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CAPÍTULO PRIMEIRO

O DEUTERONÔMIO

No Pentateuco

O livro do Deuteronômio o “Quinto Livro de Moisés”


constitui a conclusão do Pentateuco. Com isso a narração
histórica do Pentateuco chega ao seu término.
Precedentemente o leitor foi conduzido, a partir da
criação do mundo, atravessar toda a pré-história. Com a
vocação de Abrão a narração tinha abandonado o horizonte de
todos os povos da terra, e tinha iniciado a história do Povo
eleito por Deus. Num primeiro momento era a história de
família dos antepassados de Abrão, Isaac e Jacó; depois com
José, filho de Jacó, o cenário da histórico muda para o Egito.
Com Moisés, Deus liberta os israelitas da escravidão egípcia
e os conduz ao Sinai onde conclui com eles sua aliança. São
proclamadas as leis da aliança, são fundadas as instituições
cultuais. Israel vaga pelo deserto por quarenta anos, e ao
término deste período conquista a terra a Oriente do Jordão, e
guiado por Moisés, já velho, acampa na aldeia de Moab,
próximo do Jordão, pronto para atravessar o rio e tomar posse
da terra de Canaã que o Senhor tinha prometido.
Neste ponto está inserido o livro do Deuteronômio.
Moisés, que até agora tinha guiado o seu povo, por vontade
do Senhor não passará o Jordão. Ele morreu antes. Por isto,
nos limites da Terra prometida entrega ao povo o seu
testamento. Ele faz aqui os seus (até aqui pg. 15 do original).

discursos a Israel, que formam o conteúdo substancial do


livro. Num primeiro discurso (proêmio: 1,1ss), Moisés lança
um olhar retrospectivo à peregrinação no deserto. (1,3); o
discurso se conclui com a exortação à fidelidade à aliança, e
olhando o futuro, acena à uma longínqua possibilidade de um
exílio, imputado a Israel como punição pela ruptura da aliança
(4). Depois num segundo discurso, introduzido dos vv. 4,44-
49, Moisés expõe ainda mais uma vez toda a lei da aliança
concluída no Sinai (5,26). Aqui estão anexadas as instruções
para as cerimônias das obrigações religiosas de tomada de
posse da terra, com a ereção do altar junto a Siquém e com
grandes ritos de maldições e bênçãos (27-28). Um terceiro
discurso, subdividido em uma série de discursos menores
(introdução: 28,69), acompanha a conclusão de uma espécie
de aliança à parte, a “aliança de Moab”. Através desta
conclusão Josué vem designado sucessor de Moisés. Mas no
fim desta seção do livro se encontra uma composição poética,
“cântico de Moisé” (32). O quarto “discurso” de Moisés
(introduzido por 33,1), é a sua bênção de despedida à esta tribo
em particular (33). Depois de todos estes grandes discursos de
despedida de Moisés, no capítulo 34 falta a referência de uma
coisa: a morte de Moisés. E assim se conclui o Pentateuco. O
Deuteronômio é assim a digna e grandiosa conclusão do
Pentateuco. No conjunto da obra isso tem um lugar bem
definido. É o fim da existência de Moisés. Nesta luz, devemos
também lê-lo em nossa Bíblia.
Tudo isso porém, não impede uma pergunta que surge
espontaneamente quando se considera a complicada estrutura
do texto deuteronomista, sobre a gênese histórica desta parte
do Pentateuco. Porque este assume a sua atual fisionomia por
volta do fim do exílio da Babilônia, ou no início do período
sucessivo (VI o V século a.C.). Todavia, o Deuteronômio não
foi criado

nesta ocasião, mas já era um bloco compacto de textos que foi


inserido na história do Pentateuco devido ao capítulo 34, que
possui caráter narrativo. Nas páginas que seguem
procuraremos rastrear passo a passo os prováveis precedentes
históricos deste complexo de textos que se chama
Deuteronômio.

O Deuteronômio na obra histórica deuteronomista

Antes que o Deuteronômio (mais precisamente Dt


1,33) fosse incorporado no Pentateuco, constituía muito
provavelmente o início de uma narração sintética da história
de Israel, da tomada de posse da terra de Canaã, até a expulsão
dela, obra do Novo Império babilonês depois da destruição de
Jerusalém no ano 586 a.C. Devido a relação de continuidade
estilística desta narração com o Deuteronômio, esta foi
designada pela crítica com o nome de “obra histórica
deuteronomista”. Esta compreendia substancialmente os
atuais livros do Deuteronômio, de Josué, dos Juízes, do 1 e 2
Samuel e do 1 e 2 Reis, já colocados nesta ordem.
Tendo presente o último episódio narrado na obra,
podemos supor que a sua elaboração acontece pouco depois
de 562 a.C., isto é, na primeira metade do exílio babilonês.
Este olhar retrospectivo na história de Israel é uma tentativa,
uma vez verificada a catástrofe do exílio, de entender suas
causas. Como causa fundamental do exílio é reconhecida a
infidelidade de Israel em relação às suas obrigações para com
a aliança. O exílio não é senão o cumprimento da maldição
que Israel mesmo continuamente invocou sobre si, seja no ato
da conclusão da aliança, seja em todas as suas renovações no
caso dele a violar. Para Israel durante o exílio, em base às
experiências passadas recolhidas nesta obra histórica, resta
aberta uma só estrada:

converter-se, no exílio implorar ao Senhor e esperar o seu


socorro. Eis a mensagem contida nesta obra.
As obrigações para com a aliança, que Israel deveria
observar, lhes eram indicadas desde o início, segundo a obra
histórica deuteronomista, no “Código da aliança”. E para não
surgir nenhuma dúvida, o compilador incorporou na sua obra
aquilo que continha o código da aliança (sëfer ha-tôräh, o
sëfer tôrat-Mošeh). Se trata do segundo grande discurso de
Moisés contido no Deuteronômio: 5-28. Aqui este se põe
como o grande critério de juízo para toda a história futura de
Israel.
No Deuteronômio o primeiro e precedente discurso de
Moisés é introdução para a obra histórica deuteronomista. O
discurso seguinte, o terceiro, junto com a bênção de Moisés,
dá início a narração histórica e encontra a sua continuação
imediata no livro de Josué.
Deve-se considerar que o primeiro discurso de Moisés
foi composto para o trabalho histórico deuteronomista. Este
provavelmente foi formado por duas fases sucessivas. Dt 1-3
aparece como a primeira introdução, enquanto Dt 4 foi
inserido durante o exílio da Babilônia na ocasião de uma mais
clara reelaboração de toda a obra.
O segundo discurso de Moisés (o “Código da aliança”)
não foi compilado contemporaneamente à obra histórica, mas
já existia antes, e em seguida foi inserida em bloco no
Deuteronômio. Também os atuais capítulos 29-33 são em
grande parte compostos de textos cultuais anteriores, mesmo
se o agrupamento deles pertencem somente ao trabalho dos
compiladores da obra histórica deuteronomista. Se pode então
afirmar que a estrutura base do atual livro do Deuteronômio,
isto é, a série dos quatro grandes discursos de Moisés, se

