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Foucault, Michel. 1962-1984.


A ordem do discurso: Aula Inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro
de 1970 / Michel Foucault ; tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. -- 23. Ed. -- São
Paulo : Edições Loyola 2013. -- (Leituras filosóficas)

1 _ Gostaria de me insinuar que ao invés de tomar a palavra,


gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo o começo
possível. / Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem
nome me precedia há muito tempo...
Não haveria, portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem
parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma
estreita lacuna, o ponto de ser desaparecimento possível.
2 _ “É preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso
continuar, é preciso dizê-las até que elas me encontram, até que me
digam – estranho castigo, estranha falta, é preciso continuar, talvez já
tenha acontecido, talvez já me tenham dito, talvez me tenham levado ao
limiar de minha história, diante da porta que se abre sobre minha
história, eu me surpreenderia se ela se abrisse”.
3 Há em muitos um desejo semelhante de não ter de começar, mas
sim de se encontrar de um outro lado do discurso, dentro de uma rede de
discurso, perceber-se.
4 _ Mas o próprio desejo receia quanto a entrar nessa ordem,
porem a intuição diz “Você não tem por que temer começar...”.
5 _ Porem esses dois elementos: desejo e intuição, podem ser
duas réplicas opostas de uma mesma inquietação: inquietação diante do
que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou
escrita, inquietação de procurar saber onde começa, onde termina,
perigos, poderes ferimentos, dominações, servidões e etc.
6 _ Mas o que há de perigoso nisso, de as pessoas falarem e de
seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde está o perigo?
7 _ Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao
mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por
certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade.
8 _ Em nossa sociedade conhecemos procedimentos de exclusão, o
mais evidente é a interdição. É consabido que não se tem o direito de
dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que
qualquer um não pode falar de qualquer coisa. / Tabu do objeto, ritual
da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala,
temos assim o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se
reforçam ou se compensam formando uma grade complexa que não cessa de se
modificar. Onde as grades são mais cerradas, onde os buracos se
multiplicam, são: A sexualidade e a politica. Pois nestes lugares o
discurso está longe de ser neutro, ou invés de desarmar a sexualidade e
pacificar a política exerce os seus mais temíveis poderes. É
perceptível, de imediato as suas relações com o desejo e com o poder.
Como a psicanálise já nos mostrou – não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo: é também aquilo que é o objeto do
desejo, e visto que – essa parte a história nos ensina – o discurso não
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é simplesmente aquilo que traduz as lutas porque, pelo que se luta, o


poder do qual nós queremos apoderar.
9 _ Existe também outro princípio de exclusão a separação ou
rejeição, usando como exemplo a razão e a loucura. Na idade Média, o
louco é aquele que o discurso não pode circular como o dos outros: pode
ocorrer que sua palavra seja considerada nula, não tendo verdade nem
importância. Mas atribuído por uma verdade escondida, o de pronunciar o
futuro, o de enxergar como toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos
outros não pode perceber. O louco era reconhecido pelas suas palavras.
Todo este imenso discurso do louco retornava ao ruído; a palavra só lhe
era dada simbolicamente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e
reconciliado, visto que representava aí o papal da verdade mascarada.
10 _ Possivelmente isso está em vias de desaparecer, que a
palavra do louco além de estar sendo ouvido e interpretado/analisado.
Mas essa atenção tem também seus pontos de duvida, basta pensar nas
ferramentas as quais usamos, as redes de instituições que nos permite ao
mesmo tempo trazer ou reter as palavras, pensando isso podemos perceber
outras formas de reter e de apagar, formas institucionalizadas. Se é
necessário o silencio da razão para curar os monstros, basta que o
silêncio esteja alerta, e eis que a separação permanece.
11 _ Talvez seja arriscado opor o verdadeiro do falso como um
terceiro sistema de exclusão, ao lado daqueles dos que foram citados.
12 _ Se nos situamos em um nível de propor, no interior do
discurso, a separação entre verdadeiro e falso, não é arbitrário,
modificável, institucional ou violento. Levantemos a principio a de
questão saber qual foi e qual é essa vontade de verdade que
atravessou/atravessa tantos séculos de nossa história, ou qual é em sua
forma geral o tipo de separação que rege nossa vontade de saber, então é
talvez algo como um sistema de exclusão (sistema histórico,
institucionalmente constrangedor) que vemos se desenhar.
13 _ Historicamente essa separação dá-se nos poetas gregos, o
discurso verdadeiro – no sentido forte e valorizado do termo – o
discurso o qual eram atribuídos a cada qual sua parte; era o discurso
que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar,
mas contribuía para sua realização, provocava a adesão dos homens e se
tramava assim como o destino. Com o tempo a verdade mudou-se de onde
residia, e residindo agora no que se era dito: chegou um dia em que a
verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação,
para o próprio enunciado. Acontecia ai uma separação.
14 _ Essa divisão histórica deu sem dúvida sua forma geral à
nossa vontade de saber. Mas o seu deslocamento não para por ai, as novas
descobertas e evoluções cientificas podem ser lidas, às vezes, como a
aparição de novas formas na vontade de verdade. Voltando mais um pouco
no tempo, por volta do sec. XVI e XVII surgiu uma vontade de saber que
antecipou-se a seus conteúdos atuais, desenhava planos e objetos
possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de
saber que impunha ao sujeito cognoscente (e de certa forma antes de
qualquer experiência) certa posição, certo olhar e certa função (ver, ao
invés de ler, verificar, ao invés de comentar); uma vontade de saber que
prescrevia (e de um modo mais geral do que qualquer instrumento
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determinado) o nível técnico do qual deveriam investir-se os


