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ÉTICA DA DECISÃO

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GEORGE W. FORELL

ÉTICA DA DECISÃO
INTRODUÇÃO À ÉTICA CRISTÃ

5a edição
(revisada)

Editora
Sinodal
1994

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Traduzido do original inglês Ethics of Decision, © 1955 Fomess Press, Phila-
delphia, Estados Unidos da América.

Os direitos para a língua portuguesa pertencem à

Editora Sinodal
Rua Amadeo Rossi, 467
93030-260 São Leopoldo - RS
Tel.: (051 ) 592-6366
Fax: (O51) 592-6543

Tradução: Walter Müller e Luís M. Sander

Série: Teologia Sistemática b-2

Publicado sob a coordenaÇão do Fundo de Publicações Teológicas/Instituto


Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia da Igreja Evan-
gélica de Confissão Luterana no Brasil.

ISBN: 85-233-0175-5

Impressão: Gráfica Sinodal

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ÍNDICE

Prefácio .................................................................................................................7
Prefácio para a edição em língua portuguesa .......................................................9

Introdução........................................................................................................... 11

Parte I: A Vida do Homem sob a Lei ..............................................................17


A Vida como Decisão .........................................................................................19
Estágios Pré-Éticos .........................................................................................22
Ética Prudencial ..............................................................................................26
Ética Estética ..................................................................................................34
Ética Idealista .................................................................................................38

A Busca Religiosa de Valor ................................................................................42


Legalismo ..................................................................................................... 43
Misticismo .....................................................................................................45
Racionalismo .................................................................................................48

A Vida do Homem e o Juízo de Deus ................................................................ 51


A Imagem de Deus ........................................................................................52
Pecado Original e Pecados ............................................................................54
A Vida do Hómem e a Lei de Deus ...............................................................60
A Natureza da Lei Divina ............................................................................. 61
O Uso Próprio da Lei .....................................................................................64
O Uso Político da Lei ....................................................................................65
O Homem Moderno e a Lei de Deus .............................................................66

Parte II: A Vida do Homem sob o Evangelho .............................................. 69

A Natureza do Evangelho ................................................................................. 71

A Natureza da Fé Cristã ................................................................................... 74

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O Discipulado Cristão ...................................................................................... 76

O Culto Cristão .............................................................................................. 81

A Compreensão Cristã de Autoridade ............................................................ 83

A Compreensão Cristã de Comunidade .......................................................... 86

O Cristão e o Sexo ........................................................................................... 89

Trabalho e Propriedade ................................................................................... 91

Integridade ........................................................................................................ 94

Cobiça ............................................................................................................... 96

Ética da Decisão .............................................................................................. 99

Notas ............................................................................................................... 103

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PREFÁCIO

Este livrinho foi planejado para constituir uma breve introdução à ética
cristã. Seu objetivo é auxiliar o leitor a atingir uma compreensão mais clara do
Sentido da vida cristã em nossa época. Por essa razão a vida cristã é apresentada
contra o pano de fundo e dentro do contexto de vários outros esforços contem-
porâneos para entender o sentido da existência humana.
Fez-se um esforço, especialmente na primeira parte, para examinar as
alternativas possíveis à vida cristã. É a premissa básica desta abordagem que
toda pessoa, e especialmente toda pessoa instruída, precisa encontrar algum
princípio orientador que lhe possibilite viver uma vida coerente. Esse princípio
de integração pode ser encontrado em muitas ideologias contemporâneas . Em
todo caso, ele determinará a ética da pessoa que o escolher. A fé cristã torna
possível um modo de vida. Ela apresenta uma alternativa às outras ideologias de
nossa era. No mundo moderno, entretanto, freqüentemente essa alternativa
cristã nem mesmo é apresentada. De qualquer forma, não é oferecida como uma
alternativa séria ao "pragmatismo", "naturalismo", "relativismo" ou "positi-
vismo", mas na melhor das hipóteses como um adesivo sentimental da socie-
dade para aqueles que não podem acompanhar a argumentação lógica dos
defensores das outras alternativas. Contudo, como o cristianismo tem sido
durante muitos séculos o único modo de vida verdadeiro para muitas pessoas de
todos os níveis de inteligência, ele merece uma atenção imparcial. Espera-se
que as páginas seguintes contribuam um pouco para esclarecer o modo de vida
que está arraigado na fé de que "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo
o mundo".
O autor gostaria de expressar sua gratidão aos muitos amigos que leram o
manuscrito e fizeram sugestões úteis.
Acima de tudo, o autor agradece à sua esposa, Betty, a quem este livro é
dedicado.
Reconhecimento é devido aos seguintes editores, por sua gentil permissão
para que se fizessem citações de obras protegidas por direitos autorais: The
Macmillan Company, New York: Rudolf Otto, Mysticism East and West, e C. S.
Lewis, Christian Behaviour, The Philosophical Library, New York: Simone de
Beauvoir, The Ethics of Ambiguity; Princeton University Press, Princeton:
Robert Bretall, A Kierkegaard Anthology; Random House, New York: The
Philosophy of Nietzsche e Selected Papers of Bemand Russell; The Ronald
Press Company, New York: Charles H. Patterson, Moral Standards.
Iowa City, Iowa
Dia da Ascensão, 1955 George W. Forell

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PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO
EM LÍNGUA PORTUGUESA
Uma das maiores satisfações de ser autor é a oportunidade de comparti-
lhar idéias com um número maior de pessoas do que jamais se poderia encon-
trar pessoalmente. Quando um livro é traduzido para outro idioma, essa opor-
tunidade de compartir é multiplicada mais ainda.
Saúdo a todos aqueles que vão ler este livrinho na língua portuguesa,
como anteriormente pude saudar aos que o estão lendo em japonês. Nos
Estados Unidos o livro está sendo usado em igrejas e escolas como introdução à
ética cristã e como instrumento para relacionar lei e evangelho, as normas
sociais e políticas que regem este mundo com o poder de Cristo que torna os
cristãos capazes de atuar como pecadores perdoados e levar o amor de Deus a ;
todas as áreas da vida humana.
O autor sentir-se-á recompensado se qualquer um de seus leitores encon-
trar, nas páginas que se seguem, ajuda e orientação para as decisões inevitáveis
que constituem a vida.

Iowa City
Março de 1973
George W. Forell

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INTRODUÇÃO

A questão crucial com que se confronta nossa época é a questão da ética:


como devemos estabelecer o certo e o errado? Como podemos distinguir o bem
do mal? Sem dúvida este problema tem sido sempre importante. No entanto, em
outras épocas a resposta parecia bem mais simples. As pessoas supunham ter a
resposta. Tinham certeza de que as leis morais de sua sociedade eram válidas.
Podiam existir indivíduos perversos que habitualmente transgrediam essas leis,
mas todas estavam convencidas de que isso era culpa desses indivíduos, e não
das leis.
Mesmo que todas as pessoas tivessem que admitir que ocasionalmente
deixavam de viver conforme os critérios ou padrões morais de sua sociedade,
consideravam isto uma reflexão sobre sua própria imperfeição, e não sobre a
validade da lei moral. Quando Sócrates discutiu com Êutifron a respeito da
natureza da piedade, há mais de dois mil anos, afirmou confiantemente que
ninguém sustentaria que um malfeitor não deveria ser punido. As pessoas,
naquela época como agora, negavam que fossem malfeitores, que tivessem
cometido quaisquer crimes, mas nunca afirmaram que os culpados não deve-
riam ser punidos, que na realidade não existem o certo e o errado.
De modo semelhante, os critérios de certo e errado dos índios kwakiutl da
Ilha de Vancouver podem ter diferido profundamente de nossos critérios éticos,
mas eles nunca duvidaram da validade de suas normas éticas. Apesar de o ser
humano ter sido sempre questionado por suas leis éticas, estas raramente eram
questionadas por ele.
Foi deixado por conta de nossa época negar a possibilidade de culpa. Não
estamos seguros de que exista algo assim como certo e errado, bom e mau. E
essa completa incerteza acerca dos valores morais está na raiz da terrível
confusão de nossa época. Esse caos ético é a razão última de todas as nossas
outras divisões e conflitos. Devido a essa nossa incerteza sobre os critérios de
certo e errado, o mundo, que em alguns sentidos está mais unido do que nunca,
está simultaneamente dividido como nunca esteve antes.
O mundo em que vivemos é um só mundo de muitas maneiras. Isto é
verdade em termos técnicos, econômicos e geográficos. A ciência usa uma
linguagem universal de símbolos e medidas matemáticas. As descobertas que
um cientista faz hoje amanhã serão propriedade universal de todos os cientistas.
Essa unidade parece ser um fato da vida que políticos e militares não podem
alterar. A bomba atômica foi um desenvolvimento científico do qual participa-
ram pessoas de uma dezena de nacionalidades; ela não podia ser mantida como
um "segredo nacional". Científica e tecnicamente o mundo é um só.