deve atribuir só aos compiladores ou ao compilador da obra


histórica deuteronomista.
Antes disso existia como entidade em si somente o
segundo discurso de Moisés, com o nome de “Deuteronômio”
(Dt 5,28). Qual foi a sua origem?
O Código da aliança do Rei Josias

Em 2Rs 22,3-20; 23,1-3.21-23 a mesma obra histórica


deuteronomista refere-se a um evento em que o “Código da
aliança” desempenhou um papel importante. Tal evento
aconteceu poucas décadas antes do exílio e foi a renovação da
aliança no ano 622 a.C. sob Josias, rei de Judá.
Antes de Josias, Judá permaneceu por várias gerações
um estado vassalo da Assíria e, ao menos oficialmente, tinha
adotado a religião de Estado do estrangeiro. Durante o reino
de Josias porém, o grande império assírio pouco a pouco se
desmoronou e Judá tornou-se sempre mais independente. O
seu rei se viu capaz de efetuar lentamente uma reforma
religiosa consistente no retorno à antiga fé em Jahvé. Durante
os trabalhos de restauração no templo de Jahvé em Jerusalém
foi encontrada o antigo Código da aliança, e sobre esta base
com uma solene celebração foi renovada a antiga aliança com
o Senhor.
Eis o relato do fato, com as mesmas palavras da obra
histórica deuteronomista:
Sucedeu que, no ano décimo oitavo do rei Josias, o rei mandou ao escrivão
Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, à casa do SENHOR, dizendo:
Sobe a Hilquias, o sumo sacerdote, para que tome o dinheiro que se trouxe
à casa do SENHOR, o qual os guardas do umbral da porta ajuntaram do
povo, E que o dêem na mão dos que têm cargo da obra, e estão
encarregados da casa do SENHOR; para que o dêem àqueles que fazem a
obra que há na casa do SENHOR, para repararem as fendas da casa; Aos
carpinteiros, aos edificadores e aos pedreiros; e para comprar madeira e
pedras lavradas, para repararem a casa. Porém não se pediu conta

do dinheiro que se lhes entregara nas suas mãos, porquanto procediam com
fidelidade. Então disse o sumo sacerdote Hilquias ao escrivão Safã: Achei
o livro da lei na casa do SENHOR. E Hilquias deu o livro a Safã, e ele o
leu. Então o escrivão Safã veio ter com o rei e, dando-lhe conta, disse:
Teus servos ajuntaram o dinheiro que se achou na casa, e o entregaram na
mão dos que têm cargo da obra, que estão encarregados da casa do
SENHOR. Também Safã, o escrivão, fez saber ao rei, dizendo: O
sacerdote Hilquias me deu um livro. E Safã o leu diante do rei. Sucedeu,
pois, que, ouvindo o rei as palavras do livro da lei, rasgou as suas vestes.

E o rei mandou a Hilquias, o sacerdote, a Aicão, filho de Safã, a


Acbor, filho de Micaías, a Safã o escrivão e a Asaías, o servo do rei,
dizendo: Ide, e consultai o SENHOR por mim, pelo povo e por todo o
Judá, acerca das palavras deste livro que se achou; porque grande é o furor
do SENHOR, que se acendeu contra nós; porquanto nossos pais não deram
ouvidos às palavras deste livro, para fazerem conforme tudo quanto acerca
de nós está escrito. Então foi o sacerdote Hilquias, e Aicão, Acbor, Safã e
Asaías à profetiza Hulda, mulher de Salum, filho de Ticvá, o filho de
Harás, o guarda das vestiduras (e ela habitava em Jerusalém, na segunda
parte), e lhe falaram. E ela lhes disse: Assim diz o SENHOR Deus de
Israel: Dizei ao homem que vos enviou a mim: Assim diz o SENHOR: Eis
que trarei mal sobre este lugar, e sobre os seus moradores, a saber: todas
as palavras do livro que leu o rei de Judá. Porquanto me deixaram, e
queimaram incenso a outros deuses, para me provocarem à ira por todas
as obras das suas mãos, o meu furor se acendeu contra este lugar, e não se
apagará. Porém ao rei de Judá, que vos enviou a consultar o SENHOR,
assim lhe direis: Assim diz o SENHOR Deus de Israel, acerca das palavras,
que ouviste: Porquanto o teu coração se enterneceu, e te humilhaste
perante o SENHOR, quando ouviste o que falei contra este lugar, e contra
os seus moradores, que seria para assolação e para maldição, e que rasgaste
as tuas vestes, e choraste perante mim, também eu te ouvi, diz o SENHOR.
Por isso eis que eu te recolherei a teus pais, e tu serás recolhido em paz à
tua sepultura, e os teus olhos não verão toda a catástrofe que hei de trazer
sobre este lugar. Então referiram ao rei a resposta.

Então o rei ordenou, e todos os anciãos de Judá e de Jerusalém se


reuniram a ele. O rei subiu à casa do SENHOR, e com ele todos os homens
de Judá, e todos os moradores de Jerusalém, os sacerdotes, os profetas e
todo o povo, desde o menor até ao maior; e leu aos ouvidos deles todas as
palavras do livro da aliança, que se achou na casa do SENHOR. E o rei se
pôs em pé junto à coluna, e fez a aliança perante o SENHOR, para
seguirem o SENHOR, e guardarem os seus mandamentos, os seus
testemunhos e os seus estatutos, com todo o coração e com toda a alma,
confirmando as palavras desta aliança, que estavam escritas naquele livro;
e todo o povo apoiou esta aliança.

