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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE LETRAS E LINGUÍSTICA


PROGRAMA DE DOUTORADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS

LORENA FARIA

CORPOS E VOZES DE RESISTÊNCIA EM PERFORMANCE:


A PALAVRA CANTADA DE ANECIDE TOLEDO NO BATUQUE DE UMBIGADA
DE CAPIVARI-SP

UBERLÂNDIA
2018
LORENA FARIA

CORPOS E VOZES DE RESISTÊNCIA EM PERFORMANCE:


A PALAVRA CANTADA DE ANECIDE TOLEDO NO BATUQUE DE UMBIGADA
DE CAPIVARI-SP

Projeto de pesquisa apresentado ao Programa


de Pós-Graduação em Estudos Literários, da
Universidade Federal de Uberlândia, a fim de
realizar sua formalização junto às secretarias
competentes.
Linha de pesquisa: Literatura, outras artes e
mídias
Orientador: Ivan Marcos Ribeiro
Coorientadora: Cintia Camargo Vianna

UBERLÂNDIA
2018

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 4
JUSTIFICATIVA ....................................................................................................................... 9
PROBLEMATIZAÇÃO ........................................................................................................... 10
OBJETIVOS ............................................................................................................................. 13
METODOLOGIA..................................................................................................................... 14
CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO ........................................................................................ 14
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 15

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INTRODUÇÃO

Sobre inscrever o povo negro na academia, entre outras reflexões

Eu escrevo para os que não podem me ler.


Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história,
não sabem ler ou não têm com o quê.
(Eduardo Galeano, O livro dos abraços, 1989)

Exponho essas reflexões iniciais como uma tentativa de descrever o campo em que se
inserem tanto a produção ora escrita quanto a manifestação que pretendo analisar, o Batuque
de Umbigada paulista, enquanto pesquisadora do Curso de Doutorado em Estudos Literários da
Universidade Federal de Uberlândia e também batuqueira. Vejo-me numa zona de confronto –
mesmo na posição supostamente confortável a mim proporcionada pela Universidade – ao
escrever por e para aqueles que talvez não poderão ler-me, pelos mais variados motivos não
mencionados aqui, bem como ao tentar levar suas vozes a diferentes espaços, numa postura de
resistência.

Expressar a palavra é um ato de revelar-se. Manifesto essa afirmação pensando


especialmente nas vozes negras e nas várias tentativas de silenciamento a que foram submetidas
historicamente, bem como nos modos de sua inserção no campo literário e acadêmico: Proença
Filho abordara, em 2004, a trajetória dos negros e negras na literatura, expondo o tratamento
discursivo marginalizador a que a condição negra fora submetida – ora numa perspectiva de
distanciamento, cujo negro era objeto, ora numa atitude compromissada, apontando o negro
como sujeito. Dessa segunda perspectiva são exemplos Luís Gama, Lima Barreto, Solano
Trindade, Abdias Nascimento e mulheres – em menor quantidade, infelizmente – como
Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. A menção a essas duas mulheres demonstra
escassos exemplos de escritoras negras alçadas a uma posição canônica, algo quase raro de
acontecer no meio literário, mas que vem mudando paulatinamente, haja vista movimentos
tanto de grupos envolvidos na busca por uma maior representatividade negra nesse meio, como
de interesses do mercado editorial no segmento, vendo na literatura de autoria e temáticas da
negritude um nicho importante.

Mesmo não sendo a questão do cânone a principal discussão do presente projeto de


pesquisa, vale lembrar os percalços sofridos por autores e autoras negras (essas, sobretudo) para
atingir um patamar de reconhecimento. Não são as dificuldades nesse sentido exclusivas das
4
autorias negras, mas recaem sobre elas de maneira pungente: é inegável a constatação de que o
cânone brasileiro, assim como qualquer formação canônica, seja excludente. Jaime Ginzburg
(2004), ao abordar valor estético e cânone numa teoria autoritária da literatura, se vale das ideias
de críticos como Ricardo Reis e Bobby Chamberlein para refletir sobre a questão no Brasil e,
em sua análise, aponta que as escolhas dos cânones incidem sobre valores estéticos pautados
em modelos estáveis e não refletivos coletivamente. Além disso, o autor menciona a preferência
por determinados segmentos culturais e, usando as palavras de Reis, promove a discussão sobre
o fato de haver “poucas mulheres, quase nenhum não-branco e muito provavelmente escassos
membros dos segmentos menos favorecidos da pirâmide social” (REIS, 1992, p. 73 apud
GINZBURG, 2004, p. 98-99) em nosso sistema canônico, bem como observa, resgatando
Chamberlein, um vínculo entre critérios de exclusão estética e experiências de exclusão social.

