Você está na página 1de 8

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica


2008 – UFU 30 anos

UMA ANÁLISE SÓCIO-ANTROPOLÓGICA DA MEDICINA CIENTÍFICA


MODERNA

Henrique Arantes de Melo1


Faculdade Católica de Uberlândia – Rua Padre Pio nº 300; Bairro Osvaldo Resende. CEP.: 38400-386.
henriqueamelo@yahoo.com.br

Resumo: O presente artigo tem por objetivo trazer em discussão questões sociais e culturais para o
campo da saúde e da medicina, entendendo que esta área do conhecimento humano precisa sim
levar em consideração estudos sociológicos e antropológicos, pois estes trazem apontamentos
importantes que não devem ser negligenciados. Um questionamento essencial que proponho neste
estudo é: será que as instituições médicas atuais, as classes que detém o poder dos conhecimentos
em saúde estão conseguindo responder e agir com conhecimento de causa na raiz da enorme
quantidade de mazelas biopsicosociais que assolam as populações urbanas e as comunidades? A
racionalidade médica moderna tem demonstrado uma série de avanços no campo tecnológico e
científico, mas o modo de se atuar a partir deles evidencia que seus pressupostos epistemológicos
que fundamentam sua práxis, o cartesianismo e mecanicismo, revelam limitações que não devem
ser desconsideradas. Além de que, por mais que esses pressupostos desconsiderem o papel das
ciências humanas na elaboração de conceitos, métodos e técnicas, está cada vez mais claro que a
medicina moderna tem sim uma práxis cultural e social. Concomitante a análise da racionalidade
moderna da medicina procuro também analisar as representações simbólicas e as práticas
consolidadas em torno das categorias de corpo, saúde e doença que nos revelam nada mais do que
a hegemonia do mecanicismo e do cartesianismo nos círculos de educação e cultura. Como
metodologia utilizei-me de observações de campo, chegando a realizar três entrevistas com um
médico profissional liberal e dois médicos servidores públicos que exercem também a função de
professor universitário. A fundamentação teórica da pesquisa foi em literatura específica da área
da antropologia da saúde, sociologia e política chegando a consultar revistas e livros científicos de
autores, que buscam fazer o esforço de compreender este campo do conhecimento enquanto uma
área de atuação transdisciplinar.

Palavras-chave: cultura, sociedade, medicina moderna, práticas, representações.

1. INTRODUÇÃO

De que maneira as instituições médicas atuais e a classe médica que detém o poder dos
conhecimentos em saúde, respondem e agem na origem da enorme quantidade de mazelas
biopsicosociais que assolam as populações urbanas e as comunidades? Partindo desta questão
central, concomitantemente ao estudo teórico, apresento de forma inicial parte das reflexões
surgidas das entrevistas e observações realizadas.
Ao entrevistar dois médicos (A e B) pertencentes ao corpo docente da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal Uberlândia que atuam no Hospital de Clinicas - o setor público –
e um outro médico (C) que atua no setor privado, foi possível colher informações que

1 Graduado em Ciências Sociais pela FAFCS-UFU; especializando em Gestão Ambiental pela Faculdade
Católica de Uberlândia; professor da Rede Pública Municipal de Uberlândia; colaborador no Grupo de Estudos em
Etnobotânica do Instituto de Biologia da UFU.
possibilitassem uma análise acerca da visão de mundo, dos valores e do paradigma propalado pela
medicina cientifica ocidental bem como as representações e práticas consolidadas em torno do
corpo, da saúde e da doença.2
No que diz respeito à formação do médico podemos encontrar diferenças relativas das
escolhas cientificas e profissionais. Podemos dividir a medicina cientifica moderna na atualidade
dentro de várias vertentes. Entre algumas delas destaco uma clássica, tradicional, como afirma o
Médico A e o Médico B, outra tecnológica e das especialidades e outra ligada à prevenção e à
comunidade que seria uma medicina de caráter social ligada à saúde coletiva.
O Médico A entrevistado considerou-se pertencente ao ramo da medicina clássica que ele
classifica também de tradicional. Possui uma visão mais generalista da prática médica, devido à sua
formação clinica geral. O Médico B considera-se um médico de esquerda por participar de uma
vertente ligada à medicina preventiva e a saúde comunitária. O Médico C pertence ao lado mais
tecnológico da medicina considerando-se um especialista profissional libera em determinada área
da medicina.
Nas entrevistas realizadas observa-se que a escolha pela formação em medicina é na maioria
das vezes feita em relação ao prestígio da carreira profissional, ao poder que ela confere. A idéia do
status e da autoridade se evidencia na fala dos entrevistados. O sucesso financeiro é outro aspecto
que igualmente destacam. A medicina é pensada muitas vezes como um “sonho burguês de
realização” como afirmou o Médico A, sobretudo em relação ao “poder extraordinário” que ela
encerra quando vista enquanto meio de satisfação individual, profissional, social, política e
econômica.
Esta dissertação apresentará uma análise inicial sobre o tema, a partir de uma leitura crítica
do material coletado e dos conceitos principais nas organizações sociais, educacionais e de
prevenção relacionados à saúde.

