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UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

CURSO DE DIREITO

EMANOELA CAMARGO RODRIGUES SANTOS

MANIFESTAÇÃO CULTURAL E LIBERDADE RELIGIOSA EM FACE DA PROTEÇÃO DA


FAUNA: UMA PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA.

SÃO PAULO
2019
EMANOELA CAMARGO RODRIGUES SANTOS

MANIFESTAÇÃO CULTURAL E LIBERDADE RELIGIOSA EM FACE DA PROTEÇÃO DA


FAUNA: UMA PERSPECTIVA PRINCIPIOLÓGICA.

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à banca examinadora da
Curso de Direito da Universidade São
Judas, como requisito parcial para
obtenção do diploma de Bacharel em
Direito, sob orientação do Professor
André Adriano do Nascimento da Silva.

SÃO PAULO
2019
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por ter me dado sabedoria,


força e iluminado toda a minha trajetória
acadêmica e dedico este trabalho a todos
que fizeram parte desta etapa tão importante
da minha vida.

Aos meus pais, Andréia e Bergson, por


terem propiciado a realização deste sonho e
por sempre terem acreditado no meu
potencial, essa conquista não é só minha, é
de vocês.

A minha irmã, Crislayne, por todo amor e


companheirismo de sempre.

A minha avó, Emiliana (in memorian), que


não está mais entre nós para ver a minha
conquista, mas sempre será a minha maior
inspiração e minha maior força.

Obrigada!
“Quando o homem aprender a respeitar até
o menor ser da criação, seja animal ou
vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar
seu semelhante.”
Albert Schweitzer
RESUMO

Este trabalho se desenvolve com o fito de analisar a maneira por meio da qual a
legislação atualmente vigente em território brasileiro lida com a proteção da flora, e,
principalmente, da fauna, estabelecendo, para tanto, os principais e mais concisos
marcos jurídicos que correspondam a essa monta de proteção. Noutra mão, aqui se
estabelece também a relação contida entre a proteção animal perante a garantia
individual de liberdade de credo e de culto – tecendo-se alguns paralelos com a
garantia de determinação cultural de qualquer sujeito que, no Brasil, resida – para
que assim, debaixo desse esteio, possa-se haver um direcionamento de uma
argumentação fundada no entendimento da senciência dos animais e a vedação – já
existente em legislação materna – a que eles sejam submetidos a situações que se
assemelhem a tortura e que firam sua incolumidade. Isso nos guia às últimas, e até
recentes, decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal com relação a vedação
da manifestação cultural da vaquejada, mas, por outro lado, a autorização a que
religiões que possuam matriz africana possam exercer sua liberdade de credo,
ainda, pelo sacrifício de animais. Assim, ao fim, delineia-se qual, dentro dessa
perspectiva, princípio – (i) liberdade de culto, crença e prática, (ii) manifestações
culturais e (iii) dever de zelar pelos animais – deveria sobrepor-se, frente a evidente
existência de conflitos, em território nacional a seu exercício pleno, apontando-se, ao
fim, a possibilidade de existência de conciliação entre manifestação cultural e
liberdade religiosa em face da proteção aos animais.

Palavras-chave: Direito Brasileiro; Direito Penal; Direito Ambiental; Proteção aos


Animais; Proteção à Religião; Proteção à Fauna; Proteção à Flora.
ABSTRACT

This paperwork is developed aiming the analyze on how the Brazilian legislation
deals with flora and, specially, fauna protection, establishing, for this purpose, which
are the legal boundaries that set such perception of protection. In the other hand,
here is also established the relationship between the animal protection facing the
individual rights of belief and cult (worshipping) – drafting necessary parallels with the
individual right of cultural self-determination that anyone in Brazil has – to be able to,
under this surface, arguments towards the defense of animal sentience along with
the prohibition – already present within Brazilian legislation – to animals be put into
situations that resemble torture and hurt their safety. This guides us to the latest
decisions portrayed by Brazilian Federal Supreme Court regarding the prohibition of
the cultural manifestation locally called “vaquejada”, but, on the other hand, the
authorization for religions with an African’s origins to exercise their freedom of creed
through animals’ sacrifice. Thus, in the end, it is outlined which, within this
perspective, principle: (i) freedom of worship, belief and practice, (ii) cultural
manifestations, and (iii) duty to care for animals - should overlap in face of evident
existence of conflicts in the national territory to their full exercise, pointing out, at the
end, the possibility of conciliation between cultural manifestation and religious
freedom in view of the protection of animals.

Keywords: Brazilian Law; Criminal Law; Environmental Law; Animal Protection;


Protection of Religion; Fauna Protection; Flora protection.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8

2. DA PROTEÇÃO DA FAUNA ................................................................................... 10

3. HISTÓRIA LEGISLATIVA DA FAUNA NO BRASIL ............................................... 11


3.1. A Constituição Federal Brasileira como marco no art. 225 ............................ 14
3.2. Como o Brasil em 2019 lida com a proteção à fauna? .................................... 15

4. A LIBERDADE RELIGIOSA EM TERRITÓRIO BRASILEIRO ............................... 17

5. O CONFLITO ENTRE A PROTEÇÃO DA FAUNA E A LIBERDADE


RELIGIOSA.................................................................................................................... 19
5.1. Vaquejada............................................................................................................ 19
5.2. Sacrifício de animais por religiões de matriz africana .................................... 21

6. É POSSIVEL, NO BRASIL, CONCILIAR CULTURA, PROTEÇÃO DA FAUNA E


LIBERDADE RELIGIOSA?............................................................................................ 24

7. CONCLUSÃO .......................................................................................................... 32

REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 34
8

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se constitui com o fito de desenvolver uma concisa análise da


proteção da fauna em território nacional sob o panorama de apresentação de um
eventual conflito ao pleno exercício da liberdade religiosa e cultural, de acordo com
as legislações brasileiras.

Sob esse panorama, aqui se concede uma descrição relacionada a história


legislativa da fauna dentro do Brasil, estabelecendo como marco a Constituição
Federal Brasileira – por ter caracterizado-se como fator basilar a que, em território
nacional, pudesse-se, de uma maneira clara, conceder proteção à fauna e a flora na
incorporação trazida pelo seu artigo 225 – buscando-se, nessa mesma linha,
apresentar a maneira por meio da qual tem, atualmente, a legislação brasileira
cuidado da fauna brasileira.

Após, delinear-se-á um panorama com relação a liberdade religiosa


propriamente dita, materializada pela doutrina e jurisprudência para que, aí sim,
possa-se desenhar-se o pano de fundo que conecta o tema deste trabalho: o
conceito entre a proteção da fauna e a liberdade religiosa – esta última somada a
concepção de manifestações culturais.

Adicionalmente, apurar-se-á se houve uma contradição com relação ao modo


com que a legislação nacional lida com os animais e a vigente jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, apresentando-se o exemplo do exercício de uma prática
cultural – que também é constitucionalmente protegida –, mas que fora proibida pela
suprema corte, perante uma autorização de exercício de credo por meio de sacrifício
de animais por religiões de matriz africana.

