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A Proposta do Novo Serviço Público e a Ação Comunitária de Bairro: um Estudo de Caso

Autoria: Aline Regina Santos, José Francisco Salm, Maria Ester Menegasso

Resumo
O contexto brasileiro da administração pública é marcado por práticas que envolvem pouca ou
nenhuma participação direta dos cidadãos na construção e implementação de políticas públicas.
No entanto, uma recente teoria da área aponta a participação direta dos cidadãos como uma
alternativa para se desenvolver uma sociedade genuinamente democrática. O novo modelo,
intitulado New Public Service (Novo Serviço Público), acredita que, via atividades de co-
produção entre comunidades, órgãos públicos, privados e não governamentais, é possível
desenvolver maior participação, cidadania e accountability na sociedade. Tendo por base tal
modelo, identificou-se uma organização comunitária de bairro na região da grande Florianópolis,
com a finalidade de comparar se os objetivos e as atividades por ela desenvolvidas poderiam ser
enquadrados na teoria estudada. Busca-se, com tal comparação, levantar alguns questionamentos
sobre as políticas públicas envolvidas no caso estudado e apontar alguns direcionamentos para o
fomento de atividades participativas em comunidades de bairro.

1. Introdução

A palavra democracia tem origem grega e deriva dos termos “demo”, que significa povo,
e “kratos”, que significa poder, autoridade. O sentido contido no termo é, pois, “poder do povo”.
No sistema político brasileiro, o poder do povo é expresso principalmente por meio do voto
obrigatório, quando a população elege os indivíduos que irão tomar o poder em seu nome. No
entanto, não são poucos os casos denunciados em mídia sobre a corrupção existente no governo,
casos em que políticos eleitos e administradores públicos – cuja função primordial é servir ao
interesse público – apoderam-se dos recursos públicos em prol do bem privado, usando de
maneira ilícita o poder que lhes foi concedido para governar.
Considerando o contexto político atual, o objetivo do presente artigo é refletir sobre novas
formas de servir ao público, desenvolver a cidadania e, principalmente, conferir à palavra
democracia seu sentido original. O questionamento que se apresenta, bem como a busca por
novas alternativas, emerge de uma teoria sobre administração pública desenvolvida por Denhardt
e Denhardt (2003), chamada de Novo Serviço Público. A base de tal teoria está centrada em
valores de cidadania e de participação e na crença de que o cidadão saberá tomar as decisões
corretas, se, para isso, for-lhe dada oportunidade. Assim, o cidadão é visto como um indivíduo
que anseia não apenas pela satisfação de suas necessidades e de seus interesses privados, mas que
busca também a construção de um bem comum (DENHARDT e DENHARDT, 2003). E é
justamente nessa busca coletiva que o indivíduo reflete e atua politicamente, deixando aflorar sua
condição humana de ser ativo, com poder de ação, ao invés de ser apenas reativo, comportando-
se de acordo com os estímulos que recebe (Arendt, 2004). Essa visão de ser humano é
compartilhada por Ramos (1989), que afirma ser o homem multidimensional, possuindo não
apenas dimensões biológicas (consumo, necessidades básicas) e sociais (convívio social), mas
também dimensões políticas (auto-determinação, reflexão).
É nessa perspectiva que se realiza o Novo Serviço Público, tendo o governo um papel em
que atua muito mais no sentido de servir ao cidadão do que no sentido de controlar e dirigir a
população. A estratégia que Denhardt e Denhardt (2003) apresentam para a concretização deste
modelo está calcada em atividades colaborativas que envolvem tanto cidadãos, como governo e
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órgãos privados e não governamentais. Tal estratégia, chamada de co-produção, parte do
princípio de que a participação conjunta gera maior responsabilidade (accountability) entre os co-
produtores e permite que o cidadão também exerça poder na construção e implementação de
políticas públicas.
Na tentativa de comparar tal modelo com uma organização inserida no contexto brasileiro,
identificou-se um conselho comunitário de bairro da grande Florianópolis, Santa Catarina, como
uma organização que atua em co-produção e apresenta alguns elementos em comum com a teoria
do Novo Serviço Público. Feita a identificação da organização, buscou-se verificar se o modelo
do Novo Serviço Público de Denhardt e Denhardt (2003) poderia ser observado na organização
comunitária. Os dados permitiram uma reflexão sobre as políticas públicas envolvidas no caso
estudado e sobre direcionamentos necessários para fomentar a participação no cenário em que se
situa a organização, apontados na conclusão da pesquisa.

2. Referencial Teórico

O presente estudo traz a teoria do Novo Serviço Público, desenvolvida por Denhardt e
Denhardt (2003), com o objetivo de mostrar novas alternativas para a administração pública,
visando a fomentar a participação direta do cidadão. Juntamente com tal modelo, apresenta-se a
visão de Arendt (2004), que resgata o conceito grego de polis, e a Teoria da Delimitação dos
Sistemas Sociais, desenvolvida por Ramos (1989), no intuito de corroborar com o modelo do
Novo Serviço Público. Cabe salientar também a visão que se tem de indivíduo, concebido como
cidadão. Assim, o próprio conceito de cidadania é revisado, significando mais do que o gozo dos
direitos estabelecidos pela constituição. Entre os autores que defendem tal argumento estão
Roberts (2004) e Denhardt e Denhardt (2003). Como alternativa para que se alcance a
participação direta dos cidadãos, é apresentado o conceito de co-produção, destacando-se
Whitaker (1980) e Brudney e England (2003).

