços de saúde ram, sim, conduzidos de maneira séria, metódica e científica,
de forma difícil e demorada, mesmo que este seja um direito mas por estudiosos russos. E a insulina não foi descoberta em
do usuário. É a ênfase em melhorar a vida dos outros. E, mu- 1921 e, sim, em 1901, também por russos. Tampouco ficou
nindo o estudante de medicina com um olhar crítico, este restrito ao campo da medicina, uma vez que a invenção da
pode ser um promotor da mudança ou, ao menos, promover lâmpada partiu de um soviético. (28,29)
discussões neste sentido. (24)
Lerner (2000) explica que, muito embora médicos 5 CONCLUSÃO
que não tiveram contato com a História da Medicina não es- Muito embora existam discussões sobre a importân-
tejam fadados a repetir os erros do passado, estes não pos- cia do ensino da História da Medicina dentro da graduação, é
suem o conteúdo das lições informativas que a história pro- inegável o entendimento de que este tema proporciona, ao es-
porciona. A natureza mutável da medicina demonstra que, ao tudante, instrumentos para seu crescimento dentro do campo
longo dos anos, entendimentos vigentes do processo saúde e das humanidades médicas. Fato este de extrema importância,
doença podem mudar, tanto quanto as teorias e tratamentos, uma vez que as tecnologias atuais distanciam o médico da sua
e esta compreensão, a história proporciona. (26) Sobre os en- característica humanística, tão necessária para a compreensão
sinamentos que a História da Medicina proporcionam, Smith do paciente de forma ampliada. Quer seja dando-lhe um pen-
(1996) (27) refere que: samento crítico rico, quer seja dando subsídio a perfis profis-
Um homem sem um sentido da história pode ser sionais para direcionar o médico, ou como estratégia ideoló-
comparado a um viajante no espaço; suas reações estão aptas gica para mobilizar pessoas em prol de um ideal, a História
a tornar-se desproporcionais e distorcidas. O rebocador suave da Medicina apresenta seus valores, mostrando-se necessária
da história é tão necessário como o de gravidade para conter para afastar, o médico e o estudante, do tecnicismo puro e
o exagero e excesso. (SMITH, 1996, p. 530) (27) extremo.
A antiga União Soviética, na década de 50, já enten- Atualmente, a exigência por um perfil médico mais
dia o ensino de História da Medicina como uma ferramenta humanístico, em detrimento a um tecnicismo extremado, pro-
importante para fortalecer seu nacionalismo. Este era visto duz grandes reflexões sobre a desvalorização das humanida-
como uma das principais disciplinas ideológicas das ciências des médicas, uma vez que tais disciplinas podem construir o
médicas, e tais ensinamentos foram utilizados para manipular profissional desejado, dando-lhes o conhecimento humanís-
um país. Utilizando a justificativa da luta contra o cosmopo- tico para um cuidado de saúde digno. Portanto, urge o resgate
litismo, as faculdades passaram a lecionar a história da medi- do ensino da História da Medicina, dentro do currículo mé-
cina russa, exclusivamente. Esta objetivava reforçar os senti- dico, num momento em que há a necessidade de elevar a
chama da nobre e sagrada arte hipocrática.

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6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 14. Lacaz CS. Temas de Medicina. Biografias, Doenças
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35d749.pdf>. Acesso em 22 jan. 2019.

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Artigo Original
JEAN-ÉTIENNE ESQUIROL: A VIDA E A BATALHA DO ALIENISTA CONTRA O STATUS
QUO DA LOUCURA
2º lugar no "PRÊMIO CARLOS DA SILVA LACAZ" - 2019, de
Monografias sobre História da Medicina, para acadêmicos de medicina.

Matheus Machado Rech

Orientadora:
Profa. Dra. Maria Helena Itaqui Lopes
Instituição:
Universidade de Caxias do Sul (UCS) - RS

RESUMO A odisseia de horrores enfrentada pelos alienados ao longo da história percorre desde os primórdios da civilização até
os dias atuais. Entretanto, foi graças ao olhar racional da medicina que os alienados puderam gozar dos direitos básicos à dignidade
humana. Uma das peças-chave para esse processo foi a atuação de Jean-Étienne Esquirol, psiquiatra pioneiro nos mais variados
sentidos, seja pelo emprego da musicoterapia, das primeiras aulas de psiquiatria ministradas na história ou da atuação política. O
presente estudo recorda a vida e a importância de Esquirol para a compreensão da doença mental, constituindo um marco na história
da medicina, em especial na psiquiatria.
PALAVRAS-CHAVE: História da Psiquiatria; Esquirol
ABSTRACT
The odyssey of horrors faced by the mental illness all over the history comes from the beginnings of civilization to the current days.
However, it was due to the rational looking of medicine that the mental illness could joy of basic rights to the human dignity. One
of the key factors of this process was the acting of Jean-Étienne Esquirol, a pioneer psychiatrist in the most various ways: for the
use of music therapy, for the firsts psychiatrist classes in history or his political activity. The present study recalls the life and
importance of Esquirol for the understanding of mental illness, constituting a milestone in the history of medicine, especially in
psychiatry.
KEY-WORDS: History of Psychiatry; Esquirol

INTRODUÇÃO
Ao apreciarmos a obra-prima de Vincent Van Gogh,
"Noite Estrelada" (Figura 1), deparamo-nos com a visão da
janela do Hospício St. Paul de Mausole, em Saint Remy, no
interior francês. Nela experimentamos à primeira vista as
sensações de deslumbramento e melancolia que
acompanharam o artista ao longo de sua vida.
Inevitavelmente, ficamos frente a frente com a
paradoxalidade entre loucura e genialidade que há séculos
permeia a filosofia. Entretanto, foi um psiquiatra o homem a
diferenciar definitivamente a capacidade de cognição e
criatividade de transtornos alucinatórios e da vasta
miscelânea de transtornos mentais que sempre atormentaram
Figura 1: Noite Estrelada, Vincent Van Gogh (1889)
a humanidade. Esse foi Jean-Étienne Esquirol, psiquiatra Fonte: Google, acesso livre.
francês que protagonizou, junto com Philippe Pinel, a
Reforma Psiquiátrica que mudou o modo como o mundo

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loucos, pobres e delinquentes (FOUCAULT, 2005).
ocidental encarava os alienados. Suas conquistas e inovações O próprio Hospital Charenton, que seria
afetaram todo o cenário nosológico de sua época, tendo futuramente intimamente ligado ao nome de Esquirol e de seu
recebido distintas honrarias em seu país. tratamento extremamente humano, era local de prática de
Nesse sentido, o presente estudo tem por objetivo reconhecer desumanidades contra os loucos, como observa-se no trecho
o trabalho humano e revolucionário de Jean-Étienne Esquirol citado por Foucault: "o doente descia pelos corredores até o
enquanto psiquiatra e pessoa, historiando sua vida e térreo, e chegava numa sala quadrada, abobadada, na qual
ressaltando sua importância no cenário sócio-político que diz tinha se construído uma banheira; empurravam-no por trás
respeito aos alienados no mundo pós-revolução francesa. para jogá-lo na água". Essa conduta era como a promessa de
um novo batismo para os delinquentes (FOUCAULT, 2005).
METODOLOGIA Esquirol e Pinel deram um basta à odisseia desses infortúnios
Como metodologia foi realizada uma busca em que os alienados passaram ao longo dos séculos, trazendo a
livros e artigos indexados nas bases de dados SCieLO e loucura para o campo da medicina e criando então um modelo
PubMed, utilizando os termos "Esquirol", "História da de relação médico-paciente que reverbera até os dias atuais.
Psiquiatria" e "Lei de 30 de Junho de 1838".
A VIDA DO ALIENISTA
A LOUCURA ANTES DE ESQUIROL Jean-Étienne Dominique Esquirol (Figura 2)
Antes da revolução psiquiátrica empreendida por, nasceu em Toulouse, no sul da França, em 4 de Janeiro de
primeiramente, Philippe Pinel e, posteriormente, Jean- 1772. Seu pai trabalhava em uma instituição local na qual
Étienne Esquirol, a loucura, estereotipada por um viés doentes mentais, epiléticos e delinquentes eram postos juntos,
religioso, e a medicina, símbolo cada vez mais ascende do devido a uma convenção da época (MORA, 1972).
pensamento racional, encontravam-se em rotas paralelas, ao
longo da história. A última vez que a loucura e medicina
interligaram-se foi no período hipocrático, quando ainda
estava em voga a "teoria humoral”(MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2003), que deixou marcas no pensamento de Pinel
e Esquirol. Após esse período, na Idade Média, os loucos
passaram a ser vistos como seres repletos de vicissitudes e
pecado, sendo assim, marginalizados ou penalizados
injustamente por isso, juntamente com os leprosos e os
pobres.
No começo da Idade Moderna, chegaram a serem
criadas as "naus dos loucos", navios que percorriam a costa
europeia, em que os alienados eram alocados até serem
despachados em outro, e assim sucessivamente,
transformando o louco, nas palavras de Foucault (2005), em
um prisioneiro da passagem. Com o tempo essas medidas
foram desaparecendo e surgindo os hospitais gerais, uma Figura 2: Jean-Étienne Esquirol. Fonte: BLOM, Jan Dirk. A
Dictionary of Hallucinations. [S.l.]: Springer Science & Business
medida populista em que jogava-se para uma instituição a Media, 2009. 567 p. (5)
atenção dos marginalizados, sem distinção entre si, isto é,

