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UNIVERSIDADE INTERNACIONAL DA PAZ (UNIPAZ-GOIÁS)

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM PSICOLOGIA


ANALÍTICA

RENATA FIORESE FERNANDES

NORMOSE: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IMPLICAÇÕES DA


PATOLOGIA DA NORMALIDADE

GOIÂNIA
2018
RENATA FIORESE FERNANDES

NORMOSE: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IMPLICAÇÕES DA


PATOLOGIA DA NORMALIDADE

Artigo apresentado para obtenção de nota referente ao


Núcleo Transdisciplinar do Curso de Pós-Graduação em
Psicologia Analítica realizado pela Universidade
Internacional da Paz (UNIPAZ-GOIÁS).

Orientadora: Profa. Dra. Sonia Bufarah


Tommasi

GOIÂNIA
2018
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NORMOSE: CONSIDERAÇÃO SOBRE AS IMPLICAÇÕES DA PATOLOGIA DA


NORMALIDADE

Renata Fiorese Fernandes1

Resumo
Este artigo busca discutir a patologia da normalidade como implicação do paradigma
cartesiano/separatista, na medida em que se constitui como hábitos e crenças
engendrados por um sistema preocupado em explorar e produzir, distanciando
assim o homem da natureza, pessoal e externa, sendo que, o possível resgate
dessa relação perpassa pela crítica consciente do que se entende por normalidade
na contemporaneidade, dando margem à uma possível nova produção de sentidos.

Palavras-Chave: Normose – Paradigma cartesiano – Paradigma sistêmico.

A NORMOSE E A MUDANÇA DE PARADIGMA

Uma das questões mais importantes suscitadas pelo Movimento Holístico no


contexto atual é a questão da quebra do paradigma cartesiano/separatista e a
construção de uma nova visão e compreensão de mundo com o paradigma
sistêmico ou holístico, sendo um dos temas centrais, o conceito de normose
existente por trás do paradigma cartesiano ultrapassado. Entende-se por paradigma
social:
“uma constelação de concepções, de valores, de percepções e de práticas
compartilhados por uma comunidade, que dá forma a uma visão particular
de realidade, a qual constitui a base da maneira como a comunidade se
organiza”. (CAPRA, 2006, p. 25)

A patologia da normalidade consiste em crenças, atitudes e valores


padronizados pregados pelo sistema vigente com o intuito de manutenção de uma
ordem econômica e social que necessita da exploração, tanto dos homens quanto
da terra, para conservação de um crescimento exponencial ilusório que coloca em
risco a vida do planeta. Trata-se de uma crise das mais diferentes ordens da
existência humana, pois perpassa a conjuntura social, a economia, política e
compreensão do que significa ser humano e o sentido da vida do homem na Terra.

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Psicóloga graduada pela UFG-Regional Catalão
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Neste sentido, a normose como patologia emerge como um apelo para um


olhar mais atento da relação do homem com a natureza, externa e interna,
sinalizando para a necessidade de mudança da compreensão do homem sobre si
mesmo, e também, sobre a amplitude do significado de bem-estar físico, mental e
espiritual, que consiste em um verdadeiro estado de plenitude e saúde integral.

A NORMOSE DA SEPARAÇÃO
A compreensão da conectividade de toda a natureza já é discutida, em alguns
lugares do mundo, à milhares de anos. E, para nossos antepassados, era uma
realidade. Vivia-se em harmonia com a natureza, na medida em que se consumia o
que era extritamente necessário, já que ainda não havia a ideia de posse nem de
capital.
Este é um conceito bastante presente na cultura oriental, existente em
filosofias como o hinduísmo e o budismo, incorporado no cotidiano e nos hábitos
orientais. Para os ocidentais a realidade é o outro extremo, por isso para nós torna-
se tão difícil viver na prática essa compreensão. O adoecimento ocorre pelo
distanciamento desta verdade.
Neste sentido, torna-se impossível cuidar de si sem cuidar das relações com
outrem, assim como é impossível cuidar de si, sem que esse cuidado se expanda
para o cuidado da natureza. Isto porque não existe separação. A separatividade não
passa de uma fantasia.
“..., ao estudarmos a gênese da destruição da vida no planeta, descobrimos
que sua raiz está em considerarmos a ilusão como normal. É um conceito
provido de concenso social que pode levar ao suicídio da humanidade. A
isso se acrescentou, então, a noção de concenso: uma crença partilhada
pela maioria.” (WEIL, 2003, p. 20)