2. MATERIAIS E MÉTODO

Nesta dissertação, a fundamentação teórica se dá pela leitura sistemática da bibliografia


apresentada na área de antropologia da saúde, sociologia e política chegando a consultar revistas e
livros científicos de autores, que buscam fazer o esforço de compreender este campo do
conhecimento enquanto uma área de atuação transdisciplinar.
Concomitantemente, a coleta de dados e a observação em pesquisas de campo, tanto dos
espaços aqui mencionados e estudados, quanto dos resultados dos tratamentos, da atuação dos
profissionais e dos conceitos que direcionam suas práticas, constituem os materiais e métodos para
sua realização. As observações de campo contam com a realização de três entrevistas com um
médico profissional liberal e dois médicos servidores públicos que exercem também a função de
professores universitários.
As considerações da sociedade e dos seus grupos diversos acerca da saúde - bem como da
OMS e das instituições envolvidas na definição de saúde e de doença, no desenvolvimento, garantia
e constante aperfeiçoamento da saúde das populações – participam, mesmo que timidamente, desta
breve reflexão e elaboração do tema proposto.

3. DISCUSSÕES E RESULTADOS

3.1. Dialogando com as entrevistas, observações e conceitos principais.

Este estudo demonstrou que a formação profissional e científica de todas as vertentes da


medicina aqui analisadas tem como fundamento epistemológico a racionalidade cartesiana e o
mecanicismo enquanto modelo e paradigma de compreensão dos fenômenos e processos biológicos
e patológicos bem como o reducionismo analítico e experimental como método de investigação.

2 Pesquisa e entrevistas realizadas no período de novembro e dezembro de 2007 com o intuito de levantar
informações para produção de dissertação de monografia para conclusão do curso de graduação.

