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ANÁLISE DISTRIBUTIVA

A Análise Distributiva consiste nas seguintes fases:

I. Análise Paradigmática
1. Segmentação
2. Quadro de Segmentação

II. Análise Sintagmática


1. Relações Sintagmáticas
a) linearidade
b) função
c) tipo
d) sentido
e) nível
2. Lista Fisionômica

Abaixo, estão explicações sobre cada um desses conceitos.

I. Análise Paradigmática
1. Segmentação: separação dos elementos básicos que compõem
determinada obra musical
2. Quadro de Segmentação: organização desses elementos básicos em um
quadro que demonstra correspondências existentes entre eles

II. Análise Sintagmática


1. Relações Sintagmáticas: é a forma como os elementos constitutivos de
determinada peça musical se inter-relacionam
a) linearidade: é a ordem em que os elementos aparecem, na linha de
tempo.
Exemplo linguístico: Frase de referência: “Menuhin é um grande músico”.
Paradigmas: substantivo próprio: ‘Menuhin’, verbo: ‘ser’, artigo: ‘um’, adjetivo:
‘grande’, substantivo comum: ‘músico’. O sentido da frase citada seria diferente
se a ordem fosse: “Um grande músico é Menuhin”, ou “Menunhin é um músico
grande”; da mesma forma, a frase não faria sentido se fosse dita nesta ordem
linear: “Músico é um Menuhin grande” – isso significa que as relações
sintagmáticas significativas são limitadas.
Exemplo musical: Na estrutura geral da forma-sonata, por exemplo, a
linearidade seria: primeiro tema – transição – segundo tema – desenvolvimento –
recapitulação do primeiro tema – recapitulação do segundo tema – coda.
b) função: é a função que cada um dos elementos cumpre na estrutura
geral da peça.
2

Exemplo linguístico: somente é possível reconhecer o sentido da frase


porque cada paradigma (palavra) desempenha uma função específica, como:
sujeito (Menuhin), verbo (ser) e predicado (um grande músico).
Exemplos de funções estruturais, na música, são: introdução, exposição,
variação, elaboração, digressão, desenvolvimento, repetição literal, reexposição,
conclusão (coda), etc. Alguns autores preferem usar termos historicamente
menos carregados, como início, meio e fim.
c) tipo: é a categoria a que pertence determinado elemento da estrutura
musical, conforme seus caracteres distintivos e suas qualidades específicas.
Exemplo linguístico: pertencem ao mesmo tipo sintagmático aquelas
unidades que possuem a mesma relação entre o sentido da sequência total e o de
seus componentes, como, por exemplo, o prefixo ‘des’ pertence ao mesmo tipo
sintagmático quando acrescentado ao verbo ‘fazer’ ou ao verbo ‘colar’, pois as
palavras ‘desfazer’ e ‘descolar’ pertencem à mesma categoria; porém o mesmo
prefixo combinado à palavra ‘continuo’, gerando a expressão ‘descontínuo’
pertence a outro tipo sintagmático, pois ‘contínuo’ não é um verbo, mas um
adjetivo. O mesmo serve para as sentenças e frases: as sentenças “Menuhin é um
grande músico” e “Pollini é um excelente intérprete” pertencem ao mesmo tipo
sintagmático, pois são formadas pela combinação sucessiva de: substantivo
próprio + verbo + artigo + adjetivo + substantivo comum.
Exemplo musical: o motivo principal da Sinfonia Nº 5, de Beethoven,
pertence a um tipo determinado, quando apresentado como impulso rítmico
inicial (c. 1-2 e 3-5), pertence a outro tipo quando é tratado como inciso para a
construção do primeiro tema (c. 6-56), a outro tipo como tema de transição nas
trompas (c. 59-62), outro quando é elaborado como o baixo de acompanhamento
no segundo tema (c. 63-93), etc.
d) sentido: é a significação que determinada proposição pode assumir, isto
é, seu conteúdo semântico ou aquilo que comunica, que se pode entender de
determinado trecho musical.
Exemplo linguístico: as duas frases citadas anteriormente (“Menuhin é um
grande músico” e “Pollini é um excelente intérprete”) pertencem à mesma
categoria de sentido, pois ambas apresentam juízo de valor sobre determinado
músico. Já a frase “Júpiter é um imenso planeta” apresenta outro sentido,
mesmo pertencendo ao mesmo tipo sintagmático (substantivo próprio + verbo +
artigo + adjetivo + substantivo comum).
Exemplo musical: este campo da análise está mais ligado aos estudos
semânticos da música vocal (óperas, cantatas, canções, etc.) do que da música
instrumental. Mesmo assim, há várias peças instrumentais em que se pode
perceber claramente a intenção de comunicar um sentido extramusical 1, como As

