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O projecto JODIA (Jovens Descendentes de Imigrantes Africanos) é um projecto de
investigação sociológica, desenvolvido no âmbito do CIES, ISCTE, coordenado por Fernando
Luís Machado, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia para o período de 2003-
696 -2005. Da equipa de investigação fazem também parte Ana Raquel Matias e Sofia Leal.
Desigualdades sociais e diferenças culturais
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Para um balanço informado dos avanços e bloqueamentos do processo de democratização
do acesso ao sistema de ensino, v. Silva (2003). 699
Fernando Luís Machado, Ana Raquel Matias, Sofia Leal
A B A B A B A B
Fontes: INE, Censos 2001; projecto JODIA, CIES, ISCTE, 2004 (n = 1000).
A terceira razão tem a ver com o modo como foi definida a amostra
inquirida no nosso estudo. É provável que os valores da escolaridade de nível
universitário, sobretudo esses, estejam sobrestimados na faixa etária dos 25-
-29 anos. Tratou-se de uma questão prática. Para garantir que se podia analisar
separadamente o segmento de classe média e alta dos jovens entre os 25 e os
29 anos atribui-se-lhe um peso na amostra que, provavelmente, não tem na
realidade. Tendo os jovens dessas idades sido apenas 150 em 1000, devido ao
tal perfil etário piramidal que caracteriza os descendentes de imigrantes africa-
nos, e de forma a garantir mínimos de representatividade estatística, estipu-
lou-se que 50 desses 150 deveriam ser jovens com essa extracção social, o que
fez aumentar o número de indivíduos com a escolaridade de nível superior.
Não se trata de um pormenor metodológico, mas de uma questão de fundo
que tem a ver com a questão das condições e limites de uma análise comparativa
estrutural deste tipo. Se quiséssemos melhorar as condições e reduzir os limites
de comparabilidade dos níveis de escolaridade, teríamos de controlar, de forma
sistemática, não só o escalão etário, mas também a origem de classe, o género
e eventualmente outras propriedades sociais das populações em questão.
quérito JODIA. O que esse estudo nos diz é que na amostra nacional inqui-
rida, também situada entre os 15 e os 29 anos, a proporção dos que alguma
vez reprovaram é de 64%, apenas 4 pontos menos do que o valor homólogo
para os jovens de origem africana. Desdobrado este valor médio para os que
ainda frequentam e já frequentaram o sistema de ensino, temos, respectiva-
mente, 57% e 80% para os filhos de imigrantes e 54% e 71% para os jovens
portugueses em geral.
Reencontramos, assim, por outra via, os mesmos resultados reveladores
que uma análise comparativa estrutural como a que aqui se vem fazendo
pode proporcionar. Não deixando o índice de reprovações dos descendentes
de imigrantes africanos de ser muito elevado e preocupante, é-o praticamente
na mesma medida em que o é para os jovens em geral, o que mostra
estarmos perante um problema mais fundo na sociedade portuguesa, que é
o do insucesso escolar massivo, constante e precoce, devidamente diagnos-
ticado, e a bom tempo, por vários sociólogos da educação (Sacuntala de
Miranda e Grácio, 1977; Benavente e Correia, 1981; Benavente et al., 1987;
Grácio, 1997; Sebastião, 1998; Silva, 1999). Esse insucesso, é bem sabido,
é um dos principais factores do abandono escolar a que se fez já referência
(Ferrão e Honório, op. cit.; Benavente et al., 1994).
Vejamos agora como é que este indicador, bem como o do nível de ensino
atingido, variam em função das variáveis de composição social seleccionadas.
No que se refere à composição sexual dos jovens, confirma-se o que se tinha
dito antes. Não só as raparigas se qualificam mais, atingindo mais o secundário
e o superior, como têm taxas de insucesso mais baixas, justamente uma das
condições, como se acabou de dizer, para chegar mais longe no sistema de
ensino. Os poucos estudos com dados directos sobre o tema feitos em Por-
tugal mostram exactamente o mesmo (Grácio, op. cit.; Silva, op. cit.).
Os indicadores relativos à classe social das famílias dos estudantes e à
escolaridade dos seus pais e mães, indicadores privilegiados de origem so-
cial, mostram o sentido das correlações classicamente encontradas pela
sociologia da educação a nível internacional nos anos 60 e 70 por investi-
gadores como Bourdieu e outros e mais tarde replicadas em Portugal em
trabalhos de alcance variado citados atrás. Tanto os níveis de ensino atin-
gidos como as taxas de reprovações variam de forma impressionantemente
regular em função desses indicadores, melhorando quando são mais os
capitais económicos, profissionais e escolares das famílias e piorando quan-
do estes são menos. É a confirmação alargada de algo que já tinha sido
notado por um estudo pioneiro em Portugal que comparou resultados esco-
lares de crianças portuguesas e de crianças de origem cabo-verdiana e con-
cluiu que o efeito de condição de classe se sobrepunha ao efeito de pertença
704 étnica (Seabra, 1994).