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Isto é igualmente verdadeiro no domínio da economia. Dependemos dos
recursos econômicos de quase todos os países do mundo. Para fazer as roupas
que usamos, os carros que dirigimos, as casas nas quais moramos, utilizam-se
materiais provenientes de todo o mundo. Distúrbios econômicos no Brasil
podem afetar o preço de uma xícara de café para nós. E da marcha dos
acontecimentos no Oriente Próximo pode depender a possibilidade de dirigir-
mos um carro ou não.
As distâncias geográficas reduziram-se à completa insignificância. Tive
um aluno que pilotava um avião ao redor do mundo nos fins de semana e às
terças-feiras estava de volta às aulas como se nunca se houvera ausentado.
Custa menos tempo e esforço, hoje em dia, ir à Europa ou Ásia do que custava
visitar parentes em uma cidade vizinha, há cem anos. Meios de transporte cada
vez mais rápidos unem este mundo em termos geográficos: um mundo que
outrora estava dividido por rios, montanhas e oceanos.
Mas, apesar dessa unicidade material, o mundo está espiritualmente mais
dividido do que nunca. Pode ter sido difícil viajar da Rússia à Grã-Bretanha no
século XVII, mas após a longa jornada as pessoas encontravam outras que
acreditavam nos mesmos valores básicos, que acreditavam que há um único
Deus e que os Dez Mandamentos são a expressão fundamental de sua lei para a
humanidade. Hoje basta atravessarmos o corredor de nosso prédio de aparta-
mentos para encontrar pessoas que vivem em um mundo completamente dife-
rente, no qual não existe Deus nem lei divina, onde imperam apenas o egoísmo,
os instintos animais, a "sobrevivência do mais apto". Muitas pessoas hoje crêem
que "certo" é meramente sinônimo de "útil para seu grupo" e que a lei moral é o
egoísmo codificado das pessoas que estão no poder. Existem tantos mundos
quantos grupos desses que acreditam serem sua própria lei.
A anarquia dos valores dividiu este mundo, materialmente uno, num
número sempre crescente de mundos que absolutamente não se compreendem
uns aos outros. Podemos usar a mesma linguagem científica, depender econo-
micamente uns dos outros e ter condições de viajar rapidamente de um lugar
para outro, porém vivemos cada vez mais em mundos diferentes.
Quando menino, aprendi que os alemães haviam inventado o avião e o
telefone. Nos Estados Unidos, aprendi que os americanos é que os haviam
inventado. Sei que na Rússia se aprende que os inventores foram russos. Pode
não importar realmente quem na verdade inventou esses aparelhos, mas essa
confusão acerca de algo que deveria ser bastante fácil de estabelecer mostra
como nosso mundo está se dividindo em mundos diferentes onde nem mesmo
os "fatos" permanecem constantes. Ser comunista é um crime nos Estados
Unidos e uma virtude na Rússia. Crer no capitalismo é um crime na Rússia e
umá virtude nos Estados Unidos. A democracia social é desaprovada em ambos
os países, mas é o mais adequado na Suécia.
Na verdade, este mundo é unido apenas materialmente. Espiritualmente
está mais dividido do que nunca na história. A causa de nossa confusão é o caos
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dos valores e dos critérios morais. Isto se mostra claramente no âmbito da fé:
não existe uma fé prevalecente, que abranja toda a nossa civilização e a domine.
Houve uma época, na Europa e em certas partes dos Estados Unidos, em que se
podia dizer com segurança que o cristianismo dominava as vidas de toda a
população. Obviamente isto não significa que naquele tempo todos fossem
cristãos. Mas na Europa do século XII não havia nenhum aspecto da vida que
não estivesse, de alguma forma, relacionado com valores cristãos; o mesmo
poderia ser dito a respeito da Genebra do século XVI, da Escócia ao tempo de
John Knox ou das colônias fundadas pelos "pilgrim fathers", os puritanos
ingleses que emigraram para os Estados Unidos.
Não é só o cristianismo que ofereceu tais estruturas de valores que
dominaram a cultura em períodos diversos da história; o maometismo, o hin-
duísmo e o budismo fizeram o mesmo. Houve muitas épocas em que o mundo -
todo o território que se sabia existir, o mundo conhecido na época - foi
dominado por uma única fé.
O mundo contemporâneo não está realmente dominado por tal fé. O
hinduísmo não domina a Índia. Quando se conversa com um hindu moderno,
ele parece tão secularizado como seu interlocutor norte-americano. A estrutura
de valores cristãos não domina a Europa ou os Estados Unidos. Isto é apenas
uma ilusão conveniente. Não existe uma fé dominante e abrangente que daria
sentido à vida de todos os seres humanos em toda parte.
Mas novamente estamos envolvidos em uma contradição peculiar. En-
quanto falta essa fé una, temos mais crenças do que as pessoas de qualquer
outra época - nenhuma fé real, mas numerosas crenças substitutivas. Isto é fácil
de observar em outras pessoas. Os alemães que acreditavam na raça e na
terra - raça e terra alemãs, é claro - foram um bom exemplo. Eles substituíram
sua fé cristã anterior pela fé na sua raça e em um homem, Hitler, que era
praticamente deificado.
O mesmo pode ser dito a respeito da Rússia. O comunismo é uma religião
que tem tudo o que qualquer religião sempre teve, exceto um deus verdadeiro;
é uma religião substitutiva. Entre nossos contemporâneos, muitos se tomaram
comunistas porque o ser humano precisa de uma religião e a educação deles
havia destruído sua fé em todas as religiões tradicionais. Homens como
Chambers, Hiss ou Klaus Fuchs não se tomaram comunistas por dinheiro ou
prestígio; estes e muitos outros se tornaram comunistas porque o ser humano é
um ser crente. Se o seu coração não estiver tomado pela fé cristã, alguma outra
coisa ocupará seu lugar. No caso de Chambers, Hiss e Fuchs foi o comunismo.
Alguns desses convertidos, desiludindo-se com a religião comunista, es-
creveram um livro que expressa esta desilusão: The God That Failed (“O Deus
que Fracassou”). Alguns dos autores são Richard Wright, Arthur Koestler e
Ignazio Silone. Todos eles revelam que o mundo que não tem uma fé prepon-
derante será dominado por religiões sobressalentes, as crenças substitutas que
tomam o lugar da fé verdadeira.
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É típico de nossa confusão de valores o fato de que a fé em Deus foi
substituída pela fé em vários expedientes, idéias e personalidades humanas.
Pessoas que não mais crêem no Salvador forjam seus próprios salvadores, os
adoram e glorificam com zelo idólatra. Essas crenças substitutas podem apare-
cer em versões diferentes nos diversos lugares do mundo, mas em toda parte se
observa o mesmo caos de valores. A confiança no ser humano e nas suas
conquistas substituiu uma fé em Deus integradora e unificadora.
Às vezes um forasteiro pode perceber isto melhor do que nós. O
professor Arnold Nash certa vez falou a respeito do filho de um chefe africano,
um jovem muito brilhante, que viera estudar na Inglaterra. Depois de algum
tempo no país, ele disse a Nash que os ingleses eram politeístas. Esta era sua
opinião literal. O ser humano moderno tem muitos deuses, muitas crenças que
coexistem, sem que haja uma fé dominante que controle a tudo. Esse jovem
intelectual africano contou que encontrara pessoas que eram bons membros de
Igreja, mas que diziam: "Negócio é negócio." O deus dos negócios existia, com
os seus preceitos, ao lado do Deus da Igreja dessas pessoas. Elas prestavam
culto em ambos os santuários, só que com muito mais freqüência no santuário
do deus dos negócios. Existem também pessoas que dizem: "Política é política."
Quanto ao mais são membros da Igreja, mas a política tem suas próprias regras
e valores, que não se encontram no Novo Testamento. E a gente não deve
misturar a política com o cristianismo. Há outras que afirmam: "Educação é
educação." E uma tarefa completamente independente de todas as outras; e
certamente o cristianismo não deveria ser introduzido de modo a confundir o
trabalho dos educadores!
Esse jovem africano encontrara uma senhora que entalhava pequenas
obras em madeira. Ele perguntou por que ela o fazia: queria vendê-las? Não!
Queria colocá-las em exposição? Não! Ela explicou: "Sabe, pratico a arte pela
arte. Você não entende?" E o africano, que não entendeu, percebeu que o
homem branco tinha tantos deuses, que adorava simultaneamente, quantos
tinham as tribos politeístas da África: negócios, política, educação, arte e muitos
outros.
É verdade que não temos a fé que faria de nossa vida um todo. Substituí-
mo-la por muitas crenças e diversos critérios substitutivos que fazem de nossa
vida um caos. Como esses vários deuses e suas exigências não concordam uns
com os outros e não sabemos a quem seguir, tomamo-nos confusos e divididos
contra nós mesmos. Apesar dessa confusão óbvia, ou talvez mesmo por causa
dela, fala-se muito, hoje, em todos os lugares, em preservar os valores cristãos e
nossa civilização cristã.
Nos Estados Unidos dos dias atuais não é mais elegante ser "ateu" ou
mesmo "agnóstico". Admitir que não se crê em Deus ou que não se tem certeza
de crer no cristianismo estigmatiza a pessoa quase como subversiva ou inimiga
da nação. Defensores da fé aparecem em toda parte, às vezes em lugares bem
inesperados. Entre políticos, homens de negócios e educadores, tomou-se moda
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ser religioso. Mas, em vista da óbvia confusão de valores e de crenças,
deveríamos perguntar: que "religião" é essa, pregada tão agressivamente em
nosso tempo? Essa ênfase na religião e nos valores cristãos acaso significa que
realmente queremos levar a sério a vida cristã e seguir sinceramente a liderança
de Jesus Cristo? Ou essa ênfase é apenas um esforço para ocultar a profunda
incerteza concernente a todos os valores morais que nos ameaça e apavora?
A fim de responder de modo significativo a esta pergunta é necessário
examinar a natureza da vida cristã. Que é esse cristianismo que todos defendem
hoje em dia? Tem ele alguma relação ou semelhança com a fé histórica da Igreja
e com o testemunho da Bíblia? Qual é a resposta cristã ao problema dos
critérios ou padrões morais? Sob que aspectos a vida cristã difere .da vida
apregoada por aqueles que não crêem no cristianismo? E não devemos nos
iludir. Apesar da nova popularidade do cristianismo, muitas outras religiões
podem ser encontradas nos Estados Unidos. Essas religiões que competem com
a fé cristã não são necessariamente conhecidas de modo explícito como reli -
giões. Não é o xintoísmo, o budismo ou o maometismo que está empolgando a
imaginação do ser humano moderno no Ocidente. Mas existem alternativas
religiosas para o cristianismo. O naturalismo é uma dessas alternativas. Sua
deusa é a natureza, seu credo é que a natureza não pode fazer o mal e o seu
critério ético é que tudo o que é natural é bom. O relativismo 'é outra religião
dessas. Seu deus é o ser humano, e seu critério ético é que tudo o que o ser
humano considera bom é de fato bom porque ele assim o considera. Existem
ainda muitos outros modos de vida que nos são oferecidos como alternativas
para o modo cristão.
Devemos perguntar-nos: "que torna cristã uma vida"? Vida cristã é o
mesmo que vida feliz, vida bem ajustada, vida normal? Quais são as caracte-
rísticas, os traços distintivos da estrutura moral cristã? É cristianismo o mesmo
que "americanismo", e é a vida cristã o mesmo que o "modo de vida americano"?
Nas páginas que se seguem fez-se um esforço para examinar a vida cristã
e chegar a uma compreensão mais clara do seu significado. Trata-se de uma
tentativa de ver a vida cristã em contraste com outros modos possíveis de
organizar a vida de maneira significativa. Queremos observar todas as alterna-
tivas: aquelas que estão claramente fora do cristianismo, bem como aquelas que
se infiltraram tão profundamente que recebem o nome de cristianismo. Toda a
evidência indica que o ser humano moderno terá que escolher uma fé pela qual
viverá. O caos presente parece ser a preparação para essa escolha. Seja qual for
nossa opção no final das contas, o estudo das alternativas oferecidas ao cristia-
nismo deveria tornar mais inteligente nossa decisão.

