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Percepta, 4(2), 33–46

©2017 Associação Brasileira de


Cognição e Artes Musicais
ISSN 2318-891X
http://www.abcogmus.org/journals

A eficácia da encenação gestual


na prática da improvisação livre
para fins de criação musical
ROSEANE YAMPOLSCHI*

Resumo
Este ensaio tem por objetivo refletir sobre formas de proximidade entre o gesto físico
e o que se compreende ser a sua incorporação no processo de escuta; e investigar, na
práxis artística, por meio da improvisação livre, possíveis configurações gestuais
compostas (desde movimentos e som) como parte de um universo musical mais
abrangente, interdisciplinar, para fins de criação. Assim, na primeira parte deste
trabalho, serão apresentadas, a partir de âmbitos de conhecimentos distintos, algumas
perspectivas científicas recentes que enfatizam a noção do corpo como base de toda
a experiência musical; e na segunda parte, será introduzida a pesquisa que vem
sendo realizada pela autora com estudantes da Universidade Federal do Paraná,
na disciplina de improvisação livre. A finalidade desta pesquisa é propiciar formas
de vivência não convencionais de abordagem gestual—levando-se em conta as
variantes possíveis, a partir de parâmetros artísticos selecionados—que sirvam
para renovar, em parte, estruturas de movimentos padronizados que influenciam,
do ponto de vista estético, certas experiências que comumente dão sentido aos
processos de criação musical.
Palavras-chave: incorporação gestual, escuta, criação musical, improvisação livre

The effectiveness of gestural staging in the practice of free improvisation for 33


musical creation purposes
Abstract
This essay aims at reflecting on some forms of proximity between the physical
gesture and what is commonly accepted in recent studies as its incorporation in the
listening process; and to investigate, in artistic praxis, by means of free improvisation,
potential sonorous configurations of compound gestures (movements and sound) as
part of a broader, interdisciplinary universe, for purposes of musical creation. Thus,
in the first part of this essay, it will be discussed, from distinct domains of knowledge,
some recent scientific perspectives that stress the notion of the body as the fundament
of musical experience; and in the second part of this essay, it will be presented a
current research by the author at Federal University of Paraná, with students in an
undergraduate course on free improvisation. The main purpose of this research is to
motivate students to experience non-conventional forms of gestural incorporation—
having in mind possible variations based on selected artistic parameters—which can
be useful to undermine, partially, structures of movement patterns that affect,
aesthetically speaking, traditional experiences which frame musical creation
processes.
Keywords: gestural incorporation, listening, musical creation, free improvisation

* Universidade Federal do Paraná – UFPR


E-mail: ryampolschi@gmail.com

Recebido em 25 de maio de 2017; aceito em 24 de junho de 2017.


YAMPOLSCHI, ROSEANE

Esta pesquisa trata da relevância do corpo na criação musical,


compreendido a partir de sua gestualidade intrínseca.1 O que se pre-
tende, em última instância, é investigar, do ponto de vista prático, al-
gumas formas pelas quais o gesto físico e, de maneira complementar,
o sentido de sua incorporação na música no âmbito da improvisação
livre podem servir, em um contexto sociocultural, para ampliar e re-
novar padrões estéticos que se situam na base de processos de criação
musical. Desse modo, a hipótese que move esta pesquisa é a de que
certas experiências incorporadas, apoiadas pela prática da improvisa-
ção livre,2 podem colaborar para refinar a escuta e desenvolver novas
formas de organização do pensamento musical, em atos de criação.
Os meus primeiros estudos e reflexões sobre o gesto, de um ponto
de vista mais sistemático, datam de 2014, época em que realizei o es-
tágio pós-doutoral.3 Porém, desde alguns anos antes eu já havia com-
preendido, por meio de meu processo criativo, o quanto a incorpora-
ção gestual do som, de modo "encenado", consciente, poderia enrique-
cer este processo ao despertar e ampliar a minha percepção de uma
variedade de sentidos presentes na organização das ideias no tempo,
de maneira fluente.
Nessa época, em 2014, já havia muitas referências bibliográficas a
34 respeito do gesto musical—por exemplo, relativas aos campos de es-
tudo da musicologia, da cognição incorporada e da semiótica, dentre
outros. Os interesses se voltavam, principalmente, por parte de pes-
quisadores e artistas, para estudos que tratavam do campo conceitual
da noção de gesto e de suas formas de entendimento, na música; para
investigações que concebiam o gesto sonoro, em uma perspectiva in-
corporada, como ponto de partida para a concepção de atividades de
aprendizagem e escuta; e, sob um ângulo analítico, para trabalhos re-
lacionados à performance e à criação musical com perspectivas, pro-
postas de discussão e objetivos complementares—respectivamente,
como os trabalhos focados no mapeamento gestual do intérprete para
compreensão de significados, ou então relacionados ao desenvolvi-
mento de instrumentos musicais ou de interfaces dígito-sensoriais
para fins de pesquisa composicional.
É notória a variedade de contribuições relativas às pesquisas sobre
gesto musical, no campo científico de conhecimentos, desde então. No

1 Este ensaio é uma adaptação ampliada da comunicação que foi realizada no XIII SIMCAM
– Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais, 2017.
2 Concebida, parcialmente, como atividade potencial de pesquisa de movimentos em perfor-

mance (concretamente ou internamente realizados).