1
Leonard Meyer, no seu livro Music, Arts and Ideas, distingue dois tipos de significado musical: 1.
o significado designativo – aquele que possui um caráter simbólico, onde o significante é
diferente do significado, isto é, a música refere-se a algo que está fora dela, é representativa e
descritiva; 2. o significado incorporado – onde o significante confunde-se com o significado,
3

Quatro Estações, de Vivaldi, ou a Sinfonia Fantástica, de Berlioz. Esta é uma


área da análise que tem interessado mais aos semiólogos europeus do que norte-
americanos. Nas últimas décadas, têm-se desenvolvido os estudos de retórica
musical, com atenção especial para a retórica da música barroca e a Teoria dos
Afetos, devido à grande quantidade de estudos de músicos e teóricos dos séc.
XVII e XVIII sobre o assunto.
e) nível: é a camada da estrutura a que cada elemento pertence.
Exemplo linguístico: as palavras que formam uma sentença pertencem ao
mesmo nível sintagmático; as sentenças que formam cada frase pertencem ao
mesmo nível de estrutura; frases que formam um parágrafo pertencem ao mesmo
nível sintagmático; os parágrafos que formam um capítulo de um livro pertencem
ao mesmo nível de estrutura; os capítulos que formam um livro pertencem ao
mesmo nível sintagmático. Assim, “para descrever um sintagma particular, deve-
se dizer não somente quais unidades o constituem, como também em qual nível
se encontra cada um de seus elementos” (TODOROV, Tzvetan. Dicionário
Enciclopédico de Ciências da Linguagem, São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 109).
Exemplo musical: na fraseologia tradicional, podemos dividir as camadas
da estrutura musical, da menor à maior unidade, em inciso, semifrase, frase,
período simples, período composto, seção, parte, movimento (em certas peças,
alguns desses elementos podem ser coincidentes). Alguns autores preferem usar
termos menos carregados de historicidade, como estrutura de primeiro nível,
estrutura de segundo nível, etc.; ou, ainda, estrutura de superfície, estrutura de
nível intermediário, estrutura de profundidade, etc.
2. Lista Fisionômica: é uma espécie de catalogação das características
essenciais de cada um dos elementos básicos constitutivos de determinada obra
musical, conforme as propriedades da composição (ritmo, melodia, harmonia,
contraponto, etc.). Em geral, são criados símbolos específicos para designar cada
uma dessas propriedades. Por exemplo, o aspecto melódico (distribuição das
notas) do primeiro motivo da Sinfonia Nº 5, de Beethoven, poderia ser
catalogado como 3NR/-4 (3NR: 3 notas repetidas; -4: salto descendente de
quatro semitons).

refere-se aos elementos sintáticos e formais da linguagem musical, à sua organização em frases e
seções e à sua estrutura interna.
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ANÁLISE DA CANÇÃO KIMI GA YO

Abaixo, está uma demonstração deste tipo de análise, através da Análise


Distributiva da canção tradicional japonesa Kimi ga yo, cuja melodia atual é de
Hiromori Hayashi (1831-1896), reconhecida como Hino Nacional do Japão.

O hino japonês é este:

Abaixo está uma interpretação analítica, seguindo, passo a passo, as fases


da Análise Distributiva.

I. Análise Paradigmática
1. Segmentação
A segmentação consiste em destacar cada um dos elementos que
compõem a melodia da canção, conforme exemplificado abaixo.

A canção tem por base uma escala pentatônica e sua transposição à quinta
superior:
1. ré-mi-sol-lá-dó (c. 1-2; c. 6; c. 9-11)
2. lá-si-ré-mi-sol (c. 3-5; c. 7-8) – nota diferencial: si (c. 4).

A melodia inicia e termina com a nota ré, o que significa que esta nota é
tratada como centro de gravitação tonal.

