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BIOLOGIA

M E D I C EVOLUTIVA
I N A

Se
A reprodução assexuada
parece ser uma ótima
maneira de um ser vivo
passar seus genes
para a próxima geração.
Afinal, nesse caso,
os filhos são praticamente

plum
cópias genéticas dos pais.
Se isso é verdade,
para que existiria o sexo?
Essa pergunta já incomodou
muita gente e obteve
muitas respostas,
cada uma com sérias
limitações, mas uma teoria
lançada nos anos 80 parece
resolver o problema.
Segundo essa teoria,
o sexo permite que
os organismos equilibrem
a constante luta evolutiva
contra os seus próprios
parasitas.

Carlos Roberto Fonseca


Laboratório de Ecologia de Insetos,
Departamento de Ecologia,
Universidade Federal
do Rio de Janeiro

2266 •• CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE •• vvooll.. 2266 •• nnºº 115555


BIOLOGIA EVOLUTIVA

xo,
as e
parasitas
Que sexo é bom, poucas pessoas discordam. No entanto, quando
os cientistas se perguntam “bom para quê?” há
controvérsias. Em 1889, o biólogo alemão August
Weismann (1834-1914) notou que a função do sexo
não poderia ser a de permitir a multiplicação dos
organismos, pois diversas espécies reproduzem-se
sem recorrer ao sexo. Qualquer pessoa que gosta de
jardinagem sabe que muitas espécies de plantas
‘pegam de galho’: basta enterrar um pedaço de um
ramo para obter novo indivíduo.
Outros organismos, como as planárias (vermes
de vida aquática), podem gerar novo organismo pe-
la fissão do corpo. Micróbios unicelulares simples-
mente dividem-se em dois, por um processo seme-
lhante à mitose. E muitos insetos, como os pulgões,
passam parte do ano produzindo ovos que geram
cópias genéticas do indivíduo que os produziu – tal
processo, chamado de ‘partenogênese’, é uma forma
de reprodução assexuada bem comum entre os ani-
mais, e ocorre até em animais mais complexos,
como alguns lagartos, peixes e anfíbios. 4

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Figura 1. ções. Isso explica por que os fi-


Na reprodução lhos de um mesmo casal são sem-
sexuada,
machos pre diferentes. De maneira sim-
e fêmeas plificada, pode-se dizer que sexo
– ou estruturas é reprodução cruzada mais re-
masculinas combinação.
e femininas, Em 1971, o evolucionista in-
presentes
glês John Maynard Smith (1920-)
na maioria
das flores – notou que um indivíduo sexuado
misturam passa apenas metade do seu ma-
os seus genes terial genético aos filhos, enquan-
para formar to um indivíduo assexuado passa
um novo ser
todos os seus genes. Ou seja, na
corrida evolutiva, onde passar os
genes para a próxima geração é
A grande maioria dos animais e plantas, porém, um dos maiores ‘objetivos’, organismos sexuados
reproduz-se sexuadamente, misturando genes do partem com desvantagem de quase 50%, que ficou
pai com genes da mãe (reprodução cruzada). Para conhecida como “o custo da meiose”. Sexo, portan-
que a reprodução sexuada seja possível, machos e to, parece ser um luxo que não deveria existir.
fêmeas (ou estruturas masculinas e femininas, nas Como a existência do sexo é inegável, os biólogos
plantas) (figura 1) precisam produzir gametas (célu- têm quebrado a cabeça para descobrir qual o grande
las reprodutivas, masculinas ou femininas) que em benefício que ele traz para os seres vivos. Maynard-
geral têm apenas uma das duas cópias de cada gene Smith argumentou que o sexo só poderia ter evo-
que esses indivíduos possuem. luído se esse benefício misterioso pelo menos con-
A redução do número de cromossomos (de 2n trabalançasse o grande custo da meiose. Mas, afinal,
para n) na produção de gametas ocorre através de que benefício é esse?
um processo celular complexo, a meiose (figura 2). Desde Weismann, vários cientistas tentam iden-
A fusão de um gameta masculino de um indivíduo tificar essa vantagem, capaz de justificar a origem e
com o gameta feminino de outro é chamado de a manutenção da reprodução sexuada (ver ‘O sexo
fertilização. Durante essa fusão, os genes recebidos serve para quê?’). Algumas das hipóteses lançadas
da mãe e do pai misturam-se em novas combina- apontam para benefícios genéticos e outras para

O sexo serve para quê?