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PARTE I:

A VIDA DO HOMEM SOB A LEI

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A VIDA COMO DECISÃO

Uma das mais antigas discussões entre filósofos, psicólogos e teólogos


trata do problema da liberdade humana. É o ser humano livre para escolher a
vida boa? É ele o "senhor de seu destino e comandante de sua alma"? Ou foi ele
moldado por forças além do seu controle para ser o que é? Gostaríamos de
introduzir nessa discussão uma afirmação muito autocontraditória e paradoxal, a
saber, que a liberdade do ser humano é sua servidão. Ele pode realmente ser
livre para tomar muitas decisões importantes a respeito de sua vida. Pode opinar
na escolha de seu trabalho, seu cônjuge, seus amigos ou do tipo de vida que
deseja levar. Mas existe uma escolha que ele não pode fazer: não pode deixar de
escolher. Não pode fugir de sua liberdade. Está fadado a ser livre. Quer goste,
quer não, quer acredite, quer não, ele tem que viver tomando decisões
constantes e inevitáveis.
Permita-me ilustrar. É noite. Um homem está em um barco que está
sendo levado lentamente pela corrente em direção a uma cascata. Esse homem,
que está bem acordado em seu barco, não pode escapar de fazer uma opção. É
verdade que todas as suas opções podem no final ser sem sentido. Ele pode
começar a remar furiosamente e ainda assim ser levado pela corrente por sobre
a borda para a destruição. Pode não fazer absolutamente nada e a corrente pode
prender o barco contra uma rocha, conservando-o em segurança até o amanhe-
cer. Mas esse homem não sabe qual é a decisão adequada, e percebe que não
fazer nada também é uma decisão. A corrente está levando seu barco, quer ele
goste, quer não. Ele não pode pedir tempo para ponderar as alternativas possí-
veis. Lá está ele sentado no barco, e tudo o que faz ou deixa de fazer o
compromete. Não tomar uma decisão também é uma decisão. Ele não pode
escapar de sua liberdade; está condenado a ser livre.
Qualquer indivíduo - você ou eu - é tal pessoa em um barco na corrente
do tempo. A corrente permanece em movimento. Nada podemos fazer a respeito
disso. Não a podemos parar. Na verdade vivenciamos esse "tempo",
que medimos tão apuradamente em segundos e minutos, horas e dias, meses e
anos, de uma maneira bem menos confortável. Todos sabemos que o tempo é
vivenciado como "relativo", não como "absoluto"; um minuto que se passa na
cadeira do dentista parece mais longo do que uma hora que se passa
conversando com uma pessoa atraente do sexo oposto. Essa relatividade do
tempo, da qual alguns aspectos podem até mesmo ser medidos, toma nossa
viagem na corrente do tempo ainda mais desconfortável. Entre outras coisas. a
velocidade da corrente parece aumentar à medida que envelhecemos. Quanto
mais velhos ficamos, mais depressa passa o tempo, e espaço de tempo que vai