As notas que finalizam segmentos melódicos, ou grupos frásicos, são o


centro tonal (ré) e sua quinta justa (lá). Isso é importante para estabelecer o
centro de gravitação da melodia, sendo muito comum em melodias de vários
povos.
5

No exemplo abaixo, as finalizações sobre a nota ré estão indicadas com (a)


e a finalização sobre a nota lá estão indicadas com (b). Note-se que a finalização
sobre a nota lá ocorre aproximadamente na metade da melodia.

Logo no início, a melodia está construída em torno da nota ré, através de


uma bordadura inferior (a) e de um movimento descendente de 3ªm2ªM (b).
Estes dois elementos são amplamente elaborados na construção da melodia e,
por isso, serão considerados como os dois motivos básicos, chamados de Motivo
de Impulso (MI) e Motivo Cadencial (MC). Nos exemplos a seguir, o motivo de
impulso será indicado por meio de uma elipse em torno das notas e o motivo
cadencial, por meio de uma seta (descendente, quando aparecer na direção
original, e ascendente, quando invertido).

No c. 3, a melodia da canção realiza um movimento ascendente (a),


repetindo as duas últimas notas (b) com diminuição dos valores rítmicos pela
metade (as semínimas, no segundo e terceiro tempos do c. 3, são modificadas em
colcheias, no quarto tempo). Note que (a), no exemplo abaixo, é uma inversão
transposta do motivo cadencial (misollá).

Em seguida, a melodia dirige-se ao registro agudo, para alcançar a nota ré


na oitava superior. Ao alcançar o ré agudo, no c. 4, ocorre um amplo movimento
descendente (a) e um retorno ascendente até uma cadência melódica sobre a
nota lá (b), no c. 5. No interior desse movimento descendente, aparecem três
variações do motivo cadencial (MC): transposição simples (résilá),
transposição do retrógrado da inversão (lásolmi) e inversão transposta
(misollá).
6

No c. 6, há apenas uma bordadura em torno da nota ré, como variação do


motivo de impulso pela transposição à oitava superior.

Nos c. 7-8, aparece um segmento melódico, que já ouvimos


anteriormente, no c. 3, que é seguido por um movimento descendente, que
também já ouvimos antes, nos c. 4-5. Entretanto, a frase se completa de uma
forma inusitada, pela introdução de um motivo contrastante, de caráter
cadencial, através de ritmo pontuado e movimento descendente de 4ªJ (c). A
nota ré é, novamente, enfatizada como ponto de apoio melódico, após uma
figura pontuada.
Neste trecho, há sobreposição dos dois motivos principais, o motivo de
impulso e o motivo cadencial. A bordadura do motivo de impulso (a) é transposta
à quarta superior e invertida como bordadura superior (sollásol); o motivo
cadencial (b) aparece nas formas em que já apareceu anteriormente, como
inversão transposta (misollá) e como transposição do retrógrado da inversão
(lásolmi) – a nota lá (terceira nota do c. 3) faz a elisão entre essas duas
variações do motivo cadencial.

No c. 9, há uma espécie de rima em relação ao c. 6, pois são apenas três


notas, das quais as duas últimas (dó-ré) são as mesmas. A diferença está na nota
inicial do movimento (lá). Isso significa que o c. 9 é uma variação do c. 6 pela
combinação dos motivos principais: MI (c. 6) com transposição de oitava; MC (c.
9) com inversão transposta à quinta superior.

A melodia finaliza nos c. 10-11, somente com fragmentos melódicos que já


ouvimos antes:
a) Notas dó-ré: que já escutamos três vezes: no início da música (segunda
e terceira notas do primeiro compasso), no c. 6 e no c. 9.
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b) Motivo de Impulso: a melodia iniciou com a bordadura em torno da


nota ré (ré-dó-ré), posteriormente realizou-se a mesma bordadura (ré-
dó-ré) com transposição de oitava, no c. 6; no c. 10-11, a bordadura lá-
sol-lá é apenas outra transposição da bordadura inicial, porém agora a
transposição é realizada à quinta superior (lá-sol-lá).
c) Motivo Cadencial: o movimento melódico empregado para terminar a
música é o mesmo que foi utilizado para terminar o primeiro grupo
frásico (solmiré, no c. 2). Agora, porém, há uma diminuição dos
valores rítmicos, pois as notas sol e mi foram apresentadas como
semínimas, no c. 2, e, no c. 11, aparecem como colcheias.

