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José Geraldo de Gouveia
Abstract: Human relations make the most varied interactions possible. It is the
contact with the other, with what is different, that stimulates new experiences and
new learning. Learning implies changes and new connections. The Bible deals with
this issue right at the beginning, in Gen. 3. It presents the newly created human
being open to new possibilities. However, new possibilities imply new responsibilities.
The purpose of this research is to highlight in the text of Gen 3:1-19 the word Ꜥāfār
(dust), whose aim is to shed light on the preeminence of social and political co-
Mestre em Teologia bíblica pela Pontificia Università San Tommaso, Roma (2006).
Doutorando em Ciências da Religião (PUC-Goiás). GT 5 – Pesquisa Bíblica.
josegeraldodegouveia@gmail.com.
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responsibility. There is a deeply anthropological aspect that can be read between the
lines of this text. It is about human beings' lack of responsibility to assume their
mistakes, which the writer subtly makes a point of describing as a narrative
background. After eating from the tree of good and evil, the man does not assume
his transgression; he blames his companion, created by God. The woman, in turn,
justifies herself by claiming that she was seduced by the serpent, also a work of the
Creator. Thus, the human being indirectly accuses his Creator as the one
responsible for his fall. As the text does not present another character in the 'literary
line', the serpent was unable to point out another culprit for the error committed. It
ended up becoming a kind of 'scapegoat'. Through the method of a sociological
reading, this article aims to demonstrate the importance of individual responsibility as
a basis to reach a collective co-responsibility, a problem that persists in current
political relations. Regardless of any religious belief or political ideology, the human
being, as an immanent being, is Ꜥāfār, constituted of the same dust, possessing the
same basic needs.
INTRODUÇÃO
A Bíblia já foi traduzida para as mais variadas línguas. Tal feito proporcionou
que os textos bíblicos pudessem ser acessados por um número cada vez maior de
pessoas. Todavia, quem já fez alguma tradução sabe o quanto é desafiador
expressar em outra língua determinado texto na sua inteireza. “Traduzir é, ao
mesmo tempo, dizer e aceitar a impossibilidade de dizer” (ALMENDRA, 2020, p. 77).
Quando a tradução em questão é um texto antigo, envolvendo diversas culturas e
línguas, como é o caso da Bíblia, o desafio é ainda maior.
O presente artigo aborda um tema bastante estudado, a queda do ser
humano em Gn 3. Todavia, propõe uma reflexão sobre uma palavra que é indicativo
da realidade humana: a palavra Ꜥāfār. Este termo é empregado para descrever o tipo
de terra com a qual Deus modelou o ser humano. É ainda usado para descrever o
castigo imputado ao ser humano depois da queda. Percebe-se, contudo, que esta
palavra é uma advertência ao ser humano que olha apenas seu próprio interesse,
esquecendo-se da sua corresponsabilidade social.
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necessário algumas considerações sobre as narrativas que descrevem a criação da
humanidade. As narrativas que descrevem a criação do ser humano no livro do
Gênesis, a saber, Gn 1,26-31 e 2,7, foram redigidas em contextos diferentes. O
capítulo primeiro é uma narrativa atribuída a um redator sacerdotal (P), que se
estende até Gn 2, 4a. Em seguida percebe-se clara mudança redacional, trata-se da
tradição Javista (J). A partir do “v. 2,4b começa outro relato, que ocupará todo o
restante do capítulo 2 e o capítulo 3. Esse relato é de outra mão [...]. Sem entrar em
detalhes, podemos atribuir toda essa passagem à tradição J” (ARANA, 2003, p. 54).
Entretanto, este estudo não irá abordar o problema das fontes ou tradições, até
porque,
a datação tradicional das fontes sofreu uma reviravolta e a existência da
fonte Javista é negada e poucos ainda a aceitam. A fonte Eloísta há muito
tempo é negada e até mesmo a existência da fonte sacerdotal é colocada
em questão. A investigação atual é marcada por um distanciamento da
teoria documentária e por uma ruptura com a mesma (ARTUSO, 2012, p.