15
de 30 de novembro até 25 de dezembro, p. ex., que parece uma eternidade
quando temos 6 anos, parece incrivelmente mais curto quando temos 30. Nota-
se também que pessoas idosas têm uma tendência de se referir a todo tempo
passado como "ainda ontem" ou "no outro dia". Essa aceleração que faz o
tempo fluir cada vez mais depressa é particularmente desagradável porque nos
dá cada vez menos tempo para tomar nossas decisões.
A vida não apenas exige decisão; a vida é decisão. O próprio ato de
permanecer vivo implica decisão diária, e até mesmo suicidar-se exige decisão.
O ser humano não pode evitar as decisões. Não pode escapar de sua liberdade.
Mas agora surge a pergunta importante: existe algo que possa nos guiar nessas
decisões que têm que ser tomadas todos os dias, horas, minutos de nossas vidas?
Existe algum critério ou padrão com o qual se possa medir o valor dessas
decisões, sua boa ou má qualidade? Se quisermos saber a distância de nossa
casa à rua, existe um modo bastante simples de descobri-lo. Podemos pegar
uma trena e medir a distância exata. Podemos quantificá-la em metros e
centímetros. A distância assim estabelecida estará fora de dúvida; qualquer
pessoa que duvide de nossa palavra poderá tomar o mesmo instrumento de
medição e verificar por si. O padrão que estamos usando é a trena, que está
dividida em unidades universalmente aceitas. Parece ser um padrão absoluto, e
seus resultados estão fora de dúvida.
De modo semelhante podemos estabelecer o peso de um carro, a veloci-
dade de um avião e muitos outros fatos. Temos padrões: a libra ou o grama, a
milha por hora ou o quilômetro por hora; com a ajuda desses padrões e de
instrumentos de medição comumente aceitos, os fatos que buscamos podem ser
estabelecidos com exatidão.
Mas e as decisões que temos de tomar a cada minuto de nossa vida?
Existe algum padrão pelo qual possam ser medidas com precisão? Por exemplo,
você pode apresentar razões para sua decisão de ler estas páginas? Por que é
que você está lendo uma introdução à ética ao invés de um romance policial?
Por que você está lendo ao invés de ir ao cinema ou ver televisão? Como foi
que você chegou a esta decisão? Houve algum critério importante que você
usou para se orientar? Igualmente, quando você escolhe uma pessoa como
amiga, em vez de outra, sua decisão é guiada por algum critério de atratividade?
Acredito que poucos de nós diriam que tomamos essas decisões por puro
acaso, como resultado de um "acidente". Diríamos, antes, que temos certos
critérios ou padrões do que é importante ou não, do que é atraente ou não, do
que é certo ou errado. Mas que espécie de critérios são esses? Podem resistir à
luz de um exame sóbrio e minucioso?
Para os que ainda estejam confusos com esta discussão sobre nossos
critérios para decisão, permitam-me outro exemplo. A pele de um homem -
chamemo-lo de A - está sendo penetrada por uma faca segurada por um
homem a quem chamaremos B. O resultado é a morte de A. Seria possível

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descrever este evento simples fisiologicamente, do ponto de vista de A ou
B. Ele poderia ser descrito fisicamente, do ponto de vista da força dispendida e
das calorias gastas por B. Existem muitas maneiras de descrever cientificamente
o que aconteceu. Mas, para que possamos saber se a ação de B sobre A é um
assassinato ou, digamos, uma operação malograda, precisamos fazer uma inves-
tigação detalhada dos motivos de B. Em outras palavras, temos de lidar com as
decisões que induziram sua ação e aplicar algum critério a essas decisões.
A diferença entre uma ação boa e uma ação má parece depender quase
inteiramente dos motivos que guiam a decisão da pessoa atuante, e não de
qualquer descrição, científica ou de outro gênero, da ação em si.
A grande confusão de nossa época parece ter sua origem em nossa
capacidade de descrever cientificamente quase todos os processos que ocorrem,
e em nossa incapacidade de entender as razões pessoais subjacentes a todas as
nossas ações. Vemos ao nosso redor pessoas tomando decisões, mas temos
dificuldades em encontrar algum modo de medir o valor das decisões que elas
tomam
Na área mais importante de nossa vida, onde diariamente estamos envol-
vidos em decisões, somos singularmente incapazes de descobrir quaisquer re-
gras ou critérios bem definidos que pudessem ser comparados às regras e
critérios objetivos que governam o comportamento dos elementos do universo
físico. Conhecemos a lei da gravidade, que funciona conforme as previsões;
mas temos dificuldade de encontrar uma lei similarmente confiável no campo
da decisão. Que devemos fazer?
Neste ponto algumas pessoas lançam suas mãos para o alto, horrorizadas,
e dizem: "Não façamos nada. A situação é desesperadora. Não existe resposta
para o problema. Vamos ignorá-lo; vamos continuar vivendo sem fazer pergun-
tas embaraçosas sobre os motivos e decisões implicadas em nossa vida."
Algumas pessoas ficam muito zangadas quando se tenta interrogá-las
acerca de seus motivos. Mesmo pacifistas manifestam um surpreendente espí-
rito combativo quando sua motivação e seus critérios éticos são questionados.
Não existe ninguém que goste de ser interrogado acerca dos assuntos que
considera evidentes por si mesmos a todas as pessoas de boa vontade, o que
geralmente quer dizer: todas as pessoas que casualmente concordam com ele. O
filósofo grego Sócrates descobriu que pessoas gentis e liberais como seus
compatriotas atenienses, quando questionadas com suficiente persistência
acerca de suas suposições básicas, não hesitariam em matar seu questionador.
Isto deveria servir de aviso para nós. É um assunto delicado. Sempre é perigoso
fazer perguntas, mesmo a nós próprios, naquele aspecto da vida que está
atulhado com preconceitos e superstições que mantivemos por tanto tempo, que
sua própria idade lhes deu autoridade.
No entanto, se desejamos avançar para uma compreensão mais clara da
vida cristã, teremos de procurá-la em meio à vida e sempre sobre o pano de
fundo de outras tentativas de entender o sentido da vida.
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Devemos sempre ter em mente que os critérios ou padrões usados para
avaliar decisões estão baseados num compromisso com alguma fonte básica de
valor. Veremos que há muita discordância quanto à natureza dessa fonte básica.
Alguns a vêem no ser humano, outros na natureza, outros no processo dialético,
outros no princípio da sobrevivência dos mais aptos, outros ainda na verdade.
Alguns a chamam de Deus. Observaremos que o caráter dos critérios vai variar
muito conforme a natureza dessa fonte básica, ou "deus". Mas em todos os
casos lidamos com um compromisso inicial. Obviamente, existem pessoas em
nossa época que acreditam poder posicionar-se à margem da corrente da vida e
ser espectadores descomprometidos. Mas parece óbvio que assumir essa posi-
ção também é o resultado de uma decisão baseada em um critério de avaliação.
Ninguém pode escapar desse compromisso fundamental.
Qual é o compromisso subjacente à presente investigação? Seria realmen-
te uma tolice sustentar a necessidade de compromisso e então proceder como se
a necessidade se aplicasse apenas aos outros, e não a nós. Nossa investigação
sobre a vida cristã está baseada no compromisso com Jesus Cristo como 0
critério absoluto para as decisões. O significado concreto desse compromisso
com a pessoa de Jesus Cristo deveria se tornar mais claro no curso de nossa
exposição.
A vida cristã como resposta à procura do ser humano por um critério para
a decisão só é significativa se tomarmos o tempo de investigar a questão de
maneira profunda e completa. A vida cristã como resposta à procura do ser
humano por uma vida significativa não tem valor para a pessoa que nunca
procurou. A vida cristã é uma cura para a doença da falta de sentido, mas, para
avaliar a cura - para que estejamos dispostos a tomar o medicaménto - é
essencial que reconheçamos nossa doença. Parece, de fato, que um dos grandes
problemas com que se defronta o cristianismo em nossa era é que ele oferece
uma cura radical a pessoas que nem mesmo acreditam estarem doentes. Não é
de admirar que elas não dêem valor à cura!
Nada é mais inútil do que a resposta a uma pergunta que nunca foi feita.
Para que a resposta tenha importância, teremos de colocar a pergunta cuidadosa
e conscienciosamente. A pergunta que teremos de fazer estará centrada no
assunto da ética. Que é certo e que é errado? Existem critérios para as decisões
que o ser humano deve tomar, ou são suas decisões igualmente sem sentido e
sua vida, uma grande piada cósmica onde afinal tudo é inútil?