Podemos sintetizar os aspectos mais importantes da melodia da canção


nestes elementos:
1. Melodia pentatônica (ré-mi-sol-lá-dó)
2. Uma nota de exceção (si, segunda nota do c. 4), que pode ser
explicada pelo uso de transposição2
3. Cadências melódicas sobre a nota ré (5 vezes) e sobre a nota lá (1 vez)
4. Uso de dois motivos principais: Motivo de Impulso e Motivo Cadencial
5. Motivo de Impulso (bordadura)
a) Uso abundante de bordaduras inferiores (rédóré e lásollá)
b) Uso secundário de bordaduras superiores, no interior de segmentos
melódicos (sollásol, no c. 3 e no c. 7)
6. Motivo Cadencial
a) Uso principal nas cadências (solmiré, c. 2 e 11)
b) b) Uso secundário com variações no interior de segmentos melódicos
(retrógrado: rémisol, c. 1-2; inversão: misollá e ládóré, c. 3,
5, 7 e 9; transposição simples: résilá, c. 4; retrógrado da inversão:
lásolmi, c. 4-5, 7-8, 11 e no c. 7; lásol mi)
7. Uso abundante de graus conjuntos3 e alguns saltos melódicos

2
A nota si pode ser explicada como transposição, de duas maneiras: 1. surge pela transposição do
motivo cadencial (solmiré, c. 1; résilá, c. 4); 2. surge por transposição de escala, já que a
escala pentatônica que deu origem à melodia (ré-mi-sol-lá-dó-ré), incorpora a nota si quando
transposta à quinta superior (lá-si-ré-mi-sol). A técnica de transposição de escala é um método
de composição comum, há muitos séculos, na música do Extremo Oriente.
3
Os intervalos de terça menor (mi-sol e lá-dó) não são considerados saltos, mas graus conjuntos,
nesta escala pentatônica, já que seguem a seqüência das notas da escala, sem saltar nenhuma
delas (ré-mi-sol-lá-dó-ré). Assim como as escalas diatônicas ocidentais possuem dois tipos de
intervalo (meio-tom e tom), também são utilizados dois tipos de intervalo para a construção de
escalas pentatônicas orientais (tom e tom-e-meio). Por isso, o intervalo de tom-e-meio (grafado,
em nossa notação musical, como 3ªm) pode ser considerado como grau conjunto.
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a) Quase todos os saltos são realizados para preparar a nota ré,


através de 4ªJ ascendente (láré, c. 3-4 e 5-6) ou 4ªJ descendente
(solré, c. 8).
b) As exceções são: o salto de 7ªm descendente (rémi, c. 6-7 – este
salto é melodicamente neutro, pois ocorre entre frases); salto de 5ªJ
ascendente (rélá, c. 8-9 – que também ocorre entre grupos frásicos);
salto de 4ªJ descendente (rélá, c. 10).

2. Quadro de Segmentação

Com base na análise realizada anteriormente, podemos apresentar o


quadro de segmentação, em que os elementos são organizados conforme a linha
de tempo e seus elementos constitutivos.
A interpretação da linha de tempo, no exemplo abaixo, ocorre na direção
comum de leitura da música ocidental, em que os elementos estão grafados da
esquerda para a direita e de cima para baixo.
Oos elementos básicos que compõem a música estão alinhados
verticalmente, isto é, suas unidades melódicas estão agrupadas em colunas,
conforme suas características e afinidades.
No quadro abaixo, estão agrupados verticalmente somente os elementos
idênticos ou muito semelhantes.
Como os motivos básicos cumprem importante função melódica neste hino,
estão identificados: MI = colchetes; MC = setas.
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II. Análise Sintagmática

Com base na segmentação realizada anteriormente, pode-se verificar


quais são as relações que os elementos constitutivos da canção mantêm entre si.