Com a chegada da Revolução Industrial isso muda drasticamente, tanto em


relação à ligação do homem com a terra, de onde ele tirava seu sustento, como na
relação dos homens com outros homens, já que agora se instituia a ideia do trabalho
assalariado.
Junto com a competição, veio o individualismo, para progredir era preciso
separar-se, dos outros e do seu meio natural, enxergando-os apenas como
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concorrentes e como matéria-prima à ser explorada. E assim, o homem separa-se


também da sua essência, do Si Mesmo, conceito que é utilizado por Jung para
representar o arquétipo da integração da psique, e o homem, assim como os outros
animais, pertence à natureza, portanto, para ser inteiro, é preciso estar harmonizado
com ela.
Mas, com o crescimento do capitalismo selvagem, essa distância apenas
aumenta, assim como as psicopatologias. O homem perde a compreensão das
fases lunares, de sua influência sobre à água, às plantações e sob seus próprios
ciclos, ficando à mercê do consumo, na tentativa de preencher o buraco que a
separatividade de sua casa e mãe, formara.
A padronização da produção padronizou também comportamentos, com o
distanciamento de seu meio natural, o homem esquece de que tudo do qual
depende, provém como matéria bruta, da natureza, mas para sustentar seus hábitos
já arraigados de consumo, destrói o meio ambiente em uma tentativa insustentável
de crescimento exponencial.
A fantasia da separatividade, disseminada pelo antigo paradigma, engloba
tanto a normalidade de consumo, como a normalidade da devastação ambiental,
dois preceitos intimamente ligados concernentes à um dos fundamentos da normose
que se trata do fundamento sistêmico.
O fundamento sistêmico, segundo Crema (2003) “surge quando o sistema se
encontra dominantemente desequilibrado e mórbido. Então, ser normal passa a ser
ajustar-se à patologia reinante mantendo, assim, o status quo.” E assim perpetua-se
através das gerações, uma série de hábitos destrutivistas, na medida em que existe
a necessidade de se adequar à um comportamento cultural naturalizado.
Crema continua dizendo, que neste sentido, o desenvolvimento de uma
psicopatologia, como transtorno de pânico ou depressão, na verdade se torna um
indicativo de saúde, mental e espiritual, já que, adaptar-se à um sistema
profundamente doente, sem demostrar qualquer sintoma, isso sim, seria um sinal de
um adoecimento preocupante, que seria a patologia da normalidade.
O normótico se constitiu, portanto, no não questionamento, na medida em que
reproduz o que a cultura e a sociedade apresenta como comportamento padrão de
um cidadão bem sucedido e bem ajustado à ordem social, sem qualquer reflexão
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crítica sobre o sentido de tais hábitos e também sobre a sustentabilidade destes,


tanto à nível individual, quanto social, assim como as possíveis consequências da
manuntenção de tais comportamentos.

MUDANÇA DE PARADIGMA
Nos primórdios da existência humana, o sagrado era vivido como parte da
realidade cotidiana dos homens, isto porque, sem o desenvolvimento da razão,
todos os processos naturais, que permitiam a sobrevivência do homem, como as
chuvas, o nascimento e o pôr do sol para a chegada da noite e da bela lua, eram
sentidos como procedência divina, como manifestação direta da existência dos
Deuses, já que apenas devido à tais processos, se viabilizava a vida.
Nesta época, a normalidade era a integração. A compreensão das estações
do ano adquirida pela observação do movimento da natureza, permitia o cultivo
otimizado dos alimentos através do manejo das culturas de cada época e da
chegada das chuvas, realidade que ainda hoje é vivida por algumas culturas
indígenas e africanas que mantiveram esse contato com a terra, e também de
práticas permaculturais, como a agroecologia, que estão sendo resgatadas,
estruturadas e somadas à conhecimentos cientificos, apresentando uma solução
viável para um manejo sustentável de produção de alimentos.
Com as grandes navegações e colonizações, iniciadas por países europeus,
a ideia de progresso, levada por esse povos, residia na saída do campo para a vida
na cidade, na civilização, onde milhares de indígenas e africanos foram
escravizados para trabalhar em casas e em terras de grandes, ricos, senhores
feudais.
O Cristianismo, como ordem religiosa dominante, pregava a compreensão de
um Deus inacessível, bem distante dos homens, no reino dos céus, que apenas
aceitaria almas servientes aos grandes Reis que se denominavam porta-vozes de
Deus na Terra e que, por isso, mereciam obediência obstinada.
Mais algum tempo depois, com a chegada do racionalismo e do Discurso do
Método de Descartes, símbolo da ciência cartesiana, consolida-se ainda mais, a
separatividade do homem com o princípio divino, ascendido pelo contato genuíno
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com o natural, na medida em que se disseminava, pelo paradigma separatista