3 Este estágio foi realizado no King's College, Londres, por meio de uma bolsa da Capes e,

posteriormente, na Embap/Unespar, em Curitiba. Nesse meio-tempo, a convite do professor


e compositor Felipe Ribeiro, eu publiquei o ensaio O corpo “fala”?: As sensibilidades do corpo
na criação musical (Revista Vórtex, v. 2, n. 2, 66–81, 2014), que apresenta as primeiras ideias
sobre este assunto.

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entanto, a despeito das contribuições para o avanço do saber nessas


áreas, o volume de referências que tratam sobre as experiências corpo-
rais voltadas para a prática da criação musical ainda não é significa-
tivo. De maneira semelhante, ao entrar em contato, posteriormente,
com a área de estudos em improvisação livre, constatei também uma
lacuna no contexto de referências que giram em torno da incorporação
gestual no processo criativo.4
A abordagem metodológica adotada neste ensaio tem por objetivo
reunir algumas pesquisas recentes que considero relevantes para reto-
mar algumas das reflexões já apresentadas em outro lugar.5 Estas pes-
quisas contribuem para o entendimento de formas particulares “de
olhar” para uma associação íntima entre o gesto corporal e o som ges-
tual, associação esta que perpassa toda a discussão apresentada neste
ensaio. Com efeito, a narrativa que conduz aquelas reflexões parte do
princípio fenomenológico de aproximação à sua "matéria" por meio de
uma “lupa”, que focaliza sobre os pontos de vista complementares de
pesquisadores, comparando-os, com o propósito de melhor compre-
ender como que som e gesto “vão juntos” (Leman, pp. 144–147). As
diferenças nas propostas originais de cada um desses autores, por-
tanto, constituem, nem mais nem menos, uma riqueza de pontos de
35
vista; uma riqueza que reflete o caminho pessoal de cada um deles,
filtrado pelo conhecimento de suas histórias.6

1 [...] a escuta direciona a lupa para as pequenas


divergências científicas
Em seu artigo Feminist Theory, Music Theory, and the Mind/Body
Problem (1994),7 a musicóloga Suzanne Cusick chama a atenção para o
fato de que os pensamentos musicais validados tradicionalmente
como formas discursivas de conhecimento (e suas implicações sociais,
de natureza genérica) são insuficientes para uma análise da complexi-
dade de experiências que estão envolvidas no fazer musical, principal-
mente aquele relacionado às atividades de performance.8 Cusick
chama a atenção para o fato de que nós herdamos uma forma dualista
de representação do mundo, e por conseguinte, de nossas experiências

4 Em 2015, iniciei um trabalho de orientação de mestrado que abordava a improvisação livre.


Este trabalho me instigou a buscar nesta prática as possibilidades de experiência incorpo-
rada do som na criação sonora.
5 Considero relevante retomar algumas ideias já trabalhadas por mim em O corpo “fala”?

(2014), com o intuito de aprofundar algumas das concepções apresentadas.


6 No entanto, não é do escopo deste trabalho o aprofundamento dos contextos científicos

e/ou filosóficos que fundamentam as reflexões destes pesquisadores.


7 Publicado em Perspectives of New Music, v. 32, n.1, pp. 8–27, Winter 1994.

8 Destaco a discussão que faz Paul Sanden, em seu artigo Hearing Glenn Gould's Body: Corpo-

real Liveness in Recorded Music, sobre as ideias de Cusick para desenvolver os seus argumen-
tos. (Current Musicology, v. 88, 7–34, Fall 2009).

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musicais—uma alusão direta às noções cartesianas de "pensamento" e


