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Resumo
Este ensaio tem por objetivo refletir sobre formas de proximidade entre o gesto físico
e o que se compreende ser a sua incorporação no processo de escuta; e investigar, na
práxis artística, por meio da improvisação livre, possíveis configurações gestuais
compostas (desde movimentos e som) como parte de um universo musical mais
abrangente, interdisciplinar, para fins de criação. Assim, na primeira parte deste
trabalho, serão apresentadas, a partir de âmbitos de conhecimentos distintos, algumas
perspectivas científicas recentes que enfatizam a noção do corpo como base de toda
a experiência musical; e na segunda parte, será introduzida a pesquisa que vem
sendo realizada pela autora com estudantes da Universidade Federal do Paraná,
na disciplina de improvisação livre. A finalidade desta pesquisa é propiciar formas
de vivência não convencionais de abordagem gestual—levando-se em conta as
variantes possíveis, a partir de parâmetros artísticos selecionados—que sirvam
para renovar, em parte, estruturas de movimentos padronizados que influenciam,
do ponto de vista estético, certas experiências que comumente dão sentido aos
processos de criação musical.
Palavras-chave: incorporação gestual, escuta, criação musical, improvisação livre
1 Este ensaio é uma adaptação ampliada da comunicação que foi realizada no XIII SIMCAM
– Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais, 2017.
2 Concebida, parcialmente, como atividade potencial de pesquisa de movimentos em perfor-
8 Destaco a discussão que faz Paul Sanden, em seu artigo Hearing Glenn Gould's Body: Corpo-
real Liveness in Recorded Music, sobre as ideias de Cusick para desenvolver os seus argumen-
tos. (Current Musicology, v. 88, 7–34, Fall 2009).
9 Em uma nota de rodapé, Cusick cita o comentário de E.T.A. Hoffmann, que se acha em seu
ensaio Sämliche Werke (1813), sobre a unidade intrínseca que consolida a 5ª Sinfonia de
Beethoven: that unity [...] speaks at other times only from mind to mind [...] (1994, p. 24–25).
10 Em suas palavras: Music, an art which self-evidently does not exist until bodies make it and/ or
receive it, is thought about as if it were a mind-mind game. [...] We locate musical meaning in the au-
dible communication of one creating mind to a cocreator, one whose highly attentive listening is in
effect a shared tenancy of the composer's subject position [grifo da autora]. Todas as traduções de
citações extraídas de livros estrangeiros neste trabalho são minhas.
11 No original: Metaphorically, we have denied the very thing that makes music music, the thing
12 Esses estudos do professor Imberty estão baseados, principalemnte nas ideias do psicó-
logo e psicoanalista Daniel Stern.
13 No original: Ces affects de vitalité sont donc des caractères liés aux émotions, aux façons d'être,
aux diverses façons de ressentir intérieurement les émotions. Ce sera par exemple tout ce qui sépare
une joie “explosive” d'une joie “fugace”, ou bien ce seront encore les mille façons de sourire, de se le-
vér de sa chaise, de prendre le bébé dans ses bras, ressentir qui ne sont pas réductibles aux affects caté-
goriels classique, mais qui viennent les colorer de manière toujours très sensibles pour le sujet (1997,
p.45).
14 No original: Ce qui donne forme aux trames temporelles des ressentis, en somme il est ce qui fait
que quelque chose “se trame”, ”prend sens” dans le temps. L’enveloppe proto-narrative est donc un
contour d’affectivité réparti dans le temps avec la cohérence d’une quasi-intrigue: elle s’organise
autour de la mise enacte d’une intention-motivation (orientation vers un but […]. Elle est donc une
forme proto-sémiotique de l’expérience intérieure du temps, une matrice du “récit” des tensions et des
détentes liées à l’”intrigue” (ou la “proto-intrigue” […].
15 Publicado em Expression et geste musical (Actes du Coloque des 8 et 9 abril 2010 à L’Institut Na-
tional d’Histoire de L’Art de Paris, L’Hamattan, 2010).