1. RELAÇÕES SINTAGMÁTICAS

a) Linearidade
A linearidade já está anotada na partitura original e pode ser identificada
pela leitura do exemplo anterior, da esquerda à direita e de cima para baixo.

b) Função
As funções estruturais podem ser identificadas da seguinte forma (os
termos que indicam as funções estão marcados em negrito):
 Motivo de Impulso (rédóré): tem função de impulso inicial
 Motivo Cadencial (solmiré): tem função de conclusão, pois
conclui o primeiro grupo frásico e o final da melodia
 Motivo Contrastante (misolré, c. 8): tem função de contraste
 Elaboração melódica através de
o Movimento escalar ascendente-descendente
o Expansão da melodia em toda a extensão da escala
o Variação dos elementos básicos (motivos) por: transposição,
inversão, retrógrado, fusão motívica, etc.

c) Tipo
A comparação entre o uso do Motivo de Impulso e o Motivo Contrastante
pode exemplificar a análise de tipos sintagmáticos na melodia da canção Kimi ga
yo.
O Motivo de Impulso pertence a diferentes categorias, pois contém
características distintas e qualidades específicas, em cada vez que aparece.
No c. 1, a bordadura está escrita na oitava mais grave da melodia; no c. 6,
é transposta à oitava superior; no c. 3 e no c. 7, aparece como bordadura
superior no interior de segmentos melódicos mais amplos, sendo transposta à
quarta superior (sollásol); no c. 3 e nos c. 10-11, aparece como bordadura
inferior no interior de segmentos melódicos mais amplos, sendo transposta à
quinta superior (lásollá).
As transformações da bordadura, suas transposições, sua posição em
contextos distintos e as diversas funções que cumpre no decorrer da melodia
(impulso, expansão, variação) fazem com que ela pertença a diferentes tipos
sintagmáticos. Por isso, a bordadura é o elemento melódico mais importante da
canção.
Ao contrário, o Motivo Contrastante aparece apenas uma vez, de uma
forma específica e com uma única função, ou seja, não sofre transformações
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nem cumpre diferentes funções. Por isso, apresenta-se como somente um tipo
sintagmático.

d) Sentido
Em geral, há dois tipos de análise, quanto ao sentido musical: o estudo de
sentido designativo e de sentido incorporado.
Autores que se dedicam ao estudo de sentido designativo preferem
analisar peças compostas com base em alguma espécie de texto (ópera, canção,
música programática, etc.), pois o entendimento do sentido musical se dá
através das correspondências que podem ser percebidas na interação entre
música e literatura. Também é possível buscar correspondências entre música e
outras artes, como artes visuais, cinema, teatro ou dança. Em todos esses casos,
é necessário buscar referências sobre as intenções denotativas do compositor ou
analisar correspondências diretas ou explícitas entre as diferentes artes.
A análise do sentido incorporado faz coincidir o significado musical com
seus elementos constitutivos, isto é, neste campo da análise, entende-se que o
significado musical está nas inter-relações entre os sons e suas qualidades
psicoacústicas. Um exemplo simples disso seria a conotação que geralmente se
faz ao considerar o acorde de tônica como um ponto de repouso, a subdominante
como afastamento desse estado de inação e a dominante como um acúmulo de
tensão que exige resolução. Essas metáforas fazem coincidir elementos
psicoacústicos com significações emocionais e seu uso corrente tem criado
sentido musical na música tonal.

Abaixo, está a análise de significados designativos do hino japonês.

O texto da canção é o seguinte:


君が代は (Kimi ga yo wa – Possa o reinado de nosso senhor)
千代に (Chiyo ni – Continuar por mil anos)
八千代に (Yachiyo ni – Por mil gerações)
さざれ石の (Sazare ishino – Até que os seixos)
巌となりて (Iwao to narite – Se tornem penhascos)
苔の生すまで (Koke no musu made – Cobertos de musgo verde-claro)

O hino japonês tem sua origem em cerca de 905 d.C. Sua letra, Kimi ga yo
(título traduzido por: Reino Imperial), faz parte do Kokinwakashu, o mais antigo
livro de canções da história japonesa. Trata-se de um poema waka de autor
anônimo do Período Heian4 (794-1185). Waka, que significa ‘poesia’ em japonês,
é considerado o primeiro tipo de poema autêntico do Japão, diferente dos estilos

4
Período Heian significa Período da Paz.
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importados da China. A poesia waka tem origem aristoccrática e contém 31


sílabas, em seis versos.
Em 1869, oficiais militares escolheram o poema Kimi ga yo como hino
nacional do Japão. Inicialmente, a música foi encomendada ao inglês John
William Fenton. Por ter origem estrangeira, a melodia de Fenton foi abandonada
em 1876. A melodia atual foi composta em 1880, pelo japonês Hiromori Hayashi.
Após mais de cem anos adotado em festividades, no país e no exterior, somente
em 1999 a canção Kimi ga yo foi reconhecido oficialmente como Hino Nacional do
Japão.