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Esquirol, aos 17 anos de idade, ingressou - talvez por defendem que essas aulas podem ser considerada a pioneiras
influência do trabalho altruísta de seu pai - em um seminário. na história da psiquiatria (MORA, 1972).
Entretanto, sua formação sacerdotal foi interrompida pela A repercussão de sua primeira tese atraiu a atenção
Revolução Francesa, cujos acontecimentos decorrentes desta do governo francês, que, por intermédio do Ministro do
fecharam seu seminário em 1791 (FOUCAULT, 2005). Interior, solicitou a Esquirol um relatório sobre a situação dos
Voltou para Toulouse, e logo após decidiu iniciar sua alienados na França (ALBOU, 2012). Nos anos que se
formação médica na Faculdade de Montpellier. Em 1798, sucederam, Jean-Étienne Esquirol andou pela França
chegou a Paris onde começou a desenvolver interesse pela testemunhando a vasta desumanidade a que os alienados
ainda incipiente psiquiatria, principalmente ao entrar em estavam expostos, como vemos nos seguintes relatos de
contato com o famoso Hospital Salpêtrière. Lá tornou-se Esquirol:
amigo de célebres personalidades da época,como o Vi-os nus, cobertos de trapos, tendo apenas um
pouco de palha para abrigarem-se da fria
fisiologista Xavier Bichat e, mais importante, o homem que umidade do chão sobre o qual se estendiam. Vi-
viria a se tornar seu mestre, Philippe Pinel (ALBOU, 2012). os mal alimentados, sem ar para respirar, sem
água para matar a sede e sem as coisas mais
Em 1802, Esquirol fundou, com o apoio moral necessárias à vida. Vi-os entregues a verdadeiros
carcereiros, abandonados a sua brutal vigilância.
e financeiro de Pinel, uma instituição privada para o Vi-os em locais estreitos, sujos, infectos, sem ar,
tratamento de alienados, na Rua Buffon, a algumas quadras sem luz, fechados em antros onde se hesitaria em
fechar os animais ferozes, e que o luxo dos
do Salpêtrière (ALBOU, 2012). Três anos mais tarde -1805-, governos mantém com grandes despesas nas
capitais.(apud Foucault, 2005, página 56)
Jean-Étienne Esquirol publicou sua primeira tese intitulada As loucas acometidas por um acesso de raiva são
acorrentadas como cachorros à porta de suas
"Des passion sconsidérée scomme causes, symptômes et
celas e separadas das guardiãs e dos visitantes
moyens curatifs de laliénation mentale ", em que, partidário por um comprido corredor defendido por uma
grade de ferro; através dessa grade é que lhes
do pensamento de Pinel, colocou como enfoque do entregam comida e palha, sobre a qual dormem;
por meio de ancinhos, retira-se parte das
tratamento ao alienado as paixões e seu desequilíbrio. As
imundícies que as cercam. (apud Foucault, 2005,
paixões "desreguladas", das quais Esquirol faz menção, vão página 167)

desde vicissitudes, como o alcoolismo, até emoções básicas e


Embora a Reforma Psiquiátrica encabeçada por
problemas cotidianos, tais como medo, problemas
Pinel tenha encontrado solo fértil em Paris, o mesmo não
financeiros, conflitos entre os instintos e a moral religiosa
ocorreu pelo resto da França. Após constatar essa nefasta
(MORA, 1972). Ele, para tratar as enfermidades da mente,
realidade, Esquirol finalmente enviou seu relatório detalhado
era adepto do método pregado por Philippe Pinel, conhecido
ao Ministro do Interior, intitulado "Des Établissements des
pelo nome de tratamento moral, como nota-se na passagem
aliénésen France et des moyens damélior le sort de ces
de sua tese: "É preciso compreender que o que queremos
infortuinés" (Figura 3).
entender por tratamento moral é a aplicação das faculdades
da razão, das afecções morais ao tratamento da alienação
mental. Tudo o mais pertence à higiene moral ou aos
medicamentos". Por esse viés, o método mais efetivo para
proceder era individualizar o tratamento para cada paciente e
usar emoções sadias para reestabelecer a saúde psicológica
perdida pela influência de emoções deficitárias (MORA,
1972). Em 1811,tornou-se médico titular do Hospital
Figura 3: relatório de Esquirol apresentado ao Ministro do Interior
Salpêtrière e, no mesmo ano começou a ministrar um curso da França sobre "Os estabelecimentos dos alienados na França".
sobre doenças mentais, no próprio hospital. Autores Fonte: Esquirol, Étienne. Disponível em:

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https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb304070164. Acesso em: 9 jun. Província de Sena, onde tomou de novo a bandeira dos
2018
alienados e reforçou a sua luta pela aprovação do que viria a
Com cerca de 10 mil alienados em todo o país, o
ser a Lei de 30 de Junho de 1938, um marco na história
governo central mostrou-se consternado. Em seu relatório, o
mundial na luta pelos direitos dos alienados (ALBOU, 2012).
alienista requisitava a criação de asilos regionais com
Com ela foram dados passos largos em direção ao bem-estar
capacidade para no máximo 150 pacientes, e após dois anos
dos alienados, como a separação dos destes em instituições
serem encaminhados para instituições de cuidados
específicas para seu tratamento e a criação do conceito legal
permanentes. Isso, seria financiado pelos governos locais.
de "internação voluntária" (SWAIN, 1981). No mesmo ano
Além disso, recomendou condições ideais de arejamento e
da aprovação da lei pela qual lutou durante toda a vida, Jean-
espaço. Infelizmente, por questões políticas, a proposta não
Étienne Esquirol publicou sua obra capital: "Des maladies
vingou (ODA, 2004).
mentales considérées sous le rapport médical, hygiénique et
Desde 1817, Esquirol dava aulas formais de
médico-légal", que foi a primeira obra do campo da
psiquiatria no Maison de Charenton- hoje, Hospital Esquirol.
psiquiatria a apresentar uma cobertura completa dos
Em 1821, rumou para a vila Gheel (MORA, 1972), na
principais quadros clínicos, juntamente com explicações para
Bélgica, o que nos tempos medievos fora um local de reclusão
sua etiologia, sintomas e tratamento (PACHECO, 2013).
dos leprosos, há algumas gerações já era tida como referência
Jean-Étienne Dominique Esquirol morreu no dia 12
para a inclusão de alienados na sociedade, como conta Jouy:
de dezembro de 1840, em Paris, com 68 anos deidade
[...] quatro quintos dos habitantes são loucos,
mas loucos na completa acepção da palavra, e (ALBOU, 2012).
gozam sem inconvenientes da mesma liberdade
que os outros cidadãos... Alimentos sadios, ar
puro, todo o aparato da liberdade, tal é o regime CONTRIBUIÇÕES CLÍNICAS
que lhes é prescrito e ao qual a maioria deve, ao
fim de um ano, sua cura. (apud Foucault, 2005, Os trabalhos de Esquirol representaram avanços
página 373) gigantescos, tanto para a psiquiatria, quanto para a medicina
propriamente dita. Em sua primeira tese, publicada em 1805
Lá ele propôs a introdução de exames rotineiros nos
- "Des passions considérées comme causes, symptômes et
alienados de Gheel, feitos por médicos especializados
moyens curatifs de laliénation mentale" - ele defendia a ideia
(MORA, 1972).
proposta por seu mentor Pinel, que as doenças mentais teriam,
A competência e sensibilidade de Jean-Étienne
muitas vezes, uma origem não somente física, como moral
Esquirol possibilitaram-lhe galgar rapidamente posições de
(SWAIN, 1981). É notório essa parte de seu trabalho ao
respeito nas instituições em que trabalhava, a começar por sua
analisarmos umas de suas tabelas divididas em causas
nomeação a inspetor geral da faculdade do Salpêtrière e, dois
psicológicas e causas morais. (Figura 4)
anos depois, em 1825, largou este posto para virar
superintendente do Maison de Charenton, em decorrência do
falecimento de Royer de Callard (ALBOU, 2012). Com a
direção de Esquirol, Charenton - o qual era mantido pela
irmandade de São João de Deus - tornou-se modelo para a
época, por ser o lugar em que Esquirol conseguiu aplicar os
fundamentos que descreveu em seu relatório ao governo, anos
antes.
Um ano após sua nomeação para a direção do Figura 4: lista de causas das doenças mentais organizada por
Esquirol. Fonte: Albou P. Esquirol et la démence. Historie des
Charenton, foi eleito para o Conselho de Saúde Pública da Sciences Medicales. 2012, 45-53.