2.1 O Novo Serviço Público

A teoria do Novo Serviço Público emergiu em contraposição às teorias contemporâneas


de administração pública, largamente aplicada em diversos países. Denhardt e Denhardt (2003)
apresentam dois movimentos anteriores que, de certa forma, contribuíram para o
desenvolvimento do Novo Serviço Público. De acordo com os autores, o primeiro movimento,
Old Public Administration (Antiga Administração Pública), teve início em meados de 1900, com
os estudos de Woodrow Wilson. Wilson acreditava que a administração pública deveria buscar,
em primeiro lugar, a eficiência, e que tal eficiência só poderia ser alcançada se o governo fosse
regido como uma organização privada (de acordo com os modelos da época). Com esse
direcionamento, a Old Public Administration tem como principal característica um modelo em
que indivíduos eleitos formam um grupo que representa os interesses da população; tal grupo
define quais são os interesses públicos, elabora políticas para a população e as leis que devem ser
cumpridas para garantir a ordem e o bem estar público (DENHARDT e DENHARDT, 2003).
Com o aprofundamento das ciências e técnicas aplicadas ao gerenciamento das
organizações privadas que ocorreu ao longo do último século, alguns estudiosos das organizações
públicas, insatisfeitos com o modelo anterior, desenvolveram uma perspectiva em que o governo
deveria ser regido pelas leis do “mercado” (DENHARDT, 2003). O modelo, conhecido por New
Public Management (Nova Gestão Pública), teve início na década de 80, com grande expressão
na Nova Zelândia, Austrália, Inglaterra e, mais tarde, nos EUA. Busca ele transformar o governo
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numa organização mais “competitiva”, objetivando maiores resultados para a população, por
meio da ação empreendedora do administrador público. (DENHARDT e DENHARDT, 2003).
A concepção do governo (que lida com interesses públicos) como uma organização de
mercado (que é marcado por trocas que visam a satisfação de interesses privados) pode ser
comparada tanto à obra de Arendt (2004) como à Teoria de Delimitação dos Sistemas Sociais de
Ramos (1989). A visão crítica de tais autores serve de base para a compreensão dos valores
arraigados no Novo Serviço Público.
Arendt (2004), por exemplo, apresenta o modelo de sociedade predominante na antiguidade
grega, de forma a resgatar a condição humana. Na polis grega, segundo a autora, existia uma
forte distinção entre a esfera pública, caracterizada por aquilo que é comum aos cidadãos, e a
esfera privada, caracterizada pelo que é próprio ao domínio da casa. Assim, enquanto a esfera
privada diz respeito ao âmbito da casa, da família, num ambiente de alta hierarquia em que o
homem, chefe da família, exercia o poder sobre os seus subordinados (mulher, filhos e escravos);
a pública diz respeito às atividades comuns na vida política. Na esfera pública, os cidadãos
exerciam a sua vida política participando nos assuntos da polis. No entanto, para participar dela,
era necessário vencer as necessidades da vida privada. Uma vez vencidas tais necessidades, o
homem que participasse da vida pública era considerado livre e igual aos seus semelhantes. Para
a autora, a extinção da diferença entre as esferas privada e pública, assim como a transferência
das preocupações privadas para a política e a valorização da esfera privada como fenômeno
social, são resultados de um sistema em que a riqueza, que antes era limitada à propriedade
privada, transforma-se na acumulação de capital e o privado passa a ter supremacia, invadindo o
domínio político.
A apropriação do político pelo privado é tema presente também na obra de Ramos (1984).
O autor critica o modelo que concebe a sociedade como mercado e que baseia todas as atividades
da sociedade no sistema de trocas. Assim, o indivíduo, na sociedade de mercado, é observado
como um ser que apenas reage aos estímulos recebidos e pauta seu comportamento na busca da
realização dos interesses próprios. Contrapondo-se a essa idéia, o autor acredita que o ser humano
não age apenas para a realização dos seus anseios de consumo (as necessidades da esfera privada,
de Arendt), mas que, além disso, tem uma natureza multidimensional. Essa natureza engloba
tanto dimensões biológicas (consumo) e sociais, como políticas. Idealizar o homem como um ser
multidimensional contradiz a idéia de um modelo de homem totalmente operacional (que age
para suprir suas necessidades biológicas) ou reativo (que reage aos estímulos do ambiente, do
meio social). Idealizar o homem como ser multidimensional implica admitir que ele também é
dotado de uma natureza política, capaz de refletir sobre a realidade a sua volta, capaz de ser livre
e de se ver como um “igual” (RAMOS, 1984).
Com essa compreensão, Ramos (1989) desenvolveu a Teoria da Delimitação dos Sistemas
Sociais, que, de certa forma e resguardadas as diferenças de contexto, distingue novamente as
esferas pública e privada, delimitando o mercado como um enclave dentro da sociedade. Nessa
perspectiva, Ramos (1989) e Arendt (2004) mostram que conceber o governo dentro dos padrões
de mercado resulta numa distorção da esfera pública, com a sobreposição de interesses privados
aos interesses públicos, o que não só reduz a apreciação do homem a um ser unidimensional,
como também deturpa toda a significação contida no exercício da liberdade e da expressão na
construção do bem comum.
A concepção do homem como ser capaz de refletir e de construir o bem comum
coletivamente – tendo em vista sua natureza – e essa construção do bem comum como forma
genuína de democracia é a idéia contida no modelo do Novo Serviço Público.De acordo com esse
modelo, o governo assume o papel de servir aos cidadãos, atuando como um mediador entre
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cidadãos e grupos comunitários, fomentando a criação de valores compartilhados. Para que isso
seja possível, o governo deve possibilitar e criar oportunidades de diálogo, em que cidadãos e
grupos comunitários possam ser ouvidos e possam contribuir para a construção das políticas
públicas. Não somente o papel do governo se altera, como também o do administrador público.
Para Denhardt e Denhardt (2003), o papel do administrador nesse contexto é o de engajar o
cidadão no processo de participação. Para isso, faz-se necessário educar os cidadãos sobre a
importância da democracia participativa.
No mesmo sentido, os políticos assumem o papel de lideranças que compartilham o poder
de decisão, tanto interna, quanto externamente. Diferentemente da Old Public Management e do
New Public Management, o Novo Serviço Público caracteriza-se por uma estrutura colaborativa,
com lideranças compartilhadas e com o envolvimento colaborativo entre órgãos públicos,
privados, organizações sem fins lucrativos e comunidade, visando ao estabelecimento de acordos
(DENHARDT e DENHARDT, 2003). Outro fator importante do modelo diz respeito à
accountability, que, no cenário do Novo Serviço Público, apresenta-se entre os co-produtores do
bem comum, ou seja, órgãos públicos, privados, organizações sem fins lucrativos e comunidade
são co-responsáveis pelas ações que praticam em conjunto e, dessa maneira, maiores serão as
possibilidades de a ação alcançar um resultado positivo (ROBERTS, 2004).
Um quadro comparativo entre os três modelos de administração pública é apresentado por
Denhardt e Denhardt (2003, p.28). O quadro é resgatado no presente estudo, com o objetivo de
elucidar as diferenças entre as três correntes e apresentar os principais conceitos do Novo Serviço
Público.