281).
Em Gn 1,26 o redator coloca na boca de Deus a seguinte afirmação: “Deus
disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles
dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as
feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra’”. Fica evidente a importância
dada ao ser humano, imagem do Criador. Todavia, isso implica em
responsabilidades na mesma proporção. A incumbência do ser humano enquanto
imagem de Deus, não é dominar de modo arbitrário as outras criaturas. É antes uma
possibilidade de crescimento, de ser um pastor zeloso que cuida: “exercer o domínio
sobre os animais é a melhor forma que o ser humano tem de permanecer humano,
como mostra a fala sobre o pastor (Sl 23; Jo 10)” (WESTERMANN, 2013, p.27).
Em Gn 2,7.20, não obstante o contexto redacional diverso, o ser humano
criado recebe também grande responsabilidade. Por um lado, é criado da terra,
ͻ
āḏāmāh, próximo dos outros seres. Contudo, tem permissão de nomeá-los. “Dar
nome supõe conhecer a natureza e o destino de cada animal e expressá-los, e
mostrar seu domínio sobre ele” (ARANA, 2003, p. 64). Entretanto, o redator coloca
uma palavra para descrever a condição humana, que não aparece na criação dos
outros seres vivos: Ꜥāfār. Todos os seres vivos são feitos de ͻāḏāmāh (Gn 2,19). O
ser humano é feito de Ꜥāfār min hā ͻāḏāmāh (Gn 2,7), ou seja do ‘pó’ da terra. "Pó:
Símbolo da mortalidade humana (3, 1 9)” (HAHN; MITCH, 2015, p. 37).
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Os redatores bíblicos descrevem a criação do ser humano, cada um segundo
seu contexto, porém, os dois mostram a importância e a responsabilidade que Deus
confiou à humanidade. Homem e mulher são imagem do Criador, mas não são
deuses. O ser humano nomeou outros seres, mas não os criou, portanto, não é
senhor. Aqui tem início um conflito: a criatura humana é especial, um ser que tem
poder de domínio, liberdade para nomear, entretanto, com poder relativo. Pode
comer de todas as árvores do Jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e
do mal (Gn 2,16-17).
A liberdade humana é o principal fator de semelhança a Deus, através da
qual o ser pode reger a sua trajetória e governar-se. Deus conferiu esta
liberdade, permitindo aos seus filhos fazer aquilo que desejassem, mas
vetou-lhes tocar nos frutos da “árvore que está no centro do jardim”
(MAZZAROLO, 2011, p. 99).
A questão é que o ser humano, pela própria condição de criatura não poderia
se esquecer de sua realidade. Ter a pretensão de ser deus é arrogância. Arrogância
tem como consequência a queda. O problema não consiste no desejo de ser maior,
mas em não reconhecer os limites inerentes à condição de criatura. Ao ‘comer’ da
árvore do bem e do mal, a realidade de criatura humana se apresenta, sua nudez é
revelada. E a sentença do Criador, após a transgressão cometida confirma a
condição terrestre do ser humano: a ‘serpente’ irá comer pó todos os dias de sua
vida; o ser humano retornará ao pó (Ꜥāfār) que é sua constituição enquanto criatura.
A queda do ser humano não se deve somente à uma força externa, diabólica.
Embora a serpente tenha sido apresentada como “o mais astuto de todos os
animais” (Gn 3,1), inimiga de Deus e causa da ruína humana, a serpente é um dado
mitológico, um símbolo de tentação que vai ao encontro do ser humano, “mas que
só é eficaz quando desperta um sentimento que está adormecido em seu interior”
(ARANA, 2003, p. 66). Este sentimento interno presente no ser humano fica mais
evidente no desenrolar da narrativa.