A análise a seguir é apenas uma demonstração de como se pode realizar a


correlação entre texto e música. Não se pretende esgotar as possibilidades de
interpretação, até porque, para isso, seriam necessários conhecimentos mais
profundos da cultura, da música e da língua japonesa.

O primeiro verso, que diz “Possa o reinado de nosso senhor” já contém os


elementos básicos da melodia, que são o motivo de impulso (rédóré) e o
movimento cadencial (solmiré). Cada um desses elementos cumpre uma
função específica na melodia, respectivamente: impulso inicial e conclusão.
Podem-se identificar esses dois gestos melódicos com o reinado do Imperador do
Japão, que irá durar por milhares de anos. Assim como a poesia expõe, já no
primeiro verso, sua temática (a durabilidade do império japonês), também isso
ocorre na música pela apresentação dos motivos básicos.
Os dois versos seguintes (“Continuar por mil anos, por mil gerações”)
completam o desejo de que o reinado do imperador do Japão e estenda por
milhares de anos, desde seu início no Período Heian, o Período da Paz, até sua
continuidade por muitas gerações. A melodia, neste ponto, percorre a totalidade
da escala pentatônica em sua transposição à quinta superior (lá-si-ré-mi-sol),
com acréscimo da única nota (si) que não pertence à pentatônica original. Assim,
a melodia se estende em sua totalidade e se expande além de suas fronteiras,
com o sentido de representar os domínios do Imperador do Japão.
Os versos 4 e 5 (“Até que os seixos se tornem penhascos”) acrescentam
uma nova imagem, fazendo uma analogia entre o reinado japonês e o mundo
mineral pelo crescimento de pequenas pedras que se tornarão grandes rochedos
escarpados. O processo de crescimento da melodia, neste trecho, dá-se pela
elaboração de elementos já apresentados anteriormente, com uma finalização
(c. 8) sobre o motivo contrastante, formado por um gesto melódico inusual e um
elemento rítmico único, nesta melodia: a figuração pontuada. Parece ser uma
metáfora sobre o processo de transformação, já que os elementos rítmico-
melódicos do compasso 8 aparecem somente ali. O compasso 6 também traz algo
interessante, pois sobre a palavra “ishino” é realizada a bordadura que deu início
à melodia (MI), agora na oitava superior, como que fazendo uma referência à
ascensão da nação japonesa.
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O último verso (“Cobertos de musgo verde-claro”) acrescenta uma terceira


imagem, agora uma referência ao reino vegetal5. Há uma certa progressividade
no poema: seixos tornam-se penhascos que, depois, são cobertos de musgo.
Musicalmente, a melodia retorna ao registro agudo, fazendo uma rima entre o c.
6 e o c. 9, para se completar em um movimento descendente que percorre toda
a escala, nos dois últimos compassos, e repousa sobre o centro de gravitação
tonal (ré). Todos os elementos trabalhados nesta última frase já foram
apresentados anteriormente.
Essas características parecem fazer referência à noção de retorno, em um
processo de eterna circularidade. O movimento circular é uma característica das
escalas pentatônicas que também se faz presente no pensamento e na mitologia
do Japão e de outros países orientais.

Cabe, aqui, como digressão, uma citação do pensador Sakoshi Tanaka:

As relações inter-humanas desempenham, no Japão, um papel importante,


e se encontram desde há muito, como tema principal no centro da
literatura japonesa. (...) O japonês integra a arte à vida cotidiana. Além
disso, seria muito importante para a compreensão da arte e cultura do
Japão considerar que, em nosso país, se desconhece a síntese resultante
do conflito entre tese e antítese. Tese e antítese coexistem, uma ao lado
da outra, sem conflito. Em outras palavras, tendências estéticas
antagônicas poderiam gerar, no Ocidente, o estilo característico de cada
época; aqui, isso não acontece. Quaisquer que sejam os novos gêneros da
arte, colocam-se, sem dificuldade, ao lado das correntes já existentes.
(...)
Estado transitório significa, para o japonês, perfeição. Li, em certa
ocasião, que o palácio do Imperador do Japão, construído pela primeira
vez há aproximadamente dois mil anos e periodicamente reconstituído,
desde sempre foi considerado como construção provisória. O palácio do
Tenno deve representar eternamente o mais belo e o mais perfeito e, por
isso mesmo, deve expressar, eternamente, um estado de transição, um
provisório. Voltarei aqui, uma vez mais, à minha tese de que as relações
inter-humanas são de grande importância para a nossa arte (...): a arte
japonesa se baseia exclusivamente nas relações entre o ‘eu’ e o ‘outro’
(...) e nós, japoneses, sentimos uma aversão instintiva por qualquer
espécie de intenção manifesta.
O artista japonês encontra-se, por isso mesmo, num dilema; sendo artista,
não pode evitar a expressão clara de sua intenção; mas, por outro lado, ao
levar em conta o destinatário, sabe que este se sentirá agredido se essa
intenção for por demais evidente. Na opinião do japonês, a arte deve ser
como a natureza, expressiva e bela, porém, sem exibicionismo (Sakoshi
TANAKA, Estética, 1975).

5
A observação do mundo natural e suas analogias com a sociedade humana é uma prática comum
nas culturas orientais.
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Não foi o propósito, com esta análise, demonstrar as intenções do


compositor Hayashi ao musicar o tradicional poema waka, mas realizar uma
possível leitura hermenêutica, isto é, interpretativa, das inter-relações entre
música e texto.
Como pode ser percebido, este tipo de interpretação está aberto à crítica,
pois trabalha em um campo de análise especulativa, onde há alto índice de
interferência da sensibilidade pessoal do analista.
Certas linhas da análise musical contemporânea desconsideram este tipo
de análise hermenêutica por não embasar a investigação apenas em dados
objetivos, documentais ou demonstráveis através da partitura. Por isso, supõem
que este tipo de análise permanece apenas no campo da opinião. Por outro lado,
podemos pensar como Platão, “da soma das opiniões também se constrói o
conhecimento”.

e) Nível
Um dos métodos mais comuns de segmentação da música em níveis, no
aspecto melódico, é a análise fraseológica.
Naturalmente, não seria apropriado realizar uma análise melódica com
base nos conceitos da fraseologia clássica européia, como inciso, frase conclusiva
e suspensiva, quadratura, período paralelo, etc. Por isso, vamos usar termos mais
neutros, como: elemento melódico, grupo melódico, segmento melódico, etc.
Já vimos que há dois elementos melódicos básicos, na constituição da
melodia, o motivo de impulso e o motivo cadencial. Além desses dois elementos,
há um terceiro, no c. 8, que cumpre função de contraste, pois ocorre somente
neste ponto.
Do ponto de vista dos elementos melódicos, podemos segmentar a melodia
de Kimi ga yo nestes três níveis.
Elementos principais:
a) Motivo de Impulso (c. 1 e c. 6: rédóré; c. 3, c. 10-11: lásollá; c.
3, c. 7: sollásol)
b) Motivo Cadencial (c. 2 e c. 11: solmiré)
c) Motivo Contrastante (c. 8: misolré com figura pontuada)

Como elementos secundários, compostos pela elaboração dos elementos


principais, temos:
d) movimento ascendente (c. 3-4: misolláré)
e) movimento descendente (c. 4-5: résilásolmi)

Há, ainda, outro material, derivado da combinação de elementos


secundários:
f) movimento ondulante (c. 1-2; c.4-5; c. 7-8; c. 10-11)
14

Análise do poema Kimi ga yo


Do ponto de vista da construção, podemos realizar da divisão do poema
Kimi ga yo em três partes, conforme o conteúdo do texto6. Cada parte possui
números irregulares de versos: 3 + 2 + 1.
Na segmentação abaixo, os numerais romanos (I, II, III) indicam a divisão
mais ampla da estrutura (primeiro nível); os numerais arábicos (1, 2, 3)
representam a divisão intermediária (segundo nível); as letras (a, b) indicam
subdivisões que ocorrem apenas na melodia, pelo uso de notas longas.
I. 1. Kimi ga yo wa – Possa o reinado de nosso senhor
2. Chiyo ni – Continuar por mil anos
3. Yachiyo ni – Por mil gerações
II. 1. (a) Sazare (b) ishino – Até que os seixos
2. Iwao to narite – Se Tornem penhascos
III. 1. (a) Koke no (b) musu made – Cobertos de musgo verde-claro

O quadro abaixo busca explicitar as inter-relações existentes entre os


níveis da estrutura da poesia e os níveis da estrutura da melodia.