Antiga Administração Nova Gestão Pública Novo Serviço Público


Pública
Princípios Teoria política e social Teoria Econômica. Teoria Democrática com
teóricos e intensificada por ciência Diálogo mais sofisticado, várias linhas de
epistemológicos social ingênua. baseado na ciência social conhecimento, incluindo
positivista. positivista, interpretativa
e pensamento crítico.
Racionalidade Modelo de racionalidade Racionalidade técnica e Racionalidade
predominante e restrito ao “homem econômica, caracterizada estratégica. Múltiplos
modelos de administrativo”. pelo “homem tipos de racionalidade
comportamento econômico”. (política, econômica e
humano racional).

Concepções de O interesse público é O interesse público O interesse público é


interesse público politicamente definido representa a agregação resultado de um diálogo
como o expresso nas leis. dos interesses individuais. sobre valores
compartilhados.

A quem os Clientes e constituintes Consumidores Cidadãos


servidores
públicos
respondem
Papel do governo “Remar” (estruturar e “Guiar" (atuando como “Servir” (negociar e
implementar políticas um catalisador para intermediar os interesses
focando num único liberar as forças do entre cidadãos e grupos
objetivo político pré- mercado). da comunidade, criando
definido). valores compartilhados).

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Mecanismos de Programas Criação de mecanismos e Criação de coalizão entre
alcance dos administrativos de estruturas de incentivo órgãos públicos, privados
objetivos políticos executados por meio de para alcançar objetivos e organizações sem fim
órgãos do governo. políticos por meio da lucrativo para satisfazer
atuação de órgãos necessidades mutuamente
privados e organizações existentes.
sem fins lucrativos.
Abordagem da Hierárquica: Orientada para o Multifacetada: servidores
accountability Administradores públicos Mercado: o acúmulo dos públicos devem respeitar
respondem aos políticos interesses pessoais irá a lei, os valores da
eleitos democraticamente. resultar nos resultados comunidade, as normas
desejados por um grupo políticas, os padrões
de cidadãos (ou profissionais, e os
consumidores). interesses dos cidadãos.
Discrição Disrição limitada Ampla discrição para Discrição necessária,
administrativa permitida por oficiais permitir alcance dos porém restrita e
administrativos. objetivos responsável.
empreendedores.
Suposta estrutura Organizações Organizações públicas Estruturas colaborativas
organizacional burocráticas marcadas descentralizadas com com lideranças
pela autoridade top-down. controle primário de compartilhadas interna e
determinados órgãos externamente.
públicos.

Supostas bases de Pagamento e benefícios, Espírito empreendedor, Serviço público, desejo


motivação dos proteções. desejo ideológico de de contribuir para a
servidores reduzir o tamanho do sociedade.
públicos governo.
Quadro 01 – Comparação de Perspectivas: Antiga Administração Pública, Nova Gestão Pública e
Novo Serviço Público
Fonte: Traduzido de Denhardt e Denhardt (2003, p. 28).

2.2 A participação direta dos cidadãos


Certamente o modelo do Novo Serviço Público não é o caminho mais fácil de se
governar, tendo em vista o tamanho da sociedade, a complexidade das questões atuais e uma série
de fatores que dificultam a participação. No entanto, para autores como Denhardt e Denhardt
(2003) e Roberts (2004), a participação direta dos cidadãos não é somente fundamental, como
também, possível na construção de uma sociedade democrática. Na defesa da participação da
cidadania, Roberts (2004) argumenta que esta tem um caráter de promotora do desenvolvimento
humano, além do caráter educativo, terapêutico (contra alienação) e integrativo (senso de
pertencimento a uma comunidade). Outras vantagens da participação da cidadania residem no
fato de ser ela legitimadora, uma vez que os cidadãos se tornam co-responsáveis pelas ações e
políticas desenvolvidas; também no fato de a participação direta dos cidadãos proteger a
liberdade; ser instrumental, enquanto mecanismo para que aqueles sem poder possam desafiar
aqueles que o têm; e no fato de ser a participação direta realista, uma vez que pode minimizar
atrasos na entrega dos serviços, podendo também servir como recurso de idéias inovadoras
(ROBERTS, 2004). Os argumentos que refutam a aplicabilidade da participação direta dos
cidadãos, por sua vez, baseiam-se na opinião de ser falsa a noção de que o homem prioriza os

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interesses públicos sobre os privados, apresentando-a como ineficiente e politicamente ingênua,
irreal, devido à complexidade da sociedade moderna, problemática (destrói o equilíbrio da
sociedade) e perigosa.
Em meio a tal ambigüidade, Roberts (2004) afirma que a participação direta dos cidadãos
é possível e aponta alguns passos a seguir na construção de um processo participativo. O primeiro
deles estaria na investigação de estudos na área e no levantamento de questões práticas que
possam ser solucionadas em conjunto. O segundo caminho estaria na construção de teorias mais
refinadas a respeito da participação direta, especialmente no campo da administração pública.
Entre as perspectivas práticas que podem ser observadas no artigo, a autora cita o uso da
tecnologia e da tecnologia da informação como meio promotor da participação, o que, combinado
à educação dos cidadãos, venha a promover maior engajamento cívico no processo de tomada de
decisão e construção de políticas públicas. Para a autora, faz-se necessário perceber o indivíduo
enquanto cidadão, porém não apenas o cidadão nos termos legais (constituição), mas sob a
perspectiva que envolve a combinação da virtude coletiva à individual, com base em propósitos
morais. Sob esse prisma, o sentido de cidadania é mais amplo do que o alcançado pelos aspectos
legais e se estende não somente à atuação do governo formal, mas também às organizações
voluntárias e ao envolvimento comunitário (ROBERTS, 2004).