16 Este parágrafo foi extraído de O corpo “fala”? (2014, p. 5).
rante toda a sua vida. Então, ao ouvir o som de um violino, por exem-
plo, é possível para este ouvinte apreender gestualmente esse som por
meio de: (1) uma imitação interna (covert) dos movimentos que estão
envolvidos na execução. Esta imitação pode ser direta, do ponto de
vista visual, ou imaginada—por intermédio de outro meio (uma expe-
riência intramodal);17 (2) uma subvocalização dos sons produzidos
(imagem vocal silenciosa ou a “meia-voz”)—que exerce, segundo Cox,
uma influência substancial na maneira como compreendemos o som
instrumental (p. 49);18 e (3) uma imitação “visceral”, uma forma de ex-
periência que ocorre de modo mais íntimo, por empatia, e em um con-
texto não simbólico, pré-verbal (p. 50). Aparentemente, esta forma de
imitação é amodal (p. 51); ou seja, ela é uma experiência em que os
sentidos estão interligados, juntamente com os sentimentos e a imagi-
nação; e o modo como ela ocorre, e onde, não são bem definidos (p.
50).19 Cox esclarece que a imitação “visceral” envolve uma percepção
da “dinâmica de fragmentos sonoros” que “são evidentes” no próprio
som. Isso significa que, aparentemente, o conceito de imitação visceral
poderá, na visão do autor, estar mais associado à formas de escuta mais
intimamente relacionadas às características energéticas e tipológicas do
som percebido (p. 51).20
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Por sua vez, o musicólogo Deniz Peters, que desenvolve as suas
pesquisas a partir de um contexto fenomenológico, tem por objetivo
refletir sobre a relevância dos sentidos hápticos na escuta musical e
como a imaginação é responsável, em parte, pela realização dessa ex-
periência. Segundo Peters a escuta está intimamente relacionada a
dois fatores interligados: ela tem a ver com a ideia de um corpo "que
sente", um corpo que "tem uma história"; e com a percepção háptica e
a capacidade de propriocepção. Graças a essas qualidades, o ouvinte
será capaz de “incorporar” sentidos de distância, direcionamento, po-
sicionamento, textura, dentre outros, às qualidades do som. Em rela-
ção à percepção proprioceptiva, o autor esclarece que não há a percep-
ção de sentidos hápticos corporais na escuta do som, pelo menos de
forma direta. Todavia, conforme o musicólogo (2012, p. 20), “ao con-
in either the limbs or the voice—something in the gut that somehow matched the energy pattern of the
music.
20 Em suas palavras: The question of where in the body an amodal representation might be located is
important, and it may be that this is only a phantasm resulting from the fact that embodied represen-
tations can be and are manifest in any of several modalities. […] At present, however, although the
mimetic hypothesis shows that comprehension is cross-modal, it can only suggest that there might be
an amodal, visceral representation.
nents: a heard component, and a felt comonent. The meaning of ‘felt’ or ‘feeling’ in the present con-
text is not to be confused with that of ‘emotion’, nor does it necessarily include a judgement of like or
dislike. Rather, it concerns the listener’s proprioception—that is, the feeling of one’s bodily extension.
Proprioception, unlike sensation as caused by skin contact, is an awareness of the body, as it is sustai-
ned without direct haptic stimulation.
23 Peters faz uma crítica às teorias da incorporação gestual focadas nas representações mimé-
ticas. No entanto, ele reconhece que Cox—desde a sua hipótese mimética visceral na ex-
periência musical—e outros pesquisadores neste campo de conhecimentos, como Andy
Hamilton (Aesthetics of Music, 2007) e David Burrows (Time and the Warm Body, 2009), dentre
outros, incluem uma dimensão do sentido corporal na experiência da escuta (felt dimension).
(2012, p. 21).
Porém, ele adverte: essa sugestão do “corpo que sente” é uma “ani-
mação do que é ouvido”, não “uma transferência do que é visto em
um intérprete (imaginado ou real)”24 (p. 22).
Peters compreende que há duas formas de a imaginação “comple-
tar” a escuta do som. A presença da voz é uma delas. Por exemplo, ao
percutir um acorde no piano, com a sustentação do pedal, nós conti-
nuamos a ouvir o som de maneira contínua, embora a pressão do mar-
telo contra as cordas não esteja mais lá. Dependendo do contexto, por
meio de outra experiência, será possível também ouvir e sentir certos
gestos, de forma semelhante àquela experiência de escuta da voz25. E
ele esclarece o fato da seguinte maneira: “Quando ouvimos o som, a
nossa percepção ativamente completa o que foi ouvido com sentidos
gestuais de toque os quais, até certo ponto, podemos explicitá-los a
qualquer hora ao usarmos gestos ou por meio da dança.” Essa experi-
ência, ele prossegue, é possível à medida que aqueles sentidos gestuais
“abarcam articulação, ênfase e outras nuances de qualidades percebi-
das quando tocamos as coisas, suas superfícies, ou uma pessoa”26 (p.