A interação entre poesia e música conduz a irregularidades na análise dos


níveis estruturais da melodia. Por exemplo, a divisão do segmento I nos grupos 1

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Geralmente, na análise de música vocal com texto, um bom critério de segmentação da música
em diferentes níveis seria partir da divisão já existente no texto.
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e 2 (de um compasso, cada) corresponde, na estrutura melódica, à subdivisão do


segmento II em elementos (a) e (b). Isso leva a certa incoerência, na análise
musical, pois elementos que têm as mesmas dimensões (um compasso) e
pertencem ao mesmo nível melódico estão enquadrados em camadas diferentes,
na análise acima.
Para corrigir esta discrepância, é necessário realizar a análise dos níveis
estruturais da melodia, sem levar em conta a organização dos versos. Com isso,
podemos equilibrar a análise musical com a análise das inter-relações entre
música e texto.
Outro fator que deve ser levado em consideração, é o fato de que não há
um elemento melódico completo, no c. 3. Na verdade, o movimento melódico
ascendente do c. 3 se completa na primeira nota do c. 4, o que produz uma
elisão.
No poema, isso corresponde a dois versos distintos. Entretanto, ao cantar
a melodia com a letra, percebe-se que esses dois versos elidem as sílabas “ni’ e
“Ya”, formando um único fonema (/niá/). Assim, torna-se fácil resolver o
problema da elisão melódica, já que também ocorre no poema. O mesmo serve
para outros trechos do hino.
Com esses fatores levados em consideração, pode-se chegar ao resultado
demonstrado abaixo, que é mais coerente na análise da interação entre a
melodia e a poesia por levar vários aspectos em consideração.
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Legenda para a leitura da análise abaixo:


Elementos de elaboração melódica:
 Motivo de Impulso – indicado com elipses
 Motivo Cadencial – indicado com seta descendente
 Motivo Contrastante – indicado no interior de um retângulo
Partes da construção frasal:
 Segmentos: I, II, III
 Grupos: 1, 2
 Elementos: (a), (b), (c)
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2. Lista Fisionômica
Após os diferentes tópicos analíticos abordados, torna-se uma tarefa
simples apresentar a lista fisionômica, pois já elucidamos os aspectos mais
importantes da melodia do hino japonês e suas interações com a poesia.

Legenda:
E = elemento
Im = impulso
Cd = candencial
Ct = contrastante
El = Elaboração
Mt = movimento melódico
A = ascendente
D = descendente
GC = graus conjuntos
St = salto
Numerais arábicos (2, 3, 4, etc.) = intervalos de 2ª, 3ª, 4ª, etc.
M = intervalo maior
m = intervalo menor
J = intervalo justo
B = bordadura
I = inferior
S = superior

Assim, os elementos podem ser lidos da seguinte forma:

A bordadura inicial (rédóré), está indicada como E-Im: BI(2M), ou seja,


elemento de impulso formado por bordadura inferior de segunda maior.

O motivo cadencial (c. 2 e c. 11) está indicado por E-Cd: MtD(3m-2M),


isto é, elemento cadencial formado por movimento descendente de terça menor
e segunda maior.

O motivo contrastante (c. 8) está indicado como E-Ct: MtAD(3m-4J),


elemento contrastante formado por movimento ondulante (ascendente e
descendente) com os intervalos de terça menor e quarta justa.
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O quadro de segmentação definitivo fica assim:

Outros quadros de segmentação são possíveis e, inclusive, seriam úteis


para complementar a análise.
Os mais importantes seriam obtidos pelo alinhamento vertical das
transformações de cada um dos motivos principais ao longo da melodia. Um
quadro de segmentação poderia ser realizado para explicitar as transformações
do Motivo de Impulso e outro poderia ser feito para expor as transformações do
Motivo Cadencial. Esses quadros explicariam os processos de elaboração
existentes na melodia da canção Kimi ga yo.

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