2.3 A estratégia da co-produção

Co-produção é o nome dado à estratégia que busca produzir o bem público, via
envolvimento do cidadão, órgãos públicos, privados e sem fins lucrativos. Para Whitaker (1980,
p.240), o conceito de co-produção “diz respeito ao envolvimento dos cidadãos, de modo
participativo, no processo de recebimento de um serviço público – especialmente nos casos que
objetivem mais uma mudança de comportamento do indivíduo do que modificação no ambiente
físico”. Nessa perspectiva, o autor apresenta três tipos de co-produção: o primeiro tipo está
relacionado com o ato de o cidadão solicitar determinado serviço ou auxílio; o segundo seria
aquele em que os indivíduos ajudam os servidores públicos na realização dos objetivos
estabelecidos; o terceiro e último tipo de co-produção diz respeito ao ajuste mútuo, ou seja, à
mudança mútua, resultante da troca entre cidadãos e servidores públicos. Neste sentido, tanto os
servidores como os cidadãos devem ansiar pela mudança que está sendo implementada,
utilizando o diálogo e a escuta como meios de compreensão e respeito ao outro. Tal
transformação recíproca, segundo o autor, faz com que os objetivos propostos sejam alcançados
com maior efetividade.
Uma tipologia complementar à apresentada por Whitaker (1980) encontra-se no trabalho
de Brudney e England (2003). Para os autores, o modelo de co-produção é definido pelo grau de
sobreposição das atividades realizadas pelos provedores de serviço (no caso, os servidores ou
administradores públicos) e os consumidores (no caso, os cidadãos). De acordo com os autores, a
co-produção pode ser realizada em três níveis: individualmente, em grupo ou coletivamente -
variando em complexidade de um grau mais baixo (co-produção individual) ao mais alto (co-
produção coletiva).

3. Procedimentos Metodológicos

A partir da teoria estudada, manifestou-se o interesse em verificar a aplicação do modelo


do Novo Serviço Público em uma comunidade de bairro da região da Grande Florianópolis. O
objetivo de pesquisa caracteriza-se como sendo a comparação entre o modelo do Novo Serviço
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Público, de Denhardt e Denhardt (2003), e uma associação de bairro, na tentativa de identificar
aspectos inerentes ao modelo na realidade estudada e promover reflexões sobre a realidade
vivenciada.
Optou-se por um estudo de caso único (YIN, 1994) para a realização da pesquisa. A
escolha do objeto de estudo levou em consideração o objetivo do mesmo, enquadrado dentro dos
conceitos a cerca de participação levantados nesta pesquisa. Definiu-se como sujeitos da pesquisa
duas pessoas de influência na organização: uma delas é o atual presidente, referenciado na
presente pesquisa como Sr. João, morador do bairro que atua voluntariamente na organização; e a
outra é uma assistente social, referenciada na presente pesquisa como Srta. Maria, funcionária da
organização, que, como tal, presta serviços à comunidade do bairro. A escolha desses sujeitos
deu-se por seus vínculos diferenciados com a organização, no intuito de promover uma maior
contribuição à pesquisa.
De acordo com a natureza do tema, optou-se por seguir a corrente interpretativa, partindo
da interpretação dos atores sociais envolvidos no processo. A pesquisa tem caráter qualitativo e
utilizou como método de coleta de dados primários a entrevista em profundidade. Além da
entrevista, a análise de documentos da organização, como o Estatuto Social e jornais de
circulação na comunidade, foram fontes secundárias para a coleta dos dados presentes neste
artigo.
Os dados coletados foram avaliados e relacionados posteriormente com os aspectos
apresentados no referencial teórico no Quadro 01 “Comparação de Perspectivas: Antiga
Administração Pública, Nova Gestão Pública e Novo Serviço Público” (DENHARDT e
DENHARDT, 2003, p. 28).

4. Apresentação do caso

A presente pesquisa foi realizada numa organização de bairro, na região da Grande


Florianópolis, Santa Catarina. Para uma maior compreensão da realidade da organização e
contextualização no presente trabalho, são abordados aspectos históricos e estruturais da
organização. A seguir, relatam-se aspectos da articulação política comunitária realizada via
organização.

4.1 Histórico da organização de bairro


A história da organização estudada teve início em 1976, quando moradores do bairro se
articularam para buscar, junto à prefeitura municipal, recursos para o calçamento de sua rua
principal que se encontrava em condições precárias. O relato a seguir, extraído do jornal de
circulação restrita ao bairro, apresenta como ocorreu o surgimento do conselho:

Nesse primeiro contato, foi verificada a necessidade de se buscar alternativas


para o calçamento, não apenas da referida rua, como também das demais ruas do
bairro. Preocupados com os problemas que a comunidade vinha enfrentando, os
moradores continuaram a se reunir para juntos reivindicar melhorias, entendendo
que dessa forma teriam mais força... (...) Somente em 1978, conseguiram
material para o calçamento da rua (...), a qual foi calçada através de mutirão. A
partir daí, outras ruas também foram calçadas da mesma forma. (...) Em 1979 os
comandos sociais passam a atuar cada vez mais no bairro e incentivam os
moradores à criação de uma associação de moradores, para que, organizados,

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pudessem fazer mais reivindicações para a solução dos problemas que
enfrentavam no dia-dia. (Jornal do CCPAN, 2004:07).

De acordo com a matéria, a partir da sua legalidade, a organização passa a buscar, cada
vez mais, a participação dos moradores no encaminhamento de ações que promovam a melhoria
das condições de vida da comunidade. Tal articulação comunitária, de acordo com a mesma
fonte, foi influenciada pelo estabelecimento de duas grandes instituições próximas ao bairro: a
sede da Eletrosul em Florianópolis, inaugurada em 1977, situada no mesmo bairro da
organização, e a Universidade Federal de Santa Catarina, fundada em 1960, instalada nas
proximidades.
A influência das organizações mencionadas para o desenvolvimento do bairro também foi
tema de estudo na pesquisa de Toledo e Dal Santo (2002). Segundo os autores, tais organizações
fomentaram o processo de urbanização, que, no período anterior à década de 60, contava com
pouca infra-estrutura, sendo a área bastante utilizada para criação de gado e plantio. A instalação
de tais organizações promoveu modificações no bairro, gerando uma valorização econômica. Tal
valorização deu-se em decorrência de um aumento na procura por moradia na região, alterando os
aspectos econômicos e sócio-culturais anteriormente existentes.
Em meio a esse cenário de transformações é que emerge a articulação comunitária. A
organização surge com o objetivo de “integrar e dinamizar as ações da comunidade,
aprimorando-as, como agente de seu próprio desenvolvimento”, conforme dados extraídos do
website Portal Social. Esse objetivo, de acordo com o Sr. João, foi estabelecido no Estatuto Social
da organização e permanece nos dias atuais, servindo de base para sua estrutura, a realização das
atividades e a articulação da comunidade – tópicos relatados a seguir.