Assim, conclui-se este trabalho pela análise dessas contradições debaixo do


esteio delineado pelo Código Penal brasileiro, assim como pela Constituição
Federal, apontando os argumentos principiológicos relacionados a senciência dos
animais. Para tanto, far-se-á uso da teoria da ponderação de Robert Alexy para
análise de quais dos princípios (i) liberdade de culto, crença e prática, (ii)
manifestações culturais ou (iii) dever de zelar pelos animais, deveria, nessa
celeuma, sobrepõe-se – e quais, nessa perspectiva – no caso de sua
impossibilidade de vinculação –, qual deve, sob o uso de princípios, ser
satisfatoriamente cumpridos.
9

Ao fim, propor-se-á uma defesa do estado democrático de direito, sob a


perspectiva de proteção animal, apresentando-se, como contraponto, as já
existentes proibições e vedações com relação a certas manifestações culturais ou
religiosas que sejam realizadas sob o uso de animais.
10

2. DA PROTEÇÃO DA FAUNA

A despeito da fauna brasileira se tratar de um arcabouço universal de


diversidade de animais e de um valioso ecossistema, nos últimos anos da história
recente fora possível observar, e de maneira acintosa, alguns atentados promovidos
pela ação humana que, em nome de um “progresso”, passaram a comprometer não
somente a sobrevivência de todo esse ecossistema da forma que hoje existe, mas,
inclusive, a fomentação de uma incapacidade de recuperação de áreas já
devastadas – quando levamos em conta as deletérias ações cometidas.

Sabe-se que a proteção da fauna não se trata meramente de uma questão de


responsabilidade do Estado enquanto ente entronizado e incumbido dessa
responsabilidade – principalmente pelas previsões de guarda contida na
Constituição Federal –, mas, também, de toda uma sociedade.

Perceba-se que, aqui, trata-se da concessão de importância semelhante – e


de maneira merecida – a necessidade de subsistência do meio ambiente sadio em
paralelo ao desenvolvimento humano. De modo que, sob esse liame, não se pode
olvidar algo contrariamente disso, até porque para que qualquer ser humano se
desenvolva necessário é que ele habite em meio ambiente sustentavelmente
equilibrado.

A propósito, devido ao antropocentrismo, que surgiu no fim da Idade Média na


Europa – e que tem como visão defender que o ser humano deve ser colocado em
primeiro plano (sob a visão que o mundo em seu redor possui como sua única
finalidade a provisão de sua subsistência) –, o agente humano, que endossa essa
teoria, acaba julgando-se superior a toda espécie distinta da sua.

Entretanto, é importante pontuar que a sobrevivência humana não está – nem


nunca pode estar – sobre o ecossistema. Aceitar isso significaria uma compactuação
com ações danosas e nocivas a todo equilíbrio ecológico do meio ambiente.

De acordo com Deize Sbarai Sanches Ximenes (XIMENES, p.78):

A ameaça ao ambiente é uma questão eminentemente ética, depende de


uma alteração de conduta do ser humano; e para haver essa alteração, o
agir com dever e em colaboração com os outros seres é a primeira
exigência na tentativa de reaver o equilíbrio do planeta. (XIMENES, p.78)
11

Pode-se concluir, portanto, que atos que degradam o meio ambiente


provocam ameaças que podem ser – e na maioria das vezes são – irreversíveis,
trazendo danos não somente na qualidade de vida e bem-estar do próprio ser
humano, mas, sobretudo, sobre a vida de toda a fauna e flora que compõem um
ecossistema.

3. HISTÓRIA LEGISLATIVA DA FAUNA NO BRASIL

Sabe-se que o Brasil, no passado, entendia que os animais não possuíam


direito à integridade física, psíquica, liberdade1 e, muito menos, à vida, visto que o
animal servia somente para atender as necessidades humanas e ambientais.

No ordenamento jurídico brasileiro, a primeira norma que visava coibir abusos


e maus-tratos de animais surgiu no município de São Paulo por meio do Código de
Posturas de 6 de outubro de 1.886, que trouxe em seu art. 220:

“É proibido a todo e qualquer cocheiro, condutor de carroça, pipa d’água


etc., maltratar os animais com castigos bárbaros e imoderados. Esta
disposição é igualmente aplicada aos ferradores. Os infratores sofrerão a
multa de 10$, de cada vez que se der a infração.”

Posteriormente, Getúlio Vargas – que foi chefe de Governo Provisório – criou


o Decreto n.º 24.645 de 10 de julho de 1934, que estabelecia medidas de proteção
aos animais. Esse decreto trazia em seu art. 3º as condutas que, por ele, seriam
definidas como maus tratos, sendo algumas delas: praticar ato de abuso ou
crueldade contra o animal, tais como golpeá-lo, feri-lo, mutilá-lo, açoitá-lo ou castigá-
lo, de qualquer forma, com o fito de trazer dor e sofrimento ao animal. A despeito
desse decreto estar atualmente revogado, ainda funciona como parâmetro para
identificar todo e qualquer tipo de maus tratos2.

Veja que essas disposições se formaram justamente em proteção ao gado.


Em proteção apenas aos animais que seriam fruto, posterior, de consumo humano –
mas nada falava a respeito da proteção animal em si.

1 “ARTIGO 5: Cada animal pertencente a uma espécie, que vive habitualmente no ambiente do
homem, tem o direito de viver e crescer segundo o ritmo e as condições de vida e de liberdade que
são próprias de sua espécie.” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1978).
2 “Nenhuma outra legislação vigente define claramente o que considera “maus tratos”, o que por si só

demonstra o valor do Decreto 24.645” (SANTOS FILHO, 2008).


12

Continuadamente, na década de 70, apesar de o meio ambiente ter


começado a ser tratado como fonte inesgotável de recursos, em virtude da ação
humana – como a promoção de poluição atmosférica –, algumas medidas passaram
a ser tomadas na forma de materialização de uma precípua preocupação com as
questões ambientais, o que motivou, e.g., a criação da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente Humano3 (conhecido popularmente como
“Conferência de Estocolmo”), tendo sido sua primeira reunião realizada em junho de
1.972 em Estocolmo, na Suécia.

Pode-se dizer que a Conferência de Estocolmo foi a inauguração do


surgimento do Direito Ambiental internacional, tendo tomado espaço no
ordenamento jurídico brasileiro, primeiramente, no plano infraconstitucional, por
intermédio da Lei de nº. 6.938, de 31 de agosto de 1.981 – que estabeleceu a
Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) – e, após, na Carta Magna de 1.988
trazendo em seu texto constitucional o artigo 225.

Constata-se que a Constituição Republicana4, antes da promulgação da


Constituição cidadã de 1.988, não trazia consigo respaldo legal suficiente – não
trazia, na verdade, sequer algum – pertinentemente à matéria ambiental. Os textos
constitucionais anteriores só referenciavam sobre a competência legislativa da caça
e pesca e das florestas5 – e nada além disso.

Pode-se observar que as leis ambientais da época visavam exclusivamente o


crescimento econômico – encampando majoritariamente um desenvolvimento
industrial (POTT, ESTRELA, 2017) –, deixando o desenvolvimento sustentável, que
supostamente atrapalharia esse progresso, de lado.