vigente, que o homem, pela sua ordem de grandeza e poder, poderia, portanto,
dominar, usufruir e utilizar os recursos naturais ao bel prazer de suas necessidades
fabricadas.
Com a Revolução Industrial e expansão da propriedade privada, esse
afastamento e exploração aumentam em um grau que hoje coloca em risco a
sustenção da vida de diversas espécies animais e também do próprio homem, que
com seus hábitos consumistas exarcebados, produzidos por um sistema que lucra
com a destruição e com a morte, funcionando como se o planeta pudesse suportar
um crescimento exponencial econômico, caminha para a própria extinção.
Diante deste cenário preocupante, alguns movimentos contrários começaram
a surgir em meados da década de 60, na chegada da Era de Aquário. O primeiro
indício do nascimento de uma “Contracultura”, termo criado por Theodore Roszak
(1972) para se referir ao Movimento Hippie nos Estados Unidos, foi a articulação
destes jovens que se recusaram a compactuar com o recrutamente de milhares de
homens para a Guerra do Vietnã, que ficou conhecido através das gerações como
uma revolução de pensamento, que se manifestava contrária à sociedade
conservadora da época.
Tendo como principal bandeira o slogan da paz e do amor, este movimento
também foi responsável por trazer ao Ocidente vários preceitos de filosofias
Orientais, dando espaço para o surgimento das terapias holísticas integrativas e,
com isso, suscitar uma nova compreensão da vida e do homem, como parte
integrante da natureza, que se faz em conjunto com outros, por isso a necessidade
do respeito mútuo e da compreensão das diferenças.
Mais tarde essa visão também começa a ser incorporada na ciência, sendo
um dos marcos da evolução de pensamento o desenvolvimento da física quântica,
que traz uma perspectiva totalmente nova e abrangente sobre a influência do
indivíduo na percepção e na construção de sua própria realidade.
Abre-se assim, a possibilidade da construção de um novo paradigma, de uma
nova forma de olhar o mundo, chamado, por Fritjof Capra (2006), de paradigma
sistêmico:
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“O novo paradigma pode ser chamado de uma visão de mundo holística,


que concebe o mundo como um todo integrado, e não como uma coleção de
partes dissociadas. Pode também ser denominado visão ecológica. A
percepção ecológica profunda reconhece a interdependência fundamental
de todos os fenômenos, e o fato de que, enquanto indivíduos e sociedades,
estamos todos encaixados nos processo cíclicos da natureza.” (CAPRA,
2006, p. 25)

A retomada da integração como normalidade engloba fenômenos como o da


transdisciplinariedade e transreligiosidade, na medida em que as fronteiras entre os
campos de conhecimento são dissipadas, abre-se as portas da percepção para
interconectividade dos processos vitais como uma rede de relações
interdependentes, diferenciando-se apenas em nível de complexidade dos sistemas.