As hipóteses científicas mais atuais Ronald Fisher (1930), Hermann Mül- LIMITAÇÕES: embora modelos teó-
sobre a necessidade e a importância ler (1932), James Crow e Motoo Ki- ricos demonstrem que tal hipótese
da reprodução sexuada para os se- mura (1965) – Sexo é... “uma ada- funciona bem sob certas condições
res vivos baseiam-se em argumen- ptação que permite a linhagens se- (altas taxas de seleção e mutação),
tos genéticos ou ecológicos. xuais juntar boas mutações, de forma ela não explica por que, no mundo
a sobrepujar linhagens assexuais”. real, o número de organismos que
HIPÓTESES HISTÓRICAS LIMITAÇÕES: hoje, admite-se que, fazem autofecundação (caminho
August Weismann (1889) – Sexo é... em geral, a evolução não ocorre pela mais curto para reunir boas muta-
“uma fonte de variação individual disputa entre grupos, linhagens ou ções recessivas) é tão baixo.
que fornece material para a opera- espécies, e sim pela disputa entre in- 4 Hermann Müller (1964) e Alexey
ção da seleção natural”. divíduos possuidores de diferentes Kondrashov (1982) – Sexo é... “um
LIMITAÇÕES: a reprodução sexuada genótipos. mecanismo para eliminar mutações
certamente produz variabilidade, prejudiciais”.
que passará pelo crivo da seleção na- HIPÓTESES GENÉTICAS LIMITAÇÕES: as baixas taxas de mu-
tural. A explicação do Weismann, 4 Mark Kirkpatric e Cheril Jenkins tação verificadas em organismos
porém, assume que uma adaptação (1989) – Sexo é... “um mecanismo procariotos (cujas células não têm
é criada hoje com a intenção de faci- que aumenta a probabilidade de núcleo diferenciado) sugerem que
litar a evolução amanhã. Em outras uma mutação recessiva ‘boa’ se ma- existem soluções celulares mais
palavras, bota a carroça na frente dos nifestar em um indivíduo”. simples e baratas que a meiose para
bois.
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Mitose BIOLOGIA EVOLUTIVA

Núcleo

Novas células Figura 2.


Na mitose (A),
a célula
divide-se
DNA
Centríolo
Duplicação
Alimhamento em duas
dos cromossomos Divisão dos Divisão do
e separação dos cromossomos
cromossomos citoplasma mantendo,
dos centríolos nas ‘filhas’,
Meiose o mesmo número
de cromossomos
da ‘mãe’, enquanto
na meiose (B),
a célula gera
Segunda divisão, ‘filhas’ (gametas)
sem duplicação dos
cromossomos que em geral
têm apenas
a metade
do número
de cromossomos
da célula original
Gametas

vantagens ecológicas. Este artigo apresenta em deta- toda parte e procuram sempre, por sua natureza,
lhes uma das propostas, a teoria sosigônica (ou explorar seus hospedeiros. Além disso, apresentam
‘teoria da Rainha Vermelha’, como é também conhe- virulência específica, afetando apenas determina-
cida), que vem recebendo muita atenção da comuni- dos genótipos dos hospedeiros, enquanto estes têm
dade científica nos últimos tempos. genes que conferem resistência ao ataque. Como o 4
tempo de geração dos
parasitas (figura 3) é
O mundo da Rainha Vermelha muitas vezes menor
que o dos hospedeiros
Essa audaciosa teoria sobre a origem e a manutenção e por isso suas taxas
do sexo foi proposta pelo evolucionista inglês de evolução são mui-
William D. Hamilton (1936-), da Universidade de tas vezes maiores, a
Oxford, em 1980. Segundo ele, os parasitas estão em única saída para os A B