O rei deu ordem a todo o povo, dizendo: Celebrai a páscoa ao


SENHOR vosso Deus, como está escrito no livro da aliança. Porque nunca
se celebrou tal páscoa como esta desde os dias dos juízes que julgaram a
Israel, nem em todos os dias dos reis de Israel, nem tampouco dos reis de
Judá. Porém no ano décimo oitavo do rei Josias esta páscoa se celebrou
ao SENHOR em Jerusalém. (2 Rs 22,3-20; 23,1-3.21-23).

Esta história nos informa que depois de um certo


período de esquecimento, a aliança foi reencontrada e se
colocou em vigor o antigo código da aliança. Segundo a obra
deuteronomista, o “Código da aliança de Moisés” contido em
Dt 5,28 é aquele reencontrado sob Josias e colocado por estes
como base de sua renovação do pacto. Isto parece correto per
muitos motivos.
Se isto é verdade, temos a resposta ao problema da
origem de Dt 5,28. Este núcleo do Dt, anterior a Josias, é o
verdadeiro código da aliança, conservado no templo de
Jerusalém e regularmente lido nas celebrações cultuais, em
época de fidelidade ao Senhor. Este era colocado dentro ou
junto da Arca da aliança. Em torno do ano 1000 a.C. foi levado
a Jerusalém com a Arca mesma. Antes era conservado noutros
santuários de Israel, talvez sobretudo em Silo, sobre a
montanha de Efraim.

O pensamento de um “código” da aliança com Deus


pode maravilhar-nos. Para nós existe um insólito aspecto
jurídico. De fato, Israel da época dos reis concebia seu
relacionamento com Deus no âmbito da tradição da aliança
por meio de categorias assumidas da vida jurídica humana. Se
poderia quase substituir o termo “aliança” com o termo
“tratado”. Israel experimentava o seu relacionamento com o
Senhor quase como um dos grandes sistemas políticos do
Oriente antigo, um rei vassalo e seu povo consideravam suas
relações com o senhor supremo a partir do respectivo sistema
político deles. Os estudos recentes descobriram nos pactos de
vassalagem hititas do II milênio a.C. os mais estreitos
paralelos formais dos textos sobre a teologia da aliança no
Antigo Testamento. O Senhor, o “Deus de Israel”, era em
certo sentido o rei supremo, enquanto Israel, o “povo do
Senhor”, era o povo vassalo de Deus; e como no âmbito
político a relação de vassalagem se concretizava num
documento que continha os precedentes, as condições
contratuais, as listas das testemunhas, os textos das maldições
e bênçãos – documento que ficava cuidadosamente guardado
e que devia ser proclamado em público em regulares
intervalos de tempo –, assim também a aliança de Israel com
o Senhor teve o seu documento contratual. Isto constituiria na
época dos reis um primeiro estágio do nosso atual livro do
Deuteronômio.
Não devemos apressadamente desprezar o aspecto
jurídico na concepção das relações com Deus. Nós somos
tentados naturalmente de contrapor a “Igreja jurídica” com a
“Igreja da caridade” e julgar o termo “Igreja jurídica” no
sentido negativo. Mas não se deve esquecer que no antigo
Israel não se chegou a tal contraste. Graças às categorias
jurídicas, a religião de Israel se distinguiu das religiões
naturalísticas-mitológicas do mundo de então. Somente as
categorias jurídicas permitiram encontrar Deus na sua
personalidade, liberdade, com ativa presença na história e
transcendência.
TERCEIRO CAPÍTULO
UNIÃO DE TRADIÇÕES
(Dt 6, 4-25)
O texto
Escuta, Israel!
O Senhor nosso Deus – um único Senhor. Ama pois o
Senhor teu Deus com toda alma, com toda a intensidade e com
todas as forças!
Estas palavras (da aliança) que eu hoje de ordeno, estejam
na tua alma. Inculca-as aos teus filhos. Diga-lhes quando
estiver em casa e quando caminhar pela estrada, quando deitas
e quando levantas. Amarre-as como uma marca na sua mão,
como se estivessem penduradas entre os seus olhos. Escreve-
as sobre os umbrais das casas e nas portas da cidade.
E assim acontecerá: quando o Senhor teu Deus te houver
introduzido na terra que aos teus pais – Abrão, Isaac e Jacob,
jurou te dar – cidade grande e bela, que tu não construíste;
casas cheias de todos os bens, que tu não encheste; poços
escavados que tu não escavaste; vinhas e oliveiras que não
plantaste; e comeres, e te fartares, Guarda-te, que não te
esqueças do Senhor, que te tirou da terra do Egito, da casa da
servidão. O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo
seu nome jurarás. Não seguireis outros deuses, os deuses dos
povos que houver ao redor de vós; Porque o Senhor teu Deus
é um Deus zeloso no meio de ti, para que a ira do Senhor teu
Deus se não acenda contra ti e te destrua de sobre a face da
terra.
Não tentareis o Senhor vosso Deus, como o tentastes em
Massa; Diligentemente guardareis os mandamentos do
Senhor vosso Deus, como também suas instruções e suas leis,
que te tem mandado. E farás o que é reto e bom aos olhos do
Senhor, para que bem te suceda, e entres, e possuas a boa terra,
a qual o Senhor jurou dar a teus pais. Para que lance fora a
todos os teus inimigos, como o Senhor tem falado. Quando
teu filho te perguntar no futuro, dizendo: Que significam as
Pg. 57 (obs: as páginas conferem com o texo em italiano)
instruções, estatutos e decretos que o Senhor nosso Deus vos
ordenou? Então dirás a teu filho: Éramos servos de Faraó no
Egito; porém o Senhor, com mão forte, nos tirou do Egito; E
o Senhor, aos nossos olhos, fez sinais e maravilhas, grandes e
terríveis, contra o Egito, contra Faraó e toda sua casa; E dali
nos tirou, para nos levar, e nos dar a terra que jurara a nossos
pais. E o Senhor nos ordenou que cumpríssemos todos estes
estatutos, que temêssemos ao Senhor nosso Deus, para o
nosso perpétuo bem, para nos guardar em vida, como no dia
de hoje. E será para nós justiça, quando tivermos cuidado de
cumprir todos estes mandamentos perante o Senhor nosso
Deus, como nos tem ordenado.
O contexto
O texto de Dt 6,4-25 é uma seção. A unidade original da
qual o tiramos para comentá-lo isoladamente é Dt 5,1-6,25.
O capítulo 5 é narrativo, o capítulo 6 é exortativo. No cap.
5 se narra a conclusão da aliança no Horeb; em 5,6-21 vem
reportado o texto inteiro do Decálogo, apresentado como o
texto original da aliança, proclamado no Horeb, entre Deus e
Israel. Neste capítulo se narra ainda como a Moisés foi dado
o encargo de comunicar ao povo de Israel, além do Decálogo,
outras ordens e prescrições (cfr. 5,31). É uma referência à
grande parte do material legislativo que hoje nós lemos nos
capítulos 12 – 26 do Deuteronômio. O povo se sentia incapaz
de suportar a teofania do Senhor no Horeb, assim suplicou a
Moisés de agir como mediador. Somente ele deveria receber
a palavra de Deus para comunica-la a Israel. O senhor
consentiu o pedido do povo e assim Moisés se tornou o
mediador. Assim termina a narração e inicia a parênese: é o
anúncio do mandamento principal, que pode ser lido no texto
de Dt 6,4-25.