Vale ressaltar que isso não se tratava meramente de uma exclusividade da


Constituição Federal, mas essa perspectiva desenvolvimentista sem a ponderação e

3 DA CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE HUMANO, EM


ESTOCOLMO, À RIO-92: AGENDA AMBIENTAL PARA OS PAÍSES E ELABORAÇÃO DE
DOCUMENTOS POR COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO.
2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/rio20/a-
rio20/conferencia-das-nacoes-unidas-para-o-meio-ambiente-humano-estocolmo-rio-92-agenda-
ambiental-paises-elaboracao-documentos-comissao-mundial-sobre-meio-ambiente-e-
desenvolvimento.aspx>. Acesso em: 30 out. 2019.
4 “A Constituição Republicana de 1.891 não fez referência expressa ao meio ambiente. Estabelecia

tão-somente, no que tange a esta questão, a competência privativa do Congresso Nacional para
legislar sobre minas e terras da União, em virtude da natureza privatista que predominava naquele
período histórico.” (GREY, 2017).
5 Idem.
13

um cuidado ambiental igualmente se refletia no Código Civil de 1.916. Este não


amparou, dentre as suas previsões, o meio ambiente. Apenas cuidou pela
disposição de uso da propriedade privada do indivíduo, reputando como ilícito civil a
sua “má utilização”.

Essa perspectiva, de que a legislação brasileira, de 1.934 a 1.988, possuía


em si um cunho desenvolvimentista e não ambientalista é trazida por José Augusto
Leitão Drummond, afirmando, adicionalmente, que ela, exclusivamente, e dentro
desse período, buscava somente o crescimento econômico-financeiro do país.

Perceba-se, sobretudo que a despeito de já possuirmos (a humanidade),


naquela época, uma preocupação pela relacionada a proteção da flora e alguns
flertes com a proteção animal, o nosso Código Penal (Decreto-Lei de n.º 2.848, de 7
de dezembro de 1940) – que fora justamente formado em 1940 – ainda possuía, no
momento de sua promulgação, a concessão de uma tratativa aos animais como se
eles se tratassem, meramente, de uma propriedade, principalmente por, e.g.,
estabelecer questões como:

Difusão de doença ou praga


Art. 259 - Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta,
plantação ou animais de utilidade econômica:
Pena - reclusão, de dois a cinco anos, e multa.

Introdução ou abandono de animais em propriedade alheia


Art. 164 - Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem
consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.

Supressão ou alteração de marca em animais


Art. 162 - Suprimir ou alterar, indevidamente, em gado ou rebanho alheio,
marca ou sinal indicativo de propriedade:
Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa.

Percebe-se que fora somente com a Constituição de 1.988 que a legislação


brasileira passou a acompanhar a concessão de um protagonismo à proteção da
fauna, trazendo, majoritariamente, a proibição de práticas cruéis contra os animais.
Com relação a isso, o texto constitucional, estabelece, até mesmo – para que
possamos compreender a importância que o constituinte concedeu ao nosso
ecossistema –, a previsão, em seu art. 5°, inciso LXXIII – dentro das garantias
individuais de todos aqueles que estejam em território nacional –, que qualquer
14

cidadão é legitimo para propor ação popular com vistas a anular atos lesivo ao meio
ambiente e ao patrimônio histórico-cultural.

“(...) cabe à Constituição, como lei fundamental, traçar o conteúdo e os limites


da ordem jurídica. É por isso que, direta ou indiretamente, vamos localizar na norma
constitucional os fundamentos da proteção do meio ambiente” (MOTA, 2011), logo,
entende-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é dotado de valor e
possui autonomia em relação a outros bens protegidos pelo texto constitucional,
como exemplo, a saúde humana.

Pontua-se, ainda, que em 1.998 até mesmo sancionou-se a Lei de n.º 9.605,
conhecida como “Lei dos Crimes Ambientais”, que traz um rol de crimes contra a
fauna – estabelecendo suas correspondentes sanções do art. 29 ao art. 376 –,
contudo sem especificar quais animais nele estão7 e sem, sobretudo, estabelecer o
que seriam os referidos maus-tratos a que se, até hoje, refere.

Assim, conclui-se que, na história legislativa de proteção da fauna e da flora


no Brasil, o meio ambiente equilibrado, por grande parte do tempo, esteve incluso no
debate federal, contudo sem a entrega de um protagonismo e importância da
maneira a qual se tem hoje após a promulgação das extravagantes legislações de
proteção ambiental e, majoritariamente, da Constituição Federal em vigência – que,
repita-se: trata das questões de fauna e flora como item a ser resguardado no rol de
direitos e garantias fundamentais, formado em torno de um sentimento solidariedade
e fraternidade, tutelando todos os interesses de ordem difusa e coletiva.

3.1. A Constituição Federal Brasileira como marco no art. 225

A Constituição Federal de 1.988 traz em seu art. 225, caput, que:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,


bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

6 Aqui é interessante que se destaque o artigo 32 que, muito semelhantemente ao Decreto n.º 24.645
de 10 de julho de 1934, considera como crime o abuso e maus-tratos que visem ferir ou mutilar
animais, além de vedar qualquer experencia dolosa e cruel, mesmo que com fins científicos ou
didáticos.
7 Isso, em uma análise lexical, permite que interpretemos que tais animais, pela amplitude do

dispositivo, podem até ser domésticos, domesticados, nativos, exóticos ou silvestres.


15

Como já foi abordado anteriormente, a Constituição Federal foi um marco ao


direito dos animais, além de ter trazido, em seu texto, uma ampla concepção do que
é um meio ambiente ecologicamente equilibrado, estabelecendo que é um direito de
todos tê-lo de maneira sustentável por tratar-se de um bem de uso comum – e não
somente em vistas de um desenvolvimento econômico. A respeito disso, já decidira
o Supremo Tribunal Federal, quando propôs que:

Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de


defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse
direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual” (BRASIL, 2019)

Logo, pode-se estabelecer que o art. 225 foi criado pelo Constituinte não só
com o propósito de proteção a fauna, mas, também, para preservar a vida do
homem e das gerações futuras, visto que um ambiente ecologicamente saudável
está no rol dos direitos e garantias fundamentais – além de ser essencial para que o
ser humano tenha uma existência e vida digna.

A inserção deste artigo na Constituição Federal eleva a importância do meio


ambiente, pois além de ser um direito fundamental de terceira geração, garante que
todos tenham um meio ambiente preservado.

Mesmo sem dizer expressamente, no art. 225, §1º, inciso VII, a Constituição
Federal reconhece a senciência animal8, quando dispõe que o Poder Público deve
coibir práticas que submetam os animais à crueldade. Logo, percebe-se que o
principal objetivo é resguardar a vida do animal, visando impedir o sofrimento, ainda
que aquela ação propriamente dita não esteja, de maneira direta, causando impacto
no ecossistema.

3.2. Como o Brasil em 2019 lida com a proteção à fauna?

Atualmente, pode-se perceber que a fauna tem se tornado um assunto de


maior relevância e importância social no Brasil, de modo que exemplos disso são
alguns munícipios em São Paulo que, por iniciativa legislativa ou executiva,
realizaram projetos visando o fomento da consciência, por parte mais efetiva do
Estado, de proteção da fauna.

8 Senciência é reconhecer que os animais possuem sentimentos semelhantes a que os humanos


sentem de uma maneira consciente – e não como meramente uma reação de sua natureza.
16

Como exemplos se traz a iniciativa conduzida pela vereadora do município de


Mogi das Cruzes, Fernanda Moreno, do Partido Verde (PV), que encaminhou três
projetos de lei municipal para uma melhor condução de políticas públicas que
pudessem garantir maior proteção aos animais do município (CHIMELLO, 2019),
assim como o Projeto Caco, conduzido pelo município de Mairiporã – por meio de
sua secretaria do meio ambiente –, com o fito de “(...) conscientizar as crianças
sobre a importância de proteger a fauna silvestre e seu habitat, enfatizando a
conduta que se deve ter com esses animais.” (PROJETO CACO, 2019).