Figura 3.
A luta contra
os parasitas
– como os da
ancilostomíase(A),
e da doença
evitar o acúmulo de mutações pre- riabilidade temporal e espacial do perados e em topos de montanha, de Chagas (B),
judiciais. ambiente”. onde espera-se maior instabilidade. que atacam
Harris Bernstein (1983) – Sexo é... LIMITAÇÕES: essa hipótese prevê Michael Ghiselin (1974) – Sexo é... o homem
– parece explicar
“um mecanismo que permite o con- que o sexo deve ocorrer com maior “um mecanismo de diferenciação a origem
serto das fitas de DNA (ácido freqüência em ambientes instáveis, ecológica entre irmãos e parentes, e a evolução
desoxirribonucléico) através da re- mais sujeitos a variações das condi- que permite sua coexistência em do sexo entre
combinação”. ções bióticas. No entanto, os pa- ambientes saturados”. os seres vivos
LIMITAÇÕES: diversos argumen- drões geográficos e ecológicos rela- LIMITAÇÕES: não existe justificativa
tos sugerem que o conserto do DNA cionados à reprodução sexuada são para que o filho que conseguiu so-
deve ser visto como uma conse- opostos ao previsto por essa hipóte- breviver por se diferenciar ecologi-
qüência benéfica da existência do se: a reprodução assexuada é mais camente dos demais parentes opte
sexo e não sua causa. comum em organismos de água por se utilizar do sexo para produ-
doce, onde os teores de nutrientes zir filhos diferentes dele mesmo.
HIPÓTESES ECOLÓGICAS e a temperatura flutuam bastante, 4 William D. Hamilton (1980) –
George C. Williams (1966) e John e a reprodução sexuada predomi- Sexo é... “um mecanismo evolutivo
Maynard Smith (1971) – Sexo é... na em ambientes marinhos, mais pelo qual os organismos podem es-
“um mecanismo que permite a pro- constantes. Além disso, organismos capar dos seus parasitas” (teoria
dução de filhos geneticamente di- assexuados são comuns no início da sosigônica).
versos, capazes de enfrentar a va- sucessão ecológica, em países tem- LIMITAÇÕES: a serem descobertas.