Sobre tal aspecto, não posso deixar de discutir de forma breve sobre o já citado
movimento de interesses da indústria cultural – ou, mais especificamente, do mercado editorial
– na publicação de obras com temática e autoria negras. Numa posição inicialmente de
contracânone, tais obras, em algum momento da dinâmica de inclusão/exclusão, acabam vindo
a se tornar canônicas também. Quanto às universidades, é interessante perceber como as
discussões têm se dado no sentido de repensar e problematizar a formação canônica e mesmo
sua necessidade. Exemplo disso é a inserção de Quarto de despejo, livro de Carolina Maria de
Jesus, e do álbum Sobrevivendo no inferno, do grupo de rap Racionais MC’s, no vestibular da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – considerada atualmente a principal
universidade da América Latina – num movimento de alçada de poéticas costumeiramente
marginalizadas ao centro e na tentativa de evitar a reprodução passiva de um cânone elitista
entre os estudantes.

Retomando agora as colocações em torno das tentativas de silenciamento das vozes


negras, apresento as ideias de Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos, ao discutir o
entre-lugar ocupado pelo discurso latino-americano em contraposição ao europeu. Em diálogo
com a perspectiva desconstrucionista de Jacques Derrida, Santiago nos leva a pensar em como
a Etnologia abriu outras possibilidades de compreender a produção artística latino-americana,
desmistificando o discurso histórico (neo)colonialista. Dentre essas novas possibilidades
críticas, o ensaísta brasileiro nos desafia a declarar a falência de um método enraizado no
sistema universitário que visa apenas ao estudo das fontes e influências, e colocar em relevo os
elementos negligenciados, dando lugar a um método que “estabelecerá como único valor crítico
a diferença” (SANTIAGO, 1978, p. 21). Tal diferença nos é apresentada como dejá-dit
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transformado, em que os significantes das obras estrangeiras – inspiradoras do escritor latino-
americano – ganham novos significados na ‘segunda obra’ por meio da transgressão, a destruir
os conceitos de unidade e pureza europeus. Veremos como o Batuque de Umbigada pode ser
exemplo dessa transgressão, por inserir-se na cultura ocidental capitalista desmascarando suas
estruturas através das vozes entoadas pelos batuqueiros e batuqueiras: “forma prisão”1 que,
performatizada, se coloca em liberdade. Como exemplo da relação transgressora encontrada na
poética do Batuque, temos a canção a seguir:

Se o Luís Gama fosse vivo


Ele chorava com muita razão
Porque foi ele que votou com a liberdade
Tem nêgo na cidade que ainda chora a escravidão

O contraponto entre o passado e o presente da escravidão nessa canção – ou, mais


propriamente, “moda” – revela como os compositores do Batuque de Umbigada utilizam essa
forma de expressão artística também para promover denúncia. De que outra maneira esse grupo
social historicamente subalternizado diria o que tem a dizer? Muitas composições do Batuque
seguem a linha delineada por Silviano Santiago para o contexto da América Latina e, na falsa
obediência ao sistema imposto pelo neocolonianismo, reagem às tentativas de silenciamento –
“resposta desejada pelo imperialismo cultural” – revelando que “falar, escrever, significa: falar
contra, escrever contra” (SANTIAGO, 1978, p. 19).