"extensão" (1994, p. 16); e também uma disposição "masculina", social-
mente prevalente, para experienciar e valorar as formas de realização
musical, desde Beethoven; disposição esta filosoficamente apoiada
nos conceitos de "divindade" e "gênio".
O ponto central de seu artigo é que—em uma perspectiva metafó-
rica—nós compreendemos a música como realização de uma mente que
cria e uma outra que “lê” esta criação.9 A sua ideia é a de que existe,
nesse contexto, um âmbito mental de realizações—um “jogo” de leitu-
ras/interpretações em boa parte compartilhado intersubjetivamente en-
tre os seus participantes (p. 16).10 Ou, em uma perspectiva mais ampla,
de que aquele âmbito de realizações abriga um arranjo tácito de discur-
sos institucionais que informam, em um contexto cultural amplo, as
múltiplas vias de efetivação de hábitos e valores prevalentes nas diver-
sas esferas e camadas de trocas sociais.
Isto posto, com base em seus argumentos, Cusick conclui que, de
um ponto de vista histórico-social, nós extraímos “a carne” de nosso
ofício. Esta música “sem corpo”, conforme compreende a pesquisa-
dora, deixou de ser música há muito tempo: “metaforicamente fa-
lando, nós negamos à música aquilo que é seu, que lhe permite expres-
36 sar um enorme poder simbólico e sensual.”11 O que significa, conso-
ante essas ideias, que tal negação de certas formas de expressão e re-
presentação musicais “se coaduna” com aquele “jogo” de leituras/in-
terpretações institucionalmente válido, que rege, de maneira arbitrá-
ria, as formas de conhecimento científico e de natureza artística vigen-
tes (p. 16).
A partir de um outro campo de saber, o psicólogo e músico-educa-
dor Michel Imberty propõe uma visão do desenvolvimento cognitivo,
como um todo, estreitamente relacionado à música. Em Formes de la
répéttion et formes des affects du temps dans l’expression musicale (1997), Im-
berty afirma que a dinâmica essencial do desenvolvimento afetivo, mo-
tor e mental de crianças, desde cedo, se constitui como estruturas sim-

9 Em uma nota de rodapé, Cusick cita o comentário de E.T.A. Hoffmann, que se acha em seu
ensaio Sämliche Werke (1813), sobre a unidade intrínseca que consolida a 5ª Sinfonia de
Beethoven: that unity [...] speaks at other times only from mind to mind [...] (1994, p. 24–25).
10 Em suas palavras: Music, an art which self-evidently does not exist until bodies make it and/ or

receive it, is thought about as if it were a mind-mind game. [...] We locate musical meaning in the au-
dible communication of one creating mind to a cocreator, one whose highly attentive listening is in
effect a shared tenancy of the composer's subject position [grifo da autora]. Todas as traduções de
citações extraídas de livros estrangeiros neste trabalho são minhas.
11 No original: Metaphorically, we have denied the very thing that makes music music, the thing

which gives it such enormous symbolic and sensual power.

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ples, temporais, que dão unidade e sentido às suas relações interpesso-


ais ou interativas com os seus pais ou com um “outro”.12 De acordo com
o educador, as repetições e variações dessas estruturas dinâmicas ao
longo do tempo, entre o bebê e a sua mãe (e, posteriormente, em um
convívio social, entre uma pessoa e outra) possibilitam à criança gerar,
no tempo, representações intersensoriais ao associar os "afetos vitais" à
outras formas de vivência corporal e/ou vocal. Para Imberty, esses afe-
tos têm um papel fundamental na formação da personalidade da cri-
ança: eles se distinguem como modos de ser, "de estar com". Isso signi-
fica que eles antecedem às emoções ou sentimentos particulares que se
formam posteriormente, de acordo com o convívio social de cada um.
Então, por suas características dinâmicas e cinéticas—como por exem-
plo, crescendo, decrescendo, expansão, explosão, diminuindo, etc.—,
esses afetos servem para “colorir” as emoções, “de maneira bastante
sensível para o sujeito”,13 como nos diversos modos de sorrir, de mani-
festar satisfação, segurar o bebê nos braços, etc.
Desse modo, Imberty considera que aquelas estruturas simples são
estruturas repletas de afeto, estruturas que podem ser rememoradas
pelas crianças a partir de uma intencionalidade “nascente”—ao serem
repetidas e variadas em consonância com aquelas relações interpesso-
37
ais ou interativas que se estabelecem por meio de outrem, de modo a
gerar satisfação e significância. Sob essa perspectiva, Imberty propõe
o termo “envelope proto-narrativo”, uma noção que engloba a ideia
de uma experiência interiorizada, global de sentidos; “um contorno de
afetividade”. Em suas palavras: “uma forma proto-semiótica de expe-
riência interior do tempo, uma matriz de ‘narrativas’ de tensão e
afrouxamento ligadas a uma ‘intriga’ (ou a uma ‘proto-intriga’)” (1997,
pp. 52–53).14 Essa experiência permite ao bebê estabelecer vínculos
sensoriais e afetivos consigo mesmo, enquanto se movimenta e ex-
pressa as suas necessidades (1997, p. 52).

12 Esses estudos do professor Imberty estão baseados, principalemnte nas ideias do psicó-
logo e psicoanalista Daniel Stern.
13 No original: Ces affects de vitalité sont donc des caractères liés aux émotions, aux façons d'être,

aux diverses façons de ressentir intérieurement les émotions. Ce sera par exemple tout ce qui sépare
une joie “explosive” d'une joie “fugace”, ou bien ce seront encore les mille façons de sourire, de se le-
vér de sa chaise, de prendre le bébé dans ses bras, ressentir qui ne sont pas réductibles aux affects caté-
goriels classique, mais qui viennent les colorer de manière toujours très sensibles pour le sujet (1997,
p.45).
14 No original: Ce qui donne forme aux trames temporelles des ressentis, en somme il est ce qui fait

que quelque chose “se trame”, ”prend sens” dans le temps. L’enveloppe proto-narrative est donc un
contour d’affectivité réparti dans le temps avec la cohérence d’une quasi-intrigue: elle s’organise
autour de la mise enacte d’une intention-motivation (orientation vers un but […]. Elle est donc une
forme proto-sémiotique de l’expérience intérieure du temps, une matrice du “récit” des tensions et des
détentes liées à l’”intrigue” (ou la “proto-intrigue” […].