Pg. 58
A estrutura do texto
Estamos novamente diante do desenrolar amplo e
fluente do estilo deuteronomista. Mas de novo o texto
apresenta também uma construção perfeita em cada parte. Isso
se inspira, na sua estrutura, à uma forma arcaica de relação
jurídico cultual, forma que nós indicaremos com o termo
“moldura literária do mandamento”. Essa recorrência bíblica
se encontra também em Ex 12,24-27a; 3,13-10; 13,11-16.
Todos estes textos são sem dúvida mais antigos que o nosso.
Como exemplo, reportamos o mais breve deles.
Observa isto por estatuto para ti, e para teus filhos para
sempre. E acontecerá que, quando entrares na terra que o
Senhor te dará, como tem dito, guardarás este culto. E
acontecerá que, quando teus filhos disserem: Que culto é este?
27
Então dirás: Este é o sacrifício da páscoa ao Senhor, que
passou as casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu aos
egípcios, e livrou as nossas casas.
Os outros passos da “moldura literária do mandamento”
são mais amplos, mas têm a mesma estrutura. Se falta a
expressão introdutiva se pode notar que tal moldura consiste
de duas frases condicionais deste tipo:
Quando tu estiveres na Terra da promessa então observa
este estatuto...
Quando teu filho te perguntar “por que isto?” então tu
responderás: ... (referência à origem do mandamento na
ocasião da libertação do Egito).
A expressão, portanto, indica uma situação referida a
Israel antes que tomasse posse da Terra: o interlocutor é
Moisés, ou um seu representante no culto. Na sua segunda
parte usa o ponto de contato

Pg. 59
da “pergunta do filho” para desenvolver a motivação
histórico-salvífica do mandamento.
Esta “moldura” forma ainda, sem dúvida, a estrutura de
suporte de nossa peça. Dt 6,10-15 forma a primeira frase
condicional, à qual corresponde a exposição do mandato em
Dt 6,12-15. Nestes versículos se encontram o centro do
capítulo inteiro. Isto é reconhecível inclusive do ponto de vista
estilístico, porque improvisadamente entra em cena o recurso
estilístico deuteronomista mais eficaz, a passagem do singular
ao plural e vice-versa. Enquanto que na perícope Dt 6,4-25 os
ouvintes são interpelados no singular (tu), em 6,14 (e de novo
em 6,16ss) improvisadamente o discurso usa o plural (vós). A
segunda frase condicional da “moldura do mandamento”,
introduzida com a “pergunta do filho”, claramente se
distingue em Dt 6,20-25. Como nós hoje temos uma ideia da
estrutura do prefácio na Santa Missa, e sabemos onde esperar
a alusão variável ao mistério de uma determinada festa ou de
um determinado período litúrgico, assim devemos supor que
também os israelitas tivessem sensibilidade para a estrutura
particular da “moldura do mandamento” e a função das suas
diversas partes.
Entorno das duas partes principais desta “moldura”
podem entrelaçar motivos ornamentais. Isto se vê em Ex
12,24; 13,1ss.9ss.16. A exortação à contínua atualização do
mandamento em Dt 6,6-9 tem os seus paralelos, em partes
literais em Ex 13,9.16. Também a exortação inserida antes (Dt
6,4ss) e entre as partes principais (Dt 6,16-19), amplia o
esquema de fundo sem realmente incomodá-lo.
O discurso todo vem introduzido com o convite dirigido
à assembleia cultual reunida: “Escuta, Israel!” (Dt 6,4a).

Pg. 60
Excursus sobre o Decálogo

Para afirmar a mensagem específica do texto não é


suficiente analisar a estrutura e estudar as normas estilísticas.
É preciso analisar o conteúdo. No capítulo 5, que, como foi
dito, faz parte do nosso contexto, vem relatado o Decálogo
que também no nosso texto tem uma função importante, pelo
menos no seu “primeiro mandamento”. Por isso, deve ser dito
antes alguma coisa sobre o Decálogo e seu “primeiro
mandamento”.
O Decálogo faz parte de um modo linguístico particular,
facilmente reconhecível. O texto comentado no capítulo
precedente (Dt 10, 12-11,17) não contém em nenhum modo
(se excetua as elaborações tardias em 11,16) traços do modo
linguístico do Decálogo. Podemos então afirmar com certeza
que tal texto deriva de um âmbito de tradição com o qual o
Decálogo não tem nada a ver.
Tal constatação não impede naturalmente que também o
Decálogo deriva da tradição mais antiga de Israel. Existia de
fato, uma multiplicidade de correntes de tradições. Que o
Decálogo constitui o direito vigente desde os tempos dos
Juízes deve ser considerado como já comprovado, e não há
nada que o impeça de ser conectado inclusive com Moisés. Se
esse é realmente o Código da aliança do período mosaico, isto
hoje é discutido pelos estudiosos. Não se deve negar que, não
obstante a atestação de Ex 19,24 e Dt 5, existem uma serie de
argumentos contrários. Mas a questão permanece aberta. É
certo, do todo modo, que o antigo texto cultual Dt 10,12-
11,17, que também recolhe muitas formulações do
mandamento principal da aliança, não conhecia, ou não
reconhecia ainda o primeiro mandamento do Decálogo como
uma formulação

