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TEO(ECO)LOGIA: UMA PERSPECTIVA DA FÉ BÍBLICA 1

Paulo Roberto Garcia e Maurício Waldman 2

Pensar a questão ambiental numa perspectia teológica e místca implica, para além de
um exercício bíblico, atender demandas daqueles que adotam os liiros sagrados como
referência de especulação espiritual, determinante para sua prátca social enquanto
indiiíduos e grupos.

Logo, não se trata de mera incorporação mecânica do temário ecológico. Antes, trata-se
de um esforço específco de compreensão, trabalhando uma dimensão, o ambientalismo,
cujas origens remetem a mobilizações historicamente externas às comunidades religiosas.

Deste modo, a despeito de personagens como Francisco de Assis, o Patrono da Ecologia,


que explicitam iínculos factieis entre o sagrado e o ecologismo, nada disto resolie, por
exemplo, questões deriiadas da incompreensão por seções do moiimento ambientalista
quanto ao que entendemos como concepção judaico-cristã de mundo, fundamentada nas
narratias da Bíblia Judaica (que corresponde para os cristãos ao Antgo Testamento) e no
Noio Testamento.

Neste partcular, é necessário aialiar leituras realizadas por autores e atiistas do meio
ambiente, nomeadamente as que posicionam a concepção judaico-cristã enquanto cerne
da devastação da natureza.

A mais ier, este é o parecer do historiador norte-americano Lynn Townsend White, que
em artgo publicado em 1967 na Reiista Science, The Historical Roots of Our Ecological
Crisis (Raízes Históricas da Nossa Crise Ecológica), explica a crise ambiental a partr do
surgimento da étca judaico-cristã.

Daí que o legado bíblico, tal como exposto no Liiro de Bereshit-Gênesis, predicando que o
homem e a mulher deieriam ser fecundos, multplicando-se, enchendo e submetendo a
terra, dominando “os peixes do mar, as aies do céu e todos os seres iiios que estejam
sobre a terra” (Cf. Bereshit-Gênesis 1: 28), justfcaria, na sua argumentação, quatro mil
anos de degradação ambiental.

Tal aialiação, repetda sistemátca e acritcamente por muitas publicações ambientalistas,


transformou-se numa obiiedade junto a amplo segmento de opinião, no mais das iezes,
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solenemente ao largo de uma discussão aprofundada que um tema tão complexo quanto
este seria merecedor (Figura 1).

FIGURA 1: Representação do Paraíso na Bíblia Ogilby, datada de 1660. O Relato da Criação é uma peça central
na narratia bíblica, encontrando sua representação icônica no Jardim do Éden, que repetdamente é ilustrado
com o primeiro homem (Adão) e a primeira mulher (Eia), imersos na naturalidade. Nesta imagem, alegórica
como muitas outras, note-se que além da fauna ser representada independentemente dos habitat de origem,
estão presentes seres fabulosos como o unicórnio, clara indicação de que a narratia bíblica sugere uma noção
onírica de natureza, compatiel com diferentes contextos históricos e culturais, e ao mesmo tempo, apontando
para uma iisão de unidade da criação (Fonte: < http://looklex.com/e.o/paradise.htm >. Acesso: 22-01-2018).

Por outro lado, não são incomuns imagens que embora não centradas na crítca à
concepção judaico-cristã de mundo, incorporam uma iisão deformada das mensagens
religiosas. Neste recorte, sentenciou o teólogo europeu A. Gruhl: “O Homem é o Satã
desta terra”.
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Nesta ordem de interpretações da problemátca ambiental, a espécie humana termina


indicada genericamente como elemento de desequilíbrio e desarmonia, malefcamente
ioltada para a depredação e a morte.

Trata-se de uma iisão que, além de contraditória (pois iários estudos antropológicos
assinalam modelos não predatórios de relação com a natureza, caso das sociedades ditas
primitias e das sociedades tradicionais), rejeita antecipadamente a possibilidade de que
homens e mulheres, organizados noutras estruturas sociais, econômicas, polítcas e
ecológicas, possam marcar positiamente sua passagem sobre a Terra.

Seria ineiitáiel ressaltar que tais iisões, com liire curso em segmentos do moiimento
ecológico, não deixam de operar com uma dimensão do sagrado, consttuindo a seu
modo também uma teologia, pespontada por apontamentos místcos.

Pondere-se a este respeito sobre máxima da pena do biólogo e paleontólogo francês Jean
Dorst: “O Homem apareceu como um verme na fruta, como uma traça num novelo de lã e
roeu o seu habitat”.

Deste modo, o desequilíbrio ambiental passa a ser identfcado com a destruição de um


paraíso, sugerindo uma concepção de natureza original onde o grande estorio é o próprio
homem.

Arrematando, surpreende nestas aialiações, em especial quando o alio é a iisão judaico-


cristã de mundo, a ausência de parâmetros históricos e bíblicos (ou especialmente
estes).Com base nestes apontamentos, destacamos:

1. O conceito de meio ambiente é historicamente determinado, logo, o que se tem é uma


noção apenas passíiel de compreensão quando inserida em processos sociais e culturais,
transcorrendo no tempo e no espaço. O que consideramos natural não é natural perante
si mesmo, mas sempre com relação a uma Humanidade socialmente organizada. Logo,
entender automatcamente a espécie humana como “predatória” ou “destrutia”, exigiria
primeiramente a identfcação de qual meio ambiente está sendo depredado, o que iaria
de uma sociedade e de uma época para outra, assim como nos atores específcos dos
impactos ambientais.