4.2 Estrutura Organizacional


Para analisar a estrutura da organização, utilizou-se a tipologia de Hall (1984), verificando
os seguintes aspectos: complexidade, formalização e centralização. A complexidade, segundo o
autor, é comumente verificada em organogramas, indicando o grau em que as atividades são
realizadas vertical e/ ou horizontalmente. A formalização, por sua vez, indica o grau em que a
organização utiliza normas para executar as atividades. E, finalmente, a centralização, indica o
grau de distribuição de poder nas organizações.
a) Complexidade
Apesar de não descrito oficialmente, pode-se afirmar que o órgão superior da organização
é a própria comunidade, que se reúne na Assembléia Geral para tomar em conjunto decisões
sobre os problemas e situações que afetam a vida da comunidade. Além disso, a organização
dispõe de uma Diretoria Executiva e de um Conselho Fiscal, formado por moradores do bairro,
que atuam voluntariamente, tendo a administração como função principal. À diretoria respondem
os funcionários e voluntários da organização, cujas atividades têm como beneficiária a
comunidade local. De acordo com o estatuto e com as atividades relatadas por meio de entrevista,
o organograma da organização poderia ser representado da seguinte forma:

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Comunidade do
bairro

Assembléia Geral

Diretoria Executiva Conselho Fiscal

Projetos Sócio- Projetos de Geração Ações Pontuais


Educacionais de Renda e
Preparação para o
Trabalho
Assistência Social

Grupos de Jornada Atividades Cursos de Capacitação


Terceira Idade Ampliada Diversas

Figura 1 – Organograma da organização de bairro


Fonte: Os autores.

As atribuições da Assembléia Geral, bem como da Diretoria Executiva e do Conselho


Fiscal estão definidas no Estatuto Social da organização. Já as demais atividades apontadas no
organograma foram identificadas nas entrevistas realizadas e nos dados secundários.Os dados
indicam pouca diversificação, tanto horizontal (com relação às atividades), como vertical (com
relação ao poder de decisão).
Seguindo a estrutura, os “Projetos Sócio-Educacionais”, de acordo com os entrevistados,
são aqueles de cunho educacional e social, que buscam o desenvolvimento da cidadania entre os
participantes. Os principais projetos sócio-educacionais realizados atualmente são a “Jornada
Ampliada” e os “Grupos de Terceira Idade”. A “Jornada Ampliada” surgiu, assim como os
demais projetos, em decorrência de uma demanda da comunidade em promover atividades
complementares destinadas às crianças carentes da região, evitando que estivessem “nas ruas”
fora do período da aula. Foi, então, criado o projeto que atende crianças carentes, entre seis e 12
anos, tendo como objetivo fornecer uma formação complementar, além de ocupar o tempo das
crianças com atividades que enriqueçam seu conhecimento e reduzam as chances de
envolvimento em atividades que promovam a delinqüência. O projeto “Jornada Ampliada” conta
com parceria entre prefeitura, voluntariado, a organização de bairro e comunidade. A prefeitura
disponibiliza uma professora; os voluntários participam em conjunto com a professora em
atividades educacionais e lúdicas; a organização de bairro disponibiliza espaço físico e uma
assistente social, que coordena o projeto e também auxilia na realização das atividades; e a
comunidade encaminha as crianças à participação.
Outro projeto de igual importância realizado atualmente pela organização de bairro é o
“Grupo de Terceira Idade”. O objetivo desse projeto, segundo a srta. Maria, é de “re-integrar o
idoso no convívio em sociedade, de maneira a recuperar a sua auto-estima, mostrando que o
idoso também tem voz ativa na sociedade”. Entre as atividades descritas pela entrevistada, está a

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educação de uma maneira diferente, dentro da linguagem que o grupo possa entender. Por
exemplo, apresenta-se o Estatuto do Idoso dentro de uma linguagem mais compreensível,
trabalhando com dinâmicas, mostrando os direitos do idoso (que muitos não conhecem).
Trabalha-se também a questão da valorização da auto-estima do idoso, “ensinando que ele é
importante, que não é uma ‘peça velha’, que eles precisam ter cuidado com o corpo, com a
saúde, que é legal uma senhora passar um batom, usar um brinco...” (Srta. Maria). A realização
desse projeto envolve participação tanto da prefeitura, com a disponibilização de profissionais,
como da organização de bairro, na coordenação e disponibilização de espaço físico para as
reuniões e as atividades voluntárias de profissionais da assistência social, pedagogia e psicologia.
Além disso, o projeto pode envolver ainda profissionais de outras áreas, quando os idosos
solicitam palestras de temas diversos.
Além dos projetos sociais anteriormente descritos, outros também são desenvolvidos em
paralelo, numa atividade colaborativa entre comunidade, organização de bairro, prefeitura e
voluntariado. Esses projetos são desenvolvidos da seguinte forma, como explica a srta. Maria:

Pessoas da comunidade vêm até nós para saber quais atividades estamos
fornecendo e para pedir alguma atividade em especial. Com o pedido deles,
buscamos maneiras de suprir as necessidades. Podemos, então, acionar o
voluntariado, a prefeitura ou os dois. Temos professores que atuam
voluntariamente, como os alunos de Educação Física que dão aula de futebol
para as crianças do bairro, de diversas classes sociais. Outras atividades que
temos similares são: oficina de dança, oficina de música e capoeira, por
exemplo.