ESTÁGIOS PRÉ-ÉTICOS

Neste ponto pode ser necessário lembrarmos que, em todos os lugares


onde viveram, os seres humanos diferenciaram entre o certo e o errado, entre o
18
bom e o mau. Não existe língua que não tenha palavras para designar "certo" e
"errado". Não existe povo que não faça distinção entre o que é aprovado e
o que é desaprovado. Tanto o ser humano mais primitivo quanto o mais
civilizado julgam as decisões e as agrupam em decisões "boas" e "más". No
entanto, deveríamos dar-nos conta também de que existe algo assim como um
comportamento pré-ético. Em certos casos limítrofes da existência humana é
possível agir sem qualquer percepção clara do sentido das decisões que
tomamos.
Tal como Emil Brunner, eu gostaria de denominar a um desses estágios
pré-éticos de estágio de imediação. Trata-se do estágio do comportamento no
qual nossas ações parecem não ser guiadas por nenhum tipo de premeditação ou
preocupação prudencial, mas no qual seguimos uma inclinação natural. Um
bebê, com uma semana ou duas de idade, age e toma decisões. Mas, em
verdade, elas não são decisões. Quando um bebê chora ou ri, a ação não é o
resultado de alguma decisão intelectual, mas sim um reflexo imediato á algum
estímulo. Chorar ou rir, no caso de um bebê, não constituem ações "boas" ou
"más", e não as podemos chamar propriamente de ações éticas.
De modo semelhante, as ações de uma pessoa muito idosa e senil estão
freqüentemente no nível da imediação. Também aqui parece não existir um
processo intelectual consciente ou mesmo claramente subconsciente; parece,
antes, tratar-se de simples reações a simples estímulos. Aqui se nos depara a
própria fronteira da vida ética ou da vida de decisão. Qualquer pessoa que aja
genuinamente nesse nível de imediação não é uma pessoa ética em sentido
estrito. Mera reação a um estímulo não é ação ética, porque é ação que não
implica decisão. Se fecho meus olhos quando um cisco entra em um deles, não
estou fazendo nada que seja moralmente bom ou mau. Estou meramente rea-
gindo a um estímulo. Se me esquivo quando um objeto é jogado em minha
direção, estou "reagindo" de modo semelhante. O meu comportamento em tais
situações pode indicar o estado dos meus reflexos, mas certamente não diz nada
acerca de meus critérios éticos. Pessoas que em todas as situações agem dentro
da estrutura da imediação não são propriamente matéria para quem estuda a
ética.
Entretanto, é necessária uma palavra de advertência. Houve sistemas e
mestres de filosofia que proclamaram esse estágio de imediação como o estágio
ideal da vida humana e tentaram ensinar o ser humano a viver constantemente
neste nível particular. Em muitos movimentos de "volta à natureza" existe um
esforço deliberado para estabelecer artificialmente um critério ou padrão de
conduta que é encontrado naturalmente no estágio de imediação. Mas tal tenta-
tiva artificial de sermos o que não somos, com o auxílio de uma decisão
intelectual deliberada e laboriosa, não tem nada a ver com o estágio de imedia-
ção que descrevemos até agora. Ser um bebê é bem diferente de comportar-se
como um bebê quando já se é adulto. O importante acerca do estágio de
imediação é que ele não é fruto da vontade, não é resultado da nossa decisão de
19
viver neste nível; simplesmente existe. Neste estágio, a pessoa vive sem ter
consciência do nível de decisão. É impossível querer-se sem a vontade. É
igualmente impossível decidir viver sem decisão.

20
Essas tentativas artificiais de retornar a um estágio de existência que já
ultrapassamos são esforços patéticos de nossa época para escapar aos rigores da
decisão. São reflexos significativos do caráter de nosso tempo. Deveríamos
revelá-los implacavelmente como o que são: tentativas de esquivar-se de ser o
que não podemos deixar de ser, tentativas de escapar de nossa responsabilidade
como seres humanos.
Mas, antes de pormos de lado o estágio de imediação como um estágio
que ultrapassamos e que já não nos diz respeito, deveríamos lembrar-nos de que
há muitas decisões cotidianas que não são tomadas num nível mais elevado do
que este. Todos nós, de certa forma, continuamos com parte de nosso ser no
estágio sub-humano da imediação.
O segundo estágio do comportamento humano que também pode ser
descrita como pré-ético é o estágio do costume. Muitas pessoas tomam quase
todas as suas ditas decisões não como resultado de qualquer esforço de inteli-
gência, mas meramente como tentativa de conformar-se ao costume predomi-
nante. Em muitas sociedades e entre inúmeras pessoas de nossa própria socie-
dade, a pergunta não é: "Esta ação é boa ou má?", ou: "Esta decisão está certa
ou errada?", mas: "É isto o que todos fazem?" Boa parte do que passa por bom
poderia ser descrito mais adequadamente como sendo a coisa costumeira em
nossa sociedade específica. Há certa quantidade de decisão implicada aqui, a
saber, a decisão de obedecer ou desobedecer aos costumes. Essa decisão, no
entanto, não é tomada num nível elevado, pois nós não avaliamos os costumes,
mas os aceitamos sem questioná-los seriamente.
Obedecer ao hábito é, obviamente, com freqüência muito útil e
inteligente. Em muitos casos o costume é o bom senso e a experiência
acumulados de nosso grupo social, e quem segue o costume em geral se
beneficia inconscientemente das percepções de seus ancestrais. Seria de fato
tolice rejeitar todos os costumes apenas porque foram aceitos sem crítica em
outros tempos. Sua aceitação ou rejeição por outros não deveria de modo algum
validar ou invalidar os mandamentos do costume. No entanto, um dos pontos
fracos básicos da ação no nível do hábito, do ponto de vista da vida cristã, é que
muitas vezes assuntos muito importantes e assuntos absolutamente sem
importância são de igual modo costumeiros. O costume em si não nos fornece
os critérios que nos capacitariam a distinguir entre o que se situa na periferia da
vida e o que é verdadeiramente essencial.
Em certas partes dos Estados Unidos é hábito ir à igreja aos domingos.
Qualquer pessoa que seja alguém vai à igreja. De outra forma, entretanto, a vida
da comunidade não indica que o amor de Cristo é uma influência dominante. Ir
à igreja se tornou um hábito social, em vez de ser a adoração do Cristo vivo.
Mas, nas mentes das pessoas que agem no nível do hábito, a obediência ao
costume de ir à igreja se identifica com a fé cristã. Dessarte um aspecto
marginal da vida cristã se torna o critério pelo qual se mede a saúde desta vida.