2
Este modelo de racionalidade científica que se faz hegemônico no interior das instituições de
ensino e pesquisa em saúde, pode ser considerado como uma tradição3 corrente nos círculos de
formação acadêmica e profissional, que se afirma, com o tempo, como um modelo poderosamente
operativo no processo de definição sócio-cultural da prática médica. Como afirma Raymond
Williams, “numa cultura particular em seu passado e no presente certos significados e práticas são
escolhidos para ênfase e outros são postos de lado ou negligenciados” (1979).
Nesse sentido, mesmo em uma organização sócio-cultural como a da medicina
contemporânea, podemos ver traços muito fortes de uma ideologia científica que tem suas bases nos
primórdios do pensamento moderno do ocidente. Tal paradigma condiciona e estrutura a medicina
atual e define o sentido e evolução de seus pressupostos, conceitos, métodos e procedimentos
interventivos, assim como a formação dos profissionais que serão encarregados de promover a
“saúde humana”.
Jayme Landmann afirma que “a medicina pode ser considerada como uma cultura com sua
visão particular de mundo. Durante o processo de formação médica, o aluno passa por uma espécie
de endoculturação4 em que gradualmente adquire uma perspectiva particular dos problemas de
saúde.” (1982).
A base dessas premissas é a racionalidade cientifica, a ênfase sobre a mensuração objetiva e
numérica, ênfase em dados psicoquímicos, dualismo mente e corpo, ênfase sobre o paciente
individual e a idéia da doença como entidade. Estes são os princípios do currículo Flexeriano como
afirma o Médico B. No entanto, é verdade que no interior da medicina encontramos posturas
diferenciadas em relação à formação profissional que extrapolam os códigos culturais da tradição
dominante no ensino e na pesquisa. Entre uma delas, definida como de “esquerda” como colocou o
Médico B e o Médico A, temos o exemplo da medicina preventiva e comunitária engajada em
serviços de atenção primária em saúde, assim como a epidemiologia, a saúde coletiva entre outras.
No caso da medicina preventiva, esta corrente da medicina, menos ortodoxa, privilegia a questão da
higiene doméstica, a alimentação, os hábitos de vida, sendo nesse sentido menos medicamentosa
que outros setores da medicina, uma vez que procura educar a população, transferindo
conhecimentos que possam fazer a diferença no cotidiano propiciando um modo de vida mais
saudável e com menos intervenções médicas.
Mas ainda prevalecem posições mais ortodoxas e clássicas como a do clínico geral, o
médico hospitalar e dos profissionais liberais a exemplo dos técnicos e especialistas ligados,
sobretudo, ao setor privado, às indústrias de tecnologias em medicina, à alopatia e indústria de
fármacos, enfim, ao lado tecnológico e mercantil da saúde, ao mundo do mercado e da produção.
Mesmo o clínico geral tradicional, na atualidade, vem perdendo espaço uma vez que os
currículos em medicina valorizam cada vez mais as especialidades e as tecnologias. “As
capacidades de observação e comunicação na relação médico-paciente, próprias da sensibilidade e
conhecimento de um profissional generalista que tem uma visão do todo orgânico” como afirma os
Médicos A e B, valorizando minimamente os aspecto psicológicos, culturais e sociais do indivíduo,
vêm sendo abandonadas e substituídas pelos profissionais dependentes das tecnologias diagnósticas.
Os “dados objetivos, quantitativos e mensuráveis a respeito do estado físico do paciente” como
afirma o Médico C, substituiu a análise clinica da medicina tradicional. Diz ainda o Médico C que a

3 Os Médicos A e B consideraram que fazem parte de uma formação tradicional na medicina, modelo esse que pode ser
pensado como um paradigma dominante nos círculos de educação e pesquisa. Ambos os médicos, com idades
aproximadas, em 1974 estava havendo uma mudança nos currículos das faculdades de medicina do sudeste do pais.
Veio a ser introduzidos nos programas das faculdades de medicina dessa região o modelo Flexieriano, que desde 1910
propunha a separação entre ensino básico e clinico e a criação de hospitais, clínicas e laboratórios para o treinamento de
recursos humanos para a saúde. Portanto, no sentido atribuído por Willians(1979, 119) esse currículo pode ser
considerado uma tradição apenas no sentido de que “é um aspecto da organização social e cultural” da medicina
moderna, “é uma versão do passado que deve ratificar uma pratica no presente”, o interesse de uma classe específica.
4 Cecil Helman 1994; 4a Ed. é quem trata deste assunto. Esse termo é definido como um”processo através do qual o
indivíduo adquire gradualmente a “lente”cultural daquela sociedade daquele grupo, através da qual os indivíduos
percebem e compreendem o mundo que habitam”