É desse tipo de solicitação que também surgem os projetos de geração de renda e


preparação para o trabalho, com a realização de cursos de capacitação profissional. O
oferecimento de cursos de capacitação, de acordo com o jornal do bairro, tem por objetivo
“proporcionar capacitação aos alunos para ingressarem no mercado de trabalho com mão-de-obra
qualificada, para que, dessa forma, tenham condições de permanecer nesse mercado, o qual está
cada dia mais competitivo” Jornal do CCPAN (2004, p.06) e alguns deles são realizados em
parceiras com o governo, instituições estatais, federais e privadas e com voluntariado.
Finalmente, as Ações Pontuais caracterizam-se como mais uma classe de atividades da
organização de bairro. Essas atividades estão vinculadas aos problemas do dia-dia da
comunidade. Tais atividades ocorrem quando um grupo de moradores é formado e articulado
para expor uma situação-problema à organização, que o encaminha às autoridades competentes.
No entanto, quando o problema tem uma dimensão maior, uma reunião entre todos os membros
da comunidade é acionada via assembléia, como explica o Sr. João:

Por exemplo, um problema em uma rua, em que um buraco está com vazamento,
ou com a necessidade de uma faixa de segurança, as pessoas nos procuram e
encaminhamos o problema ao órgão competente. No caso de um problema
maior, a gente reúne a comunidade e faz uma assembléia.

Assim, a comunidade comunica aos funcionários e voluntários da organização de bairro a


necessidade de determinados cursos, atividades ou problemas relacionados com a qualidade de
vida (calçamento, tratamento de água, criminalidade, saúde,...) e os mesmos tratam de atender as
solicitações feitas pela comunidade.

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b) Formalização
Como toda organização, a estudada também apresenta algumas normas e procedimentos
para a realização de suas atividades. São, porém, bastante flexíveis, de acordo com o depoimento
dos entrevistados. Uma das principais normas formalizadas levantada é a avaliação dos
profissionais disponibilizados pela prefeitura. De acordo com os entrevistados, a solicitação é
feita pela prefeitura para manutenção da parceira. Além disso, a organização conta com um
Estatuto Social, documento que dispõe, basicamente, sobre as finalidades, o patrimônio, a
Assembléia Geral, Diretoria Executiva e Conselho Fiscal e disposições gerais. Além disso, o
documento também regulamenta algumas normas para a convocação de Assembléias Gerais e o
processo de eleição da Diretoria Executiva e do Conselho Fiscal. No entanto, segundo os
entrevistados, não existem normas rígidas para a realização das atividades diárias. A solicitação
de atividades e projetos emana, em sua grande maioria, da própria comunidade, e, a partir do
levantamento das solicitações, a organização busca envolver os parceiros para suprir as demandas
identificadas.
c) Centralização
De acordo com o depoimento dos entrevistados, há uma certa centralização de poder na
pessoa do Sr. João, dentro da organização, uma vez que os funcionários respondem a ele. Com
relação à resolução de problemas e tomada de decisões, detectou-se nas entrevistas e nos dados
secundários que, quando problemas de gravidade e relacionados unicamente com a organização
de bairro são detectados, o poder de decisão é atribuído à pessoa do Sr. João.
No entanto, quando problemas de gravidade média-baixa afligem a organização, os
funcionários têm liberdade e autonomia para resolvê-los. Assim, na execução das atividades
diárias, ambos os entrevistados relataram que o relacionamento entre integrantes da organização
acontece “de igual para igual”, ou seja, indicando baixo nível de centralização de poder. Quando
são detectados problemas na comunidade, o maior poder de decisão é atribuído à própria
comunidade, via Assembléia Geral.

4.3 Articulação Política Comunitária


A articulação política comunitária é observada, principalmente, na formação das
Assembléias Gerais. De acordo com o Estatuto Social da organização, “Art.10 – A Assembléia
Geral dos associados é o órgão supremo da entidade e, dentro dos limites legais e deste estatuto,
poderá tomar todas e quaisquer decisões do interesse para a entidade”. São considerados
associados, no mesmo documento, “Art.3 – Todas as pessoas residentes no Bairro, bem como
aquelas que exercem atividades profissionais junto à comunidade e que não forem excluídas da
mesma conforme o artigo 6° deste estatuto”. Entre as principais responsabilidades da Assembléia
Geral estão: a) decidir sobre questões de interesse da comunidade; e b) eleger o os órgãos
representantes da organização de bairro.
Na prática, Sr. João relata em entrevista que a comunidade do bairro tem, realmente,
poder de decisão sobre os assuntos discutidos em Assembléia. Para convocar a comunidade a
participar da Assembléia, uma série de ações de divulgação são tomadas pela organização, como
se observa no seguinte relato do Sr. João:

Para as assembléias acontecerem, divulgamos com carro de som e com


mosquitinhos (flyer). [...] Então as pessoas se encontram aqui e discutimos sobre
os problemas da comunidade. Cada um expõe a sua opinião e buscamos um
consenso em conjunto.

11
No entanto, uma grande dificuldade é observada na realização das Assembléias: o declínio
da participação, em virtude da falta de comprometimento e desconsideração com as decisões
deliberadas em Assembléia por parte dos órgãos públicos, quando a participação destes é
necessária para a execução das políticas públicas.

Nossa dificuldade é que a comunidade já não participa mais das assembléias.


Nesta última, por exemplo, nós tínhamos que discutir sobre o alargamento da rua
principal, porque vai passar uma via expressa dentro do bairro: hoje tem 12
metros e vai passar para 30. A gente chamava a comunidade e compareciam 50,
60 pessoas. Aí fica difícil de decidir. [...] E nós estávamos preocupados em
saber porque a comunidade não quer participar. A conclusão que a gente chegou
é que não adianta: quem manda são eles lá e deu.

Isso acontece porque nem tudo que se decide em Assembléia é aceito pelo poder público,
como explica mais adiante o Sr. João:

A gente decidiu aqui e formou uma comissão, então fomos na câmara municipal
para chegar num acordo, de não fazer com 30 metros porque era muita coisa.
Um vereador em particular nos falou para batalharmos para fazer com 24
metros. Dois partidos políticos aceitaram batalhar por isso, só que três pessoas
da nossa comissão (da comunidade) não aceitaram de jeito nenhum: queriam 20
metros. Mesmo com esta articulação, a prefeitura tomou a decisão final,
mantendo os 30 metros iniciais, que era de sua vontade. Isso foi muito
desmotivador, porque a gente se articula, discute – só para este assunto foram
sete assembléias – toma uma decisão em consenso, mas, no final, quem decide é
o poder público. Gastamos um dinheirão com carro de som, mobilizamos o
pessoal, para chegar nesta situação.