A NORMOSE DO SER
O homem é o único animal na natureza que não nasce pronto, os outros
filhotes no reino animal, em sua maioria, nascem como pequenas réplicas dos
adultos, sendo necessário apenas que cresçam em tamanho e agucem os sentidos
e instintos. Nas palavras de Campbell (apud Crema, 2003) :“Nós não nascemos
humanos, nos tornamos humanos.”
Para o homem, como ser social, é necessário que sua inserção na dinâmica
da sociedade seja intermediada por outros agentes humanos, papéis geralmente
desempenhados pelos pais. Só assim, em relação com outros homens, é que a
criança se desenvolve, sendo inserida na cultura, apresentada à sua língua natal e
aprendendo os hábitos e comportamentos típicos do homem.
Cabe apenas a esse homem, quando nasce, a introjeção de uma série de
valores e comportamentos já dados e há muito perpetuados, sem que, de
preferência, ocorra qualquer espécie de questionamento sobre tais. A este conjunto
de hábitos concebemos como normalidade, pelo concenso social existente. Segundo
Jean-Yves Leloup (2003) “...a normose é um sofrimento como a neurose e a
psicose. É ela que nos impede de sermos realmente nós mesmos. O concenso e a
conformidade impedem o encaminhamento do desejo no nosso interior.”
O medo do desconhecido e a já aprendida aversão à diferença, impede a
maioria dos normóticos de se questionar sobre a normalidade, mesmo que, no fundo
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de sua alma eles sintam a sensação da falta de algo que dê sentido à vida. Essa
resistência, em casos mais acentuados, pode levar o indivíduo à somatização e
será, através da dor ou/e do incômodo, forçado à um questionamento mais
aprofundado e a tomada de consciência sobre si.
“Tornar-se uma pessoa é um caminho. Por intermédio de cada um, o desejo
continua sua rota, Trata-se de ir ao encontro da identidade transpessoal.
Não basta ser apenas eu, um ego. No interior de cada um de nós, podemos
sentir o chamado do Self. Através da experiência do numinoso,
descobrimos que há algo maior do que nós. Algo mais inteligente e mais
amoroso do que nós. Mas temos medo de enlouquecer, de perder o ego, de
perder o que foi construído no ambiente das relações parentais familiares e
sociais.” (LELOUP, 2003, p. 31)

A saída da normose implica a assunção da responsabilidade de ser quem se


é, para muitos, esse é um dever difícil de carregar, isto porque, não haveria mais
espaço para a vitimização, não é mais possível projetar a culpa para o exterior, em
outrem, pois adquiri-se então a compreensão profunda do karma e Dharma, no
sentido de que tudo o que acontece na vida do indivíduo é produzido, em alguma
instância, por esse indivíduo, seja à nível consciente ou inconsciente.
“É o fato de ter uma tarefa a cumprir que torna cada um de nós
insubstituível, dando um sentido à nossa existência. Essa não é uma tarefa
reservada aos sábios e profetas, mas é o que cada ser humano pode
realizar em sua existência. Só nos tornamos realmente quem somos se
formos na direção do outro.” (LELOUP, 2003, p. 74)

Junto a esta compreensão, percebe-se a seriedade de Ser, na sua unicidade,


como microcosmo, fragmento do macrocosmo, que possui, na beleza de sua
individualidade, a missão de colocar no mundo o que apenas essa parcela única de
autenticidade poderia oferecer, por isso, ao despojar-se da normose, dissolve-se
com ela a ilusão da separação com o Todo e a entrada em um novo paradigma de
percepção de mundo, o paradigma sistêmico.
A proposta do questionamento da normalidade, surge, portanto, como uma
ampliação da consciência sobre nós mesmos, à nível individual e coletivo, uma vez
que todo e qualquer comportamento perpetuado pela cultura torna-se alvo de
análise crítica com o objetivo de suscitar uma compreensão aprofundada do ser
humano e da sociedade, fenômenos intrinsecamente conectados e extremamente
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complexos, o que reforça ainda mais a necessidade de se realizar esse exercício


constante do questionar com o intuito de conhecer, posto que, a propriedade básica
da própria vida é o movimento e a mudança, para que se torne possível acompanhar
este fluxo, nenhum fenômeno deve ser considerado como dado, fechado, totalmente
compreendido. A beleza do processo de auto-conhecimento está no constante
estranhamento consigo mesmo e com o mundo, o mistério do desconhecido é o que
fomenta a energia do viver, para que possamos continuar questionando e
aprendendo.

REFERÊNCIAS
BILIBIO, M. A. De Frente para o Espelho: Ecopsicologia e Sustentabilidade. Tese de
Doutorado, Centro de Desenvolvimento Sustentável. Universidade de Brasília, DF,
2013. 165 p.

CAPRA, F. A Teia da Vida: Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos.
1. ed. 10. reimpr. São Paulo: Cultrix, 2006. (Originalmente publicado em 1997).

CIAMPA, A. C. A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de


psicologia social. 1. ed. 7. reimpr.). São Paulo: Brasiliense, 2001. (Originalmente
publicado em 1987).

FOSTER, J. B. A Ecologia de Marx: Materialismo e Natureza. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2005.

ROSZAK, T. A Contracultura. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1972.

WEIL, Pierre; CREMA Roberto; LELOUP, Jean Yves. Normose: a patologia da


normalidade. São Paulo: Verus, 2003.
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