Tais reflexões me levam a pensar a questão da autoria e trazer para a discussão as ideias
de Michel Foucault, em O que é um autor?. Seguindo a linha do pensamento barthesiano,
Foucault exemplifica como a regra imanente e bastante conhecida de que a escrita relaciona-se
à morte ao apagar as características individuais do autor, sendo que “a marca do escritor não é
mais que a singularidade de sua ausência” (FOUCAULT, 1969, p. 36). No entanto, ao
problematizar as noções de obra e da própria escrita, o filósofo francês acredita haver um
bloqueio na verificação desse desaparecimento do autor, e nos convida a pensar as condições

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A expressão derivada do francês formes-prisons, que Silviano Santiago toma de empréstimo a Robert Desnos,
pode ser compreendida como um tipo de imposição da expressão, negando a concepção tradicional da invenção
artística e da liberdade do criador. O artista, sem liberdade para dizer de outra forma o que precisa ser dito, ‘aceita
a prisão como forma de comportamento, a transgressão como forma de expressão’ (SANTIAGO, 1978, p. 27). A
genialidade do artista latino-americano reside justamente no jogo visível de sua mensagem, porém no invisível
silenciado pelo texto, nesse caso, a presença do modelo europeu.
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de produção e recepção dos textos no espaço e no tempo. A partir disso, Foucault demonstra
como a designação da autoria apenas pela referência ao nome próprio do autor encerra questões
problemáticas, haja vista ser a autoria uma instância mais ampla no contexto daquelas condições
mencionadas anteriormente. Nesse sentido, afirma:

[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que


pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome,
etc.); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma
função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de
textos, delimitá-los, seleccioná-los, opô-los a outros textos. Além disso, o
nome de autor faz com que os textos se relacionem entre si; Hermes
Trimegisto não existia, Hipócrates também não — no sentido em que
poderíamos dizer que Balzac existe —, mas o facto de vários textos terem sido
agrupados sob o mesmo nome indica que se estabeleceu entre eles uma relação
seja de homogeneidade, de filiação, de mútua autentificação, de explicação
recíproca ou de utilização concomitante. Em suma, o nome de autor serve para
caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome
de autor, o facto de se poder dizer "isto foi escrito por fulano" ou "tal indivíduo
é o autor", indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente,
um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se
trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa
determinada cultura, receber um certo estatuto (FOUCAULT, 1969, p.44-45).

Dessa forma, Foucault nos leva à ideia de que o nome do autor não transita do interior
dos discursos para o indivíduo exterior que os produziu, como é possível fazer com o nome
próprio, mas exerce uma função que delimita, bordeja e caracteriza os textos. Assim, defende
que há discursos providos de uma “função-autor”, uma espécie de paratexto capaz de
caracterizar o modo de funcionamento, existência e circulação desses discursos, afirmando não
serem todos indistintamente dotados dessa função (que não se forma espontaneamente), mas
especialmente aqueles transformados em objeto de uma apropriação pautada em relações de
transgressão e propriedade, bem como aqueles que, historicamente, passaram a carecer de
algum tipo de atribuição de autoria. A função-autor também não se refere a uma individualidade
em si, mas, nos discursos em que está presente, pode caracterizar diferentes posições-sujeito
ocupadas pelo indivíduo. Nesse sentido, a noção de autoria não se restringe tão somente à figura
do autor ou autora personificados, mas amplia-se na direção de compreender quem enuncia do
ponto de vista de seu lugar social.

Essa dimensão me parece bem pertinente quando relacionada a produções como o


Batuque de Umbigada, principalmente se adotarmos o conceito de discurso pela ótica
foucaultiana, considerando que as formações discursivas estão inseridas numa estrutura de
poder e controle, determinante de imaginários sociais. Diante disso, demarcar a autoria no
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Batuque é importante não só porque os agenciamentos se dão num jogo performático que inclui
simultaneamente autor, texto e leitor, mas sobretudo pelo fato de que apresentar o lugar de fala
dos sujeitos batuqueiros e batuqueiras contribui para a construção do paratexto proporcionado
pela função-autor, importante para uma contextualização mais ampla da manifestação cultural
em tela e dos lugares ocupados socialmente por seus enunciadores e pelo Batuque de Umbigada
em si. Observem que a concepção de lugar de fala relaciona-se a uma questão estrutural, e não
individual. Djamila Ribeiro (2017) produz uma abordagem a partir da feminist standpoint
theory para compreender esses lugares não estanques e como eles servem para “refutar a
historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social”
(RIBEIRO, 2017, p. 64) , a partir do entendimento de que o ponto de partida dos discursos das
classes subalternizadas diverge das classes detentoras do discurso hegemônico e de como essa
relação estrutural do poder dificulta o acesso de determinadas produções a certos espaços. Sobre
esse aspecto, a autora afirma que

