Você está na página 1de 16

CRIAÇÃO, NATUREZA

E MEIO AMBIENTE*

HAROLDO REIMER**

Resumo: o artigo busca apresentar três modos distintos de falar da terra: terra,
natureza e meio ambiente como teia da vida. Cada termo evidencia deter-
minada perspectiva conceitual. Falar da terra como ‘criação’ remete para
um discurso mítico-teológico com forte influência judaico-cristã. Falar da
terra como ‘natureza’ revela a ruptura homem-natureza com o raciona-
lismo moderno com o correspondente conceito da sobreposição e domínio
do humano sobre a natureza. Entender a terra como ‘meio ambiente’ vivo
é resultado simbiótico de reconhecimentos no mundo científico aliado a
percepções ético-religiosas, que situa a vida e o destino dos humanos nas
ininterruptuas interrelações da terra como um grande organismo vivo em
relação ao qual os humanos devem assumir um princípio ético de respon-
sabilidade tendo em vista as presentes e as gerações futuras.

Palavras-chave: Criação, Natureza. Meio Ambiente. Ética. Responsabilidade.

H  á modos diferenciados de se referir ao conjunto daquilo que-


performa o espaço de vida dos seres humanos. Pode-se falar em
‘criação’, em ‘natureza’ ou em ‘meio ambiente’. Embora tendo o
mesmo referencial, cada conceito expressa um acesso diferencia-
do, evidenciando nuanças de sentido. Aqui pretendemos apre-
sentar alguns elementos relativos a cada conceito.

53 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


CRIAÇÃO

O termo ‘criação’ para se referir ao meio ambiente ou à natureza como um


sistema de relações no qual os seres humanos estão inseridos é um con-
ceito profundamente influenciado pela linguagem bíblica. No ouvido
de qualquer leitor minimamente familiarizado com a literatura bíblica
ecoa a primeira frase de Gênesis 1,1: “No princípio criou Deus os céus
e a terra”. Aí estamos diante de uma confissão de fé primeiramente
típica dos antigos hebreus, o povo de Israel. Quem se articular por
meio desta frase, seja lá o alcance que ela tiver, está afirmando que o
Deus chamado em hebraico de elohim é o criador da realidade de vida
existente. Trata-se de uma afirmação de fé com pretensão monoteísta
em meio a um contexto politeísta como era típico para o ambiente
cultural do mundo do antigo Oriente próximo.

Na linguagem bíblica, o que se expressa por meio da frase “No princípio


criou Deus os céus e a terra”, em Gênesis 1,1, se refere, em termos
sistemáticos, à creatio prima, a “criação primeira” de Deus, aconteci-
da nas origens. Num tempo que não pode ser nominado em termos
cronológicos exatos, mas que deve ser entendido como momento
originário indeterminado, ‘criação’ é um espaço criado em meio ao
caos existente das “águas do abismo”, que é chamado de ‘terra’ (Gn
1,2). Esta terra é adjetivada por meio da expressão hebraica tohu wa-
bohu para designar o estado de coisas antes da ação criadora de Deus.
“Vazia e sem forma” é a tradução que a Bíblia de Almeida atribui a
esta expressão, dando com isso vazão à noção de uma “criação a partir
do nada”. “Desolação e vazio”, provavelmente, correspondem melhor
ao original hebraico, pois em analogia a Jeremias 4,22 trata-se de um
espaço devastado, caótico, sem a ordenação que possibilita a vida. O
ato de criar reorganiza um caos pré-existente.

A ação criadora de Deus nesta creatio prima é associada com a ruah elohim
(Gn 1,2), uma expressão que usualmente é traduzida por “Espírito de
Deus”, “espírito de Deus”, associando-se assim a ação criadora com
a direta atividade divina. Esta tradução, contudo, é muito discutida,
propondo-se nas diversas versões da Bíblia expressões bem diferentes
como “vento tempestuoso”, “vento forte”, etc. (RIBEIRO, 2002).