Outro caso relatado é a desconsideração e falta de comprometimento dos órgãos públicos


com relação ao que é decidido em Assembléia, como no caso do Conselho Comunitário de
Segurança. Foi realizada uma Assembléia para discutir sobre a segurança no bairro. De acordo
com o Sr. João, houve uma participação significativa, contando com a presença do coronel da
polícia militar. “Ele nos prometeu várias coisas, mas não cumpriu nada do que prometeu. Daí
fica difícil esperar que a comunidade participe de uma segunda assembléia”.

4.4 Conquistas das Atividades em Co-produção


De acordo com o depoimento dos entrevistados, a parceria colaborativa entre comunidade,
organização de bairro, Eletrosul, Universidade Federal de Santa Catarina, órgãos públicos
(municipais e estaduais), voluntariado e outras entidades tem sido de fundamental importância
para o desenvolvimento da comunidade do bairro. Apesar dos problemas encontrados com
descasos de órgãos públicos em alguns processos de construção e implementação de políticas via
participação comunitária, os entrevistados afirmam que o sentimento de dignidade reconquistada
pelos idosos; ou a evidência de crescimento das crianças carentes; ou a satisfação com a
recolocação profissional daqueles que freqüentam os cursos profissionais; ou, ainda, o sentimento
de conquista que transparece na resolução de problemas, via articulação política comunitária, são
alguns exemplos das vitórias diárias.

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5. A organização de bairro e o Novo Serviço Público: uma comparação

Com base nos tópicos apresentados no Quadro 01 “Comparação de Perspectivas: Antiga


Administração Pública, Nova Gestão Pública e Novo Serviço Público” (DENHARDT E
DENHARDT, 2003, p.28), apresenta-se um paralelo entre o estudo de caso e o modelo do Novo
Serviço Público. Os tópicos estudados são: a) princípios teóricos e epistemológicos; b)
racionalidade predominante e modelos de comportamento humano; c) concepções de interesse
público; d) a quem os servidores públicos respondem; e) papel do governo; f) mecanismos de
alcance dos objetivos políticos; g) abordagem de accountability; h) suposta estrutura
organizacional; i) supostas bases de motivação dos servidores públicos. O item “Discrição
Administrativa” não foi relacionado à prática por não ter sido identificado na pesquisa.
a) Princípios Teóricos e Epistemológicos: De acordo com o que foi relatado, observa-se uma alta
confiança da comunidade em sua organização e o reconhecimento da existência da organização
como manifestação da comunidade. Tal reconhecimento, expresso inclusive na realização das
Assembléias Gerais, nas quais a comunidade tem poder de decisão e voz ativa, caracteriza o
principio teórico como dentro da teoria democrática de participação dos cidadãos.
b) Racionalidade predominante e modelos de comportamento humano: O objetivo primordial da
organização de bairro é descrito como sendo: “Integrar e dinamizar ações da comunidade,
aprimorando-a como agente de seu próprio desenvolvimento” (Estatuto Social, Artigo 2°, §1).
Percebe-se que tal objetivo se reflete nas ações diárias e nos projetos desenvolvidos pela
organização de bairro. Ao considerar a comunidade como agente de seu próprio
desenvolvimento, parte-se do princípio de que ela é capaz de refletir e tomar decisões que
contribuam para o seu crescimento. Com isso, considera-se o ser humano como sendo
multidimensional.
c) Concepções de interesse público: Neste tópico, observa-se um direcionamento tanto para o
Novo Serviço Público, como para o New Public Management. Dentro do aspecto do Novo
Serviço Público, considera-se interesse público o resultado do diálogo realizado em Assembléia
Geral. Um exemplo seria o caso do alargamento da rua, em que a comunidade em conjunto optou
por um alargamento máximo de 20 metros. Possivelmente alguns abriram mão de suas opções
pessoais, de forma que o interesse comum se sobrepusesse aos outros. Dentro do aspecto do New
Public Management, pode-se indicar o procedimento de abertura de cursos e projetos, que
surgem por demanda da comunidade, porém de maneira individual, apontando que o interesse
público representa a agregação dos interesses individuais.
d) A quem os servidores públicos respondem: Percebe-se, tanto na fala dos entrevistados, como
nos dados secundários, um reconhecimento do valor dos cidadãos. Inclusive, o editorial do jornal
do bairro, escrito pelo Sr. João, encerra-se com a seguinte frase: “Nosso anseio é de buscar
constantemente a construção de uma efetiva e nova cidadania a muitos indivíduos que não tinham
nem a consciência do significado desta palavra” (Jornal do CCPAN, 2005, p.02). Igualmente nos
relatos do Grupo da Terceira Idade, percebe-se uma preocupação de reintegração social dos
idosos, por reconhecimento de que os mesmos, enquanto cidadãos, também merecem ser tratados
com dignidade e respeito.
e) Papel do governo: O papel do governo não fica claramente definido nesta comparação teórico
x prática. Ao participar em conjunto dos projetos sociais e ao participar das assembléias,
discutindo com a população os problemas que afligem a comunidade (como no caso da
segurança), o governo também assume um papel de facilitador e co-produtor do bem comum.
Mas, ao impor seus interesses sobre os da comunidade (caso do alargamento da rua), ou ao se
comprometer com ações e não cumpri-las posteriormente (caso da segurança), o governo assume
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um papel que não é contemplado nem nas outras teorias. O governo passa a sobrepor interesses
próprios (por vezes representantes de uma coalizão dominante) sobre o interesse público.
f) Mecanismos de alcance dos objetivos políticos: Desde a sua constituição, a organização de
bairro buscou a formação de parcerias que contribuíssem para a realização dos anseios da
comunidade. “Entre as quais podem ser citadas: a Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), a empresa ELETROSUL, o Instituto Voluntários em Ação (IVA), a OAB Cidadã,
governos estadual e municipal, comércio local, etc.” (Jornal CCPAN, 2005:02). O
estabelecimento de tais parcerias, combinadas à articulação política comunitária, apresenta-as
como principais ferramentas no alcance dos objetivos da comunidade.
g) Abordagem de accountability: A accountability refere-se às questões de responsabilidade que
os envolvidos nas atividades de co-produção têm com a construção do bem comum (perspectiva
do Novo Serviço Público). No caso estudado, tanto a comunidade, como os membros da
organização de bairro e os órgãos públicos e privados deveriam ser co-responsáveis pelas
atividades desenvolvidas. Pelo relato dos entrevistados e a análise dos dados secundários, pode-se
identificar a accountability apenas internamente (na organização) e no posicionamento dos
membros internos com relação ao cidadão. No caso das questões internas, percebe-se que existe
um certo grau de descentralização, mas que o membro da organização, mesmo assim, acaba por
responder ao presidente. Além disso, manifesta-se também uma preocupação com a comunidade.
De acordo com a fala da srta. Maria, “os funcionários devem estar cientes das suas obrigações e
estar comprometidos com a organização e com a comunidade”.
h) Suposta estrutura organizacional: A estrutura da organização combina elementos de
organizações burocráticas (normas estabelecidas no Estatuto Social), com sistemas colaborativos,
no qual a comunidade apresenta destaque principal. No entanto, a estrutura predominante, de
acordo, principalmente, com o Estatuto Social , estaria num modelo hierárquico top down, no
qual a comunidade assume a autoridade máxima, seguida pela Diretoria Executiva e pelo
Conselho Fiscal, com funcionários que respondem a essa diretoria.
i) Supostas bases de motivação dos servidores públicos: De acordo com a fala dos entrevistados,
a maior motivação para trabalhar na organização de bairro é o fato de poder contribuir para o
desenvolvimento da comunidade. “Tanto o é, que eu trabalho já há quatro anos voluntariamente
na organização”, confirma o Sr. João. A Srta. Maria também afirma que, “apesar de ter um
trabalho remunerado, a maior satisfação que encontro aqui é poder contribuir para o
crescimento de cada pessoa que participa das atividades”.