3
precisão da máquina diminui os erros médicos, mas coloca que a precisão tecnológica é limitada no
sentido em que diz o que está ocorrendo com o corpo, e como está ocorrendo e evoluindo a doença,
mas não responde o porque das causas do que ocorre, se limita à descrições.
Como afirma Landmann “A ideologia que predomina na formação do médico em nossas
escolas é a da excelência técnica” (1983), sendo que esta afirmativa coaduna com as falas dos
médicos A, B e C. Será então que as tecnologias assim como a racionalidade tem distanciado
drasticamente a percepção sensível do médico em relação ao paciente, seu corpo e sua saúde na
medida em que os diagnósticos tornam-se mensuráveis de acordo com uma precisão matemática
que a tecnologia passa a oferecer?
Fica evidente que a maior parte da classe médica não se interessa, considerando algumas
exceções, em desenvolver uma abordagem humana, global e integrada de sua práxis. A
compreensão e o interesse pelos problemas sociais e culturais e pelos aspectos até mesmo
psicológicos do campo da saúde têm dado lugar a um “objetivo de formação muito centrado no
alcance do profissional técnico padrão” como afirmou o Médico C, voltado para o mercado de
atendimento de pacientes, submetido aos esquemas condicionantes das estruturas econômicas e do
setor produtivo em associação com as instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa. Isto fica
claramente perceptível nas falas dos médicos A e C, quando afirmam que a “formação acadêmica
desde 1975” - Médico A - vem centrando-se em uma “prática muito voltada para as tecnologias e
especialidades e o atendimento de pacientes no setor privado”.
Segundo os médicos entrevistados, sendo o mais enfático o Médico B, “são poucos os
alunos que buscam uma formação engajada no trabalho social”, comunitário e no serviço e
atendimento ao público, mesmo porque o Estado, poucas vezes adota programas sociais duradouros
e abrangentes. “Os serviços de atendimento ao público realizados pelo Estado concentram-se,
infelizmente, na atenção hospitalar e medicamentosa”.
O campo de ação da medicina é muito mais amplo do que o atendimento de pacientes e
indivíduos doentes. Mesmo que a prática médica seja centrada no organismo doente, é no indivíduo
em relação à organização social de que participa que ela fundamenta sua práxis. Não devemos
correr o risco ingênuo de isentar a medicina das responsabilidades sociais, políticas e culturais que
ela encerra mesmo que negligencie e negue no seu sistema epistemológico a trabalhar com
categorias próprias das áreas de humanas, ou seja, com uma abordagem interdisciplinar, como é o
exemplo da medicina social, medicina integrativa, medicina preventiva algumas correntes da
epidemiologia, da psiquiatria entre outras. Pelo contrário um grande setor do campo da saúde e da
classe médica trata a saúde coletiva e individual enquanto uma prática exata, neutra e objetiva
enfim, positiva e com fins mercadológicos e produtivistas afirmando-se, sobretudo como uma
profissão de massa.
Mas certamente os saberes e as práticas médicas hegemônicas vêm exercendo enorme
influência em diversas dimensões da vida cotidiana. A pratica médica, vai muito além do mero
atendimento a pacientes. Segundo Paula Monteiro o processo de “iatrogênese social da medicina”5
da sociedade moderna estende, pois o “controle dos profissionais de saúde a todos os momentos da
vida social” (1985, 72). Trata-se de um universo amplo de ações que envolvem a imposição ativa de
normas, hábitos, símbolos e valores sobre as populações quando desenvolve conceitos sobre o
corpo, questões de higiene, saúde e doença e sobre as próprias relações humanas quando se trata da
sexualidade, da alimentação entre outras, práticas estas que demonstram o sentido normatizador que
ela encerra.

5 Paula Montero 1985 1a ed. Esta autora faz uma citação acerca da crítica radical de Ivan Illich ao analisar o controle
que a medicina desempenha nas sucessivas fases da vida individual e coletiva das populações. Ivan Illich define essa
prática pelo conceito de “iatrogenia social” que seria a “medicalização do mal-estar”, a medicina em excesso nas
sociedades modernas, ou seja, a produção desmedida da mercadoria “saúde”, bem como o poder enorme de intervenção
da instituição médica sobre a doença, a dor e a morte ao longo da vida do indivíduo. Ao analisar a instituição escola,
Illich diz que a “institucionalização de valores” que vem se dando em nossas sociedades leva a um “(...) processo de
degradação que se acelera quando necessidades não materiais são transformadas em demanda por mercadorias”
(1979, p. 22). Esse autor defende que a tecnologia deve ser usada “(...) para criar instituições que sirvam à interação
pessoal, criativa e autônoma e que façam emergir valores não passíveis de controle substancial pelos tecnocratas”