Segundo o testemunho de fé bíblico, o espaço ordenado e criado em meio ao


, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 54
ambiente caótico é o lugar em que é alocado o ser humano, o adam.
Na linguagem bíblica há maneiras distintas de falar da criação do ser
humano. E Gênesis 1,27 se afirma que o adam, aquele ser originário,
é “criado” como “imagem e semelhança” do Criador. A diferenciação
em masculino e feminino confere a ambos, homem e mulher, igual e
simultânea dignidade. Em Gênesis 2,7 é dito que o adam é “formado”
a partir da adamah, termo que pode ser melhor traduzido por “terra
cultivável”. Esta relação evidencia, em sentido bíblico, uma íntima
conexão entre os humanos e a terra. O humano emerge a partir do
corpo da própria terra. Por meio da língua latina, esta relação quase
umbilical pode ser expressa por meio do trocadilho humanus – hu-
mus: o humano foi formado a partir do húmus! O espírito vivificante
transforma este “ser terroso’ em “garganta vivente”.
Neste espaço de vida o ser humano criado ou formado por Deus recebe
atribuições específicas, mas distintas. Destaque merece a dignificação
por meio do conceito de “imagem e semelhança” com o Criador (Gn
1,26-28). Os humanos recebem atribuições ou mandatos que oscilam
entre o domínio e o cuidado (Gn 1,28; 2,15). Muita recepção tem
recebido o mandato de “sujeitar e dominar” (Gn 1,28) em detrimen-
to do binômio “cultivar e guardar” (Gn 2,15). Este último deve ser
potencializado nas interpretações contemporâneas justamente em face
das facetas dos desajustes ambientais também em decorrência da forte
intervenção humana no ambiente.
O credo criacionista perpassa toda a Bíblia. Especial ressonância do credo
se encontra no Salmo 104, quando o autor do salmo enfatiza que o
Espírito de Deus é que vivifica toda a criação. O salmista dá expressão
do seu louvor dizendo: “Que variedade, Senhor, nas tuas obras! Todas
com sabedoria as fizeste [...] Envias o teu Espírito, eles são criados, e
assim renovas a face da terra” (Sl 104.24,30). Deus e seu espírito vivifi-
cante (ruah) são entendidos como a base de manutenção desta criação.
A confissão de fé do povo de Israel, condensada num credo monoteísta típico
daquela expressão religiosa, passa por releitura e ampliação de senti-
do no seio do cristianismo das origens. O Deus criador monoteísta
dos hebreus, além de sua presença no mundo na forma da ruah, é
reconhecido na vida, cruz e ressurreição de Jesus de Nazaré. Na Carta
aos Colossenses se lê: “Ele [Cristo] é a imagem do Deus invisível, o
primogênito de toda a criação; pois nele foram criadas todas as coisas,
nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis [...] Tudo foi criado
por meio dele e para ele” (Cl 1,15-16). Com isso, o Deus criador é

55 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


simultaneamente o redentor e o sustentador, três formas de ação do
mesmo Deus.
A tradição da igreja dos primeiros séculos amalgamou esta diversidade na
unidade das palavras do Credo Apostólico: “Creio em Deus Pai, todo
poderoso, criador dos céus e da terra.” De modo especial ecoam as
palavras de Martin Lutero em sua explicação do primeiro artigo do
credo no Catecismo Menor: “Creio que Deus me criou junto com
todas as criaturas, e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os
membros, inteligência e todos os sentidos, e ainda os conserva; além
disso, me dá roupa, calçado, comida e bebida, casa e lar, família, terra,
trabalho e todos os bens”. Esta interpretação de Lutero já indica para
a criação continuada.
Falar da ‘criação de Deus’, portanto, nos remete a um ponto nevrálgico da
teologia judaico-cristã. Entende-se, reconhece-se, crê-se o mundo exis-
tente como obra criadora de Deus. ‘Criação’ remete à experiência da
dádiva e da gratuidade divinas. Dizer ‘criação’ pressupõe a consciência
da relação primordial entre Criador e criatura. A própria existência é
vista como dádiva. E sendo Cristo o primogênito da criação, a própria
criação é substancialmente dignificada por meio da encarnação de
Deus em Cristo. A criação, o conjunto do mundo criado, portanto,
é entendido como transparência para Deus. Especialmente por meio
do Cristo encarnado, mas também pela ação do Espírito, Deus está
presente na criação à espera do reconhecimento por parte dos filhos e
filhas, suas criaturas, como bem expressa o apóstolo Paulo no na sua
Carta aos Romanos quando diz: “Toda a criação, a um só tempo, geme
e suporta angústias até agora” (Rm 8,22).
Em perspectiva cristã, dizer também que Cristo é o Alfa e o Ômega signi-
fica afirmar que toda a criação e, portanto, toda a história [humana
e natural] é vista em perspectiva teleológica, isto é, ela se encaminha
para uma destinação última, que, em fé, é entendida como o tornar-se
pleno do Reino de Deus, consumador e redentor.
Um dado a ressaltar é que, apesar, da concepção da creatio prima, a criação
enquanto espaço ordenado possibilitador de vida, necessita de constante
cuidado. Quando se lê a Bíblia de modo seqüencial ou sincrônico,
esta dimensão aparece pela primeira vez na história do dilúvio em
Gênesis 6-9. Segundo a cosmovisão dos antigos hebreus, em boa me-
dida compartilhada com os povos do entorno cultural, a terra como
espaço de vida e cultura esta rodeada de águas. Estas águas, que no