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma


hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais,
saberes e vozes sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além das
condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente. Isso, de
forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas para enfrentar
esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias formas de
organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que essas condições
sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas produções. Uma
simples pergunta que nos ajuda a refletir é: quantas autoras e autores negros o
leitor e a leitora, que cursaram a faculdade, leram ou tiveram acesso durante o
período da graduação? Quantas professoras ou professores negros tiveram?
Quantos jornalistas negros, de ambos os sexos, existem nas principais
redações do país ou até mesmo nas mídias ditas alternativas? Essas
experiências comuns resultantes do lugar social que ocupam impedem que a
população negra acesse a certos espaços. [...]
Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de locus
social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência
(RIBEIRO, 2017, pp. 63-64).

Assim, pensar na proposta de demarcar lugares de fala enquanto o estabelecimento de


um locus social é uma forma de refletir sobre as estruturas de poder e refutar a hierarquização
de discursos, em busca de uma existência equânime de epistemologias outras em diferentes
espaços – não se trata, portanto, de uma visão essencialista, segundo a qual somente um negro
possa falar sobre racismo ou que não existam reacionários em meio a grupos socialmente
oprimidos. Também não significa ser o locus social determinante de uma consciência discursiva
sobre tal espaço, mas capaz de permitir considerar a existência de experiências e perspectivas
distintas a partir de diferentes lugares.
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Associando essa concepção à questão da universidade, é assim que compreendo
escrever sobre cultura popular no meio acadêmico – como lugar de embate, forma de
resistência, desafio. E mostrar quem narra, nesse sentido, é um ato político mais que necessário.
É importante demarcar a voz daqueles que não conseguem, ainda hoje, adentrar com equidade
os espaços acadêmicos, costumeiramente preenchidos por vozes reprodutoras de uma suposta
elite cultural. Ora, sabemos que no Brasil as vozes negras (e pobres de qualquer cor) foram por
muitas vezes silenciadas na universidade, até mesmo porque o acesso desses sujeitos a tal
espaço fora negado ou dificultado pela própria estrutura social. O desafio, então, enquanto tais
vozes oprimidas não conseguem falar por si mesmas nesses espaços, surge na tentativa de ouvi-
las, interpretá-las e levá-las à academia, sem a pretensão de pensar que essa postura encerra
algum tipo de “benevolência”, mas entendendo a possibilidade de lançar novos olhares sobre a
história oficial. Retomo as ideias de Djamila Ribeiro sobre tal questão:

Assim, entendemos que todas as pessoas possuem lugares de fala, pois


estamos falando de localização social. E, a partir disso, é possível debater e
refletir criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O
fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado em
termos de locus social consigam enxergar as hierarquias produzidas a partir
desse lugar, e como esse lugar impacta diretamente na constituição de lugares
de grupos subalternizados (RIBEIRO, 2017, p. 86).

Nesse projeto de pesquisa, considero como ponto de partida meu locus no meio
acadêmico, entendendo-o como uma posição privilegiada socialmente, mas sem deixar de tentar
compreender a dimensão do Batuque de Umbigada como prática cultural de um grupo
específico que, mesmo trazendo em si diferentes discursos, não perde sua singularidade e está
demarcado subalternamente numa sociedade de classes. O Batuque surge, inicialmente, em
meio aos negros escravizados e reconfigura-se ao longo do tempo no bojo do mundo proletário
e das massas em geral. Tentar contar a memória coletiva, advinda dessa manifestação popular,
sem interferir naquilo que lhe é próprio, sem deixar de dar voz às formas próprias de
autoinscrição dos negros e negras ali envolvidos, a que Achille Mbembe (2001) chama de
práticas de self, é o desafio proposto quando tento inscrevê-los e inscrevê-las na academia.

