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GILMA GODINHO
20180202774
RIO DE JANEIRO
2019
GILMA GODINHO
20180202774
RIO DE JANEIRO
2019
Fábrica do Poema
Fábrica do Poema1
Sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-me os dedos estarrecidos.
Sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oximoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?
1
A poesia Fábrica de Poema foi escrita por Waly Dias Salomão (1943-2003) e publicada pela primeira vez em seu livro
Algaravias: Câmara de Ecos, em 1996. Antes mesmo de sua publicação, recebeu melodia da cantora Adriana Calcanhotto,
que acrescentou ao título da poesia, o artigo A. (Judite Silva, 2010).
Um poema de arquitetura ideal: palavra por palavra
2Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais. (Laplanche e Pontalis, 2000).
3 Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz o organismo tender
para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo
ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte puisional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a
sua meta. (Laplanche e Pontalis, 2000).
referenciamos aos casos de Neurose. Citamos dois: O Recalque – tomando emprestado as
palavras do poema acima, “expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada” -; e a
Sublimação4.
A criação de uma poesia, assim como de uma melodia são soluções civilizatórias que
possibilitam a sublimação da pulsão, portanto, tornam-se formas de obtenção de satisfação,
sempre parcial, porém muito potente, posto que dribla o recalque, satisfaz parcialmente a pulsão
e obtém reconhecimento na cultura. (FREUD, 1915)
O poema de Waly Dias Salomão (1943-2003) publicado em 1996, que recebeu melodia
da cantora Adriana Calcanhotto e que abre este trabalho, aponta para os sonhos como uma
tentativa de realização de desejo, ou seja, como uma forma substitutiva de obter satisfação a
partir da fala do inconsciente. O sonho é um “ato psíquico”, nos ensina Freud, e como ato age
na sua essência concedendo voz ao inconsciente do sujeito.
Em A Interpretação dos Sonhos (1900), Freud nos convida a refletir sobre o material
presente nos sonhos. Conforme nos ensina, todo material existente nos sonhos possui relação
com os acontecimentos cotidianos dos sujeitos, no entanto, percebemos que uma ligação
possível entre os acontecimentos e os conteúdos do sonho, muitas vezes permanecem ocultos
requerendo longo tempo para compreensão. Ao acordar muitas vezes esquecemos o que
sonhamos, e durante o dia ou após um tempo indeterminado algum elemento do sonho surge
como um lampejo fazendo-nos questionar as razões pelas quais os elementos surgiram somente
agora.
A obra de Waly Salomão, Fábrica de Poemas, o qual nos faz supor um texto
metalinguístico sobre a fabricação de um poema, descreve o sonho do poeta: “um poema de
arquitetura ideal.” Neste sonho, os elementos do cotidiano do poeta se apresentam para o
público leitor, como supomos a partir da leitura de Freud: “Os sonhos não produzem mais do
que fragmentos de reproduções; e isso constitui uma regra tão geral que nela é possível basear
conclusões teóricas.” (FREUD, 1900, p. 40). Ainda na mesma obra, Freud afirma: “Sem dúvida
nos terá surpreendido a todos saber que sonhos não passam de realizações de desejos.” (p. 529).
Essa conclusão parte da análise de um sonho do próprio Freud – O Sonho de Irma, – em
que elemento por elemento, ou tomamos emprestado do poeta Salomão, fiapo por fiado, é
interpretado pelo autor do sonho, oferecendo sentido aos acontecimentos do próprio material
sonhado:
4Tipo particular de atividade humana (criação literária, artística, intelectual) que não tem nenhuma relação aparente com a
sexualidade, mas que extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um alvo não sexual, investindo
objetos socialmente valorizados. (Elisabeth Rudinesco, 1997).
O sonho representou um estado de coisas específico, tal como eu desejaria que
fosse. Assim, seu conteúdo foi a realização de um desejo, e seu motivo foi um
desejo [...] quando o trabalho de interpretação se conclui, percebemos que o
sonho é a realização de um desejo. (FREUD, 1900, p. 132-135)
A partir dos ensinamentos de Freud, sabemos que existem dois tipos de sonhos: um cujo
sentido fala abertamente sobre a realização de um desejo e outro cuja realização se mostra um
tanto irreconhecível e disfarçada de todos os meios possíveis. Este segundo tipo, o qual nos
referimos, são os Sonhos de Angústia - o famoso pesadelo, na linguagem popular. Somos
acordados do sonho de angústia porque o Eu reconhece um fragmento da ideia intolerável que
não sofreu elaboração onírica suficiente para deformação. Por esta razão acordamos e sentimos
angústia. A angústia é sempre do Eu, nunca é do inconsciente. Esse despertar do pesadelo
mostra que, em alguma medida, a ideia insuportável apareceu algum dia na consciência. A ruim
sensação no despertar de um pesadelo denuncia que um fragmento da ideia intolerável passou
sem a deformação da elaboração onírica. O Eu nos dá sinais de que a ideia já esteve ali e, a sua
maneira, clama por socorro. A angústia aponta a presença do material.
Sonhos e atos falhos, como já mencionamos anteriormente, possuem a mesma
formação. Logo, o mesmo ocorre com o chamado ato falho: material inconsciente que irrompe
à consciência sem pedir licença causando-nos grande desmonte e constrangimento quando
percebido por quem cometeu o ato. Dependendo do que se desvela deste material, a angústia
torna-se absurda pois o material surgiu sem nenhuma deformação.