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 56


relato da criação aparecem como pré-existentes, foram ordenadas, isto
é, afastadas, entre as águas de cima e as águas de baixo, dando origem
à terra habitável. Deus como senhor e mantenedor da criação pode
reverter esta situação, abrindo as “fontes do abismo” e as “comportas
dos céus” (Gn 8,2), originando o caos do dilúvio ou da antivida. Assim,
a vida ordenada pela criação pode submergir novamente nas águas do
caos. O Salmo 104,5-9 mostra de modo muito plástico como o Deus
criador necessita constantemente manter a ordem do mundo criado
a fim de manter afastados perigos do caos e das trevas. Em Provérbios
30,4 há uma pergunta retórica que afirma: “quem encerrou as águas
no manto?”. De modo bastante elucidativo esta noção de terra como
‘espaço criado’ aparece também no livro de Jó, especialmente na parte
final, na qual, sob a forma de uma teofania, Deus faz uma série de
perguntas àquele Jó que somente buscava a e esperada e supostamente
devida recompensa por sua fidelidade: “Quem encerrou o mar com
portas [...] e lhe disse: ‘até aqui virás e não mais adiante, e aqui se
quebrará o orgulho das tuas ondas?” (Jó 38,8.11).
Convém salientar que falar de ‘criação’ é falar em linguagem da fé, discurso
teológico, fala confessional. Durante muito tempo, esta linguagem
outorgou sentido e identidade a pessoas e comunidades. Em alguns
momentos se chegou a construir uma visão cósmica da criação, proje-
tando interrelacionalidade entre todos os elementos do mundo criado
por Deus. Típico para isso é o discurso de Francisco de Assis, já no
final da Idade Média.
Falar de ‘criação’ é utilizar-se de uma linguagem típica do chamado ‘mundo
pré-moderno’, ‘tradicional’, no qual Deus ainda ocupa lugar de referência
central. Em um mundo “emancipado” de Deus, como já o propunha o
teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer, e tantos outros teólogos depois
dele, a exemplo de Jürgen Moltmann (1996; 2007) ou Hans Küng
(2007), que trabalham sob influência do paradigma da secularização,
falar de ‘criação’ significa assumir o risco do conflito. Significa assumir
uma posição de resistência em face do chamado ‘mundo moderno’,
no qual Deus perdeu o seu lugar como referência e como presença.
Em lugar de Deus como referente de centralidade, o ser humano foi
ocupando este espaço central, passando a se construir gradativamente
uma visão de mundo antropocêntrica. Com a afirmação do antropo-
centrismo, a criação passa gradativamente a ser vista como natureza,
passando o ser humano a se entender como sobreposto a ela por meio

57 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


da razão instrumental. Dilemas entre religião e ciência demandam por
respostas urgentes (BRAKEMEIER, 2006).

NATUREZA

É difícil dizer com precisão quando e em que contexto se realiza a superação


da mundivisão cosmocêntrica por um modelo antropocêntrico. Em
geral, esta transição é alocada em algum momento no limiar da Mo-
dernidade. Fritjof Capra (2006, p. 49) afirma: “Entre 1500 e 1700
houve uma mudança drástica na maneira como as pessoas descreviam
o mundo e em todo o seu modo de pensar”. A perspectiva antiga e
medieval vai cedendo lugar a uma nova visão, também marcada com a
virada copernicana e a afirmação da teoria heliocêntrica. Apesar desta
alocação cronológica relativa, a criação se torna natureza na medida
em que o ser humano, por conta de sua liberdade e racionalidade,
se entende como sobreposto à mesma. Na Antiguidade não se pode
esquecer algumas contribuições da filosofia grega no sentido de su-
bordinação do mundo natural ao mundo espiritual. É verdade que em
Heráclito vigora uma maneira de entender o mundo como uma grande
unidade com interdependência de todas as coisas. Em Platão, contudo,
com a contraposição entre corpo (soma) e alma (psiché) já se verificam
elementos de desqualificação do mundo da matéria, contribuindo,
assim, com elementos para a formatação daquilo que posteriormente
viria a ser chamado de ‘dualismo ocidental’.
Em termos de conteúdo, a questão da relação do binômio natureza-cultura
pode ser posta da seguinte forma:

O surgimento da razão provocou uma cisão entre homem e mundo, pois


a reflexão impõe que a natureza apareça irredutivelmente como o outro
e que o homem se reconheça como sobrenatureza, no sentido de que se
considera capaz de superar a ordem natural, de dominá-la, por meio do
exercício da própria razão.

