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“Eucaristia e serviço / missão de acolhida em nossos mosteiros”

Humberto Rincón Fernández, OSB


Mosteiro Santa Maria de la Epifanía
Guatapé (Antioquia) Colômbia

1. O lema do encontro é muito breve: "Amou-nos até o fim", tirado do início do relato da
Última Ceia no Evangelho de São João. Gostaria, então, de entrar de alguma forma no
contexto dessa citação, que é toda a narrativa da Ceia.
Chama a atenção, num primeiro momento, o fato de nos ser narrado com abundância
de detalhes o lava-pés, e de que não nos é dito nada do que tradicionalmente
chamamos de EUCARISTIA: o gesto e as palavras de Jesus sobre o pão e o vinho.
A última ceia, a Eucaristia, então, neste evangelho, é chamada de lava-pés.

Deixo aos especialistas a discussão do que foi que realmente aconteceu na Ceia: ação
sacramental sobre o pão e o vinho? Ou ação profético de lavar os pés como um
escravo?

Certa vez li, que parece que no início da vida da Igreja os dois gestos tenham
coexistido, mas pouco a pouco, por questão de facilidade e praticidade, prevaleceu o
do pão e do vinho.

2. O primeiro versículo deste capítulo 13 do Evangelho de São João é muito solene e


profundo. Seria necessário comentar cada palavra:

(1)
Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que havia chegado a sua hora
de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no
mundo, amou-os até o fim.

Estamos antes da festa da Páscoa, Jesus está preparando a celebração de sua Páscoa.
Ele sabe que chegou a HORA, de passar deste mundo para o Pai, ou seja, a hora de sua
glorificação, a hora de se manifestar definitivamente, de se manifestar totalmente ao
Pai, de manifestar a sua glória, seu ser, sua essência.

Jesus ao longo de sua vida já demonstrou seu amor aos seus, mas agora, nessa hora,
ele leva esse amor até o fim, leva-o a suas últimas consequências (até a morte, até a
morte na cruz, até a morte como um escravo crucificado).

3. Todo este enunciado, é o que vemos desenvolvendo-se nos seguintes versículos:

(2)
Durante a ceia, ... (4) levantou-se da mesa, tirou o manto e, pegando uma
toalha, cingiu-se. (5) Depois derramou água numa bacia e começou a lavar os
pés dos discípulos e a secá-los com a toalha com que estava cingido.

"Levantou-se da mesa", ou seja, deixou o lugar que lhe corresponde, o posto principal,
o de mestre. Já o havia dito em outro texto evangélico: quem é mais importante,
aquele que está na mesa ou que serve? Quem serve, não? Pois eu estou no meio de
vós como aquele que serve (Lc 22, 27).

1
"Tirou o manto". São Paulo em Filipenses 2, 6ss detalha mais: ele não ostentava sua
categoria de Deus, não apegou-se avidamente ao ser igual a Deus, despojou-se de sua
posição, fez-se homem, fez-se escravo, rebaixou-se, tornando-se obediente até a
morte e morte de cruz.

"Começou a lavar os pés e a secá-los", isto é, começou a realizar uma atividade


própria dos escravos ou servos da casa, ou das mulheres daquela sociedade patriarcal
e machista.

4. E seguindo a lógica do hino de Filipenses, esse despojamento leva-o a ser constituído


Senhor, a ser exaltado, a receber o Nome que está acima de todo nome. Ou seja, ao
reconhecimento que esse homem é Deus, e que assim atua Deus com o ser humano,
que assim é o amor de Deus pelos seus.

5. A narrativa segue com a cena de Pedro:


(8)
Disse-lhe Pedro: "Tu nunca me lavarás os pés". Mas Jesus respondeu: "Se eu
não te lavar, não terás parte comigo".
(9)
Simão Pedro disse: "Senhor, então não lava apenas os meus pés, mas
também as mãos e a cabeça".

Pedro, por respeito ao mestre, ou talvez por uma falsa humildade, por um cálculo bem
premeditado (se eu deixar que me lave, certamente ele me pedirá para fazer o
mesmo), ele se recusa a aceitar esse gesto de Jesus. É muito comprometedor. Mas
diante da ameaça de Jesus de que não terá parte com ele, que não serão amigos, que
perderão o relacionamento mestre-discípulo, Pedro reage e pede que ele lave tudo.
Que ele o embeba bem nessa ação amorosa do Senhor.