Pg 61
válida da lei central da aliança. O “primeiro
mandamento” foi inserido no contexto da proclamação da lei,
qual nos é transmitida em Dt 5,11, somente depois da
composição dos capítulos 5-6.
O texto do Decálogo passou também por uma longa
história. No curso dos séculos ele foi muitas vezes ampliado e
completado. Algumas amplificações foram feitas inclusive
depois de sua inserção no texto de Dt 5. Podemos então
perguntar-nos como era na sua fisionomia original o “primeiro
mandamento” quando foi formado o Dt 5-6. Reportamos aqui
de imediato, sem justifica-lo, o texto reconstruído:
Eu sou o Senhor teu Deus.
Eu te conduzi para fora da terra do Egito, da casa da
escravidão.
Tu não deves ter deuses estrangeiros diante de mim.
Porque eu, o Senhor teu Deus, sou um Deus ciumento:
que pune os pecados daqueles que me odeiam, mas que é fiel
para com aqueles que me amam e que observam os meus
mandamentos.
O texto original continha então uma auto apresentação de
Deus, uma prévia da formulação do mandamento principal e
uma motivação para este. O mandamento principal era
formulado como proibição de adorar divindades estrangeiras
– na motivação tem uma exortação sobre isso com conceitos
de amor e “observância dos mandamentos”, ambos já
constituídos em Dt 10,12,11,17. A motivação do mandamento
principal é indicada como um alerta sobre o ciúme do Senhor,
talvez, melhor dizer, um santo ciúme do Senhor. No discurso
sobre o mandamento principal da aliança reportado em Dt 6,4-
25, este texto do Decálogo forma um substrato.

Pg 62
Em que forma se apresenta agora o texto do Decálogo em
Dt 6,4-25?

Comentário sobre o Decálogo


O texto do Decálogo é praticamente retomado a fim de o
alargar e reformular, com outras palavras. Não é um texto
mais amplo, em que as palavras do Decálogo, num certo
sentido, servem de espinha dorsal. Isto acontece em Dt 6,12-
15, onde o próprio mandamento é anunciado dentro da sua
“moldura literária”. Na nossa tradução nós indicamos a
questão com caracteres diversos. Se você ler as palavras em
itálico da nossa tradução por si mesmo, o texto primitivo do
Decálogo, esboçado por nós acima, irá emergir pouco a
pouco. Neste discurso se forma o fio condutor de um texto do
mandamento mais rico e mais amplo. Podemos falar aqui de
um “comentário ao mandamento principal do Decálogo”.
O comentário realmente não termina com os versículos
de Dt 6,12-15. Também nos dois discursos acrescentados ao
texto base (Dt 6,4-6 e 6,16-19) devemos sublinhar na nossa
tradução algumas palavras: em Dt 6,4ss o termo “amor” pelo
Senhor, e em Dt 6,16-19 o termo “observância dos
mandamentos”. Estas eram as expressões com as quais o
“primeiro mandamento do Decálogo” foi sintetizado no final
de sua motivação. Se Dt 6,4ss fosse inserido entre 6,15 e 6,16
teríamos um comentário ordenado sobre todo o mandamento
principal primitivo do Decálogo. Em vez disso, precisamente
por causa da importância da formulação do mandamento
principal como mandamento do amor, esta expressão foi
tomada e colocada no início do discurso,

Pg 63
Precisamente depois da exortação inicial “Escuta, Israel”.

Unificação de duas tradições


Neste discurso, portanto, o mandamento principal é
anunciado enquanto se comenta-o. Mas de que modo se
comenta-o? Também esta pergunta leva a conclusões de uma
certa importância. A Frase mais importante do comentário é
sem dúvida Dt 6,13: “Teme o Senhor teu Deus, serve-o e jura
no seu nome”. Tal frase, salvo a omissão de “aderir-se a ele”,
ganha força a partir do texto que lemos no capítulo precedente,
isto é, em Dt 10,12-11,17, precisamente em Dt 10,20.
Em Dt 6,15 a formulação do Decálogo, que faz referência
ao ciúme do Senhor, é comentado na seguinte frase: “Afinque
não se acenda a ira do Senhor teu Deus contra ti e Ele então te
faça desaparecer da face da terra”. Esta frase corresponde
exatamente à conclusão de Dt 10,12-11,17: “Senão a ira do
Senhor se acenderá contra vós; Ele destruirá o céu; não cairá
mais chuva; a terra não dará mais o seu fruto; vós
desaparecereis em pouco tempo da terra que o Senhor está
para dar-vos”. A fórmula da maldição que aqui vemos em
forma mais ampla, no nosso comentário do Decálogo é
sintetizada em duas expressões: “ira do Senhor” e “eliminação
da terra”.
Se pode evidenciar outros pontos de contato entre Dt 6 e
Dt 10ss, por exemplo a expressão “com toda a alma e com
toda a intensidade” (Dt 10,12 e 11,13) que em Dt 6,5 e
encontra ampliada: “...com toda a alma, com toda a
intensidade e com toda a força”. Claro que em Dt 6 existem
outros conceitos, termos e motivos que não derivam de Dt 10
e 11. Mas

Pg 64
os pontos de contato com este texto são muito
significativos. Eles indicam que em Dt 6 duas tradições se
fundiram, mas que primeiro se desenvolveram
separadamente.
O compilador do nosso texto deve ter se encontrado numa
situação similar àquela de quem hoje deve organizar
subitamente o esquema de uma celebração litúrgica com a
participação igualitária de cristãos do rito latino e do rito
grego (prescindindo neste caso o problema da língua). Todos
os dois grupos de fiéis tem a mesma fé, mas esta para cada um
deles se exprime em estilo litúrgico diferente, com textos,
termos e conceitos completamente diferentes. Uma necessária
união se tornaria possível somente quando se tentasse unir as
duas tradições numa síntese, respeitando os direitos de cada
uma. Isto não é tão relevante para o nosso tempo, porque hoje
em dia tendemos a encorajar a diversificação dos ritos. Mas
noutras situações históricas, uma síntese similar poderia se
apresentar como necessária – este deveria ser o caso de Dt 6.
No culto da aliança de Israel a tradição litúrgica representada
em Dt 10-11 deveria estar unida com a “tradição do
Decálogo”, como talvez possamos dizer simplificando. Isto
acontece com a reestruturação do texto de Dt 5-6: em Dt 5 foi
inserido todo o texto do Decálogo e no capítulo 6, como
vimos, o mandamento principal do Decálogo foi comentado
com a ajuda de expressões tiradas da outra tradição. O antigo
texto de Dt 10,12-11,17 não foi eliminado, mas foi colocado
antes desse o novo texto reestruturado (neste contexto, os
capítulos intermediários podem ser negligenciados).
Nos daria alegria naturalmente conhecer a ocasião
concreta que provocou a unificação das duas tradições em
vista de anunciar o preceito principal da aliança. Mas é pedir
muito à