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Em um outro texto mais recente, Mouvement, geste et figure: la musi-


que ancrée dans le corps (2010),15 Imberty se refere àquelas estruturas di-
nâmicas, orientadas temporalmente, como o ponto-chave da competên-
cia musical em crianças. Essas estruturas, explica o autor, são "anterio-
res às noções de altura e duração" (p. 28). São compostas de gestos ele-
mentares, formados a partir de unidades simples: uma unidade de
apoio (que pode incluir um intervalo de altura) e uma unidade instável,
contínua, que se forma energeticamente, no momento de apoio, e que
resolve em outro apoio. Um movimento de tensão e repouso, em outras
palavras, orientado temporalmente—e que contém uma intencionali-
dade “nascente”—aquela, por exemplo, que move o bebê quando chora
para obter o seu alimento.16
Como para Imberty toda experiência subjetiva é uma experiência
temporal, então ele infere que o gesto—levando-se em conta aquela
estrutura dinâmica (fundamental) e a sua intencionalidade presente—
parece ser uma espécie de “recurso essencial” de todo o pensamento
musical. Esta ligação entre o gesto e a música se estabelece desde
muito cedo, conforme o educador, por meio daquelas experiências
dinâmicas de repetição e variação, em um contexto pré-verbal. Assim,
o gesto musical é parte essencial do processo de desenvolvimento cog-
38 nitivo global das crianças: as experiências musicais, conjuntamente
com os “afetos vitais”, são responsáveis pelo “alojar” das relações ín-
timas entre as atividades motoras e as experiências perceptivas das
crianças.
Outro pesquisador que aponta para uma conexão íntima entre a
música e o sentido gestual, também a partir de um contexto de estudos
no campo da Cognição Musical é Arnie Cox (2006). Para Cox, sentidos
e significados musicais são metaforicamente representados por meio
de imagens, principalmente as imagens de padrões de ações gestuais.
Porém, segundo o pesquisador, é necessário que tenhamos experiên-
cia prévia desses padrões. Assim, compreende-se que as representa-
ções musicais são construídas a partir de unidades musicais—as for-
mas gestuais. Contudo, essas representações só são possíveis à medida
que incorporamos, através de experiências prévias, estruturas de mo-
vimentos que, posteriormente, sirvam como base para construção da-
quelas imagens musicais.
Cox (2006) assinala três formas de experiências de incorporação
gestual, todas relacionadas a processos miméticos. Essas experiências,
na visão do autor, são fundamentais para o aprendizado humano du-

15 Publicado em Expression et geste musical (Actes du Coloque des 8 et 9 abril 2010 à L’Institut Na-
tional d’Histoire de L’Art de Paris, L’Hamattan, 2010).
16 Este parágrafo foi extraído de O corpo “fala”? (2014, p. 5).

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rante toda a sua vida. Então, ao ouvir o som de um violino, por exem-
plo, é possível para este ouvinte apreender gestualmente esse som por
meio de: (1) uma imitação interna (covert) dos movimentos que estão
envolvidos na execução. Esta imitação pode ser direta, do ponto de
vista visual, ou imaginada—por intermédio de outro meio (uma expe-
riência intramodal);17 (2) uma subvocalização dos sons produzidos
(imagem vocal silenciosa ou a “meia-voz”)—que exerce, segundo Cox,
uma influência substancial na maneira como compreendemos o som
instrumental (p. 49);18 e (3) uma imitação “visceral”, uma forma de ex-
periência que ocorre de modo mais íntimo, por empatia, e em um con-
texto não simbólico, pré-verbal (p. 50). Aparentemente, esta forma de
imitação é amodal (p. 51); ou seja, ela é uma experiência em que os
sentidos estão interligados, juntamente com os sentimentos e a imagi-
nação; e o modo como ela ocorre, e onde, não são bem definidos (p.
50).19 Cox esclarece que a imitação “visceral” envolve uma percepção
da “dinâmica de fragmentos sonoros” que “são evidentes” no próprio
som. Isso significa que, aparentemente, o conceito de imitação visceral
poderá, na visão do autor, estar mais associado à formas de escuta mais
intimamente relacionadas às características energéticas e tipológicas do
som percebido (p. 51).20
39
Por sua vez, o musicólogo Deniz Peters, que desenvolve as suas
pesquisas a partir de um contexto fenomenológico, tem por objetivo
refletir sobre a relevância dos sentidos hápticos na escuta musical e
como a imaginação é responsável, em parte, pela realização dessa ex-
periência. Segundo Peters a escuta está intimamente relacionada a
dois fatores interligados: ela tem a ver com a ideia de um corpo "que
sente", um corpo que "tem uma história"; e com a percepção háptica e
a capacidade de propriocepção. Graças a essas qualidades, o ouvinte
será capaz de “incorporar” sentidos de distância, direcionamento, po-
sicionamento, textura, dentre outros, às qualidades do som. Em rela-
ção à percepção proprioceptiva, o autor esclarece que não há a percep-
ção de sentidos hápticos corporais na escuta do som, pelo menos de
forma direta. Todavia, conforme o musicólogo (2012, p. 20), “ao con-