A preservação da natureza precisa ser enfocada pelo prisma da contenção


das ações do próprio ser humano e isso deve começar pela melhoria da
educação das crianças, pelo direcionamento do ensino no sentido de evitar
a degradação do meio ambiente e o desperdício de todo e qualquer recurso
natural. (REDAÇÃO, 2019).

Recentemente, foi aprovado no plenário do Senado Federal o PLC 27, de


2018, que acrescenta o art. 79-B na Lei de nº. 9.605 de 1.998. O projeto visa criar
regime jurídico especial para os animais, fazendo com que estes não sejam mais
considerados como coisa – devido ao reconhecimento de que são seres senciêntes
pela Constituição Federal, o que os permite ter sensações semelhantes às dos seres
humanos –, já que possuem natureza jurídica sui generis, além de serem sujeitos de
direito despersonificados, podendo, portanto, gozar e obter tutela jurisdicional em
caso de sua violação.

O Senador Ranolfe Rodrigues traz em seu relatório a importância do bem-


estar animal, visando, até mesmo, uma sociedade, pode-se dizer, igualitária:

“O projeto em análise caminha nesse sentido, seguindo o imperativo


constitucional de proteção à fauna. Ainda, ao afirmar os direitos desses
animais à proteção como princípio da construção de uma sociedade mais
solidária. O reconhecimento de sua natureza emocional e de que os animais
são capazes de manifestar sentimentos é a mera constatação do que os
estudiosos do mundo natural -notadamente biólogos e ecólogos -vêm
demonstrando há séculos”9

9 BRASIL. Projeto de Lei do Senado Federal de n.º 27, de 2018.


17

4. A LIBERDADE RELIGIOSA EM TERRITÓRIO BRASILEIRO

A religião, dentro de território brasileiro, é ampla. Trata-se da conjunção de


tradições e de culturas. Uma verdadeira manifestação daquilo que é o Brasil: a
formação de uma nação miscigenada tanto em suas cores, mas, sobretudo, em seus
credos.

É exatamente sob vislumbre desses pontos que a Constituição Federal do


Brasil exerce papel fundamental na concessão de possibilidade do exercício do
credo e, inclusive, pela preservação de eventuais tentativas – de quem quer que
seja – de suprimir esses direitos daqueles que, no Brasil, queiram livremente crer.

Assim, como forma de resguardo, podemos, e de maneira clara, observar o


quanto estabelece o artigo 5º da Constituição Federal – que cuida especialmente
das garantias e direitos individuais – com relação à proteção da liberdade de credo
em território nacional:

Art. 5. Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e as suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir- se de
obrigação legal a todos imposta e recusar- se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei.

Nessa monta, perceba-se que o Constituinte, na formação do artigo,


preocupou-se em afirmar a igualdade de todos perante a legislação – leia-se,
portanto, independentemente de sua origem, cultura ou religião –, propondo que, a
esses sujeitos, são invioláveis – na forma dos incisos VI, VII e VIII – sua liberdade de
crença, sendo assegurada a liberdade de culto; o recebimento, por si, de prestação
de assistência religiosa; e a concessão de que ninguém será privado de seus
direitos por motivo de crença religiosa.

Isto é: uma constituição completamente inclusiva – em tratando-se de


questões de religiosidade. Não há, aqui, dispositivo supressivo do direito de
18

liberdade de exercício de religião a ninguém. Tanto é que concede, aos templos


religiosos de qualquer culto – justamente pelo âmbito social e religioso que
exercem – imunidade tributária, como prevê o artigo 150, inciso VI, alínea “b”.

Em mesma toada segue o Código Penal quando estabelece consistente


punição – pela redação dada pela Lei de n.º 10.741, de 2003 – àquele que cometer
o crime de injúria, enquadrada no tipo previsto em seu artigo 140, § 3º:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:


Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.
(...)
§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor,
etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de
deficiência:
Pena - reclusão de um a três anos e multa.

O interessante desse dispositivo é que o legislador, quando estabeleceu a


pena, não tratou de fazê-lo como simplesmente um melhor enquadramento contrário
às condutas que visa proibir, contudo principalmente estabelece pena base e
limítrofe qualificadora mais gravosa do que direcionada àqueles que simplesmente
cometem uma injúria simples.

Além disso, pelo uso da mesma legislação promulgada em 2003, também se


cuidou pela qualificadora no artigo 149, relacionada a quem reduzir outro ser
humano a situação análoga à escravidão. Ali propõe-se que caso a condição de
escravidão seja decorrente de questões religiosas a pena é aumentada de metade.

Adicionalmente – e obviamente antes disso – o Código Penal em sua


formação originária propôs dispositivo protetor, no conteúdo do Título V, da
liberdade de culto constitucionalmente prevista.

Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo


Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou
função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso;
vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um
terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
19

5. O CONFLITO ENTRE A PROTEÇÃO DA FAUNA E A LIBERDADE


RELIGIOSA

O conflito existente dentro da concepção de proteção da fauna e a liberdade


religiosa está justamente na existência de choque entre princípios. De um lado
temos o princípio de proteção à vida – posto que animais, segundo a concepção
atual, como aqui se expos, não podem ser considerados como coisa –, proteção à
fauna, que está interligado inteiramente ao espectro de proteção animal, e a
proteção da liberdade religiosa.

Ocorre que, em esfera nacional, colocamo-nos em situação sui generis. Por


justamente sermos uma nação formada de uma multiplicidade de culturas e de
religiões – comprometendo-se, inclusive, o Estado com a sua proteção –, não são
poucas as práticas culturais e religiosas que conflitariam com o princípio de proteção
da fauna e do direito a preservação da vida dos animais.

É exatamente em vislumbre a essas questões que, aqui, delinear-se-á


algumas das mais fervorosas práticas que se utilizam de animais para a promoção
de sua cultura ou exercício de sua liberdade de culto em território nacional.

5.1. Vaquejada

A vaquejada é considerada um esporte, tendo surgido em meados do século


XIX na região nordeste do Brasil. Ela consiste na prática, por uma dupla de
vaqueiros montados em cavalos, de perseguição e domínio de um boi em uma
arena, puxando-o pelo rabo com a finalidade derrubá-lo no chão e deixar as quatro
patas para cima para marcar pontos. Para tanto, são utilizados pedaços de madeira,
objetos pontiagudos e, até mesmo, pedras com o fito de espancar o animal.

Antes do boi adentrar a arena, fica confinado em um lugar apertado, sendo


atormentado e espancado com a finalidade de entrar na arena em instinto de fuga.
Ao final se faz a contagem de pontos e a dupla que os mais fizer recebe importância
em dinheiro, ou seja: trata-se de uma crueldade com finalidade lucrativa.

Luiz da Câmara Cascudo (CASCUDO, 1966) elucida que existem três


participantes principais na realização de uma vaquejada (MORSANGO, 2018):
20

(...) o batedor de esteira, o puxador e o juiz; o batedor de esteira é o


vaqueiro que, montado em seu cavalo, tem a função de tanger o boi para
perto do derrubador, além de pegar o rabo do animal e entregá-lo ao
derrubador, devendo, ainda, com o seu cavalo, empurrar o boi para dentro
das faixas após a sua queda, caso este tente se levantar fora delas; o
puxador nada mais é do que o vaqueiro responsável por, mediante tração
de cauda, derrubar o boi dentro da área delimitada; o Juiz, por fim, é o
árbitro da competição, indicando as duplas que efetivamente pontuaram ou
não (apud CASCUDO, Luiz da Câmara. A Vaquejada Nordestina e sua
Origem. Editora Imprensa Universitária. Natal, 1966).

A veterinária e diretora do Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal,


Vânia Nunes (Senado Federal, 2017), diz que:

(...) para a prova se realizar, o animal, ao ser solto, deve ser perseguido e
ter sua cauda puxada e torcida para que caia exatamente em uma área
marcada no chão. Na queda, o bovino deve ficar com as quatro patas para
cima. Isso causa, além de desconforto físico, ferimentos, danos e dor, um
sofrimento mental e angústia pela perseguição.

No mesmo sentido, a Dra. Irvênia Luiza de Santis Prada (apud LEITÃO, 2002,
p. 23), emitiu parecer técnico:

Ao perseguirem o bovino, os peões acabam por segurá-lo fortemente pela


cauda (rabo), fazendo com que ele estanque e seja contido. A cauda dos
animais é composta, em sua estrutura óssea, por uma sequência de
vértebras, chamadas coccígeas ou caudais, que se articulam umas com as
outras. Nesse gesto brusco de tracionar violentamente o animal pelo rabo, é
muito provável que disto resulte luxação das vértebras, ou seja, perda da
condição anatômica de contato de uma com a outra. Com essa ocorrência,
existe a ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, portanto,
estabelecendo-se lesões traumáticas. Não deve ser rara a desinserção
(arrancamento) da cauda, de sua conexão com o tronco. Como a porção
caudal da coluna vertebral representa continuação dos outros segmentos da
coluna vertebral, particularmente na região sacral, afecções que ocorrem
primeiramente nas vértebras caudais podem repercutir mais para frente,
comprometendo inclusive a medula espinhal que se acha contida dentro do
canal vertebral. Esses processos patológicos são muito dolorosos, dada a
conexão da medula espinhal com as raízes dos nervos espinhais, por onde
trafegam inclusive os estímulos nociceptivos (causadores de dor). Volto a
repetir que além de dor física, os animais submetidos a esses
procedimentos vivenciam sofrimento mental. A estrutura dos equinos e
bovinos é passível de lesões na ocorrência de quaisquer procedimentos
violentos, bruscos e/ou agressivos, em coerência com a constituição de
todos os corpos formados por matéria viva. Por outro lado, sendo o
“cérebro”, o órgão de expressão da mente, a complexa configuração
morfofuncional que exibe em equinos e bovinos é indicativa da capacidade
psíquica desses animais, de aliviar e interpretar as situações adversas a
que são submetidos, disto resultando sofrimento.

É mister salientar que essa prática gera danos imensuráveis ao animal.


Primeiro a perseguição, que é uma tortura psicológica cruel com o animal – visto que
21

ele não consegue mensurar o que está acontecendo e fica extremamente assustado
– e, em segundo, a violência física – devido aos ferimentos causados na extensão
do seu corpo e principalmente no rabo –, pois, pela força feita para segurá-lo,
ocasiona-se uma luxação das vertebras, gerando quebra dos vasos sanguíneos e
dos ligamentos, podendo até mesmo levar o animal a óbito.

No tocante ao exposto, a veterinária e presidente do Sindicato dos Médicos


Veterinários do Ceará, Gerlene Castelo Branco (2007, online) relata que:

“De acordo com a Lei nº. 9.605, de 1998, artigo 32, considera-se crime de
crueldade, este tipo de tratamento dado aos animais em vaquejada. Os
animais, como os seres humanos, são dotados de emoções, como amor,
raiva, ansiedade, ciúmes, medo e principalmente a dor. Cadê a
superioridade dos seres humanos? Onde está o respeito ao próximo e aos
animais? Coloquem-se só por um minuto no lugar deles! Existem outras
formas de se divertir. Pois numa diversão todos deveriam sair ganhando!”.
(SENADO, 1998).

Os defensores de tal prática – de extrema crueldade – defendem que a


proibição da vaquejada viola o artigo 215 da Constituição, que diz que “O Estado
protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. E para
sustentar o que é imposto pelo artigo que foi anteriormente citado, o Congresso
Nacional, por intermédio da Emenda Constitucional n.º 96 de 2017, acrescentou o §
7º ao artigo 225 da Constituição, que propõe que as práticas que são consideradas
manifestações culturais não trazem caráter de crueldade, visto que integram
patrimônio cultural10.

5.2. Sacrifício de animais por religiões de matriz africana

Recentemente, o STF decidiu, por unanimidade de votos, pela declaração de


constitucionalidade da Lei Estadual de nº. 12.131, de 2004, do Estado do Rio
Grande do Sul, que garantia a realização do ritual do sacrifício de animais em cultos
de matriz africana.

10 “O patrimônio cultural é objeto de normas internacionais e nacionais em razão de sua importância


fundamental para os indivíduos, grupos e instituições, como o Estado. Partindo do pressuposto de
que a Cultura é o habitat do Homem, os bens culturais compõem o meio ambiente necessário à
sobrevivência, e compreende também o conjunto das condições culturais, psicológicas e morais
indispensáveis à vida” (CAMPOS; PREVE; SOUZA, 2015, p. 33).
22

A decisão fora proferida no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) de n.º


494.601, de modo que a despeito de a declaração de constitucionalidade da
legislação gaúcha ter se dado por unanimidade, houve leves divergências com
relação às questões técnicas que envolviam a demanda – posto que alguns
ministros queriam dar interpretação à lei de maneira indistinta (independendo da
matriz religiosa) conforme aquilo que se propõe na Constituição Federal de modo a
fixar sua constitucionalidade. Esses ministros foram: Gilmar Mendes, Alexandre de
Morais e Marco Aurélio Mello – que figurava como relator da demanda.

O que se move como interessante é que a tese compartilhada pelos vencidos


ministros, e que seguiria o entendimento contido na Constituição Federal, era que se
admitia o exercício de culto religioso sob o uso de animais em quaisquer ritos
religiosos, contudo desde que não houvesse a incidência de maus tratos no ritual
realizado, sendo como requisito que se houvesse o abate e consumo da carne.

Ocorre que os ministros vencedores modularam a decisão para que houvesse


a produção da tese de “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de
resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de
religiões de matriz Africana” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019).

Sobre isso perceba-se que a tese elaborada pelo Supremo Tribunal Federal
exatamente restringiu a possibilidade de exercício de culto sob o uso de animais às
religiões que não possuem matriz africana. Não há, aqui, margem a que outra matriz
possa beneficiar-se da decisão proferida pela Corte.

Algumas das linhas de argumentação utilizadas no julgamento – àqueles


ministros que se ativeram apenas às religiões que possuíam matriz africana – é que
tais, quando exercem plenamente seu credo por meio de sacrifício de animais, não
são responsáveis por ações deletérias que ocasionem, eventualmente, algum
tipo de sofrimento ao animal.

Fala-se que “Segundo a crença, somente quando a vida animal é extinta sem
sofrimento se estabelece a comunicação entre os mundos sagrado e temporal”
(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019). “Não se trata de sacrifício para fins de
entretenimento, mas para fins de exercício de um direito fundamental que é a
liberdade religiosa” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019). Essas assertivas
foram trazidas pelo ministro Luís Roberto Barroso em seu voto para justificar não
23

somente o porquê considera possível que religiões de matriz africanas pudessem


realizar livremente seu culto, mas, inclusive, para justificar o porquê de considerar
que os “louros” dessa decisão apenas poderia beneficiar esse seleto grupo social.

Há muitas controvérsias com relação essas afirmações exatamente pelo fato


de a decisão – além de restringir o beneplácito a outras religiões –abranger qualquer
religião de matriz afro, ou seja, toda a sorte de religiões que tiveram origem em
matriz africana poderiam ser beneficiadas pela decisão. Isso, segundo essa linha de
argumentação, seria um problema uma vez que podem ser inúmeras as
ramificações existentes dentro de tal matriz, não havendo-se uma apuração de
quais, de fato, possuíam formação, em seu cerne, como africana.

Além disso, para aqueles que protegem os direitos dos animais há o


compartilhamento de que não há como delimitar ou estabelecer o que pode ser
considerado como os “maus-tratos” – utilizados pelos ministros como, sobretudo,
efeito modulador da decisão que proferiram.

A concepção de maus-tratos pode ser muito ampla e variada, como a que


vimos aqui. Não possuímos, ainda, a capacidade de estabelecer o que pode ser
considerado um sofrimento ao animal – principalmente porque a Constituição
Federal reconhece sua senciência. Pode ser que, de antemão – como é no caso da
vaquejada –, o animal só do fato de ter sido colocado em local inóspito, confinado,
atormentado ou recluso já pode ter sido alvo de maus-tratos – como ocorre na
imensidão de sentimentos que envolvem a aura humana.

A priori vale especificar que, por exemplo, CORDEIRO, 2019, traz uma
descrição de como são realizados certos rituais que, sob a ótica plenamente
humana, poderiam ser considerados como abusivos e fruto de “maus-tratos”:

Usando uma faca, o sacerdote abre a garganta do animal. Na sequência,


degola o bicho, que ainda se debate. Algumas partes específicas, como o
coração e os genitais, são colocadas sobre um alguidar – uma bacia de
barro. Esses pedaços serão oferecidos para o orixá que vai “comer”. O
sangue é recolhido e utilizado para sacramentar imagens e instrumentos
utilizados no terreiro. Todo o restante do corpo é aproveitado. O couro será
usado para fazer atabaques. A carne vira churrasco: os terreiros fazem
grandes almoços para os filhos de santo e os visitantes. (CORDEIRO, 2019)
24

Assim sendo, levando-se exatamente isso em consideração: podemos


pontuar que há uma forma de, no Brasil, haver-se uma vinculação entre uma
proteção da fauna e da liberdade religiosa?

6. É POSSIVEL, NO BRASIL, CONCILIAR CULTURA, PROTEÇÃO DA


FAUNA E LIBERDADE RELIGIOSA?

Adentramos, então, na celeuma do presente trabalho e a resposta, ainda que


não se trate e algo muito fácil de se definir – tendo em vista sua complexidade e
meandros que envolvem sua formação –, para que estejamos dentro da legalidade,
deve ser dada, sobretudo, dentro do Direito.

Assim, propõe-se que, aqui, não se quer buscar respostas que não sejam
admitidas dentro de nosso arcabouço legal já existente, contudo também não se
quer que haja um desprezo dos direitos inerentes aos animais não somente já
reconhecidos socialmente, mas, inclusive, pela comunidade legislativa brasileira.

Pontuando-se a isso, perceba-se que – retomando a ponderação relacionada


a maus-tratos estabelecida no capítulo anterior – a concepção daquilo que temos
com relação a o que pode ser considerado como um malgrado à incolumidade do
animal não é muito clara. A legislação relacionada ao tema – e já apresentada
neste trabalho – não estabelece as limítrofes que um religioso ou que uma prática
cultural pode avançar de modo a não caracterizar um abuso.

Veja-se que a Lei de n.º 9.605 de 1998 – que justamente propõe-se como
medida legislativa para estabelecer as punições penais e administrativas derivadas
as atividades e condutas lesivas ao meio ambiente – propõe no artigo 15, inciso II,
alínea “m”, que serão considerados agravantes da pena (quando não constituírem
ou qualifiquem o crime) o “emprego de métodos cruéis para abate ou captura de
animais”. Retilineamente, o artigo 32, caput, estabelecido na própria legis, propõe
que “Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”. Mas o que é método cruel ou
maltratar um animal, sendo tais seres senciêntes?

Ora, quem poderá garantir que, no exercício do momento da captura do


animal, os religiosos que queiram plenamente exercer sua religião não o tenham
feito de maneira cruel? E o que seria, ou não, cruel? Veja-se que o Supremo
25

Tribunal Federal, em sua tese fixada, não abrangeu as questões relacionadas a


vedação de maus-tratos na captura do animal – ainda que haja previsão legal.

Traz-se isso a tona especialmente pelo fato da suprema corte ter concedido
aval para que todos os eventuais meios de prova de que aquele animal tenha sido
capturado – ou confinado – de maneira cruel sejam suprimidos quando condicionou
a possibilidade de utilização de animais no exercício de sacrifícios por religiões de
matriz africana o seu imediato consumo e não desperdício de sua proteína. Não
haveria como apurar se determinada manifestação religiosa está, ou não, exercendo
maus-tratos desde da captura até o abate do animal.

O § 1º, pertencente ao artigo 32 – da retromencionada legislação –, é,


também, muito claro ao estabelecer que “Incorre nas mesmas penas quem realiza
experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou
científicos, quando existirem recursos alternativos” – sendo a pena proposta a de
detenção, de três meses a um ano, e multa. Entretanto, como apurar o que seria
uma experiência dolorosa se, na concepção da senciência, o aprisionamento em si –
ou os preparativos para o sacrifício – já poderem ser considerados como algo
doloroso?

A legislação, com relação a maus-tratos, é bem clara e abrange a todos. Não


concede tal beneplácito às religiões – não importando sua matriz – pelo vislumbre do
artigo 37, que prevê as exceções com relação a não configuração de crime de abate
de animal:

Art. 37. Não é crime o abate de animal, quando realizado:


I - em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua
família;
II - para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação predatória ou
destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela
autoridade competente;
III – (VETADO)
IV - por ser nocivo o animal, desde que assim caracterizado pelo órgão
competente.

Compassadamente, apenas pela continuidade da presente argumentação, em


outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ADI (Ação Direta
de Inconstitucionalidade) nº. 4.983 contra a Lei Estadual de nº. 15.299 de 2013 do
Estado do Ceará, que regulamentava a vaquejada.
26

Em seu voto, o Ministro Celso de Mello expõe que o artigo 225, § 1º, inciso
VII, traz a motivação de impedir todas e quaisquer situações que ameacem a vida –
independentemente de ser vida humana ou animal – e não somente ele:

Atos praticados ainda que com caráter folclórico ou até histórico, estão
abrangidos pelo art. 32 da Lei nº. 9.605/98, e devem ser punidos não só
quem os pratica, mas também, em coautoria, os que os incitam, de qualquer
forma. (MACHADO,1998, p.54).

A prática religiosa pautada no sofrimento de um outro ser inocente estimula


a violência gratuita, em nome de dogmas que mereciam ser superados em
um país laico. Em última análise, a permissão de sacrificar animais,
oportunizaria também pela isonomia entre religiões, que uma tribo indígena
até eliminasse suas crianças nascidas com limitações físicas, apenas para
sustentar sua fé (AGUIAR, 2019).

(...) um crime não deixa de ser um crime só porque resolvemos chamar o


crime de ‘liberdade de culto’ ou outra coisa. E nem deixa de ser crime se a
vítima é comida depois do ritual. O foco da justiça deve ser a vítima, e não o
grupo que se sente injustiçado por não poder vitimar um inocente. E se
ainda, infelizmente, cometemos o mesmo crime em nome da cultura
culinária de comer animais, temos de lembrar que 2 errados não fazem 1
certo.

Não faz muito sentido, seguindo-se todas essas assertivas, que tenha sido
autorizado pelo Supremo Tribunal Federal a possibilidade de sacrificar-se um animal
numa mão e ter proibido o exercício cultural da vaquejada noutra.

Veja que a mesma proteção cultural pela Constituição Federal também é


concedida com relação a religião. Enfim, note-se que a mesma vedação que a
legislação dá para maus-tratos a animais também é atinente com relação ao
exercício de fé. Não há, aqui, diferenças de tratamento. Há uma regra específica
que estabelece vedação à captura e execução sob uso de gravosas medidas em
face de animais.

Isso significa que, dentro dessa seara, deve-se proibir o exercício cultural e
religioso? Dentro das perspectivas constitucionais e culturais existentes no Brasil,
talvez a resposta para isso seja: em alguns casos sim.

Dentro da Teoria do Direito moderno, um dos grandes – e mais conhecidos –


jus filósofos é Robert Alexy. Ele fora um dos preconizadores daquilo que chamamos
da teoria da ponderação de valores e da teoria da ponderação de princípios.

Robert Alexy, como pós-positivista, acreditava que a letra legal não devia ser
imperativo suficiente para coibir, ou autorizar, determinada ação ou medida que,
27

socialmente, deveria ser aceita ou significaria uma supressão de direitos e garantias


individuais: “(...) os princípios são, para Alexy, mandados de otimização e possuem,
por isso, uma estrutura alargada de dever-ser. Essa estrutura, que é dada prima
facie, tensiona (sic) os princípios, fazendo-os colidir. A valoração é um momento
subsequente – ou seja, posterior à colisão – que incorpora o procedimento da
ponderação.” (STRECK, p. 80, 2017).

Assim sendo, para que incorporemos essa possibilidade de ponderação, é


necessário que compreendamos que temos, sobre nós, alguns princípios que
colidem, sendo eles: a proteção dos animais, liberdade de culto, crença e prática,
assim como a possibilidade de manifestações culturais.

Todos eles, constitucionalmente previstos, possuem, de acordo com a


perspectiva alexyana, mesmo grau ou peso constitucional. Não há, entre eles, um
com valor maior do que o outro ab ovo, isto é: na linha traçada de princípios não há
algum que se forme como mais importante do que os outros, independentemente de
seu tempo de existência – especialmente porque todos eles estão previstos na
Constituição Federal11.

Assim sendo, tendo sido estabelecidos os princípios existentes no presente


caso, necessário é que, anteriormente, também percebamos o porquê de tantos
princípios, em um só caso, possam existir. Trata-se de perceber que a:

(...) colisão entre princípios constitucionais decorre, como assinalado acima,


do pluralismo, da diversidade de valores e de interesses que se abrigam no
documento dialético e compromissório que é a Constituição. Como
estudado, não existe hierarquia em abstrato entre tais princípios, devendo a
precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso
concreto. (BARROSO, p. 368, 2018).

Então, em outras palavras, temos que compreender que entre os princípios


constitucionais houve valores que cunharam sua formação e de sua positivação no
texto constitucional. Desse modo é que – e apenas dessa maneira – poderemos
estabelecer qual deve sobrepor-se, uma vez que, de origem, todos são iguais.

Quanto ao procedimento de ponderação, seguiremos três fases:

11Artigo 5º, inciso VI e inciso LXXIII; artigo 24, inciso VII; artigo 215, e subsequentes; e artigo 225, e
subsequentes.
28

(i) “(...) primeiro, a identificação dos valores (princípios) incidentes no caso


concreto e a(s) pretensa(s) medida(s) de concretização;” (ii) “a apuração do
peso dos respectivos valores (princípios), o balanceamento desses pesos,
tendo em vista o grau de satisfação e não satisfação dos valores (princípios)
caso a medida seja implementada,” (iii) “e a enunciação de uma regra, a
partir da ponderação efetuada, que determine a implementação da medida.”
(MARTINS, 2017).

Assim, considerando-se a isso, quando apontarmos, aqui, os valores que


utilizarão como forma de balizar os princípios deverão ser concretizadas não por
meio da escolha de qualquer posição, mas de uma das possíveis – e de maneira
justificada – escolhas:

(...) pode fazer muitas escolhas, mas não pode fazer qualquer escolha, deve
respeitar as valorações objetivas. Há, em consequência dessa premissa,
uma vinculação necessária entre o Direito e a Moral. (MARTINS, 2017).

Compreendendo-se a isso, vemos que no presente caso concreto se


identificam três valores constitucionais prementes no caso concreto: (i) liberdade de
culto, crença e prática; (ii) manifestações culturais; e (iii) dever de zelar pelos
animais.

Continuadamente, é por meio da análise de eventuais consequências do caso


concreto que entenderemos quais dos princípios estarão satisfeitos. Assim, caso
proibamos a manifestação cultural ou religiosa pela sua capacidade lesiva a vida de
animais, satisfaremos o valor de zelar pelos animais – não estando preenchidos os
outros dois valores.

Caso seja autorizada a manifestação cultural, por consequência ter-se-ia que


autorizar a manifestação religiosa – pela compreensão de que a segunda é menos
gravosa do que a primeira –, serão preenchidos os valores de liberdade de culto,
crença e prática e de manifestações culturais, estando prejudicada a proteção aos
animais.

Caso autorize-se apenas a manifestação religiosa – como fora o


entendimento dado pelo Supremo Tribunal Federal – apenas estaríamos
preenchendo o valor de liberdade de culto, crença e prática, restando prejudicados
os outros dois.

Pela breve análise feita acima, podemos estabelecer de maneira clara que
em nenhuma das hipóteses descritas haveria a possibilidade de conjugação e
29

satisfação de todos os valores. Isso apenas seria possível caso seguíssemos a


interpretação proposta pelo Supremo Tribunal Federal, quando considera que
religiões de matriz afro não cometem ato que viola a incolumidade dos animais
quando da sua prática – o que já fora pontualmente contraditado neste trabalho
justamente pela concepção de que um animal se trata de um ser senciênte. Então o
que fazer?

A solução seria exatamente de trazer à luz a concepção já existente em


território brasileiro com relação à proibição – já existente – de certas culturas e
certos ritos religiosos em território nacional que não condizem com as concepções
brasileiras – sobretudo ocidentais – de cultura e práticas aceitas.

Veja-se que, sobre isso, a vedação contida no artigo 5º, inciso VI, não se
apresenta como impeditivo, até porque, segundo essa interpretação, não há
vedação de “liberdade de consciência e de crença”, “livre exercício dos cultos
religiosos” ou “aos locais de culto e a suas liturgias”, mas, na verdade, a vedação de
certas e específicas práticas. E é apenas sobre esse vislumbre que poderíamos
admitir e conceder vez, neste caso concreto, ao princípio de dever de zelar pelos
animais – e diz-se isso porque essa é uma forma de vedação já existente em
território nacional.

Como exemplo, utilizamos a vedação com relação a vedação a possibilidade


de em um casamento haver-se, de maneira cível, uma multiplicidade de cônjuges12.
Essa vedação, a despeito de não ferir diretamente alguém, permanece em território
nacional – e se trata de prática comum no mundo oriental, principalmente em países
de matriz muçulmana. Isso, inclusive, constituir-se-ia como crime, pela previsão
contida no artigo 235, do Código Penal:

Bigamia
Art. 235 - Contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
Pena - reclusão, de dois a seis anos.
§ 1º - Aquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa
casada, conhecendo essa circunstância, é punido com reclusão ou
detenção, de um a três anos.
§ 2º - Anulado por qualquer motivo o primeiro casamento, ou o outro por
motivo que não a bigamia, considera-se inexistente o crime.

12 Artigo 226 e subsequentes da Constituição Federal.


30

Caso uma família que possua essas práticas culturais se encaminhe para
Brasil, não teria, sobre eles, vedação do exercício pleno de sua cultura/crença? Não
se formaria, sobretudo, a ação contrária ao inciso VI, artigo 5º, da Constituição
Federal? Veja que não se trata de uma ação deletéria que acometeria a riscos e
danos a incolumidade de alguém, mas, ainda sim, veda-se. Então por qual motivo
rejeita-se a status inferior a incolumidade dos animais – especialmente porque,
nessa matéria de sacrifícios, não há como estabelecer o grau de sofrimento desses?

Perceba-se que isso não possui relação com a possibilidade de alimentação


de proteína animal, até porque a formação de alimentos se evoluiu a um grau que
não mais se faz necessário que o animal seja submetido em espectro de sofrimento.
Aqui se trata do estabelecimento de um questionamento – que são submetidos em
certas manifestações culturais e religiosas – com relação ao sofrimento de seres
senciêntes.

O Brasil não somente na Constituição Federal, mas, também, em seu Código


Penal e nas legislações extravagantes, estabelece vedação com relação ao
estabelecimento de situação de crueldade em face de animais – ainda que
estabeleça a liberdade de exercício de religião e manifestação cultural.

Assim, sendo o fator central proibitivo das legislações estabelecido como o


sofrimento, não há como autorizar-se a manifestação plena e livre da religiosidade
sem que se fira o princípio de proteção animal – mas esse questionamento nos faz
exatamente recair naquilo que se descreveu ao início do trabalho: a tentativa
constante de satisfação, sem medidas, das necessidades humanas.

Ainda que a religião se constitua como fator basilar a autodeterminação de


um indivíduo, ela não pode ser utilizada como parâmetro justificatório de tudo aquilo
que o ser humano, egoisticamente, anseia. Um exemplo cabal disso, e que já
insistentemente aqui se pontuou, é as proibitivas relacionadas a tradições culturais e
religiosas do oriente.

Não faz sentido estabelecer marcos dessa monta para flagelos contra a
incolumidade humana e permitir a mesma modalidade de tratamento – sob
autorização e tutela estatal – a seres senciêntes que, repita-se: possuem
sentimentos tais quais aos dos humanos.
31

Portanto, aqui se concede maior validade ao princípio de proteção da fauna e


da flora sobre a liberdade de culto, crença e prática e manifestações culturais. No
mundo ocidental já existe restrição competente a algumas dessas práticas. Por qual
motivo ainda vilipendia-se os direitos inerentes a animais – mesmo estando eles,
também, previstos constitucionalmente? Precisa, a dignidade da pessoa humana,
para que assim se constitua, valer-se de condução punitiva a outro ser para que
plenamente manifeste-se?

Assim, em virtude desses fatores, é necessário que haja discursos fortes e


consistentes em sentido contrário a qualquer antropocentrismo que tente subjugar o
papel da natureza. Necessário é, sobretudo, que sejam delineadas as perspectivas
majoritariamente conservadoras do ponto de vista ecológico relacionadas a forma
por meio da qual pode, e deve, o Direito – principalmente o brasileiro – atuar em
defesa de um ecossistema equilibrado.
32

7. CONCLUSÃO

Tratar-se de proteção animal em relação a princípios que concedem liberdade


de credo e cultural não se trata de um tema fácil – como já afirmado aqui; e talvez
seja exatamente por esse motivo pelo qual para que tamanho tema seja, com
seriedade, tratado, necessário é que se façam escolhas difíceis – as quais aqui não
faltaram.

O Brasil se trata de um país democrático, receptor de culturas diversas e de


religiões de toda a sorte, as quais muito contribuíram, e contribuem, ao
desenvolvimento da nação na monta abrangente que, hoje, é – contudo não de
maneira plena.

Como apontou-se, o Brasil, para certas práticas culturais e religiosas, ainda


permanece estabelecendo cercas legais para seu pleno exercício – quer sejam elas
formadas de maneira justificada, com ímpeto de proteção da sociedade como ela é,
ou quer tenham sido elas formuladas de maneira injustificada, como quando o
Supremo Tribunal Federal apenas considerou que religiões de matriz africanas
pudessem ser capazes de utilizar de animais para exercício, irrestrito, de sua liturgia.

Por outro lado, vê-se igualmente tamanha e incoerente ação quando se veda
que haja a manifestação cultural da vaquejada, pelo mesmo Supremo Tribunal
Federal, mas se autoriza o sacrifício de animais.

Ora, não é intenção da Constituição Federal e das legislações extravagantes


de proteger ao animal? Não fora essa a linha seguida, em seus julgamentos, pelo
Supremo Tribunal Federal? O Código Penal, além da legislação ambiental, não
estabelece vedação a que animais sejam submetidos a momentos de tortura ou
sofrimento – ainda mais se realizado com o fito de recreação humana? O que
diferencia, então, a possibilidade concedida pela Suprema Corte?

Animais são seres senciêntes. Possuem sentimentos semelhantes – senão


iguais – aos dos seres humanos. Animais sentem, comprovadamente, frio, saudade,
fome, sede e, até, medo. Assim, seguindo essa linha de raciocínio, não há como se
assegurar que autorizando o seu sacrifício – sob o pretexto de não se caracterizar
seu sofrimento – que os animais nada sentirão.
33

Não há como se assegurar que, em detrimento do exercício da fé de um


ser humano, um animal seja ferido e flagelado em nome daquilo que se chama
dignidade.

Assim, não há como, em ordenamento jurídico local, nem mesmo pelo uso da
teoria da ponderação, a possibilidade de preenchimento total dos três princípios,
neste último tópico, discutidos. Algum deles, prima facie, será vilipendiado
independentemente da decisão a que for proferida – e é por isso que, aqui, tomou-
se e optou-se pela condução do caminho mais difícil a sua formação.

Aqui se optou pela defesa plena dos animais. Defesa plena daqueles que
possuem, tal qual como humanos, vida – devendo vive-la plenamente sem que seja
alo da recreação humana – se muitas das características culturais e religiosas já são
proibidas em território nacional, então por que não optar pela proteção de um
princípio que, em aplicação, posiciona-se satisfatoriamente pela proteção da vida
animal e da flora, positivadas constitucionalmente?

A resposta não é fácil – como se propôs; mas tratar de garantias e direitos


individuais a todos os seres – sem exceção de absolutamente nenhum – nunca é
fácil. Hoje não foi diferente disso.
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