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No artigo "Da lipemania ou Melancolia", o célebre um doente mental sem total controle sobre seus atos e não um
alienista inovou mais uma vez ao criar um novo termo, criminoso cruel (SWAIN, 1981).
lipemania, por achar que melancolia não faz mais jus a seu
significado tradicional. Cria o neologismo do grego lupeo, CONCLUSÃO
tristitiam ínfero, anxium reddo (eu entristeço, eu atormento O papel de Esquirol foi fundamental para promover
alguém), e de mania, loucura. Nesse texto ainda vê-se os uma mudança de paradigma na psiquiatria da época,
relatos de vários casos que hoje em dia seriam sintomas de ampliando os efeitos do trabalho iniciado por Pinel, que teve
diagnósticos comuns, como transtorno do estresse pós- como frutos um tratamento humanizado à loucura e sua
traumático, transtorno obsessivo compulsivo e depressão. inclusão na esfera de ação da medicina. Graças aos dois
Explica também como alguns homens internados, que por sua alienistas a França, com a lei de 30 de junho de 1838, tornou-
vez dotados de grande inteligência, podem usá-la para tornar se modelo para todo o mundo ocidental com sua escola
seus próprios tormentos ainda mais complexos (ESQUIROL, psiquiátrica e legislação aos alienados, efetivando para essa
2003). população os direitos fundamentais almejados pela
Seu livro traz uma série de inovações. Foi o primeiro Revolução de 1789. Essa lei vigorou até a segunda metade do
a descrever a síndrome de Down, relatando que os pacientes século XX, demostrando o quão efetiva ela foi para sistema
tinham a pele numa textura "afarinhada" (BLOM, 2009). Este ao longo de todos aqueles anos. Sobretudo o trabalho clínico
livro também abre um dos maiores dilemas médico-jurídicos, de Esquirol, foi pioneiro com sua obra nosográfica, que até
ao isentar da totalidade da culpa do crime o alienado quando hoje serve, junto com a vida de seu autor, de marco temporal
este sofre de uma monomania homicida, sendo, por sua vez, para a história da medicina.

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Artigo Original
LEONARDO DA VINCI: ENTRE A ANATOMIA E A ARTE
LEONARDO DA VINCI: BETWEEN ANATOMY AND ART

3º lugar no "PRÊMIO CARLOS DA SILVA LACAZ" - 2019, de


Monografias sobre História da Medicina, para acadêmicos de medicina.

Joana Polesello
Cristian Pigato

Orientadora:
Profa. Dra. Maria Helena Itaqui Lopes
Instituição:
Universidade de Caxias do Sul (UCS) - RS

RESUMO
Leonardo da Vinci, além de pintor, escultor, músico, cientista, arquiteto, engenheiro e inventor, também atuou na medicina. Para
aprimorar sua anatomia com uma perspectiva artística, da Vinci usou do seu interesse em engenharia e aquilo que ele chamou de
“elementos das máquinas”, foi, na verdade, um esforço para entender o mecanismo do corpo. É importante ressaltar o fato de que
Leonardo não era formalmente um anatomista ou um físico. Entretanto, tal questão não o impediu de realizar inúmeras descobertas
originais, introduzindo métodos modernos de ilustração anatômica. Os detalhes, os cortes e os ângulos das figuras impressionam
pelo realismo e respeito pela proporcionalidade que existe no corpo humano. O presente artigo busca relacionar a arte de Leonardo
da Vinci com o seu trabalho e estudo anatômico, realizado com o auxílio de sua experiência em diversas áreas do conhecimento.
ABSTRACT
Leonardo da Vinci, as well as a painter, sculptor, musician, scientist, architect, engineer and inventor, also acted in medicine. To
enhance his anatomy with an artistic perspective, da Vinci used his interest in engineering and what he called "machine elements,"
was in fact an effort to understand the mechanism of the body. It is important to note the fact that Leonardo was not formally an
anatomist or a physicist. However, this question did not prevent him from making innumerable original discoveries, introducing
modern methods of anatomical illustration. The details, the cuts and the angles of the figures impress by the realism and respect for
proportionality that exists in the human body. This article seeks to relate the art of Leonardo da Vinci with his work and anatomical
study, carried out with the aid of his experience in several areas of knowledge.
Palavras-chave: Leonardo da Vinci; anatomia; da Vinci; história da anatomia.
Keywords: Leonardo da Vinci; anatomy; da Vinci; history of anatomy.

1. INTRODUÇÃO Leonardo da Vinci faleceu no Castelo de Cloux, Amboise,


Leonardo da Vinci (1452-1519) nasceu na pequena França, no dia 2 de maio de 1519, ao sofrer um derrame
aldeia de Vinci, perto de Florença, Itália, no dia 15 de abril de cerebral. Foi sepultado no convento da Igreja de Saint
1452, como filho ilegítimo de um notário, Piero da Vinci, e Florentin, em Amboise (FRAZÃO, 2019).
de uma camponesa, Caterina. Leonardo da Vinci Da Vinci estudou a anatomia humana seguindo
possivelmente iniciou seus estudos de anatomia em Florença, algumas abordagens comuns na época: descrevê-la através da
por volta de 1480. Em 1482 Da Vinci transferiu-se para Milão observação, da literatura que tinha contato, da anatomia
e ofereceu seus serviços a Ludovico Sforza, o Duque de comparada com outros seres e de forma imaginativa (além de
Milão. Começou então a aplicar seu desenho aos estudos de sua visualização mecanicista).
anatomia buscando conhecê-la tendo em vista a representação
dos movimentos corporais que, por sua vez, expressavam os 2. OBJETIVO
“movimentos do ânimo” das figuras (KICKHÖFEL, 2011). Através de uma revisão bibliográfica, objetivou-se

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levantar informações e estudos acerca das importantes conhecimento da fisiologia), passando a dissecar animais já
descobertas anatômicas realizadas pelo italiano Leonardo da mortos como porcos, bois, macacos e cães.
Vinci. Leonardo mostrou um amplo interesse em muitas
áreas da anatomia. Ele desenhou uma figura de situs (um
3. METODOLOGIA diagrama anatômico) com órgãos internos, incluindo o
O trabalho foi baseado na pesquisa de materiais em chamado “local espiritual”, que dividia os “espíritos vitais”
sites indexados e bases de dados como SciELO, PubMed e no coração e pulmões dos “espíritos naturais” no fígado.
Google Acadêmico. Leonardo acreditava que quando o ar era inspirado nos
pulmões, ele entrava na veia pulmonar e no ventrículo
4. LEONARDO DA VINCI: ENTRE A ARTE E A esquerdo do coração, onde o calor inato produzia um espírito
ANATOMIA vital que era exportado através do sangue arterial. Parte desse
4.1. Estudos anatômicos de Leonardo da Vinci espírito vital entrava no cérebro através da “rete mirabile”
Cerca de 20 anos após a morte de Leonardo, o (“rede de maravilha”), uma coleção de vasos sanguíneos que
escultor italiano Pompeo Leoni adquiriu diversos têm a finalidade de reter calor, íons ou gases em certas áreas
manuscritos e fólios soltos, desmontando-os e organizando- ou tecidos do corpo que agora reconhecemos em ungulados,
os em dois grandes volumes. O primeiro contendo também mamíferos, mas não em seres humanos.
principalmente estudos de máquinas e o segundo, “Disegni di Suas anotações remanescentes são em grande parte
Leonardo da Vinci restaurati da Pompeo Leoni”, abrangendo fora de ordem, e estão escritas em seu roteiro característico e
a principal coleção de desenhos de Leonardo da Vinci, invertido de "escrita em espelho" (da esquerda para a direita)
contendo 18 páginas frente e verso, incluindo praticamente e ortografia peculiar (CHASTEL, 1987). Porém, são de
todos os estudos de anatomia, estando hoje na biblioteca do extrema importância no sentido de que completam as
Castelo de Windsor (KICKHÖFEL, 2011). O fato de imagens ao passar noções que não eram ilustráveis.
Leonardo nunca ter publicado seus desenhos anatômicos
durante a sua vida continua sendo uma grande privação para 4.2. Contribuições anatômicas de Leonardo da Vinci
o campo da anatomia humana e para a ciência em geral. A produção anatômica de da Vinci divide-se em duas
Embora fosse fundamentalmente um artista, ele partes: de 1487 a 1493, quando, em Florença e em Milão,
considerava a anatomia como sendo algo mais que simples estudou o crânio e os olhos (com enfoque nos ventrículos
coadjuvante da arte. Essa atitude o levou a prosseguir com cerebrais e aos pares cranianos) e, posteriormente, de 1506 a
seus estudos, de tal maneira que seus conhecimentos 1519 quando, na França, dedicou seus estudos a outros
anatômicos ultrapassaram aqueles que seriam suficientes para órgãos, utilizando-se de uma visão mecânica e com foco na
desempenhar sua arte. Da Vinci aborda o corpo não apenas fisiologia humana, iniciando uma nova metodologia de
como um anatomista, mas também como um arquiteto investigação, registrando o que via, e depois, a função da
interessado em estrutura e proporção. Os desenhos de crânios estrutura. Grande ênfase deve ser dada a sua notável
com foco na proporção matemática, por exemplo, são descrição da abordagem anatômica utilizada, trabalhando à
paralelos a uma série de esboços de desenhos centralizados noite com cadáveres esquartejados, esfolados e horríveis de
para igrejas, incluindo o plano de Leonardo para o zimbório serem vistos, sendo imprescindível ter habilidades de
(parte externa e superior da cúpula) da Catedral de Milão. desenho, perspectiva e métodos de demonstração geométrica,
Para realizar seus estudos, Leonardo passou a se bem como paciência e perseverança.
negar a matar animais por vivissecção (mesmo sabendo que A pesquisa pioneira de Leonardo sobre o cérebro
a experimentação de criaturas vivas poderia avançar em seu levou-o a descobertas em neuroanatomia, como as do seio