conhecimentos para serem verificáveis e úteis.
15 _ Essa vontade de verdade como todos os outros sistemas de
exclusão tem um suporte institucional, é ao mesmo tempo reforçada e
reconduzida por toda uma camada de práticas como a pedagogia, é como os
sistemas de livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de
sábios que hoje em dia refletem os laboratórios. Recordemos aqui o velho
princípio grego: que a aritmética pode bem ser o assunto das cidades
democráticas, pois ela ensina as relações de igualdade, mas que só a
geometria deve ser ensinada nas oligarquias pois demostra as proporções
na desigualdade.
16 _ Lembrando que estamos sempre falando de sociedade, é crível
que essa vontade de verdade apoiada sobre um suporte e uma distribuição
institucional, tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie de
pressão e como que um poder de coerção, disso temos N exemplos.
17 _ Desses três grandes sistemas de exclusão que atingem o
discurso, a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de
verdade. Eis que foi decorrido mais sobre o terceiro sistema, vontade de
verdade. É visto que há tempos os dois primeiros se dirigem em seu
sentido bem marcados, o terceiro os atravessa, não cessa de reforçar, de
se tornar mais profundo e mais incontornável.
18 _ Contudo desse terceiro sistema, a vontade de verdade, é a
qual menos se fala, como se estivesse mascarada pela própria verdade em
seu desenrolar. A Razão disso seja talvez, que o discurso verdadeiro não
é mais aquele que responde ao desejo, ou aquele que exerce poder, na
vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que
está em jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a
necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode
reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade,
essa se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer
não pode deixar de mascará-la.
19 _ Só nos é revelado uma forma de verdade, enquanto a vontade
de verdade é ignorada, como uma prodigiosa maquinaria destinada a
excluir todos aqueles que, em nossa história, procuraram contornar essa
vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade, onde
exatamente a verdade assume a tarefa de justificar a interdição e
definir a loucura.
20 _ Evidentemente existem outras formas de controle e de
delimitação do discurso, os já citados são externos sistemas de exclusão
pondo em jogo o desejo e o poder. Podemos isolar e entender
procedimentos internos visto que são os discursos eles mesmos que
exercem seu próprio controle; procedimentos que funcionam, sobre tudo, a
título de princípios de classificação, de ordenação, de distribuição,
como se se tratasse, desta vez, de submeter outra dimensão do discurso:
a do acontecimento e do acaso.
21 _ Primeiro o comentário – Não há sociedades que não existam
narrativas maiores que se contam, se repetem e se fazem variar;
fórmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursos que se narram,
conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se
conservam, porque nelas se imaginam haver algo como um segredo ou uma
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riqueza. Existindo assim os discursos que são do dia a dia, e os