Alguns personagens marcantes da filosofia ou ciência da Modernidade podem


ser identificados como construtores da visão moderna de mundo, na
qual o ser humano é afirmado como sobreposto ao mundo natural.
Especialmente a diferenciação proposta por Reneé Descartes (1596-1650)
entre a ‘coisa pensante’ (res cogitans) e a ‘coisa extensa’ (res extensa) é
marcante para a afirmação da visão antropocêntrica e para o estabele-

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 58


cimento da própria ciência experimental. O ser humano como coisa
pensante se sobrepõe ao mundo natural justamente pelo exercício do
pensamento, passando o mundo exterior a ser percebido e afirmado
como algo sobre o qual o pensamento se estende de forma reflexiva. A
existência não é mais deduzida a partir de um conjunto que pode ser
entendido como criação, mas a partir da construção do conhecimento
que se dá com a sobreposição do ser pensando sobre o outro.
Outro pensador importante é o judeu Baruch Spinoza (1632-1677), para
quem conhecer a Deus, a quem ele não negava, significava conhecer
cada vez mais as nervuras do mundo real. Spinoza contribuiu signifi-
cativamente para a afirmação de uma visão imanente de Deus e com
isso para a afirmação do conhecimento e ciência como passo necessário
para o conhecimento do próprio Deus.
Francis Bacon (1561-1626), tido como o ‘pai da ciência moderna’, se insere
nesta cadeia de pensadores, na medida em que com o raciocínio in-
dutivo se pode conhecer os verdadeiros fundamentos da realidade do
mundo natural. Conhecer implica em dominar.
Isaac Newton (1643-1727) com sua proposta de entender o mundo como
uma grande máquina se insere como epíteto nesta história da afirma-
ção do paradigma moderno. Segundo Newton, se poderia conhecer o
funcionamento da ‘máquina do mundo’ por meio do conhecimento
das leis físicas e matemáticas.
Assim, a ciência experimental se afirmava gradativamente na esteira de tais
pensadores, originando o chamado ‘paradigma moderno’. Na lição
de Thomas Kuhn (1996), paradigma é o conjunto de ações e práticas
compartilhadas por uma comunidade. Neste paradigma cartesiano-
newtoniano, a ciência podia e deveria ser usada para tornar os humanos
“senhores e dominadores da natureza” (CAPRA, 2006, p. 56).
Este paradigma moderno possibilitou grandes avanços científicos, especialmente
a partir do século XVIII e XIX. Ele foi se impondo como modo de
pensar dominante no Ocidente na própria medida em que a revolução
industrial necessitava cada vez mais de recursos naturais para atender
a demanda por necessidades e desejos de uma população mundial
crescente. Por extensão, neste paradigma, a natureza é vista como um
infinito conjunto de recursos naturais à disposição do seres humanos.
No paradigma moderno, pelo menos em sua sedimentação no século XVIII,
a idéia de Deus como criador não é abandonada por completo. Alguns
autores ou pesquisadores do campo das ciências, embora em reação ao
paradigma criacionista e na busca incessante de sua superação, ainda

59 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


mantêm certa vinculação com um “princípio inteligente” ou com a
idéia de um “relojoeiro do universo” ou mesmo com a metáfora da
“mente de Deus”, como no caso de Stephen Hawking. Mesmo Newton,
ao formular sua teoria das partículas sólidas como constitutivas da
matéria, mantinha Deus como a causa de todo o sistema: “Parece-me
provável que Deus, no começo, formou a matéria em partículas sólidas
[...] (apud CAPRA, 2006, p. 61). Mas o ritmo cada vez mais acelerado
da industrialização requeria intervenções sempre mais intensas e com
isso também uma dessacralização cada vez maior do mundo natural.
A teologia moderna, especialmente a protestante, contribuiu para
este processo de dessacralização da criação na medida em que reduzia
significativamente os espaços em que Deus poderia ser encontrado.
Na linguagem científica contemporânea, Deus já ocupa mais lugar central.
Passou a ser um ser ou uma idéia à margem do sistema. Contudo, a
idéia da ‘máquina do mundo’, embora ainda vigente e conveniente
para os propósitos de uma exacerbada exploração da natureza, aos
poucos vai cedendo lugar a uma visão mais complexa. Hoje assume a
predominância a idéia da natureza como uma grande “teia da vida”,
totalmente perpassada pelo princípio da complexidade, sem uma causa
inteligente na sua origem e sem um destino teleológico pré-determinado.
Aí houve algumas contribuições que necessitam ser mapeadas.