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frontal e vasos meníngeos (figura 1(a) e (b)), e Em seguida, Leonardo passou diversos anos
neurofisiologia, pelo fato dele ter sido o primeiro a realizar afastado da anatomia, retomando seus estudos por volta de
experiências neurológicas com um sapo, concluindo que 1505, período no qual dedicou-se principalmente ao
perfurar a medula espinhal causa morte imediata. Sua injeção conhecimento do coração e de órgãos internos, como a
de cera quente no cérebro de um boi forneceu um molde dos placenta e, assim, o feto. Leonardo debruçou-se de tais
ventrículos e representa o primeiro uso conhecido de um meio estudos até 1519, ano no qual veio a falecer. O marco de sua
solidificante para definir a forma e o tamanho de uma volta à anatomia é a dissecação de um homem centenário,
estrutura interna do corpo. Ademais, foi o primeiro a realizada por Leonardo em Florença no inverno de 1507 para
identificar o nervo olfatório como um par craniano e rotulou 1508, que resultou em diversas descobertas, como, por
a coluna vertebral de virtu gienjtiua (poder gerativo) de tais exemplo, a primeira descrição da condição patológica que
nervos (PEVSNER, 2019). Baseando sua figura em leituras hoje se chama arteriosclerose (KICKHÖFEL, 2011).
ao invés da observação direta, mostrou que o globo ocular Grande parte da discussão de Leonardo é dedicada
inclui uma lente redonda e duas camadas de membranas ao tema da função das aurículas (ou ventrículos superiores,
circunvizinhas com uma pequena ruptura na pupila, fazendo hoje chamados átrios) recém-descobertas. De acordo com da
um modelo imaginativo de vidro como um olho artificial Vinci, a finalidade destas seria a contração, através da qual o
(com córnea, lente e humor aquoso). sangue seria jogado nos ventrículos inferiores, os quais
sofreriam uma dilatação e em seguida uma contração,
jogando o sangue de volta para as aurículas. Desta forma, o
sangue seria friccionado e aquecido antes de sua distribuição
através dos vasos, artérias e veias, para os órgãos e tecidos do
corpo.
O pioneirismo de Leonardo está na sua
contrariedade ao pensamento de Galeno e seus sucessores:
estes consideravam o coração como um tecido especial,
enquanto da Vinci chegou à conclusão de que tal órgão é, na
verdade, um músculo nutrido por artéria e veia (coronárias)
que saem da artéria Aorta (figura 2) (KEELE, 1951).
Ademais, em 1513, descreveu a persistência do Forame Oval
(um forame de comunicação do átrio direito e esquerdo
essencial para a circulação fetal). Relatou também os seios
aórticos (chamados posteriormente de Seios de Valsalva)
(ROBICSEK, 1991), responsáveis pelo enchimento das

Figura 1(a) - Leonardo da Vinci “Drawing of a human skull” (Windsor


artérias coronárias, importantes para a o suprimento de
Castle, RL 19058 recto, c.1489): primeiras representações precisas das oxigênio para a musculatura cardíaca. Fisiologicamente
artérias meníngeas anterior e média e anterior, média e posterior das fossas descreveu o tempo e o mecanismo dos batimentos cardíacos.
cranianas.
Figura 1(b) - Leonardo da Vinci “Two drawings of skulls” (Windsor Castle,
RL 19057 recto, c. 1489): Sua inclusão do seio frontal representa uma
descoberta original.
Fonte: The Royal Collection 2001, Her Majesty Queen Elizabeth II

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sua região inguinal esquerda, o que corresponde à
manifestação clássica de uma hérnia inguinal.

Figura 2 Leonardo da Vinci. “The heart and coronary


vessels” Fonte: Google acesso livre

4.3.O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci


O ponto de partida dos estudos anatômicos de da
Vinci foram os escritos do arquiteto e engenheiro militar
Marco Vitrúvius, o qual estabelecera no século I antes de
Figura 3 Leonardo da Vinci. “Vitruvian Man” Gallerie
dell’Accademia, Venice Fonte: Google acesso livre
Cristo o princípio que relacionava a proporção arquitetônica
com as do homem de boa formação, afirmando que um
4.4. Equívocos anatômicos de da Vinci
homem com as pernas e braços abertos caberia perfeitamente
Em relação ao sistema muscular, da Vinci acreditava
dentro de um quadrado e de um círculo, figuras geométricas
que o diafragma e os músculos da parede abdominal eram as
perfeitas, e que o centro do corpo é o umbigo. Da Vinci, então,
estruturas que controlavam o movimento do intestino. Além
desenhou as dimensões do homem no universo, representado
disso, muitos de seus desenhos referentes aos músculos
pelo círculo, e a obra tornou-se o mais famoso desenho de
faciais estavam incorretos.
proporções do corpo humano no mundo: “O Homem
Sobre o sistema nervoso, o plexo braquial (figura 4)
Vitruviano” (figura 3), considerado um exemplo supremo da
é mostrado em alguns desenhos como não tendo a
sinergia entre arte e ciência. Assim, da Vinci definia que o
contribuição do primeiro nervo espinhal torácico, os
centro do corpo humano é a sínfise pubiana e não o umbigo
ventrículos do cérebro estavam imprecisamente desenhados e
(GOMES; SANTOS; FILADELPHO; ZAPPA, 2009).
a representação das vértebras incluía erroneamente um par de
Embora o Homem Vitruviano seja considerado a perfeita
nervos. Além disso, com base em seus experimentos em
representação anatômica de um homem, isso nunca foi
sapos, Da Vinci acreditava que o centro da vida e dos
diretamente estipulado, ainda mais levando-se em conta o
fato de que há uma plenitude esférica representada acima da

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movimentos estavam localizados na medula espinhal. sabe que ela está presente apenas no ventrículo direito).
Ainda, ele descreveu quatro artérias umbilicais quando há
apenas duas.
Sobre os órgãos, o baço é mostrado como recebendo
uma artéria do fígado, a cavidade pulmonar externa descrita
como contendo ar, a vesícula seminal é desenhada muito
lateralmente à bexiga e o pênis é ilustrado como possuindo
duas passagens: uma para espíritos animais e outra para a
emissão de urina. Além disso, Da Vinci acreditava, como era
comum em seu tempo, que o sêmen era produzido pela
medula espinhal (TUBBS et al., 2017).

5. CONCLUSÃO
Concluindo, Leonardo da Vinci (1452–1519) é um
dos grandes talentos contribuintes da história da anatomia e,
por extensão, do estudo da medicina. Era dotado da arte de
observar e desenhar como poucos. Ele possuía os

Figura 4 Leonardo da Vinci. “Sketch of the brachial instrumentos diversos dos anatomistas de sua época e,
plexus.” Fonte: Google acesso livre efetivamente, concebeu sua ciência anatômica
(fundamentada em seus desenhos e cujos resultados
Com relação ao sistema cardiovascular, Leonardo
expressavam concepções da filosofia natural da época) de
acreditava na ocorrência de uma “combustão cardíaca”,
modo diverso da ciência dos anatomistas de seu período: a
confirmava a existência de um “rete mirabile” em seres
ciência dele era uma disposição de produzir para demonstrar.
humanos, o fato de que, em seus desenhos, a veia testicular
Conciliando ciência e arte, foi somente Da Vinci quem
direita desembocava muito alta na veia cava inferior, a
promoveu um estudo do corpo humano com perfeição. Seu
existência do transporte unidirecional do sangue
trabalho esse que transcendeu as necessidades do artista e
(ROBICSEK, 1991) e a representação do coração contendo
mergulhou na busca científica da anatomia, referências de
bandas moderadoras nos lados esquerdo e direito (hoje se
beleza e inspiração até os dias atuais.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 5) KICKHÖFEL, Eduardo Henrique Peiruque. A ciên-


cia visual de Leonardo da Vinci: notas para uma in-
1) CHASTEL, A. Luigi D’aragona. Un cardinale del
terpretação de seus estudos anatômicos. Scientiæ
Rinascimento in viaggio per l’Europa. Bari: Laterza
Zudia, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 319-55, 2011.
& Figli, 1987.
6) PEVSNER, Jonathan PhD. Leonardo da Vinci’s
2) FRAZÃO, Dilva. Leonardo da Vinci. Disponível
studies of the brain. Lancet, v. 393, p. 1465–72, 06
em: https://www.ebiografia.com/leonardo_vinci/,
abr. 2019.
Acesso em: 06 jun. 2019.
7) ROBICSEK, Francis M.D. Leonardo da Vinci and
3) GOMES, Ivy Tasso; SANTOS, Mariana Soares Pe-
the Sinuses of Valsalva. The Society of Thoracic
reira dos; FILADELPHO, André Luís; ZAPPA, Va-
Surgeons, 52, p. 328-35, 1991.
nessa. Leonardo da Vinci, o “Homem Vitruviano” e
8) TUBBS, Richard Isaiah et al. The influence of an-
a Anatomia. Revista Científica Eletrônica de Medi-
cient Greek thought on fifteenth century anatomy:
cina Veterinária, Ano VII, n. 13, jul. 2009.
Galenic influence and Leonardo da Vinci. Childs
4) KEELE, Kenneth David M.D., M.R.C:P. Leonardo
Nerv Syst, 29 mai. 2017.
da Vinci, and the Movement of the Heart. Section of
the History of Medicine, p. 209-13, 3 jan. 1951.