21
Como resultado, freqüentemente vivemos em um paraíso ilusório, porque con-
fundimos obediência ao costume com vida cristã.
Uma situação similar prevalece no campo da política. Certas afirmações
a respeito da liberdade e igualdade dos seres humanos são costumeiras neste
país. Sem qualquer reflexão, a maioria dos americanos afirmará que acredita
que os seres humanos são iguais e livres. Todavia, para muita gente tal afirma-
ção não é o resultado de nenhuma decisão ou convicção pessoal, mas meramen-
te a repetição de expressões aceitas, ditadas pelo hábito. Sempre que tentarmos
medir a saúde de nossa democracia simplesmente pelo número de pessoas que
usarão as costumeiras expressões democráticas da boca para fora, estaremos
confundindo costume com decisão pessoal, e nossa avaliação será extremamen-
te imprecisa.
Visto que muito de nossa moralidade cotidiana não é resultado de
decisão ética, mas mera imitação do comportamento observado em outros,
vivemos grande parte de nossa vida moral em um estágio pré-ético. Precisamos
nos dar conta de que todos nós continuamos nesse estágio do costume, mesmo
que tenhamos tentado conscientemente levar a sério a vida cristã.
Existem numerosos exemplos notáveis do poder do hábito na vida do cristão.
Por exemplo, a maioria dos protestantes, depois de assistir a um ofício em uma
igreja católica romana, dirão que não gostaram da celebração. Quando
tentarmos chegar à raiz dessa antipatia, aqueles de nós que têm algum interesse
em teologia em geral ficarão gravemente decepcionados. Usualmente as obje-
ções principais à missa católica romana têm a ver com o uso do latim, o
ajoelhar-se, as vestes, o incenso ou os acólitos. Algumas ou todas essas práticas
podem ser contrárias a nossos costumes, mas elas estão na periferia da teologia.
Suponhamos que um sacerdote católico romano, usando as vestes próprias a
nosso grupo particular, pregasse do púlpito de uma de nossas igrejas e exaltasse
a salvação pelas obras e a necessidade de nossa cooperação em nossa salvação.
A maioria dos fiéis ficaria menos chocada do que se ouvisse um sermão
completamente evangélico sobre a salvação pela graça somente. feito por um
pregador que então passasse a usar um incensório.
Isso pode ajudar-nos a compreender quanto de nossa vida diária,
mesmo na Igreja, é vivida no nível do costume. Em um estudo da vida cristã,
devemos perguntar constantemente se estamos falando a respeito do evangelho
de Cristo ou a respeito dos costumes e hábitos do nosso grupo social.
Freqüentemente, e em especial no campo da ética, os costumes morais do nosso
grupo se confundiram completamente com o evangelho do Senhor Jesus Cristo.
Dizemos "comportamento cristão" e muitas vezes nos referimos ao
comportamento de americanos brancos, da classe média. Esquecemo-nos de que
nosso Senhor Jesus Cristo questionou e derrubou muitos dos mais venerados
costumes de seu tempo.
O Cristo que comia com traidores e prostitutas, que desrespeitou as leis
religiosas protegendo o sábado é, se levado a sério, um inimigo perigoso de
22
todos os nossos costumes e preconceitos morais. Perante ele nossas ações não
podem ser defendidas meramente apelando para precedentes. Deste ponto de
vista torna-se claro que o estágio do costume, como o estágio de imediação, é
um estágio pré-ético.

ÉTICA PRUDENCIAL

A ética, como esforço inteligente para descobrir critérios ou padrões para


decisão, principia quando os indivíduos começam a refletir sobre seus conceitos
de certo e errado. As pessoas estão constantemente fazendo julgamentos morais
relacionados com as atividades de sua vida cotidiana. Mais cedo ou mais tarde
elas podem perguntar-se: "Por que considero esta ação certa e esta outra errada?
Que valores pessoais me fazem decidir dessa maneira?" Sempre que esta
pergunta é feita pessoalmente e com seriedade, o nível do costume foi
ultrapassado. A ação não é mais meramente uma tentativa de conformar-se a
critérios existentes que são aceitos sem hesitação. A ação agora é o resultado da
reflexão baseada em critérios conscientes de valor.
Na maioria dos esforços para descobrir uma base significativa para a
vida, a pergunta fundamental é: "Para que estou vivendo?" A resposta a esta per-
gunta determina o caráter de nossa ética. Um sistema ético pode ser chamado de
prudencial se seus critérios básicos são selecionados com o olhar voltado para o
futuro. A qualidade boa ou má de uma ação depende, aqui, do fim bom ou mau
que se espera que ela produza. Este sistema avalia todas as decisões pelas
conseqüências que podem ser esperadas como resultado. Existem vários tipos
de ética prudencial.
Hedonismo - Um hedonista é uma pessoa cujo critério ético supremo é o
prazer. Ele acredita que a bondade de uma ação depende inteiramente da
quantidade de prazer que ela venha a assegurar. O bem é identificado com
aquilo que dá prazer, e o mal com aquilo que causa dor.
A dificuldade deste sistema é evidente. Prazer é o tipo de palavra que
significa um milhão de coisas para um milhão de pessoas. O que é prazer para
uns é dor para outros. Algumas pessoas encontram prazer em serem giradas em
uma maquineta de um parque de diversões até que suas entranhas estejam em
um estado de completa desorganização. Elas se dispõem até a pagar por esse
privilégio duvidoso. Outras pessoas sentem dor até mesmo ao pensarem em ser
submetidas a tal tratamento. Além disso, há pessoas que dizem que ler livros e
ouvir música clássica são atividades realmente dolorosas para elas, mas que dão
a outras um grande prazer.
23
Exemplos da ambigüidade do conceito de prazer poderiam facilmente ser
multiplicados. Uma coisa está clara: muitas pessoas são guiadas em suas deci-
sões pessoais pela busca do prazer. Seja o que for esse prazer, ele é o valor
supremo da vida.
Se tentamos avaliar as conseqüências de tal critério ético para a vida
humana, é importante distinguir entre dois tipos principais de hedonismo. Cha-
mamo-los de individualista e universalista. O primeiro grupo, representado por
homens como Epicuro e Omar Khayyam, afirma que cada indivíduo, a fim de
alcançar uma vida significativa, deve buscar seu próprio prazer. É inútil e na
verdade perigoso tentar adivinhar o que dará sentido às vidas dos outros. Por
isso, nossas ações deveriam ser guiadas inteiramente pelo que trará prazer a nós
como indivíduos. Qualquer esforço para adivinhar o que poderia dar felicidade
a outros apenas conduzirá à infelicidade geral.
Podemos reconhecer um elemento de verdade nesta posição se nos lem-
brarmos de todos os esforços patéticos com os quais tentamos fazer outras
pessoas felizes. Percebemos que às vezes as pessoas que estão constantemente
tentando "tornar todo o mundo feliz" se transformam em pessoas terrivelmente
importunas e maçantes. Reconhecendo a futilidade de tais esforços, o hedonista
individualista os abandona inteiramente e advoga uma busca de felicidade clara
e interesseira.
Não é verdade que isso exclua todo serviço prestado a outros. O
hedonista individualista sabe que fazer certas coisas para outros pode lhe trazer
felicidade. Porém ele sempre está consciente de que não faz isso para tomar
outros felizes, mas porque fazer coisas para os outros traz felicidade a ele. O
objetivo último é sempre seu próprio prazer pessoal.
Mesmo que o prazer fosse um conceito claro e constante, o que não é,
esta seria uma fundação muito vacilante para a vida humana. Tal individualismo
coloca todo homem contra todos os outros, e assim rompe e atomiza a socie-
dade humana. Historicamente, o hedonismo deste tipo tem sido acompanhado
do agnosticismo. Se as pessoas não crêem em uma vida após a morte. se o
prazer é o único bem, elas têm que evitar tudo o que lhes possa trazer conf7itos
com outros e causar dor. Muito logicamente os grandes representantes do
hedonismo individualista defenderam que a pessoa ficasse fora da política e da
vida pública, e em geral que se afastasse da maioria das pessoas, exceto de uns
poucos amigos selecionados.
Deste ponto de vista, o casamento e a constituição de uma família também
eram censurados. O estado de solteiro seria o ideal, implicando o menor
desprazer. E é verdade que todo envolvimento com pessoas é uma fonte de dor
em potencial. Se você tem uma esposa e três filhos, tem cinco pessoas com as
quais se preocupar; se você é solteiro, tem apenas uma.