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crítica. Podemos constatar o fato da união das duas
tradições. Podemos admirar o esforço sempre renovado por
um justo e tempestivo anúncio em Israel do mandamento
principal, como se revela neste processo. Mas a falta de
informações precisas sobre a história da tradição litúrgica de
Israel nos impede de situar com precisão este processo num
determinado século, num determinado santuário ou festa. Nos
basta saber que este texto não informa os tempos das origens,
mas sobre tempos já avançados: falam das riquezas de muitas
tradições que se convergiram em uma, e que agora se
iluminam reciprocamente. Estes conhecimentos tornam
possíveis uma exegese adequada a este texto, que ainda hoje
é a oração recitada diariamente por cada judeu, como também
as palavras dos versículos 8-9 que na origem tinham sentido,
e que são seguidas literalmente pelos judeus fieis. E já que o
próprio Jesus assumiu a formulação dos versículos 5-6 como
sua formulação do mandamento principal (cfr. Mc 12,28-34;
Mt 22,34-40; Lc 10,25-28) poucos textos da Escritura nos
deveriam ser mais caros do que este, e deveríamos nos
esforçar continuamente para compreendê-lo da melhor
maneira possível.
O mandamento principal como mandamento do amor
Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus – é único Senhor.
Ama, portanto, o Senhor teu Deus com toda a alma, com toda
a intensidade e com todas as forças! (6,4ss).
Nestes versículos 6,4ss a exigência do amor pelo Senhor
deriva da afirmação da unicidade do Senhor. Nesta expressão
a língua hebraica em um certo sentido toca os limites das suas
capacidades expressivas. O termo que nós traduzimos
normalmente como “Deus”, isto é, ’elohim não era
absolutamente capaz

Pg. 66
De expressar a ideia de um Deus único. No mundo do
politeísmo isso só poderia referir-se a muitos seres. Por
’elohim se entendia também aquelas potências que nós
chamamos “anjos”. Assim não existia em prática nenhum
termo a disposição para exprimir a absoluta unicidade de
Deus. Por isto o nosso texto recorre a um paradoxo. Toma o
nome próprio do Deus de Israel (Javé, o nosso Deus) e
exprime assim a sua singularidade: "Javé é um Javé". Esta
afirmação é colocada no início de todo o discurso, e dela
deriva imediatamente o mandamento principal formulado
como o mandamento do "amor". “Amor” já era uma obrigação
do rei vassalo em relação ao seu senhor nos tratados de
vassalagem antigos orientais, nos quais, de acordo com a
história das formas, se baseia a aliança de Israel com Deus. O
Deuteronômio não tomou então o conceito do amor de Deus
antes de tudo em Oseias, como frequentemente se diz. Antes
Dt 6,5 o encontrou nas tradições anteriores, no Decálogo e em
Dt 10,12-11,17, como foi visto. A exigência de amar o Senhor
deve ter sido desde o início uma formulação do preceito
principal da divina aliança. Aqui esta adquire uma nova
profundidade, porque resulta em certo sentido do fato de que
Javé, o Deus de Israel, é “único Javé”. Este é o ponto de
partida para que o termo "só" tivesse um papel tão grande na
boca dos místicos e teólogos.
A continua atualização da aliança
Estas palavras (da aliança) que hoje te ordeno, estejam na
tua alma. Inculque-as aos teus filhos. Fala-lhes disso quando
estiveres em casa e quando caminhares pela estrada, quando
te deitares e quando te levantares. Liga-as como um sinal na
tua mão, estejam como pendentes entre os teus olhos. Escreve-
as nos umbrais das casas e nas portas da cidade (6,6-9).

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A exortação para atualizar continuamente a aliança não
se refere somente ao preceito do amor, mas a “todas as
palavras que eu hoje te ordeno”. “Hoje”, vale dizer à
assembleia cultual, na celebração da renovação da aliança,
quando se proclama este texto. A palavra anunciada no culto
deve então penetrar na vida inteira, e estar presente ao israelita
em todas as situações, em todo o tempo e em todo o lugar. As
várias determinações dadas nestes versículos têm a intenção
de enfatizar urgentemente que a palavra de Deus deve estar
presente na vida diária. Certamente nem todas devem ser
entendidas no sentido literal, sobretudo as últimas; mas ao
menos as primeiras não eram simples imagens. Aqueles que
realmente carregam a palavra de Deus dentro de si mesmos
nunca deixarão de falar dela, e estarão preocupados em
introduzir, sobretudo, seus próprios filhos no mundo da
palavra de Deus.

O mandamento principal (moldura literária, primeira


parte)
Quando, pois, o Senhor teu Deus te introduzir na terra que
jurou a teus pais, Abraão, Isaque e Jacó, que te daria, com
grandes e boas cidades, que tu não edificaste, E casas cheias
de todo o bem, que tu não encheste, e poços cavados, que tu
não cavaste, vinhas e olivais, que tu não plantaste, e comeres,
e te fartares...(6,10ss).
Os versículos 10 e 11 formam uma expressão simples e
linear. Eles sinalizam a introdução da primeira frase
condicional na moldura literária do mandamento: “Quando tu
estiveres na terra da promessa, então...” Mas como dizem
aqui!
Descreve todos os aspectos em que o preceito principal
será dirigido a Israel. Israel estará em um país muito rico
(cidades, casas, bens, poços, vinhedos, olivais). Nesta terra,
Israel se encontrará muito bem (comendo, estando cheio).
Toda esta sorte

Pg. 68
... não foi construída por Israel, como é continuamente
sublinhado. Ele vive no contexto da salvação que Deus
preparou, num contexto que o Senhor há muito preparou para
o seu povo, desde o seu juramento aos Patriarcas. Israel, numa
palavra, vive no âmbito da pura graça. - Só depois de Deus ter
feito tudo por Israel é que o preceito divino se aplica a Israel,
que ele nunca deve esquecer.
Guarda-te, que não te esqueças do Senhor, que te tirou da
terra do Egito, da casa da servidão. O Senhor teu Deus temerás
e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás. Não seguireis outros
deuses, os deuses dos povos que houver ao redor de vós;
Porque o Senhor teu Deus é um Deus zeloso no meio de ti,
para que a ira do Senhor teu Deus se não acenda contra ti e te
destrua de sobre a face da terra (6,12-15).
O aspecto mais importante deste texto já foi dito. Aqui se
comenta o primeiro mandamento do Decálogo, inspirando-se
na tradição da proclamação do preceito principal como é
perceptível em 10,12-11,17.
Mas há também outras expressões, como no início do
pedido de "não esquecer". Aqui a expressão ainda tem o
caráter de uma fórmula de transição. Mas Dt 8 o retomará e
aprofundará, como veremos no próximo capítulo, onde
falaremos em particular do "esquecimento".
O Senhor é caracterizado, com as formulações do início
do Decálogo, como Aquele que "tirou Israel da terra do Egito,
da casa da escravidão". A ação salvífica do Senhor é
considerada com categorias jurídicas como uma "libertação da
escravidão", expressão que retorna ainda mais tarde, em
6,21ss.
A fórmula do Decálogo "Você não deve ter deuses
estrangeiros antes de mim" é alterada

Pg. 69
na proibição de "seguir" deuses estrangeiros. Assim, retoma
um conceito que veio originalmente da esfera militar e
política, segundo o qual se decide a favor de um líder e o
segue. Muito em breve, no entanto, fala-se também na
sequencia nos confrontos de uma divindade. Neste sentido, o
Senhor exige de Israel que ele não siga nenhuma divindade
estrangeira dos povos vizinhos, mas somente Ele. Em relação
a ele. Israel sempre se vê obrigado a escolher entre o Senhor
que vive "no meio" do povo, e os deuses estrangeiros dos
povos que o rodeiam. A vontade do Senhor, de que Israel
pertença exclusivamente a ele, tem algo em si mesmo
inexorável. O Senhor é o Deus dos ciúmes para com os deuses
estrangeiros. Se este ciúme se acende, o Senhor pode tornar-
se um Deus irritado com Israel, aniquilando-o. Não pode
haver dúvidas sobre a seriedade do que o Deus da Aliança
exige.
Todos os mandamentos
Não tentes o Senhor como o tentaste em Massá (6,16).
A referência ao Senhor que habita "no meio" de Israel
recorda os acontecimentos em Massá no deserto, onde este
motivo é de grande importância (cf. Ex 17, 7). A memória dos
acontecimentos em Massah pertence de maneira muito
especial ao contexto do anuncio do preceito primário, como
atestam os Salmos 78,56 e 95,8. “Provar” Deus significa,
afinal, entrar numa disputa com Ele, exigir Dele que Ele se
justifique em sua fidelidade ao pacto, que Ele traga as provas.
Mas se Israel realmente vive no "temor do Senhor", confia
n’Ele, sem fazer perguntas; pois vive somente d'Ele. Esta frase
introduz na exortação geral de

Pg. 70
seguir todos os mandamentos, inseridos entre as duas
partes do "quadro literário do mandamento".
Diligentemente, guardarás os mandamentos do
SENHOR, teu Deus, e os seus testemunhos, e os seus estatutos
que te ordenou. Farás o que é reto e bom aos olhos do
SENHOR, para que bem te suceda, e entres, e possuas a boa
terra a qual o SENHOR, sob juramento, prometeu dar a teus
pais, lançando todos os teus inimigos de diante de ti, como o
SENHOR tem dito. (Dt 6,17-19)
Assim como a ameaça da ira do Senhor se conecta com a
deserção de Israel, assim a promessa da bênção de Deus (18
ss.) se conecta com a fidelidade do seu povo (17 ss.). Estas
bênçãos soam-nos muito estranhas. Talvez que o anúncio do
mandamento não diga respeito a Israel, que já se encontra na
Terra Prometida? Porque só nessa situação é que deve cumprir
os mandamentos. Agora, porém, a possibilidade de entrar na
Terra Prometida e possuí-la é-lhe oferecida sobretudo como
uma "recompensa" pela observância dos mandamentos. Ser-
se-ia tentado a falar de "contradição" e a assumir aqui
diferentes camadas literárias. Mas isso seria errado. Mesmo
que tradições formais diferentes se sobreponham neste
capítulo, isso não esclareceria tudo. É justamente nesta
aparente contradição que se deve advertir de novo a situação
cultual particular da pregação deuteronômica. Quando Israel
escuta este texto em sua liturgia, ele já está na Terra. Ao
mesmo tempo, a abolição cultual do tempo e do espaço traz as
pessoas de volta ao limiar desta Terra. Então Israel já está de
posse da sua terra, e ainda não está lá. Israel vem da bênção.
A graça de Deus é o pré-requisito para o que Ele pede e é, ao
mesmo tempo, a recompensa prometida pela observância do
seu pedido. A misteriosíssima e no fundo para nós homens
indecifrável

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dialética entre "graça" e "mérito" entre a ação divina e a
liberdade humana já emerge nestes textos deuteronômicos.

A “pergunta do filho” e a resposta


(moldura literária, segunda parte)
Quando teu filho amanhã Quando teu filho, no futuro, te
perguntar, dizendo: Que significam os testemunhos, e
estatutos, e juízos que o SENHOR, nosso Deus, vos ordenou?
Então, dirás a teu filho: Éramos servos de Faraó, no Egito;
porém o SENHOR de lá nos tirou com poderosa mão. Aos
nossos olhos fez o SENHOR sinais e maravilhas, grandes e
terríveis, contra o Egito e contra Faraó e toda a sua casa; e dali
nos tirou, para nos levar e nos dar a terra que sob juramento
prometeu a nossos pais. O SENHOR nos ordenou
cumpríssemos todos estes estatutos e temêssemos o
SENHOR, nosso Deus, para o nosso perpétuo bem, para nos
guardar em vida, como tem feito até hoje. Será por nós justiça,
quando tivermos cuidado de cumprir todos estes
mandamentos perante o SENHOR, nosso Deus, como nos tem
ordenado (Dt 6,20-25).
O olhar retrospectivo sobre a história da salvação,
como exigem as leis estilísticas da “moldura do
mandamento”, não é, como às vezes se pode ler, um texto
litúrgico mais antigo que teria sido inserido aqui em
sequência, mas é uma formulação toda nova e livre, redigida
para este contexto. Claro que, as mais antigas profissões de fé
de Israel, Com suas enumerações em série das obras
salvadoras de Deus (veja um exemplo desses credos antigos
em Dt 26,5-9) eles se submetem à estrutura do nosso texto.
Mas aqui estas profissões são transformadas em uma rigorosa
demonstração teológica legal. O objetivo é demonstrar que
Israel está no estado de "justiça" somente quando observa as
exigências do pacto determinado pelo Senhor. "Justiça" está
aqui para ser entendida de acordo com um conceito puramente
culto. Somente os que são "justos" podem

Pg. 72
entrar no espaço reservado do santuário e estar diante de Deus
na liturgia. Só quem é reconhecido “justo” pode receber no
culto o dom da “vida”. Para Israel, porém, “justiça” (v. 25) e
vida (v. 24) são bens condicionados a observância das
prescrições da aliança. Por que esta dependência? É
necessário demonstra-la, e se demonstra deste modo. Dt 6,21-
24 afirma que as exigências da aliança do Senhor com Israel
emanaram no contexto histórico da libertação de Israel do
Egito e da sua introdução na Terra da promessa. E no
versículo 22, de especial importância, com a fórmula “diante
aos nossos olhos” se faz notar que Israel podia ser em todo
momento chamado como testemunha ocular do agir do
Senhor, e que logo as intervenções do Senhor aqui recordados
eram fatos demonstráveis com o mais rigoroso critério
jurídico. Assim fazendo, Israel teria também admitido que o
Senhor decretou suas leis com pleno direito, pois primeiro Ele
adquiriu este direito com suas obras de salvação. A
demonstração é ainda mais rigorosa. Antes de mais nada, é
apontado que Israel era "escravo" do Faraó. Depois o Senhor
tirou Israel do Egito. Este verbo na linguagem jurídica do
antigo Oriente pode também significar “libertar um escravo”.
Mas quando alguém libertava um escravo, por exemplo
através do resgate, ele se tornava por sua vez senhor do
escravo, e podia colocá-lo diante de se, termos também estes
que podem significar “tornar alguém escravo”. De fato, o
senhor “introduziu” (v. 23) Israel na Terra onde o seu povo
agora deve servi-lo. Ele tem então pleno direito de impor as
suas leis a Israel. E Israel somente quando responde às
exigências do Senhor se encontra em estado de “justiça” e só
então pode receber a “vida”.

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Como se vê aqui, em um discurso sobre o mandamento
principal, de uma antiga profissão de fé cultual foi feita uma
demonstração convincente do direito absoluto de Deus à
obediência de Israel.

O mandamento e os mandamentos

Analisando os temas de um texto, nos perdemos


facilmente nas particularidades. É bom então colocar a
atenção sobre dois temas que dão unidade ao nosso texto, Dt
6,4-25. O primeiro diz respeito à dialética entre o
mandamento principal, único, e às muitas prescrições
singulares concretas. Quem lê atentamente Dt 6,4-25, notará
que além do anúncio do mandamento principal, o discurso
também cai frequentemente sobre o conjunto das
necessidades ditadas pelo Senhor; antes de tudo em 6,6-
9.17.20.24. Não se tem, porém, a impressão de diferenças ou
contrastes entre as afirmações. Tanto é verdade, que por
exemplo, se passa sem dificuldade da expressão “todas estas
leis” (6,24) a “este estatuto inteiro” (6,25), e em meio a estas
duas formulações se fala do “temor do Senhor”, com clara
alusão ao mandamento principal. É evidente então que o
mandamento principal não é um mandamento entre tantos,
mas seja também o primeiro deles, e mais, é um mandamento
de outro gênero, uma ordem que está absolutamente antes de
todos os outros, ou como se poderia dizer, que é o pressuposto
de todos e todos o contém. No mandamento principal a
multiplicidade da vontade concreta de Deus é resgatada à sua
unidade última.

Temer o Senhor

O mandamento principal não quer, portanto, referir-se


a prescrições singulares ou concretas. Mesmo um

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pedido como o culto exclusivo do Senhor neste sentido é uma
formulação "provisória". A essência do mandamento
principal é definir a atitude fundamental do homem diante de
Deus. Vejamos brevemente este segundo tema da nossa
passagem.
Como interpretação decisiva do mandamento
principal, o nosso texto usa o termo “temer o Senhor”. Este
termo está em Dt 6,13; mas é o único elemento de 6,13 que
depois é retomado em 6,24. Além disso, no texto completo,
que também inclui o Capítulo 5, o termo já é conhecido. O
capítulo 5 traduz em termos narrativos o temor do Senhor. Na
teofania do Sinai os israelitas não ousam subir a montanha por
“temor” (Dt 5,5), atingidos do santo terror diante ao
mysterium tremendum. Através deste temor Israel
experimenta como o homem diante de Deus está entre a vida
e a morte (Dt 5,23-26); eis porque pediram a Moisés para fazer
a mediação junto ao Senhor (Dt 5,27). O Senhor acolhe este
pedido (Dt 5,28) e exprime a sua compaixão por esta atitude
de “temor do Senhor” com estas palavras: “poderiam
permanecer assim: temer-me e observar sempre todos os meus
preceitos, para que eles e seus filhos fossem felizes para
sempre!” (Dt 5,29). Na economia da introdução a todo o
discurso sobre o mandamento principal, o texto contém mais
uma vez o termo "temor do Senhor" (6,2). Sem dúvida,
portanto, para Dt 5,6 o mandamento principal é entendido
essencialmente como um apelo a essa atitude fundamental de
adoração diante do Deus que se revela, que a linguagem
teológica do antigo Oriente define como "temor a Deus".
Se tal texto foi redigido porque duas diversas tradições
cultuais de Israel poderiam estar ligadas liturgicamente, a
ocasião foi um motivo puramente externo.

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Mas o compilador deste texto tinha igualmente alguma coisa
para dizer sobre o preceito primário da divina aliança. Ele
realizou sua função entre as diversas tradições não só através
de uma simples manipulação externa e literária, mas deduziu
o sentido principal do mandamento em si, que ele interpretou
como “temor do Senhor”, que derivava da experiência da
teofania do Senhor.

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