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Artigo Original
O IMPACTO MUNDIAL DE UMA INVENÇÃO BRASILEIRA NO DI-
AGNÓSTICO DA TUBERCULOSE
Breno Victor Brandão Almeida
Orientador
Prof. Dr. Lybio José Martire Júnior
Instituição
Faculdade de Medicina de Itajubá-MG
RESUMO
A tuberculose, doença infectocontagiosa de grande prevalência em todo o mundo, acompanha a humanidade desde os
seus primórdios. A grande consumpção causada pela doença, associada a significativa morbimortalidade decorrente
do processo infeccioso sempre permearam o pensamento da classe médica ao longo da história. Manoel Dias de Abreu,
exímio pneumologista brasileiro, idealizou a abreugrafia, método radiográfico para diagnosticar focos inaparentes de
tuberculose pulmonar e permitir uma intervenção precoce em indivíduos assintomáticos. O método teve grande im-
pacto na propedêutica pulmonar do século passado e disseminou-se por todo o mundo, tendo em vista sua expressiva
custo- efetividade na época.
Palavras-chave: Abreugrafia; Tuberculose; História da Medicina.
ABSTRACT
The tuberculosis, a highly prevalent infectious disease worldwide, has been with humanity since its beginnings. The
high consumption caused by the disease, associated with significant morbidity and mortality resulting from the infec-
tion have always permeated the thinking of the medical class throughout history. Manoel Dias de Abreu, a distin-
guished Brazilian pulmonologist, developed the abreugraphy, a radiographic method for diagnosing inapparent foci
of pulmonary tuberculosis allowing early clinical intervention in asymptomatic individuals. The method had a great
impact on the pulmonary propaedeutics in the last century and spread worldwide, given its significant cost-effective-
ness at the time.
Keywords: Mass Chest X-Ray; Tuberculosis; History of Medicine.

INTRODUÇÃO que traz consumpção) com base no grande esgota-


mento físico causado pela doença3. Ao longo dos
Ao longo dos tempos, a tuberculose se firmou anos, reafirmou-se através dos séculos como epidemia
como elemento inscrito de maneira intrínseca e indis- ameaçadora às sociedades em todo o mundo, adqui-
sociável no clássico binômio indivíduo-sociedade. Ao rindo um significativo valor epistemológico que ainda
mesmo tempo em que alastrou consequências físicas e ecoa no imaginário social nos dias de hoje.
psíquicas nos doentes, exerceu durante séculos pressão A tuberculose e suas vítimas tornaram-se ob-
imensurável no meio social ao constituir-se como jetos exaustivamente vistoriados pela medicina, prin-
substrato para um número colossal de mortes no de- cipalmente a partir do século XIX. De modo seme-
correr da história. lhante ao que ocorreu durante a Revolução Industrial
Sob a égide das evidências históricas e arque- europeia, a epidemia fez-se presente na maioria das ci-
ológicas, constata-se que os primeiros casos do aco- dades brasileiras do século XX e, por estar relacionada
metimento humano pela “peste branca”, tenham ocor- de maneira íntima ao grande aglomerado de pessoas,
rido há mais de 5000 anos a.C., ao se verificar gibosi- muitas vezes em moradias insalubres, foi denominada
dade e anormalidades vertebrais atribuídas ao Mal de
Pott em múmias egípcias, além de tecidos contendo o “a praga dos pobres”4. O estigma social causado pela
DNA do bacilo de Koch (Mycobacterium tuberculo- doença passou a tomar forma mais robusta, uma vez
que as práticas sanitárias que visavam o controle da
sis)1.A partir do momento em que as tribos antigas di- enfermidade na época tinham como foco o estímulo à
minuíram seu caráter nômade e instituíram aglomera- criação de sanatórios e dispensários. Enquanto os dis-
dos populacionais em forma de aldeias e vilas, a tuber- pensários incumbiam-se de prover serviços de enfer-
culose passou a assolar de maneira mais intensa e fre- magem, exames diagnósticos e encaminhamento para
quente os povos antigos, tendo em vista a sua forma de consultas médicas, os sanatórios (que perduraram até
contágio por via aérea e constituiu-se, cada vez mais, os anos 60) abrigavam internos que eram submetidos
entidade nosológica facilmente identificável nas suas a um rígido esquema disciplinar, repouso, higiene, ali-
formas avançadas2. Em civilizações antigas, era en- mentação e exposição ao “ar puro”5. A convicção de
tendida como fruto da concepção de um castigo divino uma morte lenta e isolada ou da possibilidade da reati-
e coube ao pai da medicina, Hipócrates (460 a.C. – 377 vação do processo infeccioso mesmo após a rara alta
a.C.), o entendimento da tuberculose como uma do- médica permeava o pensamento da maior parte dos
ença ao denominá-la “tísica” (do grego phthisikos –

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acometidos pela infecção, uma vez que ainda não ha- procurou explicar os vários quadros radiológicos do
via um tratamento realmente eficaz para a doença. tórax. Desenvolveu diversos estudos na área da radio-
Um brasileiro, entretanto, contribuiu signifi- logia, sendo mundialmente impactante a publicação de
cativamente para mudar esse dramático panorama, seu livro “Radiodiagnóstico na Tuberculose Pleuro-
pelo menos no tangível à propagação da doença. Pulmonar”, em 19188.
O médico brasileiro Manoel Dias de Abreu Em 1922, retornou ao Brasil e começou a
(1891-1962), nasceu na cidade de São Paulo, terceiro atuar na Inspetoria de Profilaxia da Tuberculose, no
filho de um português rico, concessionário das Lote- Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, o aperfei-
rias Estadual e Federal, e de mãe brasileira, paulista çoamento dos Raios X, descobertos pelo físico alemão
deSorocaba, de família de classe média. Frequentou os
melhores colégios paulistanos, a Escola Americana e Wilhelm Conrad Röntgen em 18959, continuou a ins-
o Colégio Hydecroft, além de ter recebido forte emba- tigar intensamente o interesse do brasileiro, que se
samento em ciências humanísticas pelo período de 2 propôs a pesquisar um método mais prático e custo-
anos na Europa com preceptores estrangeiros. Voltou efetivo no diagnóstico da tuberculose, pois, conforme
ao Brasil em 1908 e matriculou-se na Faculdade de afirmou em um de seus trabalhos: “Havia óbitos, não
Medicina do Rio de Janeiro, diplomando-se aos 21 havia doentes, os quais ocultavam seu diagnóstico na
anos de idade, após defender a tese “Natureza Pobre” espessa massa da população; os poucos doentes mani-
(Higiene Social), obra que já refletia a sua forte preo- festos, procuravam o dispensário na fase final da do-
cupação com o aspecto social da atividade médica. ença, quando o tratamento, o isolamento, e as várias
Após concluir o curso em 1913, foi à Europa, a fim de medidas profiláticas já eram inúteis”10.
aperfeiçoar-se nos hospitais de Paris. Em 1936, nasce então, após mais de uma dé-
cada de pesquisas e testes radiológicos, a roentgenfo-
tografia, novo método para diagnóstico precoce da tu-
berculose pulmonar11. A partir de desenhos do pró-
prio Manoel de Abreu, engenheiros da Casa Lohner no
Rio de Janeiro construíram os primeiros aparelhos,
ainda que céticos sobre a sua provável eficácia. O mé-
todo era muito sensível, com especificidade razoável e
consistia em combinar as técnicas da radiologia e da
fotografia a partir de um aparelho emissor de raios X
que sensibilizava uma tela que se tornava fluorescente
e produzia uma imagem visível a olho nu prontamente
captada por uma câmera fotográfica. O registro era
feito em filmes de 35 milímetros, contrapondo sobre-
maneira em tamanho e preço os filmes utilizados nas
radiografias convencionais da época12.

Figura 1. Manoel Dias de Abreu em Paris (1915).

Por ocasião da Primeira Grande Guerra


Mundial, viu-se obrigado a permanecer em Lisboa até
1915, ano em que conseguiu desembarcar na capital
francesa6. Seu primeiro contato com a medicina de Pa-
ris foi no Nouvel Hôpital de la Pitié, no serviço do pro-
fessor Gaston Lion. Encarregado de fotografar peças
cirúrgicas, Abreu demonstrou engenhosidade e cons-
truiu um dispositivo especial para fotografar a mucosa
gástrica7. Conquistou posição de relevo no maior cen-
tro de cultura médica francês da época e foi convidado,
em 1916 a dirigir o Laboratório Central de Radiologia
do Hôtel Dieu, pois apesar de ser muito jovem e ainda
que não fosse francês, obtinha grandes resultados em
seus diagnósticos precoces. Entre 1917 e 1918, passou
a frequentar o Hôpital Laennec, centro da medicina es-
pecializada do tórax, com grande tradição na capital
francesa. Figura 2. Aparelho de abreugrafia do Posto 3, Rua do
Com o rico material do Hôpital Laennec e de Resende. Dr. Abreu, um jornalista, um técnico e o Dr. Paulo
outros serviços, além da formação de imagens, Abreu Côrtes.

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Foi somente em 1939 que o método diagnós- método revolucionário na prática clínica para a prope-
tico concebido por Manoel de Abreu ganhou o nome dêutica pulmonar. Pouco tempo depois da criação do
oficial de abreugrafia, em decisão unânime dos parti- primeiro aparelho, Argentina, Chile, Venezuela, Uru-
cipantes do I Congresso Nacional de Tuberculose guai e, mais tarde, quase todos os países do mundo
como forma de homenageá-lo, mas essa denominação adotaram o novo método, dando assim a prova insofis-
inicialmente ficou restrita à América do Sul, pois o mável da eficiência do descobrimento de focos inapa-
nome do invento era variável de acordo com o país de rentes de tuberculose, permitindo o tratamento precoce
aplicação do método: Mass-radiography (Estados Uni- – a doença não podia mais se esconder13.
dos da América), Radiofotografia (França),
Röntgenfluorografia (Alemanha). Entretanto,
após reunião da Subcomissão de Radiologia e dos Exa-
mes Sistemáticos da União Internacional contra a Tu-
berculose, em Paris, em 1945, definiu-se como única
denominação universalmente aceita “Abreugrafia”, re-
sultante da sinonímia e como homenagem ao genial in-
ventor brasileiro6.