17 Cox usa o termo cross-modal nesse contexto.


18 No original: Since most of us have a voice and have used it to make and imitate sounds for most of
our lives, it should not be surprising that we would draw on vocal imagery to understand instrumen-
tal music sounds generally.
19 Nas palavras de Cox: But I believe that most of us would also feel something that was not located

in either the limbs or the voice—something in the gut that somehow matched the energy pattern of the
music.
20 Em suas palavras: The question of where in the body an amodal representation might be located is

important, and it may be that this is only a phantasm resulting from the fact that embodied represen-
tations can be and are manifest in any of several modalities. […] At present, however, although the
mimetic hypothesis shows that comprehension is cross-modal, it can only suggest that there might be
an amodal, visceral representation.

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trário da sensação de toque, ‘em que há um contato com a pele,’ a per-


cepção proprioceptiva ocorre por meio de uma ‘consciência corporal,
que se sustenta sem haver um estímulo direto do tato’” (Yampolschi,
2014, p. 77).
Peters esclarece um pouco mais a noção de proprioceptividade da
seguinte maneira: tudo que pode ser ouvido, tem “dois componentes
perceptivos: um componente relacionado à escuta e o outro ligado ao
sentido.” E ele prossegue: “O significado do ‘sentido’ ou ‘sensação’ [...]
não deve ser confundido com aquele da ‘emoção’, nem necessaria-
mente inclui um julgamento de prazer ou desprazer. Mais propria-
mente, ele se refere à proprioceptividade—isto é, ao sentido de exten-
são corporal do ouvinte.”21—ou seja, um modo de “sentir propriocep-
tivamente”. E então conclui: “A percepção proprioceptiva, não exata-
mente da mesma maneira como a sensação causada pelo contato com
a pele, é uma consciência do corpo, pois ela se sustenta sem uma esti-
mulação háptica direta”22 (Peters, 2012, p. 20).
Nesse caso, cabe indagar, então de que modo Peters compreende
aquela afinidade tão íntima do corpo em relação à escuta do som ges-
tual. E a sua resposta é a seguinte: ao contrário do ponto de partida
mimético proposto por Cox, Jerrold Levinson e outros que refletem
40 sobre a experiência musical, afirma Peters, nós não imitamos, de al-
gum modo, os gestos dos performers “tocando”.23 O que ocorre é que
“uma parte essencial de nossa experiência de escuta se vale daquilo
que o nosso próprio corpo sugere que poderia ter ocorrido na criação
deste som” (p. 22). Mas isso não é tudo. Conforme o musicólogo, a
nossa imaginação, de maneira conjunta, completa esta escuta. Há uma
intencionalidade do sujeito-ouvinte presente que "completa ativa-
mente o que foi ouvido com sensações de toque (felt gestures) (p. 23).

21 O autor se refere a uma sensação de prolongamento do corpo em direção a um objeto exte-


rior.
22 No original: All that can be heard as touch-related in the above sens has two perceptive compo-

nents: a heard component, and a felt comonent. The meaning of ‘felt’ or ‘feeling’ in the present con-
text is not to be confused with that of ‘emotion’, nor does it necessarily include a judgement of like or
dislike. Rather, it concerns the listener’s proprioception—that is, the feeling of one’s bodily extension.
Proprioception, unlike sensation as caused by skin contact, is an awareness of the body, as it is sustai-
ned without direct haptic stimulation.
23 Peters faz uma crítica às teorias da incorporação gestual focadas nas representações mimé-

ticas. No entanto, ele reconhece que Cox—desde a sua hipótese mimética visceral na ex-
periência musical—e outros pesquisadores neste campo de conhecimentos, como Andy
Hamilton (Aesthetics of Music, 2007) e David Burrows (Time and the Warm Body, 2009), dentre
outros, incluem uma dimensão do sentido corporal na experiência da escuta (felt dimension).
(2012, p. 21).

