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MÊS DA BÍBLIA/2021

SUBSÍDIO de FORMAÇÃO

ANTONIO MARCOS DOS SANTOS


A difícil e instigante tarefa
de ler e estudar a Bíblia
Antonio Marcos dos Santos
(Mestre em Teologia - PUC-Rio)
antoniomarcos.santos@educsi.com.br

Ao longo de muitos anos no exercício de professor de


teologia, eu conheci diversas pessoas, religiosas ou não, que
desejavam compreender e interpretar, de forma coerente, a
Bíblia. No entanto, muitas delas estavam desestimuladas por
causa das dificuldades de se ler um livro tão antigo, complexo
e controverso. Para todos que conheci, a Bíblia tinha um
significado especial. Os motivos para o estudo bíblico eram
sempre muito diversos: para um grande número de leitores, as
questões históricas e contextuais subjacentes eram sua
principal meta, para outros, a busca dos fundamentos de suas
crenças e concepções religiosas eram essenciais.

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Seja como for, o fato é que precisamos antes, de propriamente

ler a Bíblia, conhecer alguns elementos fundamentais que nos

ajudam nessa empreitada. Não é uma tarefa fácil, mas não é, por

sua vez, algo impossível. Para evitar visões fundamentalistas,

preconceituosas e perigosas da Bíblia, são necessários

instrumentos que nos darão um direcionamento, ferramentas

para colocar as mãos em algo tão valioso e sagrado. Assim como

Moisés retirou as sandálias dos pés para pisar em terra sagrada, é

preciso retirar também os óculos de certos pré-conceitos para

andar de modo mais seguro nestes caminhos que a divina

providência, por meio de muitas mãos e mentes, decidiu nos

deixar como herança espiritual e ética.

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Bíblia é uma palavra de origem grega, na verdade “biblia” é
um plural do termo grego “biblos” que significa “rolo” ou
“livro”. No passado não existiam livros encadernados, os
antigos escritos eram produzidos a partir do papiro ou couro
de animais e depois preparados em forma de páginas
retangulares; as páginas de couro eram pautadas e
costuradas umas nas outras, formando um longo “tapete de
couro”. Em seguida eram escritos, enrolados e guardados em
bibliotecas. Os livros eram geralmente produzidos para a
grande elite, como reis e sacerdotes, uma vez que a maior
parte da população era analfabeta. Os livros de cunho
religioso eram produzidos por escribas, estudiosos ou
sacerdotes, para a proclamação pública aos fiéis. Estes rolos
sagrados eram guardados dentro dos templos ou espaços
religiosos (sinagogas). Deste modo, o termo “biblia” significa
“rolos” ou “livros”, palavra muito adequada, pois na verdade a
Bíblia não é especificamente um livro, mas uma coletânea
de escritos, de diversos livros. Esta coletânea é de natureza
teológica, histórica, jurídica, ética, poética, profética, etc.
Em síntese, podemos dizer que a Sagrada Escritura é um
texto complexo. Podemos afirmar ainda que a tradição oral,
da qual provém toda essa literatura, é bem anterior ao texto
escrito, e foi somente no decurso do tempo que houve a
necessidade de redigir textos, como forma de preservá-los
para as futuras gerações.

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Pode-se dizer, de maneira geral, que a Bíblia conta a história
da revelação de Deus para a humanidade. Essa revelação não
é feita de maneira imediata e completa de uma única vez,
mas vai se estabelecendo ao longo da história das civilizações
de maneira progressiva e lenta, respeitando os limites
históricos e a maneira de se compreender o mundo. Deus vai
se revelando na história humana até o ápice deste processo,
quando ele decide entrar de fato nesta história por meio de
Jesus. A percepção destes movimentos de Deus é contada
pelos autores bíblicos, que ao assumir para si a
responsabilidade de transmissão das histórias relativas ao seu
povo para as gerações futuras, perceberam também que em
tudo havia uma ação de Deus para atrair o povo para mais
próximo dele. Esse movimento nem sempre foi tranquilo e
harmônico.

Na visão dos autores, o povo não cumpriu suas obrigações,


não foi fiel o suficiente para respeitar essa aliança; por sua
vez, Deus é apresentado como aquele que se “arrepende”, fica
decepcionado, mas se envolve com um profundo amor e
compaixão pela humanidade que ele deseja salvar. Neste
sentido, a Bíblia é uma história de amor de um Deus que não
desiste da humanidade pecadora e de uma humanidade
pecadora que aos ”trancos e barrancos” busca ser mais fiel a
este Deus. Nisto percebe-se uma unidade em todos os
escritos da Bíblia e a providência divina que misteriosamente
iluminou a mente de pessoas, que, em muitos casos, nem ao
menos sabemos o nome e, que por respeito, chamamos de
“hagiógrafos” (“autor sagrado”). De modo mais específico, as
histórias da Bíblia se referem ao povo de Israel, chamado
também de hebreus e de judeus. Fora do texto bíblico não há
evidências de sua formação, sabemos que este povo é de
origem semita, provavelmente, uma mistura étnica de povos
nômades e seminômades.
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Obviamente as histórias bíblicas não são relatos históricos
como muitas vezes são pensados. São, primeiramente, histórias
religiosas que retratam fielmente o sentimento religioso dos
hagiógrafos e de seu povo. Elas são também a fonte de
inspiração para a vida, para os debates éticos da comunidade
de fé e para responder as perguntas fundamentais sobre as
origens do mundo e do próprio povo. Elas foram escritas de
acordo com as técnicas, as formas literárias, as concepções de
mundo dos seus autores, por isso não são uma forma de
descrição científica do mundo e das origens. Os relatos bíblicos
muitas vezes se utilizam de figuras de linguagens como
poesias, lendas, epopeias, contos sapienciais, conselhos,
canções, metáforas, simbolismo, elementos jurídicos e legais,
com o objetivo de ir além da história contada. Eles querem
atingir a consciência e o coração das pessoas, fazer a
comunidade refletir sobre o passado, presente e o futuro, sobre
sua própria história. Na verdade, a preocupação histórica e
contextual é mais nossa do que dos autores bíblicos.