discursos que estão na origem de certo número de atos novos de fala que
os retomam, ou sejam, os discursos que, indefinidamente, para além de
sua formulação, são ditos, permanecem ditos e estão ainda por dizer.
Havendo assim um desnivelamento entre esses discursos. Esses ditos
maiores que conhecemos como, textos religiosos, jurídicos.
22 _ Não há uma categoria dada, uma vez por todas, pois há um
deslocamento e esse deslocamento não é estável, constante ou absoluto,
pois esses discursos maiores se confundem, desaparecem e podendo assim
os comentários tomar seu lugar, porem o ponto de aplicação mudando a
função permanece. E o princípio de um deslocamento encontra-se sem
cessar reposto em jogo. O desaparecimento radical desse desnivelamento
não pode ser nunca se não um jogo, utopia ou angústia, de um comentário
que não será outra coisa se não a reaparição, jogo ainda de uma crítica
que falaria até o infinito de uma obra que não existe. Sonho lírico de
um discurso que renasce em cada um de seus pontos, absolutamente novo e
inocente e que reaparece sem cessar, em todo frescor, a partir das
coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos.
23 _ Mas quem não vê que se trata ai de anular um dos termos da
relação, e não de suprimir a relação ela mesma? Relação que não cessa de
se modificar através do tempo, relação que toma em uma época dada formas
múltiplas e divergentes, uma mesma e única obra literária pode dar
lugar, simultaneamente, a tipos de discursos bem distintos.
24 _ Por hora, no que se chama globalmente de comentário, o
desnível entre o texto primeiro e texto segundo desempenha dois papeis
que são solidários. De um lado permite construir novos discursos: o fato
de o texto primeiro pairar acima tem seu estatuto de discurso sempre
reutilizável, o sentido múltiplo ou oculto o qual é detentor, a
reticência e a riqueza essenciais que atribuímos, tudo isso funda uma
possibilidade aberta de falar. Por outro lado o comentário não tem outro
papel a não ser de o de dizer enfim o que estava articulado
silenciosamente no texto primeiro. Conforme um paradoxo que ele desloca
sempre, mas não escapa nunca, dizer pela primeira vez aquilo que já fora
dito e repetir incansavelmente aqui que não havia jamais sido dito. Em
seu horizonte não há talvez nada além daquilo, a simples recitação. O
comentário conjura o acaso fazendo-lhe sua parte, permitindo-lhe dizer
algo além do texto, mas com a condição de que o texto seja dito e de
certo modo realizado. O Novo não está no que é dito, mas no
acontecimento de sua volta.
25 _ Um outro ponto de rarefação é o autor, não entendendo como o
individuo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como
princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas
significações, como foco de sua coerência. Mas esse princípio não voga
em todas as partes, e nem é constante. Existem muitos discursos que
circulam sem lhe ser atribuído autores, sem receber sentido. Mas mesmo
que atribuição de um autor é de regra, nem sempre desempenha o mesmo
papel. O autor é aquele que dá à inquietante linguagem da ficção suas
unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real.
26 _ Seria absurdo negar, é claro a existência de um individuo
que escreve e inventa, contudo esse indivíduo que se põe a escrever
retoma por sua conta a função do autor, sendo assim é preciso a
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diferenciação do que se é possível enxertar1 da obra do autor. Todo esse


jogo de diferenças é prescrito pela função autor, tal como a recebe de
sua época ou tal como ele por sua vez, a modifica. Embora modificável
seja a imagem do autor, será a partir de uma nova posição do autor que
recortará, em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os
dias.
27 _ O comentário limitava o acaso do discurso pelo jogo de uma
identidade que teria a forma de repetição e do mesmo. O princípio o
autor limita esse mesmo acaso pelo jogo de uma identidade que tem a
forma da individualidade e do eu.
28 _ É preciso reconhecer também o que são as “disciplinas”,
outro principio de delimitação.
29 _ A organização da disciplina se opõe tanto ao principio do
autor como o do comentário, visto que uma disciplina se define por um
domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições
consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições. Mas o
princípio da disciplina se opõe são do comentário: em uma disciplina o
que é suposto no ponto de partida, não é um sentido que precisa ser
descoberto, é aquilo que é requerido para a construção de novos
enunciados. Sendo assim para que haja disciplina é preciso que haja
possibilidade de formular indefinidamente, proposições novas.
30 _ Uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de
verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que
pode ser aceito, a proposito de um mesmo dado, em virtude de um
princípio de coerência ou de sistematicidade.
_ O exterior de uma ciência é mais e menos povoado do que se
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crê, pois no seu interior as disciplinas reconhecem o que devem ou não
ser absorvidos. Não havendo assim erro, em seu sentido estrito, visto
que o erro só pode surgir e ser decidido no interior de uma prática
definida. Em resumo uma proposição deve preencher exigências complexas e
pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de
poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria
M. Canguilhem, “no verdadeiro”.
32 _ Vejamos como exemplo Mendel, como puderam os biólogos não
ver que o que ele diz era verdade. Acontece que Mendel pregava métodos,
situava-se num horizonte teórico estranho a biologia de sua época,
Mendel dizia a verdade, mas não estava “no verdadeiro”, foi preciso toda
uma mudança de escala, o desdobramento de todo um novo plano.
_ É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma
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exterioridade selvagem, mas não se encontrar no verdadeiro, se não
obedecendo as regras de uma “polícia” discursiva que devemos ativar em
nossos discursos.
_ A disciplina é um princípio de controle
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discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a
forma de uma reatualização permanente das regras.

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Uso o termo enxerto no sentido de que é retirada uma parte, um pedaço para ser analisado, enxerto no sentido de coletar algo
de um corpo maior.
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35 _ A fecundidade de um autor da recursos infinitos nas


produções discursivas, mas não deixam de ser princípios de coerção e é
provável que não se possa explicar seu papel positivo e multiplicador se
não se leva em conta a sua função restritiva e coercitiva.

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