JUSTIFICATIVA

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E assim apresento de forma mais pontual a justificativa desse projeto, em grande parte
já diluída ao longo dessa introdução. A pesquisa justifica-se na medida em que se propõe a
inserir na academia uma manifestação cultural extremamente rica poética e simbolicamente, o
Batuque de Umbigada, mas que devido ao advento da colonização e seus reflexos, não esteve
presente no espaço acadêmico como deveria. Mais que a promoção de uma reparação histórica,
trazendo a voz dos batuqueiros e batuqueiras para um lugar distinto daquele costumeiramente
onde ela se produz, esse trabalho busca produzir fontes para pesquisadores interessados no
tema, haja vista a ausência de pesquisa sobre o Batuque de Umbigada na área dos Estudos
Literários. Cumprir essa tarefa parece fácil se pensarmos a Universidade como legitimadora de
discursos, que detém “o poder de contar e interpretar os eventos que se passam no mundo
operário ou nos meios populares, em geral” (BOSI, 2003, p. 18). No entanto, se considerarmos
que os signos mobilizados por práticas como o Batuque de Umbigada são deslizantes e
promovem diferentes agenciamentos, veremos que uma manifestação tão vasta
simbolicamente, ao ser situada na academia, não pode deixar de ser analisada de maneira mais
ampla.

PROBLEMATIZAÇÃO

Mas, afinal, como podemos caracterizar, em linhas gerais, essa prática cultural? O
Batuque de Umbigada é uma manifestação cultural de tradição bantu, trazida ao Brasil por
populações negras escravizadas vindas sobretudo de Angola, sul da África. No interior paulista,
esteve presente em diversas cidades, sendo que ainda resiste em cerca de seis municípios:
Capivari, Piracicaba, Tietê, Rio Claro, Barueri e São Paulo (BUENO; TRONCARELLI; DIAS,
2015). Mesmo sendo uma manifestação afro pouco valorizada e por vezes silenciada ao longo
do tempo, as vozes dos batuqueiros ainda ecoam e as apresentações do Batuque de Umbigada
são momentos de enunciação em que os discursos produzidos reconstroem continuamente
nuances históricas, artísticas e simbólicas, em que interagem elementos como letras, música e
dança.
Apesar de configurar-se aparentemente como uma dança, o Batuque de Umbigada traz
em si outros elementos que merecem ser destacados: a elaboração das canções, ou mais
propriamente “modas”, a técnica de afinação dos instrumentos tradicionais e o próprio
significado da umbigada entre os corpos dançantes são matizes culturais simbólicas que

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remontam à ancestralidade, à identidade africana, ao culto às tradições e ainda à luta contra o
preconceito racial. Nessa esteira, o pesquisador Adelino Oliveira assim descreve a manifestação
cultural em tela:

A tradição do Batuque de Umbigada descortina-se como uma autêntica


manifestação cultural, com sua cadência rítmica caracterizada pelo som do
tambú – instrumento musical liturgicamente moldado em fogueira, a partir de
um toco oco de árvore com significado místico – com a sua dança embalada
por um vai e vem com conotação espiritual – o ventre feminino encontra o
masculino, na essencialidade da pessoa, compondo a umbigada – e com a
contundência de suas letras, poemas, modas a entoarem densas representações
existenciais. Em uma roda de Batuque de Umbigada expressivos elementos
simbólicos são projetados, em uma polissemia de metáforas vivas. Com
profundidade rara, cada moda compõe-se como um tecer de memórias, de
percepções sobre a existência, de narrativas do cotidiano, de práticas religiosas
sincréticas, de afirmação de identidade, de recontar vicissitudes históricas, de
veementes gritos de denúncia, resistência e liberdade (OLIVEIRA, 2015, n.
p.).

Como se vê, Oliveira ressalta a contundência das representações existenciais presentes


nas “letras, poemas, modas” do Batuque, carregadas de elementos simbólicos e polissêmicos.
Outro viés importante a ser considerado é o modo como se dá a construção dos discursos
veiculados pelas “modas” do Batuque de Umbigada de Capivari e a recepção desses discursos
no bojo da enunciação performática em que são produzidos. Nesse projeto de pesquisa, me
limitarei a essa descrição sucinta, porém, no corpo da tese, procuraremos analisar literariamente
as modas, a espacialidade sagrada em que se insere o Batuque, além da performance e suas
simbologias como um todo.