23).
Para Peters, então, o processo perceptivo de escuta apresenta
uma natureza mais intuitiva do que para Cox—embora a hipótese
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mimética também aponte para uma perspectiva interna dos gestos,
como sentidos. Ambos os pesquisadores e Imberty compreendem
que o sentido musical—vocal e gestual—depende de experiências
que são incorporadas previamente. Imberty chama a atenção para a
forma temporal do desenvolvimento cognitivo em crianças. Nesse
contexto, ele concebe uma relação íntima do corpo da criança com as
manifestações de sentido e lembranças vividas por meio das formas
musicais. Formas posteriores de representação e significação depen-
dem, pois, daquelas estruturas dinâmicas de experiências orientadas
no tempo. Peters, por sua vez, investiga como a percepção do toque
(direta ou indiretamente) está associada à percepção gestual sonora
do ouvinte. A matriz fenomenológica de seu pensamento abriga a
ideia de uma extensão do corpo, que se projeta em direção a um “ou-
tro”. A ideia de toque, (felt gesture), então, se consubstancia a partir
de uma experiência “vital” do corpo, que “chama” a imaginação para
trabalhar.
24 No original: It follows that an essential part of our listening experience draws on what our own
body suggests might have gone into the making of this sound. This suggestion is an animation of the
heard, and not, as is mostly held, the transfer of what is seen in a performer (imagined or real).
25 Ambas as experiências derivam de “conhecimentos incorporados” distintos.
26 No original: Our perception actively completes the heard with felt gestures of touching, which to
some extent we can make explicit at any time by using gestures, or by way of dancing. These gestures
embrace articulation, emphasis, and all other nuanced qualities felt when touching things, their sur-
faces, or a person.
27 O conceito central de seu artigo Composition, Materiality and Embodied Cognition gira em
em torno da noção de empathetic embodiment.
28 Minha tradução do conceito de enactment, nesse contexto.
29 Conforme o autor, esta explicação é do musicólogo Jean Molino, porém apresentada por
Jean Jacques Nattiez em Music and Discourse: Towards a Semiology of Music (trans. C. Abbate,
Princeton University Press, 1990).
30 Ao final do seu artigo, Boyle aponta os eixos reflexivos de seu trabalho e gera um di-
recionamento em relação às possibilidade de desenvolvimento de suas ideias no campo cri-
ativo, envolvendo os conceitos de cognição incorporada e empathetic embodiment. Uma de
suas observações, nesse contexto, diz respeito à reavaliação de obras musicais contem-
porâneas como objeto de estudo e à compreensão da imagem do compositor, em uma per-
spectiva ética que leva em consideração a idealização dos corpos de “outros”.
31 Na disciplina Improvisação do Curso de Graduação em Música/Composição, da Universi-
dade Federal do Paraná. Este trabalho foi inicialmente inspirado por uma dissertação de
mestrado de um ex-aluno, Fábio Rodrigo Serpe (A livre improvisação como ferramenta composi-
cional: Cateretando, para viola caipira, UFPR, 2016).
32 Esta pesquisa me levou a refletir também sobre um outro problema, relacionado à ausên-
maneira semelhante, o problema detetado nesta esfera de realizações não é muito dife-
rente daquele observado em sala de aula, em cursos de música, em que os alunos fre-
quentemente elaboram os seus exercícios de forma abstraída.
33 O compositor nasceu em Atenas, 1945. Desde os 17 anos, vive na França. Desde 1997, tra-
balha com a sua esposa, a atriz Édith Scob e um grupo de atores e performers criado por ele,
no Atelier de Théâtre et Musique de Bagnolet. O compositor recebeu prêmios importantes por
sua obra, destacando-se: Mauricio Kagel, 2011; León de Oro de la Bienal de Venecia, 2015; e Pre-
mio Fundación BBVA—Fronteras del Conocimiento, 2016. Acesso em: 4 maio de 2017. Disponí-
vel em: <https://www.bbva.com/es/el-teatro-se-hace-musica/>.
34 Inspiração esta também ligada às interpretações de Alexander Wnuk (Graffitis) e Françoise
ksanderwnuk.com/2015/01/22/graffitis/.
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