4
Foucault denominou esse processo de “normalização” sustentado pelo que ele chama de
“racionalidade anátomo-clínica” (1980), surgida no início do século XVIII e com grande
importância na viabilização da sociedade industrial. Em uma análise histórica e política das
instituições, Foucault faz a desmontagem das instituições de educação e de cultura, inclusive da
medicina, revelando-a enquanto instituição de micro-poder. Por intermédio de pequenas
instituições, tais como o hospital, a escola, o homem é fixado no aparelho de produção e seu corpo e
seu tempo tornam-se força de trabalho: o homem é tornado força produtiva. Pequenas e grandes
instituições fazem parte de um todo complexo destinado a não somente, tal LUZ afirma: “fixar o
homem ao aparelho de produção” e para que tal aconteça a enquadrar o homem e os indivíduos às
relações sociais e a domina-los em seus corpos, torna-los submissos às normas que regem essas
relações sociais. (1986).
Portanto, é imprescindível entender a prática médica enquanto uma prática cultural que
contribui para a constituição desta sociedade por elaborar valores, normas e símbolos de alcance
coletivo. Quando analisamos as concepções sobre o corpo a saúde e a doença no âmbito da
medicina científica moderna, percebemos que seus valores, métodos e conceitos se formam em
consonância com a racionalidade moderna, paradigma sócio-cultural este que abarca o conjunto da
sociedade de massas.

3.2. Algumas representações e práticas relativas ao corpo, à saúde e à doença.

Ao que se refere à compreensão do corpo humano, podemos perceber pelas falas dos
médicos que ele é tido, pensado e representado em termos de natureza exclusivamente biológica.
Todos os três médicos entrevistados, desde o mais tecnicista até o aquele voltado para uma
visão social da medicina afirmaram a supremacia dos princípios cartesianos na formação acadêmica
e cientifica. Como coloca o Médico A dos entrevistados os significados em torno do corpo
enquadram-se “dentro de uma perspectiva organicista, dentro do concreto, do físico”; (Médico B ;
Médico C).
Laplantine coloca que “a medicina ocidental moderna é um pensamento da extensão no
sentido cartesiano, ou seja, do espaço e do concreto, que é ainda hoje o quadro de referência do
conhecimento positivo” (1991). As concepções científicas que definem ainda hoje seu significado
dão-se a partir das descobertas em observações laboratoriais, que dissecam , dividem e repartem a
unidade biológica do ser humano em infinitas partes. Isso ficou patente com o desenvolvimento da
anatomia, da fisiologia e da microbiologia.
Na sociedade contemporânea é possível por vezes perceber analogias dos corpos humanos
com máquinas compostas de peças, engrenagens que realizam funções específicas. Na medicina o
corpo é definido em termos de mecanismos e funções fisiológicas, podendo realizar com o meio
apenas trocas físicas, químicas e biológicas. Neste caso, corpo, mente e alma estão cindidos.
Helman: “Este modelo inclui a idéia de que partes do corpo assim como as peças de uma máquina
podem sofrer danos e parar de funcionar dentro da normalidade que lhe é esperada”. (1994).
No sentido definido por Foucault as intervenções da medicina “instituições de micro poder”,
são feitas com o intuito de normalização das funções de cada peça para uma melhor atividade do
todo orgânico do indivíduo em sociedade. Segundo Helman: “Cirurgias, transplantes, próteses
modernas, dispositivos eletrônicos inseridos no corpo, marca-passo,” (1994) o que reforçam a idéia
da imagem do corpo como uma máquina que quando com defeito precisa de reparos e intervenções.
Ele ainda afirma: “Aliada à imagem do corpo como máquina está a imagem da mente como um
computador. O uso crescente de computadores tem influenciado a percepção que os habitantes do
mundo ocidental tem de si mesmos”(1994).
Outra representação interessante do corpo e de seu funcionamento é a compreensão que se
tem dele enquanto uma fábrica de energia que constantemente precisa de combustíveis para
continuar funcionando normalmente na vida diária. Nestes casos, a medicina coopera com uma
infinidade de “insumos” estimuladores para a manutenção da energia do corpo e de seu
funcionamento normal em sociedade. São, para Helman, “alimentos, bebidas, medicamentos,