n o v e m b r o d e 1 9 9 9 • CCIIÊÊNNCCIIAA HHOOJJEE • 2 9
BIOLOGIA EVOLUTIVA

vida surgiu na Terra. Os parasitas estão


sempre quebrando as barreiras defen-
sivas impostas pelo genótipo dos
hospedeiros, enquanto estes, com
a ajuda do sexo, criam continu-
amente novas defesas. Na au-
sência do sexo, os hospedeiros
permaneceriam em essência os
mesmos, enquanto os parasitas
iriam acumulando adaptações
que lhes permitiriam quebrar
todos os sistemas de defesa
dos primeiros. Cedo ou tar-
de, os hospedeiros seriam vir-
tualmente devorados de den-
tro para fora. Só resta a eles,
para fugir do batalhão de para-
sitas que os perseguem, conti-
nuar correndo.
O ciclo coevolutivo de parasitas
hospedeiros é produzir filhos com genótipos dife- e hospedeiros reflete essa perseguição eterna. In-
Figura 4.
A imagem rentes dos demais genótipos da população através divíduos com genótipo resistente aos parasitas re-
da fábula, da reprodução sexuada. produzem-se com sucesso, o que aumenta a fre-
com Alice O mundo em que esse modelo está inserido fi- qüência, na espécie, desses alelos (variações de um
correndo sem mesmo gene). Mas alguns raros parasitas conse-
cou conhecido como o mundo da Rainha Verme-
sair do mesmo
lha, nome dado pelo paleontólogo norte-americano guem quebrar essa defesa e começam a se reprodu-
lugar, ajuda
a entender Leigh Van Valen, da Universidade de Chicago, em zir com sucesso, espalhando o novo gene da viru-
a teoria referência a uma passagem da fábula Alice no país lência. Com o tempo, o antigo genótipo do hospe-
da Rainha dos espelhos, do inglês Lewis Carroll (1832-1898). deiro deixa de ser o mais resistente, passa a ter sua
Vermelha, freqüência reduzida, e um novo genótipo raro tor-
Nessa passagem, Alice foge do exército (de cartas de
como é
baralho) da Rainha Vermelha, mas não consegue se na-se a melhor defesa, espalhando-se na popula-
conhecida
entre os distanciar de seus perseguidores (figura 4). Nesse ção. Em outras palavras, a seleção natural, no mo-
cientistas momento, é advertida pela Rainha Vermelha: “Aqui, delo de Hamilton, depende da freqüência. Genó-
veja, você precisa correr o máximo possível, para se tipos comuns são selecionados negativamente (sua
manter no mesmo lugar.” Alice só seria pega se pa- freqüência diminui) e genótipos raros são selecio-
rasse de correr. nados a favor (sua freqüência aumenta).
Segundo Hamilton, uma ‘corrida armamentista’ Um efeito interessante desse tipo de seleção é
entre hospedeiros e parasitas ocorre desde que a que a variabilidade genética não é perdida nunca.

Figura 5.
As grandes
monoculturas,
que utilizam
plantas
geneticamente
uniformes,
são mais
suscetíveis
ao ataque
de pragas
e doenças