Diante isso, a opção por abordar tais elementos sob a perspectiva dos Estudos Interartes
se justifica, sendo essa a linha teórica principal de análise dessa vivência cultural – me parece
inadequado chamar o Batuque de Umbigada de objeto. Sem nos atermos a uma conceituação
exaustiva, é importante destacar que nesses estudos são matérias de interesse os tipos de textos
envolvidos, suas formas de relacionamento, possibilidades de comunicação e representação de
diferentes sistemas sígnicos, bem como os códigos e convenções a eles associados (CLÜVER,
2006). Contrários à ideia de hierarquização entre as artes, por compreender que cada uma possui
características específicas a serem consideradas para análise, os Estudos Interartes envolvem
também a questão da produção e da recepção textual, além dos contextos culturais em que essas
são praticadas: o leitor é tido como realizador do texto, num deslocamento, mesmo que parcial,
deste para a consciência do receptor, em perspectiva intersemiótica. Entende-se o termo “texto”,
aqui, como uma estrutura sígnica normalmente complexa, passível de ser “lida”: para os
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semioticistas, essa percepção vale para qualquer obra de arte – seja um filme, um soneto, uma
pintura ou um balé, por exemplo. Dessa forma:

O leque dos Estudos Interartes parte dos estudos de fontes, passa por questões
de periodicidade, problemas de gênero e transformações temáticas, até
alcançar todas as formas possíveis de imitação que ocorrem através das
fronteiras entre mídias (em formas e técnicas estruturais, tendências
estilísticas, e outras mais). Os Estudos Interartes abrangem, além disso,
aspectos transmidiáticos como possibilidades e modalidades de representação,
expressividade, narratividade, questões de tempo e espaço em representação
e recepção, bem como o papel da performance e da recitação. Incluem também
conceitos cunhados pela Teoria da Literatura, como os de autor e leitor
implícitos, cuja existência também se pode comprovar, por exemplo, na
Música. Um fenômeno como o do talento múltiplo pertence aos objetos de
pesquisa específicos dos Estudos Interartes. Por outro lado, estes partilham
com outras atividades transdisciplinares o interesse, hoje em dia tão intenso,
por toda a sorte de contextos, práticas e instituições em que se deparam
diversas artes e mídias (CLÜVER, 2006, p. 16-17).

A definição do professor Claus Clüver sobre a abrangência dos Estudos Interartes nos
faz entender que o Batuque de Umbigada pode ser analisado sob o enfoque desses estudos, por
trazer em seu bojo o diálogo entre diferentes códigos numa perspectiva intersemiótica ou
intermídia, ao recorrer a “dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os
aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam
inseparáveis e indissociáveis” (CLÜVER, 2006, p. 20). Isso porque a riqueza simbólica e a
compreensão holística dos elementos mistos que compõem o Batuque só é possível se estes
forem tomados em conjunto: por mais que possamos ouvir um CD com as modas do Batuque
ou analisar suas letras, por exemplo, qualquer tentativa de descrição desse objeto ou de sua
representação não substitui a vivência de sua recepção. O Batuque de Umbigada é um tipo de
texto com caráter performativo extremamente marcado, cujos elementos auditivos, gestuais,
verbais, visuais e cinéticos são contrários a uma percepção estática de interpretação.

Para entender de maneira holística essa manifestação, tentaremos responder a alguns


questionamentos norteadores da pesquisa, tais como: Por que os Estudos Literários podem
abraçar essa manifestação cultural em seu bojo? De que maneira o Batuque de Umbigada se
(re)configurou historicamente? Que mudanças sofreu ao longo do tempo? Quais as possíveis
rupturas nesse processo? Quem é Anecide de Toledo e como se caracteriza a poética construída
por ela? Como as batuqueiras e batuqueiros concebem o Batuque de Umbigada e o papel da
mulher nesse contexto? Como o público caracteriza os efeitos produzidos pelo Batuque? O que
significa a Umbigada? Quais as relações intersemióticas presentes nessa manifestação? Quais

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os elementos simbólicos presentes no Batuque? Como as modas entoadas na performance se
configuram literariamente? Como se dá a expressão da palavra cantada na performance?

Essas perguntas, entre outras que certamente surgirão ao longo do processo de escrita,
poderão ser respondidas a partir de uma bibliografia fundamental ao trabalho, a incluir teóricos
como Claus Clüver, para abordar os estudos interartes; Paul Zumthor, para tratar da vocalidade
e da performance; José Ramos Tinhorão e autores pós-coloniais, como Homi Bhabha e Achille
Mbembe, a fim de traçar uma linha histórica do Batuque de Umbigada e sua relação com a
questão do colonialismo e a reinvenção da tradição; Ivan Bonifácio e Paulo Dias, pesquisadores
e batuqueiros que desenvolveram obras sobre a temática do batuque e são importantes
referências de estudo para compreender essa manifestação. Diversos outros autores e autoras
serão consultados nos próximos dois anos.