5
tônicos, vitaminas sintéticas, remédios industrializados e artificiais, álcool, tabaco, drogas
psicotrópicas” (1994) sem os quais o funcionamento da máquina humana não seria satisfatório.
A medicina, portanto cria padrões de representação e comportamento frente ao corpo e as
relações desse corpo com os outros corpos no mundo da vida e do trabalho, com objetos e pessoas
gerando hábitos e costumes voltados para modos de vida da moderna sociedade ocidental
industrializada.
Enfim, o conteúdo sensível e simbólico é removido do corpo abrindo espaço para o manejo
das funções orgânicas por medicamentos, cirurgias e manipulações diversas. Neste sentido, afirma
Landman: “O corpo é conceituado em termos de sistemas e órgão independentes” (1984), a
especialização passa a valorizar a concepção mecânica, excluindo a análise da totalidade do
organismo.
Quanto às concepções sobre a doença, podemos ver claramente que a medicina ocidental é
fortemente centrada no diagnóstico e classificação de patologias, que ela chama de “estudo da
etiologia específica das doenças”. Ela está preocupada primeiramente com a doença e não com a
saúde. Como nos coloca uma médica indiana Vinod Verma “a pesquisa médica está voltada para
descobrir a cura para as doenças, mas existe pouca discussão quanto a descobrir métodos para
manter a boa saúde e adoção de medidas preventivas” (1995). Ela dá muito mais ênfase na
produção de conhecimentos voltados para a constatação de estados patológicos. Boa parte de seus
estudos e pesquisas, caminha para a análise de desvios, distúrbios, infecções, contaminações,
desarranjos, epidemias, insalubridades. Poucos são os estudos sobre vitalidade, equilíbrio, harmonia
corpo, mente, alma.
Segundo a OMS saúde é definida como “um estado de completo bem estar físico, mental e
social e não apenas a ausência de afecção ou doença. Mas, como aponta Ana Lúcia Magela de
Rezende este conceito é mais “ideal, estático e subjetivo” (1989) do que real ficando apenas no
plano do discurso. Na prática ela diz que não é assim que a medicina em geral trata a saúde. “Na
área física” a dimensão mais valorizada pela medicina “o bem estar tem sido visto como uma
adaptação biológica do homem ao ambiente. A doença seria por sua vez a desadaptação e o mal
estar”. Nessa mesma linha, o Médico B. diz que o “conceito de doença e saúde pode ser pensado
como um fenômeno acidental que depende do estado, lugar e adaptação do indivíduo ao meio”,
excluindo toda e qualquer influencia psicossomática.
Existe uma “primazia estrutural do modelo etiológico tomado das ciências experimentais e
naturais que visa fazer da medicina uma ciência exata” no diagnóstico das doenças. A localização
das propriedades essenciais das doenças, ou etiologia das doenças dá-se pela catalogação das
enfermidades à maneira das classificações botânicas. Segundo Laplatine: “Seu modelo
epistemológico é fundamentado na localização das propriedades essenciais das doenças que podem
ser catalogadas, divididas em famílias, gêneros, espécies e subespécies, à maneira das classificações
botânicas(...) Doenças de vários tipos e espécies são classificadas em grupos e diferentes processos
patológicos(...)” (1986)
Mas não é só esse o problema. A questão é que a partir disso a medicina torna-se
fundamentalmente objetivista. O isolamento e constatação das doenças a partir dos doentes e uma
classificação das doenças em espécies é um avanço, mas isso restringiu seu progresso porque o
saber médico ocidental fundamentou-se no biológico e no material. As doenças são materialmente
isoláveis sendo que a causa da patologia é freqüentemente atribuída a um agente material – físico,
químico ou biológico - ou a um processo orgânico – fisiológico, morfológico ou genético.
O câncer, uma doença da modernidade, é ainda tratado por via das vezes como um distúrbio
principalmente de natureza genética e orgânica. Muitos distúrbios mentais de todas as ordens, a
exemplo das psicoses, esquizofrenia, ausência, autismo são entendidos muitas vezes, por médicos
psiquiatras e até mesmo por alguns psicólogos como unicamente orgânicos, partindo de uma
compreensão da disfunção genética ou neurológica do indivíduo o que não está errado, mas essa
interpretação restringe-se a condições meramente materiais. Também, muitas condutas consideradas
como desvios de comportamento, são atribuídos em algumas leituras mais conservadoras da
psiquiatria e da neurologia ao indivíduo atomizado em relação a padrões pré-estabelecidos de