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É como se soluções genéticas obsoletas em dado As mesmas idéias de coevolução entre parasitas Figura 6. A
momento fossem temporariamente colocadas de e hospedeiros que ajudam a entender a evolução do majestosa
cauda dos
lado para serem eventualmente recicladas no futu- sexo podem ser úteis para explicar as diferenças
pavões seria
ro. Se isso é correto, a teoria da Rainha Vermelha fisiológicas, morfológicas e comportamentais entre uma espécie de
ajudaria a explicar a diversidade de alelos e, em machos e fêmeas. ‘propaganda
conseqüência, a existência de diferentes formas de genética’:
proteínas, que tanto intrigaram os geneticistas a as maiores e
mais bonitas
algumas décadas. Plumas: arma contra parasitas indicariam
Muitas das suposições decorrentes do modelo de que seus donos
Hamilton foram confirmadas recentemente. Estu- Quando o inglês Charles Darwin (1809-1882) pu- têm os genes
dos empíricos demonstraram que populações natu- blicou sua obra máxima, A origem das espécies, que garantem
rais têm uma substancial variação genética para em 1859, propondo que a diversidade biológica melhor
proteção
resistência às doenças e à virulência dos parasitas. poderia ser explicada pela evolução através do pro-
contra
Além disso, mostrou-se que há forte associação cesso de seleção natural, ele tinha consciência de parasitas
entre genótipos, como um sistema ‘chave-fecha- que alguns fatos desafiavam essa grande teoria. Se a
dura’: parasitas com a ‘chave’ certa atacam o hospe- evolução realmente ocorre pela “sobrevivência dos
deiro e reproduzem-se com sucesso, enquanto para- mais aptos”, como a seleção natural poderia expli-
sitas com a ‘chave’ errada penam para se car a evolução do elaborado arranjo das plu-
perpetuar. Muitos estudos indi- mas multicoloridas da cauda dos
cam, também, que espécies pavões?
com reprodução asse- O excesso de cores,
xuada são mais sus- formas e materiais des-
cetíveis a ataques de sa magnífica cauda,
parasitas que espé- que mais parece um
cies aparentadas traje carnavalesco
com reprodução (figura 6), dificil-
sexuada. Isso tam- mente pode ser
bém é verdade atribuído a um pro-
para variedades de cesso tão econômico
plantas. Qualquer quanto a seleção na-
agricultor sabe que tural. De fato, ao invés
monoculturas de cereais de promover a sobrevi-
geneticamente uniformes vência, tal estrutura parece
são altamente propensas a serem ser um fardo, que torna os pavões
devastadas por pragas (figura 5). machos mais suscetíveis à ação dos predadores.
A teoria da Rainha Vermelha prediz diversos E é evidente que isso não precisa ser assim, já que
padrões ecológicos que têm sido verificados na o ‘traje’ das fêmeas dos pavões é tão conservador
natureza. Segundo a teoria, por exemplo, quanto quanto os das senhoras vitorianas.
maior a diferença entre o tempo de vida do hospe- Em 1871, Darwin publicou um enorme tratado
deiro e o tempo de vida do parasita, maior será a denominado A origem do homem e a seleção em
pressão de parasitismo. Assim, o sexo deve ser mais relação ao sexo, no qual reconheceu que a evolução
freqüente em organismos grandes e de alta longevi- de muitas das diferenças entre machos e fêmeas
dade, o que foi confirmado em uma grande revisão (chamadas de características sexuais secundárias)
da literatura científica. Em outro exemplo, prevê-se só poderia ser explicada por um processo de seleção
que organismos com reprodução assexuada devem que privilegiasse o sucesso reprodutivo, mesmo que
ser mais comuns em ambientes instáveis, onde as isso acarretasse certo custo em termos de sobrevi-
relações parasita-hospedeiro são quebradas cons- vência. Para descrever esse processo, Darwin criou
tantemente. De fato, tais organismos são mais fre- o termo ‘seleção sexual’.
qüentes em campos do que nas florestas maduras, Ele notou que em muitas espécies ocorre com-
em países temperados e em topos de montanhas, petição entre machos, na disputa por fêmeas re-
condições de maior instabilidade ambiental. Além produtivas, e que alguns poucos machos monopoli-
disso, organismos de água doce, submetidos a gran- zam grande parte das oportunidades de reprodução,
des variações de temperatura e de teores de nu- enquanto os outros têm poucos filhos ou até mor-
trientes, tendem a se reproduzir mais assexuada- rem virgens. Assim, qualquer característica fisioló-
mente que organismos de ambientes marinhos, mais gica, morfológica ou comportamental que aumen-
constantes. tasse a probabilidade de sucesso no conflito entre 4

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Figura 7.
Características
sexuais
secundárias
como os chifres
dos veados
(OU as presas
dos elefantes/
OU as grandes
pinças dos
caranguejos)
também
funcionariam
como uma
demonstração
do melhor
potencial machos seria selecionada. Para Darwin, esse pro- rísticas sexuais, como os chifres dos alces, seriam
genético de cesso explicaria, por exemplo, porque machos são uma forma de ordenar os machos quanto às suas
seu portador em geral maiores e mais fortes que as fêmeas e qualidades genéticas antiparasitas.
possuem estruturas poderosas usadas como verda- Nesse mercado reprodutivo competitivo, porém,
deiras armas em combates físicos com outros ma- pode-se esperar que nem todos os machos sejam
chos (como os chifres dos veados, as grandes presas honestos quanto às suas qualidades. A tentação de
dos elefantes e as fortes patas dos caranguejos) produzir adornos um pouquinho mais elaborados
(figura 7). do que o vizinho, mesmo sem ter bons genes, é
Darwin percebeu ainda que em muitas espécies muito grande. Isso leva ao surgimento de propa-
o poder de escolher o parceiro reprodutivo está com gandas não-fidedignas. Para que isso não ocorra,
as fêmeas. Nesse caso, os melhores machos seriam segundo o evolucionista israelense Amotz Zahavi,
aqueles com mecanismos de sedução desenvolvi- da Universidade de Tel-Aviv, as características se-
dos. Isso explicaria, por exemplo, a evolução de xuais secundárias têm que ser custosas, de modo
cantos, danças e exibições altamente elaboradas dos que apenas indivíduos com genes realmente bons
comportamentos de corte de muitas espécies, as- possam produzi-las. Em outras palavras, se o custo
sim como o aparecimento das majestosas plumas da mentira é grande, não vale a pena mentir. É
dos pavões. interessante notar que enquanto Darwin considera
Em 1982, com a publicação do artigo de William o custo das características sexuais secundárias um
Hamilton (e de sua então aluna de pós-graduação subproduto não-desejável da seleção sexual, a teo-
Marlene Zuk), os parasitas ‘infectaram’ o cenário ria da Rainha Vermelha vê em tal custo uma condi-
dos debates sobre seleção sexual e evolução de ção essencial para o funcionamento do modelo.
características sexuais secundárias. No mundo da Essa nova teoria também resolveu um antigo
Rainha Vermelha, no qual os parasitas estão a pou- problema dos modelos de seleção sexual baseados
cos passos evolutivos atrás dos hospedeiros, acasa- em vantagens genéticas, identificado em 1930 pelo
lamento é coisa séria. Como em geral as fêmeas geneticista norte-americano Ronald Fisher (1890-
investem mais recursos na prole que os machos e 1962). Se há genes ‘bons’, e se as fêmeas preferem se
dedicam mais tempo ao cuidado das crias, espera-se acasalar com os machos que os possuem, tais genes
que sejam extremamente cuidadosas na escolha tenderiam a se espalhar na população e a se fixar
dos parceiros reprodutivos, pois uma má escolha rapidamente, e as fêmeas não conseguiriam
pode comprometer de maneira vital a sobrevivên- mais fazer essa escolha. Assim,
cia de seus filhos. como as vantagens genéti-
Figura 8.
O colorido Acredita-se, portanto, que as fêmeas, ao decidir cas seriam mantidas
dos pássaros, com quem se acasalar, buscam sinais que eviden-
em geral ciem a presença de ‘bons genes’ contra parasitas,
nos machos, para aumentar as chances de que seus filhos adqui-
e até os cantos
ram essas defesas. Ao mesmo tempo, espera-se que
mais elaborados
seriam machos possuidores de bons genes façam ‘propa-
maneiras ganda’ disso. Assim, cores vistosas (figura 8), exibi-
de atrair ções atléticas prolongadas e cantos elaborados po-
o interesse dem ser vistos como ‘propagandas genéticas’ que
das fêmeas
sinalizam as qualidades relativas entre potenciais
e garantir
o sucesso parceiros reprodutivos. Além disso, os combates
reprodutivo entre machos e a evolução de muitas outras caracte-

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BIOLOGIA EVOLUTIVA

através das gerações, levando à seleção de caracte- Figura 9.