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Porém, ele adverte: essa sugestão do “corpo que sente” é uma “ani-
mação do que é ouvido”, não “uma transferência do que é visto em
um intérprete (imaginado ou real)”24 (p. 22).
Peters compreende que há duas formas de a imaginação “comple-
tar” a escuta do som. A presença da voz é uma delas. Por exemplo, ao
percutir um acorde no piano, com a sustentação do pedal, nós conti-
nuamos a ouvir o som de maneira contínua, embora a pressão do mar-
telo contra as cordas não esteja mais lá. Dependendo do contexto, por
meio de outra experiência, será possível também ouvir e sentir certos
gestos, de forma semelhante àquela experiência de escuta da voz25. E
ele esclarece o fato da seguinte maneira: “Quando ouvimos o som, a
nossa percepção ativamente completa o que foi ouvido com sentidos
gestuais de toque os quais, até certo ponto, podemos explicitá-los a
qualquer hora ao usarmos gestos ou por meio da dança.” Essa experi-
ência, ele prossegue, é possível à medida que aqueles sentidos gestuais
“abarcam articulação, ênfase e outras nuances de qualidades percebi-
das quando tocamos as coisas, suas superfícies, ou uma pessoa”26 (p.
23).
Para Peters, então, o processo perceptivo de escuta apresenta
uma natureza mais intuitiva do que para Cox—embora a hipótese
41
mimética também aponte para uma perspectiva interna dos gestos,
como sentidos. Ambos os pesquisadores e Imberty compreendem
que o sentido musical—vocal e gestual—depende de experiências
que são incorporadas previamente. Imberty chama a atenção para a
forma temporal do desenvolvimento cognitivo em crianças. Nesse
contexto, ele concebe uma relação íntima do corpo da criança com as
manifestações de sentido e lembranças vividas por meio das formas
musicais. Formas posteriores de representação e significação depen-
dem, pois, daquelas estruturas dinâmicas de experiências orientadas
no tempo. Peters, por sua vez, investiga como a percepção do toque
(direta ou indiretamente) está associada à percepção gestual sonora
do ouvinte. A matriz fenomenológica de seu pensamento abriga a
ideia de uma extensão do corpo, que se projeta em direção a um “ou-
tro”. A ideia de toque, (felt gesture), então, se consubstancia a partir
de uma experiência “vital” do corpo, que “chama” a imaginação para
trabalhar.

24 No original: It follows that an essential part of our listening experience draws on what our own
body suggests might have gone into the making of this sound. This suggestion is an animation of the
heard, and not, as is mostly held, the transfer of what is seen in a performer (imagined or real).
25 Ambas as experiências derivam de “conhecimentos incorporados” distintos.

26 No original: Our perception actively completes the heard with felt gestures of touching, which to

some extent we can make explicit at any time by using gestures, or by way of dancing. These gestures
embrace articulation, emphasis, and all other nuanced qualities felt when touching things, their sur-
faces, or a person.

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Por sua vez, partindo de uma concepção materialista da experi-


ência corporal na criação musical, o compositor Michael E. Boyle
(2017) sustenta que todo o processo criativo resulta, em boa parte, de
vivências incorporadas que se concretizam por meio da empatia.27
Para Boyle essas experiências orientam frequentemente as decisões
de artistas durante o seu fazer poético. Partituras, sons gravados, ca-
deiras, mesa, lápis, todas essas coisas geram lembranças familiares
quando acompanhadas de afetos, sensações corporais, imagens, odo-
res. Mas há também outras formas de experiências de empatia. Em
seu contato com outros compositores, intérpretes, maestros/ maestri-
nas e, inclusive, com a plateia, idealizada em seu silêncio, por exem-
plo, aquele(a) artista também constrói experiências de incorporação
enquanto cria. Há, no discurso de Boyle, a noção de que, aparente-
mente, o conceito de empatia está associado à ideia de “personifica-
ção”.28 Observa Boyle: o(a) compositor(a) idealiza o “outro” ao imagi-
nar o seu gesto, de maneira empática, como se estivesse realizando o
seu próprio gesto. Assim, o processo de “personificação” do compo-
sitor, da compositora, de maneira intencional, serve para gerar sen-
tido ao seu processo criativo (2017).
Boyle compreende que a experiência do corpo no ato da criação mu-
42 sical é determinante: “o corpo não está apenas implícito na criação de
um texto, mas também incorporado na escrita resultante”, diz o autor.
Assim, a partitura deixa de ser apenas uma forma de instrução (ou pres-
crição) para o intérprete. Ela é um “significante sonoro”—uma “comu-
nicadora para corpos e de corpos” (2017). E posteriormente, ainda nesse
contexto, Boyle compreende que há duas formas de impressão corporal
que geram sentido para as suas reflexões: cinestesia e coenestesia.29 A
primeira se refere à “impressão de movimento que sentimos em nossos
corpos”. A segunda tem a ver com “a impressão [física] que resulta de
sensações internas não específicas que habitam nossos corpos” (2007).
Portanto, as ideias do autor a respeito das experiências empáticas
se fundamentam na concepção de um corpo vivo, um corpo ativo que
a todo momento interage com o seu entorno de múltiplas maneiras.
As experiências empáticas, intencionalmente direcionadas, de modo
consciente, norteiam o(a) artista enquanto “personifica”—concreta-
mente ou de maneira interna—o "outro" em seu processo criativo.
Boyle não exclui as formas de representação do [que é] "sentido", das
sensações. Assim como Peters, porém, de maneira mais radical, ele

27 O conceito central de seu artigo Composition, Materiality and Embodied Cognition gira em
em torno da noção de empathetic embodiment.
28 Minha tradução do conceito de enactment, nesse contexto.