Os sonhos podem ser lembrados, pois tomamos conhecimento deles por meio de
recordações logo que acordamos. No entanto, estamos certos de que pela manhã ao acordamos,
grande parte do conteúdo sonhado durante o estado do sono, são esquecidos ou permanecem
inacessíveis à nossa consciência. Frequentemente temos a sensação de ter recordado apenas
alguns fragmentos, e da mesma forma compreendemos que no decurso da noite ocorreu algo
mais no sonho. Também notamos que no decorrer do dia - como um leve papel solto à mercê
do vento - a imagem daquilo que sonhamos se dissipa. Durante à tarde e à noite, o sonho que
pareceu estar mais vivo pela manhã, evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido.
Deste modo, sabemos que sonhamos muitas vezes sem atinar para o que sonhamos. Por outro
lado, “ocorre às vezes que os sonhos mostrem extraordinária persistência na memória.”
(FREUD, 1999, p. 61)
A explicação para o esquecimento dos sonhos é complexa e está atribuído a uma série
de causas expostas a seguir. A primeira delas seria: da mesma forma como esquecemos fatos
do dia vividos em estado de vigília, assim o é com os sonhos, logo, a operação é a mesma.
Segundo Freud: “Quando estamos acordados, normalmente nos esquecemos, de imediato, de
inúmeras sensações e percepções, seja porque foram fracas demais, seja porque a excitação
mental ligada a elas foi excessivamente pequena.” (p. 61); a segunda razão seria: temos a
tendência a esquecer eventos que ocorreram apenas uma única vez e considerando que a
imagem onírica constituem experiências únicas, a tendência é que não fique registrado com
facilidade na memória; já a terceira está lidada a ausência de concatenações e agrupamentos
apropriados das sensações e representações, portanto, os isolamentos, conduzem ao
esquecimento: “quando um verso curto de uma composição poética é dividido nas palavras que
o compõem e estas são embaralhadas, torna-se muito difícil recordá-lo.” (FREUD, p. 61); outra
razão gira em torno do pouco interesse, por parte das pessoas, acerca do seu próprio sonho. A
quinta e sexta razões que buscam explicar os esquecimentos dos sonhos são que: “a alteração
da cenestesia entre os estados de sono e de vigília é desfavorável à reprodução recíproca entre
eles; e que o arranjo diferente do material ideacional nos sonhos os torna intraduzíveis [...] para
a consciência de vigília.” (p. 63)
Além de refletir sobre o esquecimento de elementos do sonho no decorrer do dia e ao
acordar, Freud também sabia que os sonhos nunca eram contados como de fato ocorreram.
Havia sempre algumas lacunas, sempre havia espaços ou mudanças de narrativas sobre o
conteúdo sonhado. Inclusive situações opostas aquilo que o sonho apresentava.
Toda a teoria freudiana está assentada, desde o início, naquilo que se chama desejo e
todo desejo, sabemos, aponta para uma falta. Segundo Lacan:
O que Freud descobriu essencialmente, o que ele apreendeu nos sintomas [...]
quer se tratasse do que ele interpretou no que até então se apresentava como
mais ou menos redutível à vida normal, como o sonho, por exemplo, foi
sempre um desejo. E mais ainda, no sonho ele não nos falou simplesmente de
desejo, mas de realização de desejo, Wunscherfüllung. Há um dado que não
deve deixar de nos impressionar, ou seja, que foi precisamente no sonho que
ele falou de satisfação de desejo. Evidencia-se [...] que o desejo está ligado a
alguma coisa que é sua aparência, e para dizermos a palavra exata, sua
máscara. (LACAN, 1957-1958, p. 331)
Lacan (1957-1958) nos chama atenção para um detalhe. Ele nos diz que a máscara é a
forma como o sintoma se apresenta e cita o caso da paciente Elizabeth Von R, a qual iniciamos
este trabalho. Seu sintoma aparecia na forma de dores em uma das pernas e dificuldades para
caminhar. A isso estavam ligados os afetos com o pai, cunhado bom, mau e o rapaz o qual
enamorou-se. Lacan nos explica que a ideia de máscara traz em seu significado a manifestação
do desejo sob uma forma dúbia, que exatamente não nos autoriza conduzir o sujeito a esse ou
aquele objeto da situação. Ele diz: “Há um interesse do sujeito na situação como tal, isto é, na
relação desejante. É precisamente isso que é exprimido pelo sintoma que aparece, e é isso que
chamo de elemento de máscara do sintoma” (p. 337)
Quando o paciente chega até nosso consultório e nos conta que quer se livrar de algo,
verdadeiramente devemos estar cientes que ele quer, mas que também não quer livrar-se daquilo
que o incomoda. O desejo, na experiência analítica, se apresenta como sintoma. “Esse caráter
duplo do desejo inconsciente, que, ao identificá-lo com sua máscara, faz dele algo diferente do
que quer que se dirija para um objeto, é algo que não devemos jamais esquecer.” (p.338) A
formação do inconsciente é uma máscara para o desejo.
No sonho, o poema-miragem – realização de um desejo – se desfaz desconstruindo como
se nunca houvera sido. As figuras de linguagem no poema como oximoros, metonímias e
aliterações estão sumidos no sorvedouro. Diante disso, restam-se infrutíferas as tentativas
possíveis de se retomar àquela construção poética de arquitetura ideal, tão perfeita e desejada
como ocorreu a partir do sonho, porque o desejo, já nos dizia Freud e Lacan, sempre se servirá
de uma máscara. Resta saber qual delas, ele vestirá.
Referências
FREUD, Sigmund. (1893-1895). Estudos sobre a histeria. São Paulo: Companhia das Letras,
2016.
SILVA, Judite Maria de Santa. Waly Salomão: algaravias do pós-tudo. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Pernambuco, 2000.