Os hedonistas individualistas finalmente perceberam que a vida, mesmo


vivida só, à parte da dor que outros possam injetar nela, ainda consiste de mais
24
dor do que prazer. Assim, do ponto de vista dos hedonistas individualistas. a
vida simplesmente não vale a pena ser vivida. Pensando segundo esta lógica,
muitos filósofos desta escola advogaram o suicídio, e não poucos o praticaram.
Se tudo o que faz com que a vida valha a pena é o prazer que podemos espremer
dela, e se essa vida tem que terminar com a morte, simplesmente não vale a
pena viver. E, como a maioria das mortes naturais é mais dolorosa e
desagradável do que certos tipos de suicídio, pode-se facilmente demonstrar que
a partir uma adesão lógica aos princípios do hedonismo individualista o suicídio
é aconselhável. Jesus estabeleceu a lei da vida espiritual: "Aquele que encontrar
a sua vida, perde-la-á"; e os hedonistas individualistas não foram exceções a
esta regra.
Os hedonistas universalistas (J. S. Mill, Bentham, Locke e outros)
operam com uma premissa básica diferente. Conhecidos também como
"utilitaristas", seu lema é "o maior bem para o maior número". Aqui todas as
pessoas estão incluídas na busca do prazer. Se meu próprio prazer entra em
conflito com o prazer do grupo, tenho que estar disposto a sacrificar meu prazer
pessoal pelo prazer maior da maioria.
Este sistema tem vantagens óbvias como método ético para a organização
da sociedade. Ele é inclusivo, tomando possível considerar não apenas todas as
pessoas vivas hoje, mas também as gerações vindouras. Mas a grande dificul-
dade que surge também aqui é a dificuldade de estabelecer o que esse "maior
bem para o maior número" poderia significar em qualquer caso particular. É
fácil ver que o comunismo e o nazismo, com todos os seus campos de concen-
tração e câmaras de gás, poderiam ser justificados do ponto de vista de um
hedonista universalista. Se seis milhões de pessoas são asfixiadas e cremadas,
que importa? Existem dois bilhões de habitantes no mundo, e se posso conven-
cer-me de que minha ação é para o bem dessa esmagadora maioria, meus crimes
deixam de ser crimes e se justificam imediatamente.
O maior bem para o maior número é um princípio tão vago para a ética,
que seus resultados em termos de ação dependerão inteiramente da interpreta-
ção que ele receber em qualquer época específica. Os defensores deste sistema,
como todos os outros que fazem do prazer o bem último, têm dificuldade em
encontrar um critério que possibilite ao homem distinguir entre vários tipos e
espécies de prazer. A única distinção que pode ser feita por um hedonista que
deseja ser coerente é a distinção entre mais prazer e menos prazer - uma
distinção quantitativa. No momento em que tenta avaliar os prazeres qualitati-
vamente, afirmando que alguns prazeres são melhores do que outros, ele deixa
de ser um hedonista verdadeiro. Está injetando uma forma diferente de valor em
sua ética. Isso foi feito por alguns utilitaristas, mas só demonstra o caráter
insatisfatório do "prazer" como o valor básico da vida.
Antes de abandonarmos o exame do hedonismo, individualista e univer-
sal, será bom para nós lembrar-nos que muitas de nossas ações são na verdade
guiadas por um hedonismo secreto. Mesmo que conscientemente rejeitemos o
25
hedonismo como fonte de uma norma válida para decisões, ele é a base
da