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A noção que os antigos tinham de história era bem diferente
da nossa. A história era de alguma forma uma expressão da
ação dos deuses e dos heróis que moviam os impérios e
civilizações para a supremacia e o exercício de poder,
subjugando os outros povos e conquistando territórios. Cada
império que dominava determinava o início da história a partir
da fundação de sua própria civilização. Isto não significa que
não haja uma autêntica história na Bíblia, existe, e muita
história! Existe um ramo da arqueologia, a arqueologia bíblica,
que cresce exponencialmente pelas universidades de todo o
mundo. A nossa questão é “isto não era a preocupação dos
autores bíblicos”. Eles não queriam provar cientificamente
suas verdades, não havia necessidade. Para eles, a sua
percepção religiosa do mundo era mais do que suficiente para
suas preocupações e para dar sentido à vida.

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Então, temos que entrar neste universo e não fazer com que ele

se adapte a nós. Não podemos exigir que o texto bíblico seja

coerente com as nossas sensibilidades de cidadãos de um

mundo urbano, científico e tecnológico do século XXI.Os textos

bíblicos foram escritos numa outra cultura, numa outra

cosmovisão do mundo, em outras línguas, em meio a interesses

religiosos, políticos e ideológicos de um povo pequeno, que

devia lidar com grandes potências que os dominavam

economicamente e militarmente. Todos esses elementos devem

ser levados em consideração quando lemos os textos bíblico

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Geralmente, os exegetas (estudiosos dos textos bíblicos
originais) fazem algumas perguntas fundamentais ao
estudar um texto bíblico, como por exemplo:

Quem escreveu o texto?


Onde escreveu?
Quando escreveu?
Para quem escreveu?
Por que escreveu?

O estudioso da Bíblia precisa começar a "desconfiar" da


Bíblia! Isto não quer dizer que ele desmereça a sua
sacralidade ou sua importância espiritual. O estudante
poderá compreender mais profundamente tais dimensões
uma vez que ele faça uma real imersão neste universo. Para
isso, ele precisa ter a humildade de escutar com atenção o
que o texto tem a dizer e não partir do pressuposto que ele
já conhece tudo; precisa também fazer e refazer sempre que
necessário tais perguntas fundamentais elencadas acima,
mesmo que nem sempre encontre todas as respostas. Se as
perguntas acima ajudam a buscar uma melhor
contextualização dos textos bíblicos, não se pode deixar de
lado que o próprio texto tem muito a ensinar e a orientar os
leitores sobre ele mesmo.

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Quando pensamos que um texto é uma obra literária, isto deve
nos ajudar a perceber que em sua construção foram criadas
marcas literárias que ajudam o leitor a compreender melhor
sua mensagem, estrutura e ideias centrais. Para aproveitar o
máximo o que o texto diz, precisamos fazer mais algumas
perguntas mais evidentes, pois suas respostas. geralmente, se
encontram no próprio texto:

Quem são os personagens do texto?


Existe um narrador na história?
Existem personagens indiretos ou
secundários? O que o texto diz
sobre o contexto da história
narrada? Existem transições de
lugares, épocas, de gerações e de
personagens? As informações
apresentadas são mais jurídicas,
religiosas, narrativas ou de outra
espécie? Como são apresentadas as
informações que fundamentarão
situações e narrativas futuras?
Existem contradições? Elementos
desconexos? Narrativas truncadas?
São perceptíveis introduções,
conclusões, narrativas, elementos
que fazem “gancho” ou conexões
com outros textos ou livros?
Existem contrastes ou oposição de
situações, ações e ideias?

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Estas perguntas podem ajudar o leitor a prestar maior
atenção aos detalhes que os textos apresentam, para que
seja possível perceber a existência de uma estrutura
literária. Todo texto possui uma e ela foi criada
propositalmente para unificar, fundamentar e dar um tom
próprio às ideias, concepções e narrativas elaboradas pelos
seus autores e, em sua essência, a revelação de Deus foi
transmitida por estes meios tão humanos e tão divinos.

Enquanto Palavra Humana, transparece toda a imperfeição


das paixões e dramas da vida cotidiana. A palavra divina é
mais sutil e permanente. Insiste na capacidade de
transformação e de aperfeiçoamento das frágeis criaturas
humanas, num reflexo impressionante de um Deus que se
envolve na história humana e não se cansa de salvar e de se
envolver conosco. Ambas as “palavras” são na verdade uma
só. Elas estão unidas de tal forma que se torna difícil
perceber onde começa uma e termina outra. Mas nossa
tarefa não é fazer tal separação, mas perceber que em meio
às confusas vias que o ser humano percorre, é possível
encontrar-se com um Deus amoroso, que se deixa conhecer,
e ao mesmo tempo, fazer parte de seu projeto único de
amor. O estudioso da Bíblia acaba por se descobrir
envolvido neste grandioso projeto e não consegue mais ser
indiferente a ele.

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