6
normalidade que valem igualmente para todos; sua individualidade, sua totalidade biopsicosocial e
cultural são desprezados. Como afirma Laplantine “a ontologia de Pinel”, um dos pais da
psiquiatria, “tem uma proposta de repertoriar de maneira exaustiva os distúrbios mentais segundo o
espírito naturalista de Linné” (1986). Estes significados representações e práticas por mais que
venham sendo superados por pesquisas científicas recentes insistem em se manter no interior das
instituições médicas o que revela um caráter ainda ortodoxo de sua práxis.
A doença para a medicina científica moderna então tem uma causa precisa e específica. A
segurança da medicina cientifica moderna reside, portanto, em constatar a patologia em extensões
localizadas no espaço concreto dentro ou fora do corpo. Pode ser um vírus, uma bactéria ou mesmo
uma alteração orgânica, fisiológica ou morfológica, psíquica. Os sintomas têm que ter “uma causa
precisa e única” localizada no espaço e tempo concretos. É tranqüilizador e funcional para a
medicina pensar que a saúde e as doenças são, tal Laplatine afirma: “realidades que tem pouco a ver
com a pessoa do doente”, (1986) com sua condição biopsicosocial, com seu meio ambiente. O eu,
os hábitos, a cultura, a sociedade, a moral não são válidos para a compreensão da origem da doença
o que contribui para por fim ao desgaste da busca do sentido da doença. Como afirma o Médico A
“a medicina tradicional moderna é uma medicina de constatação da doença, não de interpretação”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Entendo que a análise do discurso dos agentes da medicina oficial bem como de uma
literatura científica específica possam evidenciar contradições entre as representações, as práticas e
as estruturas internas do campo da saúde. É perceptível nas falas dos sujeitos que compõem a classe
médica científica que o paradigma oficial vive na contemporaneidade um momento de
transformação de seus conceitos e modelos assentados na mecânica newtoniana e no cartesianismo
que constituem o parâmetro de referência do desenvolvimento das ciências e tecnologias modernas.
Vários profissionais da medicina oficial vêm tomando consciência de que é preciso criar novos
horizontes de referência, mas na prática ainda encontram dificuldades estruturais de realizar essas
mudanças de ordem sobretudo política e econômica.
O surgimento ou ressurgimento de outros paradigmas em saúde estão ligados a diversos
acontecimentos e situações de natureza social, econômica, política e cultural decorrentes sobretudo
do aumento de patologias com raízes no modelo de desenvolvimento da sociedade capitalista
moderna. O exponencial aumento de casos de câncer, esquizofrenia, somando-se ainda diversos
males crônicos de algumas doenças como o stress, a diabetes, a asma, a hipertensão entre tantas
outras intensificam com o modo de vida moderno. Outros exemplos são as epidemias que hoje mais
do que nunca tem uma ligação direta com o modelo vigente, tendo uma raiz no sócio-cultural, não
sendo, portanto, apenas um acidente natural.
Jayme Landmann em seus estudos chega a constatar que muitas doenças como o câncer, o
diabete, o enfisema pulmonar a artrite, os males cardíacos e outras doenças prevalentes na
civilização ocidental, predominam em áreas “ricas” que se desenvolveram pela “modernização da
sociedade” (1983). Pesquisadores da área da saúde, principalmente sociólogos e antropólogos,
adotam o ponto de vista de que várias doenças modernas são na realidade, como afirma Laplantine:
“uma conseqüência da sociedade industrial a qual tem modificado completamente todos os hábitos
de vida, alimentação, sanitarismo e trabalho nos últimos 200 anos”(1983) sendo em alguns casos
resultantes de uma adaptação problemática dos seres humanos aos novos padrões de vida.
Parte da academia percebe que o paradigma que se pretende hegemônico na medicina,
centrado no objetivismo e reducionismo fisicalista exacerbado das análises não vem conseguindo
responder questões que envolvam uma observação mais qualitativa e mesmo antropológica dos
fenômenos patológicos. Estudos em antropologia da saúde revelam que questões relativas à
subjetividade, experiências individuais, histórias de vida, a identidade do sujeito-paciente, à sua
cultura, seus hábitos, costumes, modos de vida e às representações simbólicas do grupo social em
que está inserido quando não consideradas com o devido valor coloca por vezes em cheque a
eficácia dos modos de tratamento bem como as tecnologias utilizadas.