MEIO AMBIENTE COMO TEIA DA VIDA

No século XIX, Charles Darwin contribuiu efetivamente para a emergência


de uma concepção mais dinâmica e mais complexa do mundo. Sua
primeira contribuição consiste em haver distendido o lapso temporal da
história natural e, assim, da história humana. Com base em concepções
elaboradas anteriormente, ele superou a idéia da ‘idade diluviana’ do
mundo. A partir daí abriu-se a possibilidade de projetar e entender a
história humana dentro de um processo evolutivo muito mais comple-
xo e de duração muito mais longa. Especialmente sua visão acerca da
origem e da evolução das espécies indicou para espaços micro, meso
e macro cósmicos de desenvolvimento das formas de vida.
No início do século XX, a teoria da relatividade do tempo e espaço de Albert
Einstein contribuiu para superar a visão mecânica newtoniana de mun-
do. Igualmente importante foi o reconhecimento da dual da matéria
como partícula e como onda no universo da física quântica. No nível

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 60


subatômico, a matéria não existe em lugares definidos; apenas pode ser
percebida em termos de “tendências para existir” e assim também de
“tendências para ocorrer”. Com isso a noção de probabilidade passou
a ocupar cada vez mais espaço em lugar da idéia da determinação
mecanicista do mundo. Na aplicação destas observações científicas
para o conceito de mundo ou universo, este se evidencia cada vez mais
como uma complexa e dinâmica teia de relações. Capra (2006, p. 82)
se refere esses avanços da seguinte maneira:

A concepção do universo como uma rede interligada de relações é um dos


dois temas tratados com maior freqüência na física moderna. O outro
tema é a compreensão de que a rede cósmica é intrinsecamente dinâmica.
O aspecto dinâmico da matéria manifesta-se na teoria quântica como
consequência da natureza ondulada das partículas subatômicas, e é ainda
mais central na teoria da relatividade, a qual nos mostrou que o ser da
matéria não pode ser separado de sua atividade. As propriedades de seus
modelos básicos, as partículas subatômicas, só podem ser entendidas num
contexto dinâmico, em termos de movimento, interação e transformação.

Nesta teia da complexidade não se pode mais operar somente pela lógica do
reducionismo, por mais importante que seja este procedimento da
ciência experimental para a derivação e produção de conhecimentos.
O mundo passou a ser visto como um sistema complexo, dinâmico e
em constante transformação. A teia da vida pode se articular em di-
ferentes níveis: micro, meso e macro. No século XIX, a “ecologia” de
Ernst Haeckel (1834-1919) como um ramo da biologia possibilitou
esses olhares diferenciados, abrindo espaço, bastante tempo depois,
para o surgimento de uma nova área de conhecimento necessariamente
interdisciplinar: a ecologia. A ecologia como área de conhecimento se
desdobra cada vez em mais ramificações e níveis de pesquisa: ecologia
ambiental, ecologia animal, ecologia política e social, ecologia mental,
ecologia integral (BOFF, 2010, p. 97-128). Aplicado ao campo da
relação dos humanos com o ambiente, os estudos ecológicos ganharam
substancial incremento na segunda metade do século XX com a chamada
“teoria de Gaia” proposta pelo inglês James Lovelock (1989; 1991).
Este sabidamente recolheu insights anteriores, compartilhando suas
perspectivas com outros pesquisadores como Lynn Margullis (1990).
Segundo esta teoria, a terra é um superorganismo vivo, no qual se pode

61 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


sua continuidade sobre seu espaço de vida por meio do aproveitamento
otimizado e sábio dos recursos existentes. Diante da possibilidade da
exaustão dos recursos, impõe-se, pois, a lógica da sustentabilidade, o
que implica em hábitos de vida e incide sobre formas de produção.
O que vale para o pequeno passou a valer para o grande, claro com a
diferença de que os ‘grandes’, em face da assimetria das relações sociais,
tem sempre a possibilidade de impor seus interesses aos mais fracos
por meios coercitivos e violentos, contribuindo assim para a realidade
da injustiça global. Assim, a noção de sustentabilidade passou a ser
uma demanda para a forma de vida, de organização da produção e do
consumo de toda a humanidade nesta grande ‘casa global’.
A emergência destes novos conceitos e novas formas de viver e pensar acabam
por modificar o modo de ver e entender o mundo, a terra. Com a
perspectiva da complexidade e das muitas probabilidades nas formas
de relação, aquilo que no paradigma moderno era (é) chamado de
‘natureza’ passa a ser visto como ‘meio ambiente’ ou simplesmente
‘ambiente’. Ambiente é o conjunto daquilo que envolve a forma de
vida a partir da qual se expressa a percepção e a reflexão, isto é, a vida
humana. No conceito ‘meio ambiente’, o ser humano não mais pode
ser pensado em termos de ruptura e sobreposição hierárquica, mas
de convivência e de interdependência com o próprio ambiente. Em
sistemas complexos, as partes não podem mais ser entendidas somente
a partir de si, mas sempre vista no seu conjunto com suas mútuas e
complexas relações. As partes podem também engendrar reações e
combinações novas, que fogem às projeções das supostas leis naturais
ou matemáticas da ‘máquina do mundo’ (GLEISER, 2009). A respeito
disso Edgar Morin (apud TAVARES, 2010, p. 39) escreve:

É preciso substituir um pensamento que separa por um pensamento que


une, e essa ligação exige a substituição da causalidade unilinear e unidi-
mensional por uma causalidade em círculo e multirreferencial, assim como
a troca da rigidez da lógica clássica por uma dialógica capaz de conceber
noções ao mesmo tempo complementares e antagônicas; que o conhecimento
da integração das partes num todo seja completada pelo reconhecimento
da integração do todo no interior das partes.

Sem medo de exagerar pode-se dizer que a emergência do conceito de sus-


tentabilidade associado ao conceito de meio ambiente teve duas forças

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 62


verificar a interdependência entre os mais diferentes componentes,
fenômeno expresso pelo conceito de ‘panrelacionalidade’.

Definimos a Terra como Gaia, porque ela se apresenta como uma enti-
dade complexa que abrange a biosfera, a atmosfera, os oceanos e o solo.
Na sua totalidade, esses elementos constituem um sistema cibernético ou
de realimentação que procura um meio físico e químico para a vida neste
planeta (LOVELOCK, 1989, p. 27).

Avanços científicos como as viagens estelares na década de 1960 e 1970


possibilitaram uma visão externa do mundo em que vivemos. A visão
da terra a partir de fora evidencia a mesma como ponto azul e branco
no espaço sideral. Com a terra vista a partir de fora começa a existir
algo novo, influenciando a partir daí a percepção do todo. Nesta
perspectiva, a terra poderia ser percebida como uma casa global, com
constantes e incessantes interdependências e comunicações sistêmicas
muito além das fronteiras e limites impostos pela lógica política, social
e econômica dos humanos.
Neste mesmo período, pela primeira vez, a humanidade, ou pelo menos
setores desta, foram confrontados com a perspectiva que os recursos
naturais deste planeta tão complexo e tão rico poderiam ser finitos.
Esta percepção emergiu especialmente com a preocupação com o
abastecimento constante da matriz energética do mundo moderno
no contexto da crise do petróleo nos anos de 1970. O relatório “Nos-
so futuro comum”, da Comissão Brundtland, da ONU, em 1987,
diante da possibilidade da finitude dos recursos naturais, manifestou
a percepção das conexões entre os diversos segmentos humanos que
coabitam a terra. A necessidade do sistema capitalista em assegurar os
recursos naturais para a sua matriz produtiva e consumidora ampliou
a rede de relações de tal modo a fazer a terra parecer cada vez mais
uma ‘aldeia global’.
Numa aldeia global com recursos finitos era imprescindível amalgamar e fo-
mentar a emergência do conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ ou
de ‘sustentabilidade’. Tal conceito somente tem sentido e necessidade
quando o sujeito ou a comunidade que o esboça se vê defrontado com a
limitação de espaço e de recursos. Por exemplo, um pequeno agricultor,
assentado em área reduzida e com recursos limitados, sem a chance de
migrar para qualquer “nova fronteira agrícola” somente pode conceber

63 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


motrizes: a) os interesses capitalistas com suas constantes demandas
em assegurar os recursos naturais para sua estrutura produtiva e con-
sumista levaram à percepção da finitude dos recursos; b) as reflexões
humanistas com o intuito de prover formas de pensamento e ação no
sentido de equacionar de forma mais sábia e mais justa as necessidade
de uma humanidade cada vez mais numerosa com os recursos e as pos-
sibilidades de um sistema terra complexo, porém limitado. A própria
possibilidade da extinção futura do gênero humano funciona como
uma espécie de ‘heurística do medo’ que acelera a busca por formas
de pensamento e ação mais integrativas ou holísticas. O incremento
de formas de espiritualidade holísticas se inscreve neste contexto. As
religiões tiveram e têm participação importante neste processo de
emergência da nova consciência ecológica, não por último por meio
de programas conduzidos em nível mundial. Exemplos disso são os
programas “Justiça, paz e integridade da criação” “Kairós”, e “Igreja
e mudanças climáticas” do Conselho Mundial de Igrejas (WCC em
inglês). A participação ativa de segmentos religiosos nos fóruns espe-
cíficos no contexto da ONU indica para isso.
A vida da comunidade humana global que em breve alcança o patamar
de 7 bilhões deve ser pensada e entendida no conjunto desta terra
como grande organismo vivo. Os humanos são parte da teia da vida
do sistema gaia (CAPRA, 1996). Quanto mais aumenta o nível da
intervenção desenfreada da humanidade sobre o ambiente mais desa-
justes esta intervenção pode demandar no sistema vivo da terra. Em
vários âmbitos há índices alarmantes destas intervenções, gerando
desmatamento, poluição, contaminação, exaustão de recursos, etc. Há
opiniões e pareceres de estudiosos que indicam que a generalização
dos padrões de produção e consumo de alguns países desenvolvidos
para toda a população mundial exigiria vários planetas terra como
reservas de recursos. A dinâomica cumulativa dos resultados nefastos
de tais intervenções gera desequilíbrios que revertem em termos de
fenômenos como chuva ácida, aquecimento global, mudanças climá-
ticas com conseqüências dolorosas e por vezes mortais para alguns
segmentos humanos.
A questão demográfica constitui um sério problema na equação da relação
dos humanos com o ‘ambiente terra’, mas ela não pode ser vista
desvinculada do padrão de produção e consumo em termos globais.
Embora todos estejam envolvidos na questão, cada grupamento hu-

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 64


mano carrega responsabilidades distintas. Certamente a voracidade dos
países industrializados contribui em maior escala no assalto constante
aos recursos do ambiente. Mas também os países de ‘menor potencial
ofensivo’ em termos ambientais participam do conjunto na medida
em que sintonizam sua estrutura econômica com linhas mestras da
lógica industrial e consumista mundial.
O eventual point of no return da situação do planeta coloca a comunidade
global diante de sérios dilemas. A ausência de freio ou a eventual ir-
reversibilidade das intervenções pode colocar em risco a sobrevivência
da comunidade humana dentro deste sistema gaia. As discussões em
geral são acaloradas, também em nível ético-moral quando se trata
do problema demográfico. Os dilemas com relação ao futuro da hu-
manidade nesta casa global confrontam bens jurídicos que em geral
estiveram contrapostos, tais como os direitos dos humanos à vida e ao
bem-estar e direitos da própria terra em sua lógica ecossistêmica. Agora,
estes devem ser sopesados tendo necessariamente em vista o conjunto.
Entender a terra como ambiente ou organismo situa a mesma em outro
patamar em termos de reflexão ética. Pode-se falar de certa reversão
do paradigma moderno na relação com a terra. Para transformar
a terra em natureza passível de ser estudada, penetrada, explorada
e transformada em mercadoria foi necessário retirar dela todos os
seus atributos em termos de vida. Hoje, diante das demandas dos
desajustes do clima do planeta com suas conseqüências nefastas e as
correspondentes exigências de cada vez mais adaptação da comunidade
humana ao conjunto maior e em face da perspectiva de que a terra é
um organismo vivo ressurge a possibilidade ética do respeito à vida.
Isso tem ser evidenciado em vários documentos recentes que tratam
da questão, mas fica especialmente evidente na Carta da Terra, fruto
de um longo processo de maturação, mas com redação decisiva no ano
de 2000 (BOFF, 2010, p. 184-198), e na Carta dos Direitos da Terra,
formulada na ONU em 2010. A Carta da Terra está estrutura em 4
princípios fundantes e 16 pontos referenciais do modo sustentável de
vida. Os 4 princípios são: a) respeitar e cuidar da comunidade de vida;
b) integridade ecológica; c) justiça social e ecológica; d) democracia,
não violência e paz.
Muitas e multifacetadas são as contribuições que, apesar de grande insensibili-
dade ainda reinante, fazem emergir um novo paradigma de civilização.
A emergência discursiva de comunidades da terra faz emergir novas

65 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 79-91, jul./dez. 2010


perspectivas. O ecofeminismo proporcionou riquíssimas reflexões.
Especial destaque neste contexto merece a contribuição do judeu
alemão Hans Jonas (2006) com sua obra O princípio responsabilidade,
originalmente publicada em 1979 e com muitos ecos e influências sobre
discussões posteriores. A partir de uma “heurística do medo”, no sentido
de que “o saber origina-se daquilo contra o que devemos nos proteger”
(JONAS, 2006, p. 71), ele propõe revisitar e revisar os fundamentos
éticos modernos, inserindo neles a reflexão sobre a cumulatividade do
desenvolvimento científico e as conseqüências de longo alcance e das
ações presentes no contexto de uma sociedade tecnocientífica, tendo
em vista (também) a vida e os direitos das gerações futuras. Isso impõe
uma lógica de responsabilidade, de sabedoria e de cuidado na relação
dos humanos entre si e com ambiente vital.

CREATION, NATUR AND ENVIROMENT

Abstract: the present article aims to present three distinct ways of speaking of the
earth: earth, nature and environment as web of life. Each term highlights
a certain conceptual perspective. Speaking of the earth as ‘creation’ refers
to a mythical-theological discourse with strong judeo-christian influence.
Speaking of the earth as ‘nature’ reveals the nature-man break with modern
rationalism and its corresponding concept of superposition and dominance
of humans over nature. Understanding the earth as living ‘environment’ is
the symbiotic result of recognitions in the scientific world combined with
ethical and religious insights, which places life and destiny of the human
beings in the uninterrupted interrelationships of the earth as a large living
organism in relation with which human beings should assume an ethic
principle of responsibility having in mind present and future generations. 
Keywords: Creation. Natur. Enviroment. Ethics. Responsability.

Referências
BOFF, Leonardo. A opção terra. A solução para a terra não cai do céu. Rio de Janeiro;
São Paulo: Record, 2009.

BRAKEMEIER, Gottfried. Ciência ou religião: quem vai conduzir a história? São


Leopoldo: Sinodal, 2006.

BULCAO, Marly. O Binômio natureza-cultura. A perspectiva de Gaston Bachelard. In:


CESAR, Constança Marcondes (Ed.). Natureza, cultura e meio ambiente. Campinas:

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 66


Editora Alínea, 2006, p. 27-34.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos.
São Paulo: Cultrix, 1996.

_____. O Ponto de Mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Tradução


de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006.

FERRY, Luc. A nova ordem ecológica. A árvore, o animal e o homem. Tradução de


Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da terra. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 2000.

GLEISER, Marcelo. Criação imperfeita. Cosmo, vida e código da natureza. Rio de


Janeiro: Record, 2009.

KÜNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Ciências naturais e religião. Petrópolis:


Vozes, 2007.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna e


Nelson Boena. São Paulo: Perspectiva, 1996.

LOVELOCK, James. Gaia. Um novo olhar sobre a vida na terra. Lisboa: Edições
70, 1989.

_____. As eras de Gaia. A biografia da nossa terra viva. São Paulo: Campus, 1991.

MARGULIS, Lynn. Micro-cosmos. Quatro bilhões de anos de evolução microbiana.


Lisboa: Edições 70, 1990.

MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Doutrina ecológica de Deus. Tradução


Haroldo Reimer. Petrópolis: Vozes, 1996.

_____. Ciência e sabedoria. Um diálogo entre ciência natural e teologia. São Paulo:
Loyola, 2007.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995.

REIMER, Haroldo. Bíblia e ecologia. São Paulo: Reflexão, 2010.

RIBEIRO, O. L. Vento Tempestuoso: um ensaio sobre a tradução e a interpretação de


Gn 1, 2 à luz de Jr 4. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 12. n. 4, p. 573-598, 2002.

TAVARES, Sinivaldo. Teologia da criação. Outro olhar – novas relações. Petrópolis: 2010.

67 , Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010


* Recebido: 05.11.2010.
Aprovado: 10.11.2010.

** Doutor em Teologia. Professor titular na PUC Goiás e na Universidade


Estadual de Goiás. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Produção vinculada ao projeto Bíblia e Ecologia (CNPq). E-mail:
Haroldo.reimer@gmail.com;haroldo.reimer@pq.cnpq.br

, Goiânia, v. 8, n. 2, p. 53-68, jul./dez. 2010 68

Você também pode gostar