29 Conforme o autor, esta explicação é do musicólogo Jean Molino, porém apresentada por

Jean Jacques Nattiez em Music and Discourse: Towards a Semiology of Music (trans. C. Abbate,
Princeton University Press, 1990).

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tende a valorar as vivências mais diretas, mais intuitivas em sua vi-


são do corpo no contexto da escuta e da criação musical.30

2 [...] a escuta direciona a lupa para o corpo que "encena",


na improvisação livre
Mais recentemente, quando comecei a trabalhar com atividades de
improvisação livre,31 o período em que realizei as pesquisas de tarefas
foi precioso para que eu pudesse refletir a respeito de como integrar o
gesto em performance, com a finalidade de desenvolver a percepção
da escuta musical e ampliar os recursos expressivos e técnicos dos alu-
nos em questão. Durante esta pesquisa de tarefas e materiais, havia
um problema fundamental que orientava as minhas escolhas para a
disciplina. E este problema pode ser resumido da seguinte maneira:
por que era importante investigar o corpo, do ponto de vista prático,
na criação musical? Para que investigar o gesto tendo em vista o seu
papel norteador no processo criativo?
Como já apontado anteriormente, durante o meu processo criativo
a experiência de “encenação” corporal do som (por meio de movimen-
tos gestuais concretos ou de forma interiorizada) foi muito importante
43
para que eu visualizasse formas alternativas para avivar as ideias mu-
sicais e expandir a sua organização global no tempo, gerando maior
fluência e direcionamento sonoros nos trabalhos. Desse modo, a mi-
nha percepção desse processo, como um todo, teve um papel signifi-
cativo para o meu posterior entendimento de que o ganho de novas
experiências gestuais incorporadas, na música, tende a deflagrar mu-
danças nos arranjos de movimentos já incorporados, padronizados; e
daí, renovar disposições e padrões de ações que influenciam o fazer
artístico.32

30 Ao final do seu artigo, Boyle aponta os eixos reflexivos de seu trabalho e gera um di-
recionamento em relação às possibilidade de desenvolvimento de suas ideias no campo cri-
ativo, envolvendo os conceitos de cognição incorporada e empathetic embodiment. Uma de
suas observações, nesse contexto, diz respeito à reavaliação de obras musicais contem-
porâneas como objeto de estudo e à compreensão da imagem do compositor, em uma per-
spectiva ética que leva em consideração a idealização dos corpos de “outros”.
31 Na disciplina Improvisação do Curso de Graduação em Música/Composição, da Universi-

dade Federal do Paraná. Este trabalho foi inicialmente inspirado por uma dissertação de
mestrado de um ex-aluno, Fábio Rodrigo Serpe (A livre improvisação como ferramenta composi-
cional: Cateretando, para viola caipira, UFPR, 2016).
32 Esta pesquisa me levou a refletir também sobre um outro problema, relacionado à ausên-

cia de familiaridade ou falta de entusiasmo de alguns intérpretes em tocar música contem-


porânea. Em geral, quando observamos essas divergências de sentido no palco, as expe-
riências que resultam desses concertos não nos agradam. Penso que esses problemas
ocorrem, em parte, porque as leituras dessas peças, as leituras de suas unidades consti-
tutivas, por parte daqueles intérpretes, por mais detalhadas ou criteriosas que possam
vir a ser, não geram, para eles mesmos, formas incorporadas de realização musical. De

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Em relação à disciplina de improvisação livre, o seu principal ob-


jetivo foi o de combinar a performance e o processo criativo a partir de
exercícios que incentivassem a incorporação do som—compreen-
dido como gesto, com vistas à ampliação do repertório musical; e,
sendo assim, propiciar àqueles alunos formas de encenação de um re-
pertório de sons não tradicionais—com o objetivo de alcançar futuras
mudanças.
Isto posto, foram elaboradas três formas distintas e complementares
de jogos de improvisação livre, fundamentados no gesto, físico e so-
noro. Com base em um recorte próprio de experiências gestuais incor-
poradas, para a realização dessa disciplina foi essencial a aproximação
às poéticas sonoras e visuais do compositor grego Georges Aphergis,33
mais particularmente àquelas que aparecem em Les corps à corps (1978),
para zarb—um pequeno tambor persa—e Graffitis (1980),34 para blocos
de madeira, gongo, tumbas, tom-tons e prato. Em ambas as peças, a
presença da voz, por meio de fonemas, palavras soltas, sons intensa-
mente gesticulados e a mobilidade altamente complexa entre os eventos
sonoros no espaço—de maneira instável e carregados de emoção—ge-
ram, perceptivelmente, uma narrativa complexa que se forma em um
contexto dramático “como uma trama entre opositores”.35 Por certo, a
44 diversidade de formas de inflexão gestual, muitas vezes contundentes,
a complexidade destacada na organização das relações entre som e
gesto físico, ambas qualidades presentes em Les corps à corps e Graffitis,
foram determinantes para a concepção dos exercícios de improvisação
livre elaborados para aquela disciplina.
De modo geral, foram três as abordagens distintas de performance
com foco no gesto. A primeira se concretizou por meio da expansão
dos gestos comprometidos na ação do tocar e das partes corporais que
apoiavam esses movimentos para gerar expressão. A segunda consis-
tiu na elaboração de formas alternadas entre movimentos corporais