rísticas tão elaboradas como a cauda dos pavões? A teoria
da Rainha
A dinâmica coevolutiva entre hospedeiros e pa-
Vermelha prevê
rasitas foi o truque que Hamilton usou para contor- que espécies
nar o problema. Para ele, as fêmeas sempre procu- submetidas,
ram se acasalar com o melhor genótipo da popula- durante
ção, mas no mundo da Rainha Vermelha a seleção sua história
evolutiva,
depende de freqüência, e os genes que conferem
a alta pressão
resistência aos parasitas de hoje provavelmente não de parasitismo
serão os melhores para as pressões de amanhã. Ou deveriam ter
seja, o que é ‘bom’ muda continuamente. Esse am- características
biente teórico admite ciclos coevolutivos longos, sexuais
secundárias
que permitem o desenvolvimento de características
mais
sexuais secundárias elaboradas. complexas.
Diversos estudos recentes, de campo e de labora- dutivo. A relação entre parasitismo e menor sucesso Se isso não
tório, têm verificado algumas predições da teoria da reprodutivo também foi confirmada em moscas- for verdade,
Rainha Vermelha. Em andorinhas (Hirundo rustica), das-frutas (Drosophila testacea). a teoria é posta
em xeque
machos parasitados por carrapatos têm caudas mais O teste mais difícil que a teoria da Rainha Verme-
curtas do que machos não-infectados, e as fêmeas lha enfrentou talvez tenha sido o chamado teste da
preferem acasalar-se com machos com caudas lon- previsão interespecífica. Segundo a teoria, espécies
gas. Além disso, um interessante experimento tro- submetidas durante sua história evolutiva a uma
cou a metade dos ovos entre ninhos e revelou que a maior pressão de parasitas deveriam exibir caracte-
carga de parasitas dos filhos é mais relacionada com rísticas sexuais secundárias mais elaboradas (figura
a carga de parasitas dos pais genéticos do que com 9). Para testar tal hipótese, Hamilton e Zuk cruza-
a dos ‘padrastos’. Isso revela que a resistência aos ram dois tipos de dados. Marlene Zuk ordenou as
parasitas é hereditária, um dos fatores-chave para a espécies de aves norte-americanas em função do
teoria de Hamilton e Zuk funcionar. grau de desenvolvimento de características sexuais
Em galinhas selvagens (Gallus gallus), desco- secundárias. Aves com colorações ultra-elabora-
briu-se que galos não-parasitados têm cristas mais das, como Piranga olivacea (da família dos tanga-
desenvolvidas do que galos contaminados por ver- rás) ganharam nota 6, enquanto pássaros monocro-
mes intestinais, e que a preferência de acasalamento máticos receberam nota 1. Ao mesmo tempo, Hamil-
das galinhas está mais associada às cristas do que ao ton pesquisou a bibliografia veterinária e zoológica
tamanho do corpo do galo. No peixe barrigudinho para calcular um índice da pressão de parasitas Sugestões
(Poecilia reticulata), machos mais parasitados exi- (causadores de infecções sangüíneas crônicas) para para leitura
bem o comportamento de corte com menos freqüên- cada uma dessas espécies. Se a teoria estivesse
cia. Com isso, as fêmeas tendem a se acasalar correta, aquelas com penas mais coloridas e elabo- CRONIN, H.
A formiga
com os menos parasitados. Machos radas deveriam ter mais parasitas. E foi exatamente e o pavão –
de pererecas (Hyla versicolor) isso que eles encontraram. Altruísmo e
seleção natural,
parasitadas por vermes Papirus,
helmintos emitem me- São Paulo,
1995.
nos chamados de cor- A teoria resiste às provas DARWIN, C. A
te e têm baixo su- origem do
cesso repro- A existência do sexo tem desafiado a mente de homem e a
seleção sexual,
grandes evolucionistas desde o século passado. Hemus,
Grande número de hipóteses foram propostas ten- São Paulo,
1974.
tando identificar o principal benefício da reprodu- HAMILTON, W. W.
ção sexuada. Muitas obtiveram certa popularidade ‘Heritable true
por algum tempo, mas depois foram deixadas de fitness and
bright birds:
lado. Outras foram revistas e voltaram ao cenário a role for
científico após terem sido quase esquecidas. parasites’,
in Science,
A teoria da Rainha Vermelha, desde sua apresen- v. 218, p. 384,
tação, foi inúmeras vezes desafiada, o que é de- 1982.
RIDLEY, M.
monstrado pelo grande número de trabalhos já pu-
The red queen,
blicados a seu respeito. No entanto, ao que tudo Penguin Books,
indica, a Rainha Vermelha, assim como Alice, con- Londres,
1994.
tinuam correndo à frente de seus adversários. n

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