2. Concomitantemente, atribuir à concepção judaico-cristã a origem de todos os males


ambientais é conceder-lhe status a-histórico, dado manifesto quando se infere que os
nômades do Sinai, os hebreus bíblicos, as primeiras comunidades cristãs, o sistema feudal
e as sociedades mercantlistas, todas atnentes ao uniierso judaico-cristão, manteriam a
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priori idêntco comportamento com a natureza. Isto posto, este raciocínio, ao impor em
nome da história atributos metafsicos à herança judaico-cristã, nega a personalidade
histórica da degradação ambiental.

3. O entendimento do texto bíblico (ou seja, a hermenêutca), é passíiel de iárias leituras,


tais como a fundamentalista, crítco-histórica e a crítco-sociológica. Neste sentdo, pensar
os textos bíblicos enquanto uma construção uniforme, alheios às conjunturas históricas
nas quais foram elaborados (caso da leitura fundamentalista) e a partr das narratias em
si mesmas, respaldar conjecturas como as de Lynn White, é um erro a ser eiitado. Por
exemplo, o iersículo do Gênesis mencionado pelo historiador (elaborado durante o exílio
babilônico), pode ser contrastado com outros, também presentes em Gênesis, como o
chamado Segundo Relato da Criação (Bereshit-Gênesis 2.4b-3.24), que registra o primeiro
homem e a primeira mulher desfrutando de contato direto e harmonioso com a natureza.

4. Pensar a concepção judaico-cristã como associada à depredação ambiental igualmente


obscurece o fato de que os liiros da Bíblia consttuem ainda hoje uma fonte preciosa de
enriquecimento das lutas sociais, inclusiie a ecológica, ioltadas para o respeito das
diferenças, ao solo, aos animais e a necessidade de preseriar a integridade da criação.
Nesta deriiação, o fato de Noé, por exemplo, ter acatado a instrução de que nenhuma
espécie deieria ser sacrifcada no Dilúiio e que na inculturação bíblica clássica dominar
não tem o signifcado de depredar, deieriam consttuir notas merecedoras de atenção
por parte de Lynn White, Jean Dorst e dos demais especialistas da área ambiental.

5. Por fm, as ponderações precedentes apontam para o desafo de entender que em uma
teo(eco)logia, transparece obrigatoriamente numa dimensão místca, “porque sensíiel ao
mistério do mundo e ao mundo do mistério”, que surge “quando fazemos a crítca radical
do sentdo da iida que está gerando a crise hoje” (Frei Leonardo Bof), desdobrando-se
também num trajeto ecumênico, que pensa artculadamente um mundo que se tornou
artfcialmente diiidido.

Com base no que foi comentado, este texto, escrito a quatro mãos por um judeu
ecologista e um pastor metodista, se propõe como uma contribuição para pensar estes
desafos, que pautam não só um noio relacionamento com o meio natural mas em igual
medida, uma noia relação entre todos os homens e todas as mulheres, assentada passo a
passo em parceria com a criação.
1 Teo(Eco)Logia: Uma Perspectia da Fé Bíblica é um artgo escrito a quatro mãos por
Paulo Roberto Garcia e Maurício Waldman, primeiramente publicado pelo Jornal
Contexto Pastoral, Caderno de Debates, Campinas (SP) e Rio de Janeiro (RJ), nº. 3, pp.
20-21, edição de 01-08-1991. A presente edição deste material, preseriando o teor do
texto original, foi reiisada e reconfgurada editorialmente pela Editora Kotei (Kotei ©)
para fns de acesso liire na Internet em Outubro de 2018, permitndo consulta em todo
tpo de gadgets eletrônicos, inclusiie em aparelhos celulares. Teo(Eco)Logia: Uma
Perspectia da Fé Bíblica incorpora reiisão ortográfca com base nas regras iigentes
quanto à norma culta da língua portuguesa, cautelas de estlo, repaginação normatia e
normatzações editoriais inerentes ao formato PDF. A confecção desta edição digital
contou com a Assistência de Editoração Eletrônica e Tratamento Digital de Imagens do
webdesigner Francesco Antonio Picciolo, E-mail: francesco_antonio@hotmail.com,
Site: www.harddesignweb.com.br. Retenha-se que editorialmente, Teo(Eco)Logia:
Uma Perspectia da Fé Bíblica é um material gratuito, sendo iedada qualquer forma
de reprodução comercial e do mesmo modo, de diiulgação sem aproiação préiia da
Editora Kotei (Kotei©). A citação bibliográfca de Teo(Eco)Logia: Uma Perspectia da
Fé Bíblica deie obrigatoriamente incorporar referências ao autor, texto e apensos
editoriais conforme padrão modelar que segue: WALDMAN, Maurício. Teo(Eco)Logia:
Uma Perspectva da Fé Bíblica. Série Ciências da Religião Nº. 2. São Paulo (SP): Editora
Kotei. 2018.
2 Seguem notas biográfcas dos autores de Teo(Eco)Logia: Uma Perspectia da Fé
Bíblica, tais como publicadas na edição original do artgo: Paulo Roberto Garcia é
biblista, pastor metodista e íntegra a equipe do Programa de Assessoria à Pastoral do
CEDI - Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Maurício Waldman é
ambientalista e Secretário do Meio Ambiente de São Bernardo do Campo (SP).
Informação atualizada sobre os autores está disponíiel no Currículo Lates de ambos:
< htp://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/iisualizaci.doiidKK470877722 > (Paulo
Roberto Garcia) e < htp://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/iisualizaci.doi
idKK470631126 > (Maurício Waldman).
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