De acordo com o que se viu, a comparação com as teorias apresentadas por Denhardt e
Denhardt (2003), com enfoque no Novo Serviço Público, pode ser observada no Quadro
“Comparação de Perspectivas: Antiga Administração Pública, Nova Gestão Pública e Novo
Serviço Público”.

Antiga Administração Nova Gestão Novo Serviço


Pública Pública Público
Princípio Teórico (político, econômico X
ou democrático)
Racionalidade predominante e modelos X
de comportamento humano
Concepções de interesse público X X
A quem os servidores públicos X
respondem

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Papel do governo X
Mecanismos de alcance dos objetivos X
políticos
Abordagem de accountability: X X
Suposta estrutura organizacional X
Supostas bases de motivação dos X
servidores públicos
Quadro 02: Síntese da Comparação Teórico - Prática
Fonte: Os autores.

Considerando a relação apresentada no quadro, percebe-se uma forte predominância de


elementos do modelo do Novo Serviço Público na organização estudada. E, apesar de ter
características de uma organização burocratizada e hierarquizada, os valores nela presentes estão
mais centrados na participação cidadã e na democracia.

6. Conclusão

Associações de bairro são organizações relativamente comuns na sociedade brasileira e


indicam um campo de estudo bastante interessante, principalmente se levarmos em consideração
a articulação político-comunitária envolvida. No caso estudado, apesar de contar com uma
metodologia inteiramente qualitativa e interpretativista, o que resulta numa certa limitação do
estudo, combinado ao fato de a amostra ter-se reduzido ao presidente e a uma funcionária da
organização, algumas constatações permitiram a reflexão sobre a realidade estudada.
Como foi observado na pesquisa, os valores que regem as atividades e os princípios da
associação de bairro estudada estão muito próximos dos valores defendidos no modelo do Novo
Serviço Público, residindo nessa questão, o ponto máximo de comparação entre teoria e a prática.
Constatou-se, com a pesquisa, que o modelo teórico estudado, apresenta aplicabilidade e poderia
ser ainda melhor desenvolvido se os valores defendidos pela associação de bairro também fossem
compartilhados pelos órgãos públicos.
Tal lacuna nos permite questionar sobre a validade das políticas públicas envolvidas no
caso e sobre a base de valores na qual determinados políticos eleitos e administradores públicos
se apóiam. O caso apresentado demonstra que não são raras as vezes em que os cidadãos se
reúnem para discutir e decidir sobre as questões que afetam suas vidas, num ambiente similar à
polis Grega, apresentada por Arendt (2004), em que todos são considerados iguais. Demonstra
também que não são raras as vezes em que os órgãos públicos deixam de escutar as deliberações
dos cidadãos. Tem-se como resultado a desmotivação em participar ativamente como cidadão e
exercer seu potencial reflexivo e sua natureza política, pois esta é suprimida pelo autoritarismo
dos órgãos públicos.
Da constatação dessa realidade específica, surgem as perguntas: Como desenvolver uma
administração pública que tenha a mesma base de valores apresentada no modelo do Novo
Serviço Público? De que forma as estruturas colaborativas, que atuam em co-produção para o
bem público, poderiam ser desenvolvidas partindo da mesma base de valores, de modo a
potencializar o desenvolvimento econômico-social e, principalmente, político, de determinada
região? Tais questões apresentam um certo grau de complexidade, uma vez que envolvem o
desenvolvimento de uma base de valores. Pelo estudo realizado, percebe-se que tal base está
deficiente, principalmente, na administração pública, o que nos permite concluir que, para
viabilizar uma estrutura colaborativa, políticos eleitos e administradores públicos deveriam rever

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seus valores, entender o significado da palavra democracia e, principalmente, aceitar que seu
papel é o de servir ao cidadão.
Como sugestão a futuros trabalhos na área, seria interessante uma pesquisa com os órgãos
públicos e as organizações privadas que atuam em conjunto com a comunidade, para identificar a
base de valores existente ao se desenvolver uma atividade de co-produção. Tal pesquisa, quando
focada na administração pública e comparada aos modelos apresentados por Denhardt e Denhardt
(2003), também colaborariam para o campo de estudo em questão.

Referencial Teórico

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BRUDNEY, Jeffrey L.; ENGLAND, Robert E. Toward a definition of the coproduction concept.
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HALL, Richard H. Organizações: estrutura e processos. 3. ed. Rio de Janeiro: Prentice-Hall do
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__________________. Florianópolis: CCPAN, 2005. (Anual)
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RAMOS, A. G. A nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. 2.
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YIN, Robert, K. Case study research: design and methodos. 2nd. ed. Thousand Oaks: SAGE,
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