Desigualdades sociais e diferenças culturais
Num contexto em que a força das correlações classistas fica uma vez mais
tão claramente demonstrada não pode passar sem referência o desinteresse a
que tem sido votado, com excepção dos sociólogos da educação já mencio-
nados, um fenómeno que é de relevância máxima para a compreensão e
intervenção no sistema de ensino. Num estudo em que se compara a produção
científica da sociologia da educação e das ciências da educação (Abrantes,
2004, pp. 122-125) mostra-se que o tema do «insucesso/abandono, classes e
reprodução» não passa de uma escolha de segunda linha para os cientistas da
educação e que mesmo na sociologia da educação é um tema em perda.
Se a saída do tema da agenda da pesquisa em ciências sociais é negativa,
mais negativo ainda é o facto de a partir do início dos anos 90 ter deixado de
haver dados oficiais que permitam reportar os resultados escolares dos alunos
às suas origens sociais, o que certamente também terá levado a que os inves-
tigadores da educação passassem a interessar-se menos pelo assunto. Se
pensarmos que, ao mesmo tempo que estes dados deixavam de ser produzi-
dos, se constituiu, no quadro do Ministério da Educação, a Base de Dados
Entreculturas, com dados anuais sobre a distribuição dos resultados escolares
por «grupos culturais», encontramos uma ilustração paradigmática do modo
como a difusão da ideologia multiculturalista nos meios educativos tem con- 705
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A maioria esmagadora dos pais (94%) e mães (97%) nasceu nos PALOP, mas muitos
têm a nacionalidade portuguesa (45% dos pais e 45% das mães). Nos casos de famílias mistas
de pai e mãe de diferentes PALOP atribuiu-se ao inquirido, para este efeito, uma só origem
étnico-nacional, que foi a do pai ou da mãe, de acordo com os resultados de outros indicadores
do inquérito, a saber, a naturalidade e a nacionalidade do próprio jovem e o seu sentimento
706 de pertença nacional.
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No sistema de eixos sobre o qual se projectaram as localizações relativas das várias
populações no espaço dos contrastes e das continuidades há uma gralha no que respeita ao
caso moçambicano. O sinal gráfico que identifica a sua posição deveria aparecer na mesma
vertical do sinal correspondente aos angolanos. 707
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NOTAS FINAIS
Perante estes resultados caem por terra algumas das ideias veiculadas por
autores de referência das ciências da educação em Portugal, que têm tido
papel muito activo na elaboração e propagação do diagnóstico reducionista
segundo o qual a cultura é a nova e exclusiva variável independente nas
escolas portuguesas e que propõem como solução a chamada educação
multicultural (Stoer e Cortesão, 1999; Stoer, 2001).
Por exemplo, a afirmação de que a escola favorece o «WASP6 portu-
guês», ou seja, «a etnia do branco, oriundo de meios urbanos e de classe
média que professa a religião católica» (Stoer, 2002, p. 14), não faz qualquer
sentido. A única verdade contida nessa afirmação é a de que os alunos da
classe média, independentemente de quaisquer outros critérios, têm, em
média, melhores resultados do que os das classes populares. Tão-pouco se
vê que o mais relevante seja a passagem da figura do(a) «professor(a)
monocultural» para a figura do(a) «professor(a) inter/multicultural», este sim
capaz de dar resposta aos problemas colocados pelos novos públicos esco-
lares (Stoer e Cortesão, op. cit., p. 47).
Não se trata, obviamente, de substituir o reducionismo multiculturalista
por um reducionismo classista nem de ignorar a importância do conhecimen-
to da diversidade cultural e, especialmente, da educação anti-racista nas
escolas. Trata-se, sim, de dizer que os problemas colocados pelos novos
públicos escolares envolvem combinações múltiplas de «velhas» e «novas»
formas de desigualdade social e diferença cultural, que só uma análise
multidimensional cuidadosa que pese criteriosamente a importância de cada
dimensão pode ajudar a compreender.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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712 Expressão utilizada nos EUA que é o acrónimo de White Anglo-Saxon Protestant.
Desigualdades sociais e diferenças culturais
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