maneira semelhante, o problema detetado nesta esfera de realizações não é muito dife-
rente daquele observado em sala de aula, em cursos de música, em que os alunos fre-
quentemente elaboram os seus exercícios de forma abstraída.
33 O compositor nasceu em Atenas, 1945. Desde os 17 anos, vive na França. Desde 1997, tra-

balha com a sua esposa, a atriz Édith Scob e um grupo de atores e performers criado por ele,
no Atelier de Théâtre et Musique de Bagnolet. O compositor recebeu prêmios importantes por
sua obra, destacando-se: Mauricio Kagel, 2011; León de Oro de la Bienal de Venecia, 2015; e Pre-
mio Fundación BBVA—Fronteras del Conocimiento, 2016. Acesso em: 4 maio de 2017. Disponí-
vel em: <https://www.bbva.com/es/el-teatro-se-hace-musica/>.
34 Inspiração esta também ligada às interpretações de Alexander Wnuk (Graffitis) e Françoise

Rivalland (Les corps à corps. Acesso em: 7 mar. 2017. Respectivamente:


https://wlok87ww.youtube.com/watch?v=UUj0knMsA78 e
https://www.youtube.com/watch?v=M1ONFZ042fc.
35Aleksander Wnuk/Graffitis. Acesso em: 7 de maio 2017. Disponível em: https://ale-

ksanderwnuk.com/2015/01/22/graffitis/.

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intencionais, mais amplos e independentes que os anteriores—com a


presença ou não da voz—e o gesto sonoro gerado por meio de instru-
mentos musicais, de maneira fluida, no tempo e espaço. Desta maneira
o intérprete articula o movimento gestual “cru” e o gesto sonoro em
um único arco energético, global, criando possíveis variações de inten-
sidade, dinâmica, duração, contorno e timbre. Esse arco projetado “no
espaço” se forma, perceptivelmente, como um gesto composto sim-
ples: som e gesto físico formam um todo dinamicamente articulado.
A terceira abordagem foi concebida como uma forma de variação
da segunda, em que os movimentos corporais e os arranjos sonoros,
de algum modo, se distinguem um do outro de forma mais radical, de
maneira conflitante. No entanto, a articulação entre esses dois elemen-
tos ocorre de forma semelhante àquela apresentada anteriormente, de
modo que o sentido entre o movimento gestual “cru” e o gesto sonoro
geram, perceptivelmente, um arco para o intérprete. Este, ao direcio-
nar o seu movimento ou realizar o gesto sonoro por meio de um im-
pulso inicial—com uma carga energética duradoura—, configura um
gesto composto, um evento global dinamicamente articulado no
tempo e no espaço.
Vale notar que é possível ainda a exploração de formas diversas
45
de articulação entre o gesto físico e o som—no interior dos gestos com-
postos. E mais, ao manipularem os diversos arranjos de estruturas cri-
adas por gestos compostos, acompanhados ou não de gestos simples
complementares, e integrados em variadas tramas de textura e dura-
ção, aqueles músicos poderão gerar um conjunto enorme de formas
musicais, percebidas ao longo da experiência do tempo da música.
Por fim, as várias possibilidades de ligação formal entre os elemen-
tos constitutivos do gesto composto, de som e movimento, no tempo
e no espaço, as formas distintas e contrárias de realização das dinâmi-
cas de intensidade entre esses elementos, as possíveis variações de
timbres, articulações e as nuances na criação de movimentos na orga-
nização do pensamento musical, ao longo do tempo, são algumas das
formas de conceber o corpo em movimento como uma forma vital
(energética) para se ampliar e enriquecer a experiência musical cria-
tiva, no contexto da improvisação livre, de maneira consciente. Penso
que a concepção de escuta, da forma como a entende Peters, comple-
menta as experiências de som e movimento propostas neste ensaio, no
campo da improvisação livre. A experiência incorporada requer uma
escuta ativa, baseada na imaginação, lembranças e afetos – tudo isso,
inclusive, para gerar sentido. A encenação gestual no âmbito da cria-
ção, portanto, potencializa a expansão da percepção do som e da vida.

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Disponível em: https://www.scribd.com/docu-
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