Após a queda, inicia-se um diálogo entre Deus, o homem e a mulher. Com a
serpente Deus não dialoga, apenas profere uma sentença. A partir do versículo 12
percebe-se claramente a dificuldade humana em assumir suas falhas. “O impulso de
autopreservação é muito forte” (WESTERMANN, 2013, p. 42). À pergunta do Criador
o homem responde com uma acusação: “A mulher que puseste junto a mim me deu
da árvore e eu comi!” (Gn 3,12). Ora, quem criou a mulher foi Deus, logo a culpa não
é do homem, mas daquele que criou a mulher. A interrogação continua e Deus
questiona o comportamento da mulher. Esta também responde com a mesma ideia
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acusatória: “A serpente me seduziu e eu comi.” (Gn 3,13b). Deus criou todos os
animais, inclusive a serpente, logo quem é o responsável pela tentação sofrida pela
mulher? Deus.
Deus não interroga a serpente. No fundo já o fizera ao interrogar o ser
humano. Percebe-se com isto a dificuldade humana no que diz respeito à uma ética
responsável. É mais fácil acusar do que assumir um erro. É mais fácil transferir
responsabilidades do que procurar a conversão. Com isto a falta se torna
maximizada pela irresponsabilidade em não assumir o erro feito. Esta tendência
humana perpassa insistentemente a história. Basta uma breve investigação histórica
para se descobrir vários personagens que tiveram a pretensão de ser deuses.
Imperadores, ditadores, de ontem e dos dias atuais. Também estes, normalmente
tentaram e ainda tentam esconder a nudez. Às vezes, cobrindo-se com uma
roupagem religiosa; outras vezes colocando a culpa naqueles que se relacionam
com Deus de modo diferente. Estas atitudes não correspondem ao ensinamento
contido no livro do Gênesis. Afinal,
Gênesis não nos apresenta a obra da criação como uma obra
ecologicamente fechada, mas sim como uma verdadeira proposta de
criação em permanente abertura e em permanente processo de fazer-se em
contínuo [...] a posição mais audaz de Gênesis 1, 2 e 3 foi de ter se atrevido
a assinalar, sem medo, qual a causa do mal na criação. Foi o egoísmo ou a
tendência que sempre tem havido no ser humano de sempre olhar em favor
de seus próprios interesses (SOUZA, 2013, p. 43).
CONCLUSÃO
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O resultado de relações sociais sem compromisso e sem um agir
corresponsável não terá outra consequência senão o fracasso. Transferir a
responsabilidade para outros, sobretudo para o diferente, pode ser uma sedução
tentadora, mas descobrirá apenas a nudez de quem assim agir; e a única
recompensa será a poeira, advertência presente na palavra Ꜥāfār, constitutivo de
cada ser humano.
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1987.
ALMENDRA, Luisa Maria. Traduzir a Bíblia: “...a impossibilidade de dizer”. Revista
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Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/50990/pdf.
Acesso em: 02 out. 2021.
ARANA, Andrés Ibáñez. Para compreender o livro do Gênesis. São Paulo: paulinas,
2003.
ARTUSO, Vicente. A Teoria documentária do Pentateuco. Aplicação e limites na
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https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/21667/21667.PDF. Acesso em: 02 out. 2021.
HAHN, Scott; MITCH, Curtis. O livro do Gênesis. Campinas: Ecclesiae, 2015.
KIBUUKA, Brian. A Torá Comentada. São Paulo: Fonte Editorial, 2020.
MAZZAROLO, Isidoro. Antigo Testamento. Iniciação Teológica. Rio de Janeiro:
Mazzarolo Editor, 2011.
SOUZA, Geraldo de Oliveira. Uma leitura ética a luz de Gênesis 1- 3. Revista
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WESTERMANN, Claus. O livro do Gênesis. Um comentário exegético-teológico. São
Leopoldo: Sinodal; EST, 2013.