Figura 3. Londres, Equipe de abreugrafia em funcionamento:


a partir da esquerda, examinada saindo, técnica colocando
paciente em posição na estativa, fila de candidatos a exame; Figura 5. Abreu e Paulo Pamplona. Cadastro Torácico de
no fundo, técnica manipulando a mesa de Raios X. Los Angeles. P. Pamplona, médico brasileiro, dirigia o ca-
dastro em Los Angeles.

Figura 4 – Registro abreugráfico

O advento da abreugrafia marcou uma época


de revolução no diagnóstico precoce das doenças do
tórax, com ênfase na tuberculose e no câncer de pul- Figura 6. 1º Congresso Internacional do American College
mão. Através do método era possível realizar uma of Chest Physicians, em Roma, 1950. Abreu, Sayé, Fleming
grande triagem populacional notadamente custo-efe- e senhoras Abreu e Sayé, sentados.
tiva. O que hoje seria apreciado como um quasímodo
tecnológico, foi difundindo por todo o mundo como

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Só na Alemanha, depois da invenção da abreugrafia, rastreamento dos infectados pelo bacilo de Koch.
cerca de 10 milhões de alemães foram examinados Vários dispositivos legais, passaram então, a
entre 1939 e 1944, conforme relatório apresentado suspender a obrigatoriedade da realização da
pelo médico R. Griensbac no 3º Congresso abreugrafia em indivíduos assintomáticos, tendo em
Internacional de Fotofluorografia, em Estocolmo na vista os riscos da utilização da radiação ionizante19.
Suécia, em agosto de 195814.
Mas não foi apenas a esfera social civil que se
valeu do método. Haygood e Briggs, em 1992, repor-
taram que a técnica desenvolvida por Abreu permitiu
uma triagem radiográfica em massa dos soldados con-
duzidos à Segunda Grande Guerra Mundial, em detri-
mento do sólito exame clínico realizado nos militares
da Primeira Grande Guerra Mundial15. Outro método
importante desenvolvido pelo brasileiro, em 1944,
consistiu na pesquisa do bacilo de Koch no lavado tra-
queobroncoalveolar, o que contribuiu para identifica-
ção do mesmo em lesões suspeitas e negativas para
pesquisa do escarro, tendo como objetivo diminuir a
frequente discordância entre a radiologia e a bacterio-
logia16.
A divulgação dos estudos desenvolvidos por
Manoel de Abreu em periódicos, congressos e confe-
rências médicas internacionais despertou entusiasmo,
esperança e confiança nos especialistas em doenças de
tórax e sanitaristas. Seu invento marcava o fim da
época em que não era possível detectar as doenças de
tórax em sua fase precoce em toda a esfera social.
Abreu pensou e resolveu um problema da humanidade,
uma vez que a tuberculose não era uma doença locali-
zada geograficamente ou circunscrita a determinada
região, e seu combate, pela inspeção radiográfica em
massa, constituía uma preocupação geral da medicina
daquele tempo. O objetivo principal da radiografia em Figura 7. Boletim da Sociedade Brasileira de Tuberculose.
massa era a descoberta de focos inaparentes de tuber- Posto de Abreugrafia, no Saguão da E. F. Central do Brasil..
culose pulmonar, não somente nos grupos da popula- Na gravura aparecem o Dr. Manoel de Abreu, o Ministro
Ataulfo Paiva e o prefeito Dr. João Carlos Vital sendo
ção de idade e profissão mais vulneráveis, mas tam-
abreugrafado.
bém entre os que eram mais prováveis de disseminar a
infecção com base na profissão que exerciam. Relaci-
O tratamento da tuberculose, até a década de 1940, res-
onava-se tanto com a medicina clínica quanto com a
tringia-se basicamente a repouso e boa alimentação
preventiva.
nos sanatórios. A ressecção de segmentos pulmonares
Nos anos 60 e 70 do século XX, a abreugrafia
e a criação de um pneumotórax artificial através da
era exigida como documento para a realização de ma-
injeção de ar no espaço pleural consistiam em opções
trículas de crianças em escolas, emissão de carteiras de
disponíveis e mais agressivas, porém pouco efetivas.
trabalho e admissão em novos empregos. Após obter o
O cenário prognóstico do doente começou a mudar
registro abreugráfico e comprar um selo médico nas
após a descoberta da estreptomicina em 1944 e a des-
bancas de jornal era possível obter a apreciação favo-
crição da isoniazida como droga com ação antituber-
rável de um médico emissor do atestado de saúde do
culínica em 1945. O esquema tríplice foi adotado a
indivíduo17. A exigência baseava-se na intenção de partir dos anos 60, em contrapartida ao aumento da
diagnosticar precocemente os focos de tuberculose la- mortalidade e da resistência do bacilo e consistia na
tente e em diminuir a transmissão da doença, além de administração de isoniazida, estreptomicina e pirazi-
garantir ao indivíduo uma maneira de provar que es- namida, apresentando eficácia notadamente superior
tava sadio do ponto de vista pulmonar. O método
ao esquema duplo20.
abreugráfico difundiu-se nas principais cidades do
Fato é que, a abreugrafia consagrou-se como método
Brasil, de modo que inúmeras clínicas radiológicas
pioneiro na identificação dos focos clinicamente ina-
particulares passaram a oferecer o serviço18. parentes de tuberculose pulmonar e na prevenção da
No final da década de 1970, por determinação disseminação da doença em nível mundial. A expres-
do Programa Nacional de Controle da Tuberculose, a siva custo- efetividade do método constituiu-se como
abreugrafia foi substituída pela realização sistemática sua maior alavanca para aceitação pelas diversas na-
da baciloscopia em sintomáticos respiratórios, exame ções que o utilizaram. Abreu, mais do que ter se con-
operacionalmente mais efetivo e de menor custo para

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sagrado como exímio pneumologista e tisiologista res- ao cientista não importava o merecimento de ser bom,
peitado em todo o mundo, permitiu à radiologia brasi- bastava acreditar e exercer o poder demiúrgico da ci-
leira, por ter criado o método, instalado o primeiro ência em sua plenitude.
posto de cadastro torácico e publicado a fundamenta-
ção teórica através dos estudos desenvolvidos para
perspicazmente convencer o mundo de sua eficácia,
obter protagonismo inquestionável na direção de um
dos maiores movimentos no domínio da medicina so-
cial da época.
Manoel de Abreu teve a honra de receber, em vida, a
consagração mundial pela sua obra. Seu talento multi-
forme, sua cultura humanística, sua atividade de poeta,
ensaísta, filósofo e cientista facilitaram grandemente
sua carreira de médico, na qual manifestou sua capaci-
dade criadora6. O impacto mundial de seu trabalho
foi tão grande na prevenção da disseminação da tuber-
culose que, além de ter sido intensamente homenage-
ado nacional e internacionalmente, recebeu quatro in-
dicações em 1946, uma em 1951 e uma em 1953 para
o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, pela intro-
dução da abreugrafia, embora nunca tenha sido laure-
ado21. Publicou livros de poesias ilustrados por ele Figura 8. Abreu recebendo do Marechal Dutra, Presidente da
próprio e outros por Di Cavalcanti. Por ironia , uma República, o Livro do Mérito (de cabeça pra baixo).
vez que era um ávido pneumologista, faleceu devido a
um câncer de pulmão em 1962 – era um tabagista in- “No valor da ciência, está o valor da vida; fora da vida,
a ciência não tem a menor finalidade” – Manoel Dias
veterado22. O impacto gerado por suas invenções es- de Abreu.
tendeu-se além das expectativas do inventor. Todavia,

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Histórias Protagonizadas - Relatos

A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A NEUROCIRURGIA BRASILEIRA


Um depoimento pessoal

Mario Brock
Nascido em 9 de outubro de 1938 no Rio de Janeiro, Brasil)
é um neurocirurgião cidadania alemã e brasileira e
trabalha na Alemanha como neurocirurgião desde 1966

A segunda Guerra mundial teve inı́cio às 04:45 ser novamente a capital da Alemanha reunificada em 3 de
horas do dia 1° de setembro de 1939 com o bombardeio outubro de 1990 (ver abaixo) por decisão do Parlamento
da Westerplatte, uma peı́nsula situada frente à cidade alemão em 20 de junho de 1990.
polonesa de Gdansk, pela fragata alemã Schleswig
Holstein e terminou com a assinatura da rendicã o Em 7 de outubro de 1949 a metade comunista da
incondicional da Alemanha em 8 de maio de 1945. Alemnha foi transformada em Repú blica Democrática da
Alemanha (Deutsche Demokratische Republik, DDR),
O total de vı́timas desta Guerra, que foi a maior da tendo por capital o antigo setor russo de Berlim. Com a
histó ria da humanidade, é avaliado em entre 60.000.000 reunificaçã o da Alemanha em 3 de outubro de 1990, a
e 80.000.000, dos quais 6.000.000 judeus. Ela alterou DDR deixou de existir, sendo incorporada na Repú blica
profundamente o mapa da Europa, em especial o da Federativa da Alemanha.
Alemanha, cuja parte leste ficou sob o domı́nio da União
Sovié tica e passou a ser conhecida como “Zona Sovié tica” A fronteira entre as “duas Alemanhas”,
ou “Alemanha Comunista”, enquanto a parte oeste do denominada ”fronteira intra-alemã ” (innerdeutsche
territó rio original, que foi ocupada pelos Estados Unidos, Grenze) pelos habitantes da “Alemanha livre”, tinha 1.400
França e o Reino Unido ficou sendo a Alemanha Oeste ou km de comprimento e se estendia desde a fronteira da
Democrática. Berlim, a entoo capital da Alemanha antes Baviera com a Tchecoslováquia no sul até Lü beck no Mar
da guerra, ficava situada em meio ao territó rio da Zona Báltico. Sua largura variava entre 10 metros e algumas
Sovié tica, como se fosse uma ilha, e ficou dividida em centenas de metros. Era controlada por torres ocupadas
quatro setores: um setor sovié tico, e trê s setores ditos por 5 soldados, equipadas com armas de curto e longo
“livres” (um setor francês, um setor americano e um setor alcance e possuı́am um holofote de alta potê ncia com um
britânico). O setor sovié tico passou a servir como capital raio de ação de 360°. Esta era a “Cortina de Ferro°,
da Zona Sovié tica, já que se encontrava em meio ao també m conhecida como Faixa da Morte. Ceifou ao todo
territó rio da mesma. Como, poré m, os demais trê s setores 371 vidas, vı́timas civis da tentativa de fuga da DDR.
de Berlim estavam “ilhados” em meio à Zona Sovié tica e Com a capital da Alemanha ocidental em Bonn, os
territorialmente distantes da Alemanha democrática, trê s setores democráticos de Berlim (americano, francê s
surgiu a necessidade de se encontrar uma capital para e britânico) passaram a constituir uma “entidade polı́tica
esta ú ltima. Havia nesta parte da Alemanha uma sé rie de independente”, poré m intimamente relacionada à
grandes metró poles que poderiam perfeitamente servir Alemanha ocidental e dela dependente do ponto de vista
de capital: Frankfurt, Munique, Hamburgo, Dusseldorf, logı́stico . Berlim Ocidental ficou sendo conhecida
Colô nia. Poré m para demonstrar claramente que o povo popularmente como “West Berlin”,.
alemão esperava superar no futuro a divisã o do paı́s
causada pela guerra, o parlamento e os aliados sá bia- e Geograficamente isolada, West Berlin só podia
demonstrativamente escolheram uma cidade pequena e ser acessada por trê s “corredores aé reos” com uso
pouco ostentativa, embora com uma tradição de mais de exclusivo pelas companhias PanAm, Air France e British
2000 anos, desde a é poca romana: Bonn, que na é poca Airways e interditados para a Lufthansa. O acesso
possuı́a apenas um pouco mais do que 100.000 terrestre, fluvial e ferroviário a Berlim ocidental através
habitantes. Para enfatizar ainda mais esta decisão, Bonn da Alemanha comunista ficou limitado a poucos
recebeu o tı́tulo de “capital provisó ria”. Berlim só voltou a “corredores” rigorosamente controlados pela DDR e pela

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União Sovié tica. A partir de 13 de agosto de 1961 Berlim arquitetô nico ú nico e compacto. O hospital foi doado a
ocidental passou a ser enclausurada por um duplo muro Berlim ocidental pelos Estados Unidos por iniciativa do
de 5 metros de altura, praticamente intransponı́vel, Presidente John F. Kennedy. O financiamento foi
patrulhado dia e noite por soldados e cães de fila. Apesar assegurado pela Benjamin Franklin Foundation. A
disso, mais de 173 pessoas perderam as suas vidas inauguração ocorreu em 9 de outubro de 1968 (por
tentando escapar do “Paraı́so Comunista”. O muro “abriu” coincidê ncia a data de meu 30° aniversário). Os Estados
em 9 de novembro de 1989 diante da imensa pressão Unidos foram representados pela senhora Eleanor
popular. Lansing Dulles, irmã de John Foster Dulles, ministro de
relaçõ es exteriores durante o governo do Presidente
O isolamento fez com que a sobrevivê ncia da Dwight Eisenhower. O representante de Berlim foi o seu
parte “livre” da cidade dependesse essencialmente da então prefeito e ulterior chanceler da Alemanha, Willy
ajuda e do subsı́dio por parte da Alemanha ocidental e dos Brandt. O Klinikum tinha 1238 leitos e uma área ú til de
aliados. Esta ajuda assumiu diversas formas: os impostos 160.000 metros quadrados.
eram mais baixos Berlim ocidental do que na Alemanha
ocidental; os jovens residentes em Berlim ocidental eram Vencidas as dificuldades iniciais da clı́nica, veio-
isentos do serviço militar; o comé rcio podia permanecer me a ideia de que que seria um “win-win-project”, tanto
aberto por mais tempo; muitos bares e restaurantes não para Berlim quanto para a juventude neurocirú rgica
fechavam durante a noite, etc... sulamericana, se eu encontrasse uma forma de aproveitar
os excelentes recursos té cnicos então a minha disposição
Esta foi a situação que encontrei quando assumi, associando-os com os recursos financeiros que Berlim
em 1979, a cátedra de Neurocirurgia da Universidade destinava a projetos internacionais com o fim de manter
Livre (Freie Universitaet) de Berlim, apó s concurso no ano viva a parte ocidental da cidade a despeito das insistentes
anterior. Meu antecessor, professor Wilhelm Umbach, tentativas da Alemanha comunista de sufocar a “ilha”
oriundo da escola de Traugott Riechert (1905-1983) de Berlim ocidental.
Feiburg, tinha a sua atividade clı́nica e cientı́fica centrada
na estereotaxia e havia falecido em 1976. Durante os 3 Dito e feito! Apresentei ao governo de Berlim
anos transcorridos entre o falecimento de Umbach e ocidental (que tinha a denominação de “Senado”) um
minha posse, a clı́nica havia sido chefiada de forma projeto que compreendia a realizaçã o, a cada dois anos, de
provisó ria inicialmente pelo Dr. Ernst Fuchs, o qual deixou um curso de pó s-graduação com duração de trê s semanas,
a Alemanha em 1977 para se unir às forças Sandinistas da em regime de tempo integral, com aulas teó ricas e
Nicarágua, adotando o nome de guerra Carlos Vancetti. De demonstraçõ es práticas (tanto em sala de operaçã o
1977 até 1979 ficou à frente da clı́nica o Dr. Hans-Dieter quanto em laborató rio), para jovens neurocirurgioes de
Kunft. ambos os sexos, da Amé rica Latina. Os custos de viagem e
de estadia para dois tutores e 20 participantes seriam
Desprovida de um titular de carreira acadê mica cobertos por instituiçõ es de Berlim e da Alemanha,
durante 3 anos (nenhum dos dois responsá veis enquanto a Clı́nica Neurocirú rgica se encarregaria de
provisó rios possuı́a docê ncia), a clı́nica havia decaı́do todos os aspectos clı́nicos e do programa social. A
consideravelmente. Quando a assumi dispunha de 42 hospedagem teria lugar às custas da Universidade e seria
leitos, 7 assistentes e havia efetuado não mais do que 488 em um dos conjuntos residenciais do pessoal de
operaçõ es durante o ano de 1978. (Apenas a tı́tulo de enfermagem no Karl-Fischer-Weg. Os 20 participantes
comparação: vale a pena mencionar que quando, apó s 28 deveriam ter idade inferior a 40 anos, vir
anos de cá tedra, entreguei a clı́nica a meu sucessor em desacompanhados, estar vinculados a uma universidade e
2007, depois da reunificação da Alemanha e da fusão com não ter estagiado na Alemanha anteriormente.
a Charité da ex-Alemanha oriental, a Clı́nica
Neurocirú rgica tinha 40 assistentes e efetuava bem mais As autoridades alemãs reagiram com entusiasmo,
de 2500 grandes cirurgias anuais em 7 salas de operação em especial a Carl Duisberg Gesellschaft com o seu
distribuı́das por dois grandes hospitais universitários. Programa de Auxı́lio a Paı́ses em Desenvolvimento. Os
Estava entre as 5 maiores da Europa.) cursos receberam a denominação “Modern Methods in
Neurosurgery” e se tornaram conhecidos como “MM”.
A clı́nica que assumi era localizada no Klinikum
Steglitz da Universidade Livre de Berlim, que era, na é poca Alé m da parte cientı́fica, sempre centrada na
de sua inauguração, o hospital mais moderno da Europa, prática clı́nica, tinham muito sucesso os eventos sociais,
idealizado pelos arquitetos Curtis & Davis de Nova entre os quais uma visita à Opera e/ou à Filarmonia, assim
Orleans segundo um conceito inovativo de reunir quase como uma obrigató ria ida ao mirante do lado “livre” do
todas as enfermaras, salas de operação, escritó rios, muro de Berlim, do qual se tinha uma boa visão do Portão
refeitó rios, salas de aula e laborató rios em um complexo de Brandenburgo, que ficava “do lado de lá ”.

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Uma das outras atraçõ es dos MM era a feijoada O co-tutor do MM-1(1981) foi o professor Carlos Telles
oferecida pelos brasileiros aos colegas alemães. O Ribeiro (Rio de Janeiro), que havia estagiado em Steglitz
professor Feliciano Pinto se transformava num anos antes. O entusiasmo foi grande, pois tudo era novo
entusiástico maître de cuisine, supervisionando as para todos. A grande atração foram as demonstraçõ es
compras dos mantimentos e distribuindo as tarefas cirú rgicas pela manhã e as palestras à tarde, incluindo um
culinárias. O sucesso era garantido! estágio no departamento de Neuroradiologia.
Não menor era a expectativa com que era Infelizmente não registrei o resultado da “pelada”.
preparada a partida de futebol Visitantes x Alemanha, a
O co-tutor do MM-2 (1983) foi o doutor Carlos
famosa “pelada” entre os participantes do MM e os
membros da Clı́nica Neurocirú rgica (com refô rco de Eduardo Barbosa Cavalcanti (São Luiz do Maranhão).
colegas de outras clı́nicas) no campo de futebol do Houve o mesmo entusiasmo do MM-1.
Berliner Sport Club. Apó s a partida, tomados os banhos de
O MM-3 (1985) teve por co-tutor o professor
chuveiro e vestidas novamente as roupas habituais,
Mário Ferreira Coutinho (Porto Alegre). A parte da manhã
atravessá vamos a rua e entrá vamos no restaurante
foi dedicada à sala de operaçõ es, e às tardes houve
alemão tı́pico Hardtke. Era chegada a hora da “Haxe”, o
pernil de porco “ao forno” king size, fartamente regado a palestras diversas e seçõ es de neuroradiologia.
cerveja e “Kü mmel” (aguardente de cuminho) e “Malteser Despertaram especial interesse os temas: estabilização da
Aquavit”. Este evento ocorria sempre numa sexta-feira, coluna vertebral e anastomose entre a arté ria temporal
porque o despertar no sábado de manhã era estritamente superficial e a arté ria cerebral media no tratamento da
restrito aos “iron men”. isquemia cerebral. As atraçõ es do programa social fô ram
uma “Noitada Berlinense” no restaurante tı́pico “Zur
Houve ao todo 10 MMs: 1981, 1983, 1985, 1987,
Kneipe”, um maravilhoso concerto da Orquestra
1989, 1993, 1995, 1997, 1999 e 2004. Com a queda do
Filarmonica e a ó pera Cosi fan Tutte de Mozart.
muro de Berlim em 1989 e a reunificação da Alemanha em
1990 as verbas destinadas a projetos de ajuda a paı́ses em No MM-4 (1987) houve dois co-tutores: os
desenvolvimento foram drasticamente reduzidas. A professores Mário Ferreira Coutinho e Antônio Cé zar
reconstrucao da antiga zona Sovié tica, depauperada por Borges da Universidade de Pelotas, que me havia
dé cadas de comunismo, tornou indispensá vel concentrar conferido o honroso tı́tulo de Professor honoris causa em
a maior parte dos recursos disponı́veis no pró prio paı́s. 1985.
Foi até mesmo necessário criar, em 1991, um novo
imposto adicional, o Silidaritaetszuschlag (acréscimo de O MM-5 (1989) teve por co-tutores os
solidariedade), no valor de 5,5% do imposto de renda. professores Mário Coutinho e Fernando Menezes Braga
Este novo fardo adicional para todos os contribuintes (S.Paulo).
fiscais foi limitado a um ano, mas ainda persiste no O MM-6 (1993) foi conduzido pelo doutor
momento em que escrevo estas linhas em setembro de Feliciano Pinto.
2019, 28 anos mais tarde!
Os co-tutores do MM-7 (1995) foram o professor
Com a queda do muro passou a ser necessário encontrar A. Julio Martinez (Pittsburg), o professor Jordi Cervó s
uma nova instituiçĕ o para o financiamento dos MMs. O Navarro (Berlim), e o doutor Luiz Fernando Pinheiro
apoio do Deutscher Akademischer Austauchsdienst DAAD Franco (São Paulo). A organização local ficou a cargo do
(Servico Alemao de Intercâmbio Acadê mico) e da Carl doutor Christian Kern. Pontos altos foram um Seminário
Duisber Gesellschaft foi crucial para a realização dos MM de Pó s-graduação em Neuropatologia pelo professor
a partir do MM-5. EÉ de se salientar a ajuda incansá vel dos Martinez e um Coló quio de Neuroradiologia
senhores Volker Geller e doutor Arnold Spitta. Intervencional pelo Doutor honoris causa da
Os primeiros sete MM tiveram por tutor o doutor Universidade Livre de Berlim, professor Pierre Lasjaunias
Feliciano Pinto, meu primeiro mentor neurocirú rgico em (Paris). A novidade muito apreciada foi a dissecção
1958, quando, ainda estudante do 2° ano da então operató ria em cadá ver.
Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do O MM-8, em 1997, teve como tutores o professor
Brasil na Praia Vermelha, trabalhei como estagiário Luiz Roberto Aguiar (Curitiba) os doutores Manoel de
voluntário da Neurocirurgia no Instituto Nacional do Almeida Moreira Filho (Rio de Janeiro), atual presidente,
Câncer, na Praca da Cruz Vermelha. da Academia Brasileira de Medicina Militar, e Daniel
Freire de Figueiredo (Fortaleza). Ponto alto foram as

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seçõ es “Solve a Case” e “Present a Case” em que eram verdade, “encontro de famı́lia”, em que os participantes
apresentados e discutidos casos clı́nicos. Muito apresentaram relatos de suas atividades desde a sua
apreciadas foram, como no ano anterior, as palestras de passagem por Berlim. O Marina Park Hotel foi um palco
Neuropatologia pelo professor Martinez e de ideal para os dias ensolarados do conclave tornando-o
Neuroradiologia intervencioanal pelo professor inesquecı́vel para todos. Para mim, pessoalmente, um dos
Lasjaunias. Novas foram as “Seçõ es Hands-On” sô bre pontos altos deste encontro de amigos foi a honra de
Neuromonitoramento, Cirurgia Estereotática, Pressão haver recebido, em cerimô nia solene, o honroso tı́tulo de
Intracraniana e Doppler Transcraniano. Professor honoris causa da Universidade Federal do Ceará
por indicacao dos professores Djacir Figueiredo e Fláio
O MM-9, em 2009, transcorreu nos mesmos
Leitao.
moldes. Tutores foram o doutor Daniel Freire de
Figueiredo e o professor A. Julio Martinez. Muitos dos leitores destas linhas lembrar-se-ã o
com um saudoso sorriso nos lábios dos dias maravilhosos
O MM-10 foi em Fortaleza, nos dias 13, 14 e 15 de
e alegres passados em Berlim. Creio que na conturbada
maio de 2004 e teve o caráter de um encontro de amigos,
é poca atual talvez não fosse mais possı́vel realizar um
congrassando numerosos participantes dos MM
projeto como o descrito aqui. Fica, poré m, a esperança de
anteriores! Serviu como ”fecho de ouro” para a “era dos
que ê ste relato sirva de estı́mulo para as futuras geraçõ es
MM”. A organização impecá vel esteve a cargo dos
de jovens neurocirurgiõ es latino-americanos e como
professores Djacir Gurgel de Figueiredo, Francisco Flá vio
testemunho do entusiasmo de geraçõ es passadas.
Leitao Carvalho e Daniel Freire de Figueiredo. Foi, em

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XXIV Congresso Brasileiro de História da Medicina e I Encontro
das Academias de Medicina de São Paulo e do Rio Grande do Sul

Solenidade de Abertura do XXIV Congresso Brasileiro de História da Medicina e I Encontro das


Academia a de Medicina de São Paulo e do Rio Grande do Sul, realizado em São Paulo na Associação
Paulista de Medicina (APM) de 24 a 27 de outubro de 2019. O Evento foi um sucesso contando com
36 Conferencistas e 50 Temas Livres. Os temas interessantes, bem elaborados e a performance
dos palestrantes encantaram a plateia nos auditórios.

Compuseram a MESA CERIMONIAL DE ABERTURA, Dr. Lybio Martire Junior (Presidente do


Congresso e da SBHM), Dr. José Luiz Gomes do Amaral (Presidente da Academia de Medicina de São
Paulo), Dr. Carlos Menke (Presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina), Dr. Antonio José
Gonçalves (Secretário Geral da Associação Paulista de Medicina), Dr. Carlos Alberto Basílio de Oliveira
(Representando a Academia Nacional de Medicina), Dr. Vicente Herculano Silva (Presidente da
Academia de Medicina do Mato Grosso), Dr. Jurandir Marcondes Ribas Filho (Presidente da Academia
Paranaense de Medicina), Dr. Ricardo Losardo (Presidente da Academia Panamericana de História da
Medicina) e Dr. Nikolas Kastanos Atzinicollis (Embaixador Mundial da Idéia Hipocrática de Cós/
Grécia)

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Os Alunos da FMIT, do 4o Ano, d a D i s c i p l i n a d e H i s t ó r i a d a M e d i c i n a , Maria Fernanda, Luiz
Henrique, Vinicius, Amanda, Rafaela, Nathalia, Isabela, Daniela e Maria Clara, além de Breno do 5o
Ano, brilharam com suas participaçõ es e Temas apresentados no XXIV Congresso Brasileiro de Histó
ria da Medicina e I Encontro das Academias de Medicina de São Paulo e do Rio Grande do Sul.

Plantação do Plátano na Sede da APM

Momentos do Congresso

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