7
Pensar o campo da saúde para além da dimensão orgânica, física, mecanicista e pragmática
que lhe vem sendo atribuída desde o século XVII pelas ciências naturais e em larga medida adotada
pela medicina cientifica moderna faz-se necessário; a saúde merece uma atenção especial das áreas
de humanas. Teorias sociológicas e antropológicas na contemporaneidade vêm desenvolvendo
novas metodologias de abordagem transdisciplinares; tais abordagens superam os problemas
colocados pelas correntes ortodoxas funcionalistas e estruturalistas sejam elas materialistas ou
positivistas que tratam os problemas em saúde de maneira mecanicista e pragmática
Boa parte dos estudos em ciências sociais e saúde desenvolve suas análises orientadas por
um viés holístico que valorize as várias dimensões do gênero humano como sua existência
simultaneamente, biológica, psicológica, cultural, social e até mesmo espiritual. A compreensão
desta área do conhecimento humano extrapola a epistemologia voltada apenas para as ciências
naturais. Nada mais certo que as orientações metodológicas da antropologia serem pluri ou
transdisciplinares. O campo da saúde define-se hoje, portanto, enquanto uma área de abrangência
biopsicosocial, no sentido atribuído por Marcel Mauss do fenômeno total, a saber, “Na sociedade
mesma, quando estudamos um fato especial, é com o complexo psicofisiológico total que devemos
lidar” (2003). Assim, estudos em saúde requerem também, uma contribuição especial da sociologia
e da antropologia.

5. REFERÊNCIAS

ALVES, Paulo César; RABELO, Miriam Cristina – “Antropologia da saúde: traçando identidade e
explorando fronteiras” 1ª ed. – Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.
DUARTE, Luiz Fernando Dias; LEAL, Ondina Fachel – “Doença, Sofrimento, Perturbações:
perspectivas etnográficas”. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1998.
FOUCAULT, Michel (1963) - “O nascimento da clínica” 2. ed. - Rio de Janeiro: Forense
Universitára, 1980.
HELMAN, Cecil G. – “Cultura, Saúde e Doença” 2a ed. – Porto alegre: Artes Médicas, 1994.
LAPLANTINE, François – “Antropologia da doença” 1a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1986.
LANDMANN, Jayme – “Evitando a saúde, promovendo a doença” 2ª ed. – Rio de Janeiro: 1982.
LANDMANN, Jayme – “Medicina não é saúde: As verdadeiras causas da doença e da morte 1ª ed.
– Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
LUZ, Madel T. – “As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia” 3ª ed. –
Rio de Janeiro: Graal, 1986.
LUZ, Madel T. – “Medicinas alternativas” – Rio de Janeiro: Physis – Revista de Saúde coletiva,
2005.
MAUSS, Marcel – “Sociologia e Antropologia” – São Paulo: Cosac e Naify, 2003.
MONTERO, Paula – “Da doença a desordem – A magia na Umbanda.” 1a ed. – Rio de Janeiro:
Graal, 1985.
REZENDE, Ana L. Magela – Saúde: dialética do pensar e do fazer 2ª ed. – São Paulo: Cortez
editora, 1989.
VERMA, Vinod – “Ayurveda: A medicina indiana que promove a saúde integral” 1a ed. – Rio de
Janeiro: Nova Era, 1995.
WILLIAMS, Raymond – “Marxismo e Literatura” 1a ed. – Rio de Janeiro: Graal, 1979.

Você também pode gostar