6. E conclui a cena com o que Pedro talvez tivesse imaginado:

(12)
Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus vestiu o manto e sentou-se
de novo. E disse aos discípulos: “Compreendeis o que acabo de fazer?
(13)
Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou.
(14)
Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis
lavar os pés uns dos outros.
(15)
Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz”.

Um dado curioso é que ele tira suas vestes novamente, mas parece que não tira a
toalha com a qual estava cingido. Continua sendo um servidor, um escravo, ainda
sentado à mesa. O ser Senhor e mestre não o isenta de continuar sendo servidor.

E chega o mandamento, correspondente à narrativa do pão e do vinho ("Fazei isto em


memória de mim"), repetido duas vezes:

(14)
Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis
lavar os pés uns dos outros.
(15)
Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz”.

2
Lavarmos os pés uns dos outros. Esse é o mandamento. Tornar-nos escravos e
servidores dos outros é a consequência de se participar da Ceia do Senhor. Entregar a
vida como ele a entrega: até as últimas consequências.

7. E o capítulo segue com duas cenas interessantes: o anúncio da traição de Judas e da


negação de Pedro. Ou seja, desde o início, existe a possibilidade de que nós, que
participamos da Ceia, o traiamos ou neguemos. O Senhor não se importa, e por isto,
apesar do que possa acontecer, ele continua a nos convidar para a sua mesa, para a
mesa de seu amor e de sua entrega.

8. Gostaria de recordar o outro gesto, o mais comum para nós: o do pão e do vinho.
Jesus faz uma declaração sobre esses dois elementos. Ele se identifica com eles: este
pão sou eu, que me entrego por vós. Faço-me pão para ser partido, repartido,
compartido. Sou vida entregue, compartida. O vinho deste cálice é o meu sangue que
será derramado para celebrar uma nova aliança. Este vinho é meu sangue derramado
para dar nova vida.

E o mandamento não falta aqui: fazei isso em memória de mim.

O realizar esta ação sacramental em cada Eucaristia é tão comprometedor quanto o


ato de lavar os pés. Comer o corpo de Cristo e beber seu sangue, nos compromete a
sermos também nós para os outros corpo entregue, sem medida, totalmente; e
sermos sangue derramado, vida entregue gota a gota, para darmos vida aos outros.

9. Nos dois gestos de Jesus, fica bem clara a relação com o nosso tema de hoje:
EUCARISTIA: SERVIÇO E MISSÃO DE ACOLHIDA EM NOSSOS MOSTEIROS. A participação
na Eucaristia deve traduzir-se na vida prática de cada monge, de cada monja, em
serviço, na acolhida do outro, não apenas do hóspede, o que é mais fácil para nós, mas
principalmente do irmão ou da irmã com quem compartimos un mesmo ideal de vida.

Se nos é pedida coerência entre Eucaristia e vida, em relação à acolhida dos hóspedes,
essa coerência deve ser total, começando em casa, começando pela comunidade. Não
pode haver autêntica acolhida do hóspede, sem verdadeira e autêntica vida fraterna
dentro da comunidade monástica. Os hóspedes, quer queiramos ou não, conseguem
perceber isto quando visitam nossos mosteiros. Muitas vezes, em sua visita, fazem
contato apenas com o porteiro, o hospedeiro e aquele que lhes dá atenção espiritual,
mas deixam uma comovida mensagem escrita agradecendo a todos os monges pelo
testemunho de vida, pela alegria, a entrega, a comunhão com o Senhor e com os
irmãos que percebem nas celebrações e nas atenções que lhes são oferecidas em
silêncio. Quando encontram o contrário, também o percebem: a divisão, a inveja, a
murmuração, a incoerência de vida. Não o escrevem, mas comentam. Eles não se
atrevem a dizê-lo, mas levam um gosto ruim na boca, um contra-testemunho.

E se estamos falando da Eucaristia, estamos falando da comunidade. A comunidade é


quem celebra a Eucaristia. Alguém sozinho, mesmo que seja sacerdote, não pode
celebrar uma Eucaristia (de fato, a Instrução Geral do Missal Romano – nº 252 – ,
prescreve que haja pelo menos um ministro assistindo ao sacerdote, e que apenas por
justa e razoável causa ele celebre sem um Ministro ou fiel – nº 254). O "ite, missa est"

3
é um mandamento no plural: Ide...: "Podeis ir", dizemos em espanhol. Isso significa
que a missão que se deriva da participação na Eucaristia não é uma missão particular.
Aplicado ao nosso tema da acolhida, significa que o hospedeiro, ou a hospedeira,
representam a comunidade monástica, não são um franco-atirador que atuam
sozinhos ou sozinhas. E isso também tem consequências para aquele que presta o
serviço, agindo em nome da comunidade, não à margem dela ou, pior ainda, contra
ela. E consequências para os outros monges ou monjas: como estamos perto do
hospedeiro ou da hospedeira, interessando-nos pelo que fazem, estando disponíveis
para os ajudar?

O serviço da hospedaria é realizado através do envio do superior ou da superiora e da


comunidade. Ou seja, o hospedeiro (a) está em comunhão com eles e os mantém
cientes do que está acontecendo por ali.

10. São Bento, nosso pai, quando fala da recepção dos hóspedes, no capítulo 53 da Regra,
nos remete ao primeiro gesto que comentamos: o lava-pés. No Evangelho, Cristo, o
mestre, lava os pés dos discípulos, seus irmãos, e nos convida a lavarmos os pés uns
dos outros, como irmãos, a nos tornarmos escravos e servidores dos outros como
Cristo. Mas agora São Bento faz uma mudança muito interessante: o hóspede não é
mais apenas um irmão, mas a própria pessoa do Cristo que vem nos visitar.

1
Sejam recebidos todos os hóspedes que chegam como o Cristo, pois ele
mesmo disse: "Fui estrangeiro e me recebestes".

Subentende-se a lógica do capítulo 25 do Evangelho de São Mateus (Mt 25, 31-46), "o
Juízo Final", do qual o texto é tirado:

"Em verdade vos digo, o que fizestes a um desses meus irmãos mais
pequeninos, foi a mim que o fizestes" (V. 40).

Ou seja, em San Bento já não se trata do sacramento do corpo e do sangue, que me


lança à missão e ao serviço de acolhida no mosteiro, mas é o sacramento do irmão.
Tema muito frequente na Regra: o irmão não apenas representa Cristo, mas é o
próprio Cristo que vem nos visitar, neste caso, e portanto, o tratamento tão refinado
que se lhe presta:

2
E se dispense a todos a devida honra. Isto é, a honra que corresponde a Cristo.
3
Logo que um hóspede for anunciado, corra-lhe ao encontro o superior ou os irmãos,
com toda a solicitude da caridade. Subentende-se que apressem-se solícitos para tal
visita e põem todo o seu empenho para atendê-lo da melhor maneira possível, ou o
melhor do que são capazes, sem medidas, por isso fala de SOLÍCITA CARIDADE, que é o
amor de Deus: incondicional, gratuito, sem medida.
4
Primeiro, rezem em comum e assim se associem na paz. Segundo as instruções de
Jesus aos seus enviados: quando entrardes em uma casa, dizei primeiro: A PAZ ESTEJA
COM ESTA CASA (Lc 10, 5). É Cristo quem vem para nos trazer a paz, no hóspede que
chega.
6
Nessa mesma saudação mostre-se toda a humildade. Em todos os hóspedes que
chegam e que saem, adore-se, 7 com a cabeça inclinada ou com todo o corpo prostrado

4
por terra, o Cristo que é recebido na pessoa deles. E ele é tratado com a mais suma
humildade, adoração, e reconhecimento de que é o próprio Cristo que está sendo
recebido. Só a ele se adora.
8
Recebidos os hóspedes, sejam conduzidos para a oração e depois sente-se com eles o
superior ou quem esse ordenar. 9 Leia-se diante do hóspede a lei divina para que se
edifique e depois disso apresente-se-lhe um tratamento cheio de humanidade. Este
orar juntos, lendo a Lei divina e sentando-se, assemelha-se a uma Eucaristia. Celebre-
se a Ação de Graças com o hóspede, que é Cristo.
10
Seja o jejum rompido pelo superior por causa dos hóspedes. Seguindo a lógica
evangélica, não se pode jejuar, porque o noivo está com eles. Estão em festa.
12
Que o Abade sirva a água para as mãos dos hóspedes; 13 lave o Abade, bem assim
como toda a comunidade, os pés de todos os hóspedes. Nós somos seus servidores,
seus escravos, estamos dispostos a servi-los, a entregar nossas vidas por eles, a
entregar-lhes o que somos e temos.
14
Depois de lavá-los, digam o versículo: "Recebemos, Senhor, vossa misericórdia no
meio de vosso templo". E não poderia ser de outro modo: agradecemos ao Senhor por
haver nos visitado. Recebemos sua misericórdia nesta visita.

Acredito que todos em nossos mosteiros tenham vivido essa experiência: os hóspedes
não são um estorvo. Um mal menor que temos que suportar em nossa vida monástica.

Eles são, sem dúvida, uma testemunha fiel do que fazemos e de como o fazemos.
Testemunham a autenticidade do que às vezes fazemos distraída ou rotineiramente.
Eles mesmos nos dão testemunho com a fé tão grande que têm, pelo esforço de
coerência que se propõem em suas vidas, de como lutam em sua vida cotidiana para
permanecerem fiéis, levando uma vida esforçada, com muita luta para obterem o pão
de cada dia, para administrarem bem sua casa, para serem responsáveis em seu
trabalho que não abandonam com qualquer desculpa, etc.

11. Para concluir, gostaria de citar novamente São Bento quando, no mesmo capítulo 53,
ele nos diz quem pode ser hospedeiro:

21
Do mesmo modo, cuide do recinto reservado aos hóspedes um irmão cuja
alma seja possuída pelo temor de Deus: 22 haja ali leitos suficientemente
arrumados e seja a casa de Deus sabiamente administrada por monges sábios.

Como tudo no mosteiro, esse serviço também se vive no temor de Deus, isto é, na
presença de Deus. Pela fé, entendo que minha vida está sempre presente ante seus
olhos. Não para me vigiar e ver quando caio para me castigar, mas para me amar com
seu olhar e seu amor misericordioso. Sou amado por Deus e minha vida transluz esse
amor em minha relação com os outros.

Vivemos tempos difíceis na Igreja com o problema dos abusos sexuais de menores.
Não vou falar sobre esse tema aqui, que não me compete, mas quero, sim, aproveitar
o que o Papa Francisco comentou sobre isto em várias intervenções: o abuso sexual é
precedido pelo abuso de poder e o abuso de consciência.

Ser monges ou monjas nos dá um status muito especial diante dos fiéis e diante das

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pessoas que vêm aos nossos mosteiros. Eles olham para nós quase como santos, ou
santas. E isso, inconscientemente, cria em nós a consciência de sermos superiores aos
outros, de estarmos acima deles. Isso se chama ter poder. E podemos facilmente
escorregar por aí: por um abuso de poder. Podemos tirar proveito dos outros, neste
caso, dos hóspedes, em benefício próprio: para preenchermos nossas carências
afetivas, para fazermos amizades que nos acolham quando saímos, para obtermos
algum benefício econômico por baixo dos panos ou que nos deem presentes e nos
papariquem, ou o que seria pior, para tirarmos proveito das contribuições financeiras
que deixam para o mosteiro.

E tudo isso, amparados pelo abuso de consciência: encontramos facilmente motivos


para justificarmos nossa atuação. “Eu sou o hospedeiro ou a hospedeira, e devo
atender amavelmente aqueles que chegam... Eu não posso ser seco ou frio com eles...
Eu não estou fazendo nada de mal (e nada de bom também)... Eu também preciso das
minhas compensações... Eu trabalho demais e mereço alguma recompensa, etc...

Lembremos, então, o que dissemos nesta reflexão: nosso serviço de acolhida tem seu
fundamento na Eucaristia. Acolhemos e servimos aos que vêm ao mosteiro, porque
queremos prestar-lhes o humilde serviço de Cristo na última ceia, queremos entregar
a vida como ele. Acolhemos o hóspede ou visitante, porque ele é a própria pessoa de
Cristo que vem ao nosso encontro. E tudo isso fazemos com pureza de coração, sem
motivações distorcidas, porque se trata do próprio Cristo, nosso Senhor.

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