OBJETIVOS

- GERAIS:

- Inserir o Batuque de Umbigada no espaço acadêmico, veiculando sua filiação aos Estudos
Literários e Interartes;

- Traçar o panorama histórico no qual a tradição se perpetuou, colocando em tela as tentativas


colonialistas de silenciamento a que o Batuque de Umbigada foi submetido;

- Valorizar o lugar do Batuque de Umbigada como expressão de resistência e afirmação da


cultura de matriz afro, evidenciando a riqueza literária e simbólica dessa manifestação artístico-
cultural.

- ESPECÍFICOS:

- Analisar os sentidos intersemióticos e simbólicos movidos pelos corpos e vozes em


performance no Batuque de Umbigada;

- Investigar como se configura a palavra cantada nas modas do Batuque de Umbigada de


Capivari, a partir das composições de Anecide de Toledo.
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METODOLOGIA

Para a pesquisa em andamento, pretendo utilizar pesquisa bibliográfica, bem como


coletar histórias orais e participar das vivências do Batuque de Umbigada, analisando os traços
pertinentes à performance. Do ponto de vista da abordagem, a pesquisa baseia-se no método
qualitativo. Tenho analisado também a adequação do método cartográfico para olhar as
diferentes nuances do Batuque.

A delimitação dos capítulos ainda não foi definida integralmente e pode sofrer
alterações. No entanto, até o presente momento, creio que a tese constará de um primeiro
capítulo com as histórias em torno do Batuque de Umbigada, em que pretendo delinear o
contexto social dos batuqueiros e batuqueiras e a linha histórica pela qual a tradição vem se
perpetuando, apesar de sua reinvenção no tempo – As histórias; um capítulo tratando dos
símbolos que compõem o ritual performático da manifestação cultural em tela, os corpos e a
espacialidade sagrada do terreiro – Os símbolos; um terceiro abordando especificamente a
questão da palavra cantada pela voz feminina do Batuque – As vozes; e um quarto capítulo a
tratar das modas e de sua significação, produzindo uma espécie de cancioneiro do Batuque de
Umbigada – As letras.

CRONOGRAMA DE EXECUÇÃO

PERÍODO  1º 2º 1º 2º 1º 2º 1º 2º
semestre semestre semestre semestre semestre semestre semestre semestre
TAREFAS  2017 2017 2018 2018 2019 2019 2020 2020
Disciplinas x x x x
teóricas
Levantamento x x x x
bibliográfico
Revisão da x x x x x x x
literatura
Montagem do x x
projeto
Exame de x
qualificação
Pesquisa x x x x
de campo
Levantamento x x x
14
de dados
Tabulação dos x x
dados
Análise x x x
dos dados
Organização x x
dos resultados
Redação do x x x
trabalho
Redação final x x x
e depósito
Defesa x

REFERÊNCIAS

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2003.
BUENO, A. P.; TRONCARELLI, M. C.; DIAS, P [orgs]. O Batuque de Umbigada: Tietê,
Piracicaba e Capivari, SP. São Paulo, Associação Cultural Cachuera!, 2015. 296 p.

CLÜVER, Claus. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. In: Literatura e sociedade.
São Paulo: FFLCH/USP, n. 2, p. 37-55, 1997. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/13267/15085 CLUVER 1997. Acesso em; 16 jul
2017.

FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce qu'un auteur?. In: Bulletin de la Société Française de


Philosophie, 63e année, n. 3, juillet-septembre, 1969, pp. 73-95. Versão traduzida disponível
em: <http://www2.eca.usp.br/Ciencias.Linguagem/L3FoucaultAutor.pdf>. Acesso em: 26 set
2018.

GINZBURG, Jaime. Cânone e valor estético em uma teoria autoritária da literatura. In: Revista
de Letras, São Paulo, vol. 44, no. 1, 2004. pp. 97-111. Disponível em:
<https://periodicos.fclar.unesp.br/letras/article/viewFile/243/242>. Acesso em: 26 jun 2018.
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