decisão em muitas de nossas ações. Apesar de pensarmos que não deveríamos


agir neste nível, fazemo-lo em mais ocasiões do que gostaríamos de admitir.
Mesmo por trás de nossos mais nobres motivos existe freqüentemente um
desejo secreto de prazer. Os hedonistas que tentam justificar essa fonte de nossa
ação podem estar errados, mas aqueles de nós que negam a existência efetiva
dessa fonte estão igualmente errados e, além disso, são menos honestos.
Os cristãos tendem a confundir a vida cristã com alguma forma de
hedonismo sobrenatural. Pois, quer você espere o prazer aqui na terra, quer em
uma vida vindoura, se suas ações são orientadas por seu desejo de prazer e suas
tentativas de evitar a dor, você é um hedonista, mesmo que o prazer seja
esperado no céu e a dor no inferno. Uma filosofia cristã que for dominada por
uma tentativa de alcançar prazeres no céu e evitar os sofrimentos do inferno é
hedonismo puro e simples. Mesmo o fato de que alguns pais da Igreja gastaram
muito tempo e papel descrevendo os prazeres dos santos no céu enquanto
observam o sofrimento dos condenados no inferno não justifica tal hedonismo
"cristão". A principal característica de todo hedonismo religioso é que ele
destrona Deus e faz da felicidade eterna do indivíduo o verdadeiro bem de sua
vida. Deus, então, se toma um meio para fins humanos. Utilizamos Deus e a
Igreja para obter nossa própria felicidade. O amor por nosso semelhante é
reduzido a um meio para acumular méritos que nos levarão ao céu. Uma parte
substancial da teologia cristã tem sido dominada por esse tipo de hedonismo
religioso. Para muitos cristãos, a religião pode tornar-se a forma mais sutil de
egoísmo, de obter o prazer eterno e evitar a dor eterna. Ao prosseguirmos nossa
procura pela vida cristã, também precisamos ter em mente essa forma de
hedonismo individualista, camuflado superficialmente por conceitos e ideais
cristãos.
Naturalismo - Se o prazer é um critério ou padrão tão incerto e ambíguo
para decisões, por significar tantas coisas diferentes para tantas pessoas diferen-
tes, surge a pergunta se não seria possível descobrir em algum lugar um padrão
mais objetivo, que fosse verdadeiro para todas as pessoas em todas as épocas. A
ética naturalista propõe que esse padrão pode ser encontrado na natureza. O
homem é considerado um produto da natureza; alguns talvez o chamem de
desenvolvimento supremo do processo evolutivo. Esse processo evolutivo, que
produziu todas as diferentes formas de vida, também nos fornece o padrão para
avaliar toda ação. Como é o propósito da natureza que o apto sobreviva, tudo o
que contribui para a sobrevivência do mais apto é bom, e tudo o que dificulta
sua sobrevivência e ajuda o inapto a sobreviver é mau.
A vantagem da ética naturalista sobre o vago apelo ao prazer é a relativa
objetividade do apelo à sobrevivência. Mas, enquanto sobrevivência é um
conceito compreensível e isento de ambigüidade, a palavra "apto" tem geral-
26
mente significado "forte"; assim os padrões da selva são defendidos como
adequados para o comportamento humano. Antes de tentarmos investigar as
conseqüências práticas desta posição, deveríamos imediatamente reconhecer
sua
suposição oculta. Ela supõe que o processo evolutivo seja bom. É a suposição
otimista da maioria dos naturalistas biológicos que os aptos sobrevivem, que de
alguma forma o processo de seleção natural seleciona os bons.
Quais são as conseqüências da ética naturalista em nossa vida diária? A
primeira é a rejeição de todos os esforços para proteger os fracos. O naturalista
argumenta que é mau interferir na natureza encorajando a sobrevivência dos
inaptos que ela quer eliminar. Longe de elogiar as pessoas por cuidarem dos
dementes, por exemplo, deveríamos condenar nossa sociedade e aqueles dispos-
tos a dispender tempo e esforço para preservar o que a natureza não deseja
preservar. Somente as pessoas doentes cuja recuperação pudesse trazer alguma
vantagem para a sociedade deveriam receber assistência médica. As outras,
especialmente as velhas, deveriam ser destruídas ou "liquidadas".
Outra conseqüência é que a noção de evolução é aplicada à raça. Supõe-
se que certas raças estejam situadas em um nível evolutivo baixo. Como toda
raça tem um lugar no processo de evolução gradual e constante, existem
algumas raças que são inferiores a outras, que ainda não atingiram o nível
evolutivo de outras. Ou elas são consideradas mutações inaptas, becos sem
saída da evolução. É deste ponto de vista que a idéia de ``raças de senhores" e
"raças de escravos" se toma compreensível. E podemos ver também por que o
tratamento das "raças de escravos" pelas "raças de senhores" é tão terrível de
um ponto de vista cristão. Ele é considerado "natural". Não existe simpatia por
sapos entre as cobras ou por moscas entre os sapos. O mais forte se nutre do
mais fraco. Tal comportamento é natural e, de acordo com a ética naturalista,
proporciona também o padrão adequado para o comportamento humano.
Essa ética naturalista também encontra expressão na economia. Aqui
encontramos as pessoas que acreditam que o que é natural é bom defendendo o
que é comumente chamado de economia do laissez-faire. Caveat emptor,
acautele-se o comprador, é seu lema. Na luta econômica pela sobrevivência é o
forte, o apto que deveria sobreviver. Mesmo não sendo estritamente verdade que
se precise tomar determinada marca de uísque para ser uma pessoa de distinção,
negócios são negócios, e isso é justificativa suficiente até mesmo para as
falsidades dos anúncios. De fato, se um anúncio ajuda uma empresa a
sobreviver na luta pela existência, é um bom anúncio, mesmo que seja engana-
dor e perigoso. Esforços para regular os preços, controlar os salários, propor-
cionar previdência social e assistência médica para os improvidentes constituem
uma interferência na lei econômica natural, sendo por isso maus e fadados a
levar ao desastre. Um esforço por parte do governo no sentido de dar às pessoas
uma oportunidade de encontrar emprego independentemente da sua raça ou cor
é errado do ponto de vista dessa ética naturalista. Isto porque se alega que tais
27
regulamentações obstroem a liberdade - a liberdade dos economicamente fortes,
é claro, a liberdade daqueles que empregam ou daqueles que controlam os
sindicatos segregados de trabalhadores que também se opõem a tais regula-
mentações. O fato de que a discriminação racial também obstrói a liberdade, a
liberdade do indivíduo de encontrar um emprego, é considerado irrelevante do
ponto de vista desse naturalismo.
Em todas as épocas a ética naturalista tem encontrado muitos defensores
eloqüentes. O sofista Trasímaco, contemporâneo de Sócrates, a defendeu, assim
como o fez Maquiavel dois mil anos mais tarde. Nos tempos modernos, o
propagandista mais declarado do naturalismo na ética foi o filósofo alemão
Friedrich Nietzsche. Ele disse, por exemplo: "A exploração não é própria de
uma sociedade primitiva depravada ou imperfeita, mas faz parte da natureza do
ser vivo, como uma função orgânica primária; ela é uma conseqüência da
Vontade intrínseca de Poder, que é precisamente a Vontade de Viver."' E ele
advogou uma moralidade de senhores ao invés da moralidade de servos preva-
lecente no cristianismo. A aspereza, o egoísmo e a agressividade são aqui as
verdadeiras virtudes; o amor, a piedade e a humildade aparecem como vícios.
No território inglês e americano Nietzsche sempre foi muito impopular por
causa da maneira lógica e fria com que apresentou seu naturalismo. O natura -
lismo anglo-saxão sempre foi muito mais cauteloso, circunspecto e desonesto.
Mas Herbert Spencer, Julian Huxley e muitos outros devem ser contados entre
os naturalistas biológicos.
Em anos recentes vimos a ética naturalista em ação na Alemanha nazista.
A destruição dos doentes mentais e a esterilização daqueles que eram conside-
rados biologicamente inaptos para propagar a espécie foram bons exemplos
desse tipo de ética em ação. Assim como a ética naturalista do nazismo tratava o
homem como um animal, também o faz a do comunismo. O processo dialético é
considerado o processo natural, e o Partido Comunista é a organização que tenta
auxiliar esse processo natural em sua marcha. Também aqui as pessoas são
apenas meios para o fim evolutivo, e os valores são pretensamente tomados da
própria natureza.
Nos Estados Unidos também se ouvem vozes em defesa da ética do ,
naturalismo. Alguns dos mais ruidosos oponentes do comunismo concordam
com Stalin que devemos tomar nossa ética da natureza. Enquanto para os
comunistas a "natureza" é o "processo dialético", para outros ela é um retorno
aos dias de um capitalismo laissez-faire desimpedido e natural. As "leis econô-
micas da natureza" são boas, dizem eles, e nenhum homem ou organização
humana deve interferir nelas, a menos que deseje provocar um desastre. Todos,
os defensores da ética naturalista concordam que aquilo que é conforme a
natureza é bom, apesar de discordarem a respeito do que é a natureza.
Do nosso ponto de vista como cristãos, é preciso certa cautela. Muitas
vezes na história a ética cristã teve um quê de naturalismo. Em sua busca da
vida cristã, os cristãos freqüentemente tentaram identificar o status quo. o
28
estado natural das coisas, com a vontade de Deus. Especialmente quando
pessoas "cristãs" do mundo tiveram poder, tenderam a substituir o direito pelo
poder. Alguns dos mais eloqüentes porta-vozes da ética naturalista do poder foram

homens do clero. O ídolo de Maquiavel, por causa de sua devoção absoluta-


mente implacável ao poder, foi o papa Alexandre VI. Richelieu, o estadista
todo-poderoso sob Luís XIII da França, era um cardeal da Igreja Romana. Os
conquistadores da América do Norte usaram seu conhecimento do Antigo
Testamento para justificar o tratamento cruel que dispensaram à população índia
nativa. Eles identificavam a si mesmos com os israelitas e os índios, com os
cananeus, que Deus entregara em suas mãos para serem completamente destruí-
dos. Sem, Cão e Jafé têm sido usados por teólogos cristãos para justificar a
escravatura, e o Novo Testamento, para justificar o anti-semitismo.
Hoje muitos cristãos, tanto aqui quanto no exterior, perfeitamente
satisfeitos com sua ética naturalista, tentam encobri-la apenas com um tênue
véu de trivialidades piedosas. A ética do naturalismo não é meramente o inimigo
fora dos portões da Igreja cristã; ela tem estado confortavelmente instalada
como parasita no próprio centro da cristandade. A busca da vida cristã não deve
ignorar os perigos que ameaçam o cristianismo da parte dos cristãos que
aceitaram a ética naturalista, identificando o que é com o que deveria ser.

Relativismo - A dificuldade de estabelecer um critério ou padrão ético


inteligível que seja aceitável para todos deveria estar evidente agora. