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PERÍCIA

A polêmica dos EPIs Parte 2


Decisão do STF demonstra carência de conhecimento dos ministros quanto às questões técnicas
Antonio Carlos Vendrame
Nosso último artigo publicado causou qualquer profissional da área de SST tem atenuação do ruído, fato totalmente des-
um verdadeiro furor na área de SST, es- a certeza de que, no mérito, a decisão foi considerado na sentença do ARE 664335.
pecialmente após ser divulgado nas re- totalmente equivocada.
des sociais, com enorme repercussão MULTIFATORIAL
entre os profissionais. Alguns elogiaram, HISTÓRICO Por outro lado, a carência de conheci-
outros discordaram taxando o autor de Formas primitivas dos EPIs foram uti- mento dos ministros, especialmente sob
excessivamente fatalista. Na dúvida de lizadas por nossos ancestrais. Presume- o plano técnico (ressalte-se que um mi-
havermos produzido um artigo utópico, se que o primeiro respirador tenha sido nistro deve possuir notável saber jurídi-
fizemos uma consulta a especialistas da inventado no século XVI, por Leonardo co, mas quanto às questões técnicas, pos-
Previdência Social e, felizmente para nós da Vinci, para protegê-lo da inalação de sui o conhecimento do homem comum),
e infelizmente para as empresas, tudo o poeiras e produtos químicos. Nos idos de não permitiu compreender a exposição
que apontávamos no artigo realmente é 1800, trabalhadores da construção naval ao agente ruído além de uma concepção
passível de ocorrer. pintavam seus chapéus com alcatrão e, os monocausal (exclusivamente ocupacio-
Gostaríamos também de justificar o secavam ao sol para solidificar. Uma vez nal), quando na realidade a perda audi-
título do artigo. Quando afirmamos, na endurecidos, seriam fortes o suficiente pa- tiva representa concepção multifatorial,
edição anterior, que os EPIs estão com ra proteger a cabeça de ser atingida por podendo ser resultado de:
os dias contados, estamos fazendo alu- queda de objetos. • Socioacusia - perda oriunda da
são ao uso do equipamento como neutra- Estima-se que o primeiro uso de EPIs

BETO SOARES/ESTÚDIO BOOM


lizador do agente nocivo (para efeitos de em alta escala deu-se com a proteção res-
aposentadoria especial) e, não estamos piratória, contra o uso de gases bélicos, na
afirmando que o EPI deixará de ser utili- Primeira Guerra Mundial.
zado, eis que ainda que se aposente mais Assim, podemos constatar que é mile-
cedo, em razão do benefício da aposenta- nar o uso dos EPIs com finalidade de pro-
doria especial, se o segurado apresentar teger o trabalhador contra a nocividade
perda auditiva, por exemplo, cabe contra dos riscos existentes. E, no caso da pro-
a empresa ação indenizatória. teção auditiva, todos os protetores auri-
Desta forma, por força do ARE 664.335 culares são submetidos a ensaios de labo-
do STF, ratificado pelo Manual de Apo- ratório com finalidade de aferir o NRRsf
sentadoria Especial editado pela pró- (Noise Reduction Rating for subject fit)
pria Previdência Social, desde 2015 as do equipamento, ou seja, quanto o equi-
empresas estão constituindo um passi- pamento está, de fato, reduzindo o nível
vo previdenciário, equivalente a 6% da de pressão sonora.
folha de pagamento dos segurados ex- É inegável que os protetores auricula-
postos a ruído acima do limite de tole- res reduzem a exposição ao ruído impos-
rância, mesmo que estejam fazendo uso ta ao trabalhador, lembrando as palavras
de protetores auriculares. da maior autoridade brasileira em ruído,
Contudo, é preciso esclarecer que o eminente professor Dr. Samir Gerges:
a rejeição da proteção auricular como “É fato conhecido que os protetores au-
neutralizadora do ruído é válida somen- ditivos (PA) reduzem o ruído no ouvido.
te para efeitos previdenciários, especi- A prova disto é que a simples colocação
ficamente para a aposentadoria espe- dos dedos nos ouvidos, como boa vedação,
cial, não gerando precedentes na esfera reduz a sensação de ruído. Então, os pro-
trabalhista, como por exemplo, insalu- tetores auditivos funcionam bem, e são a
bridade. única salvação para a proteção do traba-
Apesar da decisão lhador contra os altos níveis de ruído e a
ser definitiva e, desca- perda auditiva permanente”.
ber recurso judicial, Ademais, não se tratam simplesmen-
te de afirmações desprovidas de suporte
Antonio Carlos Vendrame -
Engenheiro em Segurança técnico. Todo protetor auricular disponi-
do Trabalho e consultor de
empresas bilizado no mercado brasileiro é ensaiado
perito@vendrame.
com.br em laboratório e determinado seu nível de

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exposição experimentada nos meios outra, acabam por descaracterizar o uso tores que fornecem atenuação superior
sociais, tais como estádios de futebol, dos EPIs. Diga-se de passagem, que tais a 45 dB. A conclusão é que esta trans-
shows, boates, aviões, trem, metrô etc; textos são consequência de ideologia po- missão do ruído via ossos e tecidos pode
• Presbiacusia - perda pelo envelhe- lítica que perdurou no País por mais de 13 ser ignorada”.
cimento natural do aparelho auditivo; anos e, cujo resultado, fez a SST ciência Segundo Zwislocki, a atenuação cita-
• Trauma acústico - perda resul- se transformar em SST ideologia. da acima é de: (i) 45 a 50 dB para 1500
tante de exposição aguda por explo- a 2000 Hz e (ii) 50 dB para 2000 a 6000
são, tiro etc; PRECEDENTE Hz. Berger et al afirma que a atenuação
• Substâncias ototóxicas - tais co- Outra questão que também foi mal ex- oscila entre 40 e 60 dB. Assim, fica claro
mo solventes aromáticos, antibióticos plorada na sentença é a famigerada trans- que somente ruídos de alta intensidade
aminoglicosídeos, diuréticos, arsênio, missão óssea. Lamentavelmente apedeu- seriam transmitidos pela via óssea.
monóxido de carbono, mercúrio, aspi- tas prevencionistas inventaram uma teo- Como já citado no artigo anterior, a
rina, quinino e outros; ria de que qualquer ruído pode ser trans- sentença se refere exclusivamente ao
• Doença congênita - resultante de mitido pelos ossos da cabeça e lesionar o agente ruído. No entanto, abre um pre-
anomalia de nascimento; sistema auditivo, ainda que o trabalhador cedente para a inclusão de outros agen-
• Outras doenças - que induzem à faça uso de proteção auditiva. tes físicos, químicos e biológicos. Ade-
perda auditiva tais como diabetes melli- Ainda nos socorrendo do magistério de mais, tal possibilidade é aventada na
tus e rubéola. Gerges: “Existe transmissão do ruído atra- própria sentença e, uma vez firmada ju-
Desta forma, não se pode, absoluta- vés dos ossos, tecidos humanos e pés pa- risprudência para um agente, a inclusão
mente, atribuir às empresas toda e qual- ra o sistema auditivo, com uma diferença dos demais será apenas consequência, já
quer perda auditiva encontrada nos tra- de quase 45 dB em relação à transmissão que o ruído é o principal agente em SST.
balhadores. do ruído via ar no canal do ouvido exter- É preciso também pensar em ter-
A sentença cita inúmeras referências no. Isto é, o efeito de vazamento do ruí- mos de alcance da sentença. O ruído é
bibliográficas, mas todas escolhidas a de- do via transmissão pelos ossos e tecidos, o agente com maior predominância no
do! Todas as referências, de uma forma ou começa a ser importante para os prote- ambiente laboral. Aliás, não há ambiente
laboral sem ruído (estamos falando de
níveis acima ou abaixo do limite de tole-
rância). Assim, um enorme contingente
de empresas, cujos ambientes estão aci-
ma do limite de tolerância e, fornecem
proteção auditiva, estão constituindo
passivo previdenciário. E, para deixar
de ser devedora do FAE, cada empresa
nestas condições deveria implementar
medidas de proteção coletiva ou, alter-
nativamente, se possível, medidas admi-
nistrativas, com vistas à eliminação do
ruído ocupacional.
Finalmente, como sempre acontece,
as empresas dormem em berço esplên-
dido quando são surpreendidas duran-
te a noite... Os fabricantes de prote-
ção auditiva deveriam tomar ações no
sentido de demonstrar que seu produ-
to realmente possui eficácia e, não so-
mente eficiência. Não que tenhamos
dúvida quanto a isso... Mas o Judiciário
não acredita.

Referências:
• Norma ANSI S12.6-1997
• Gerges SNY. Protetores auditivos. [3 abr
2019]. Disponível em: http://www.seguran-
caetrabalho.com.br/download/prot-audit-
samir.pdf
• Zwislocki J. In search of the bone-conduction
threshold in a free sound field. The Journal of
the Acoustical Society of America, Vol. 29,
N- 7, 1975.
• Berger EH, Ward WD, Morrill JC, Royster
LH. Noise and hearing conservation manual,
4th Edition AIHA.

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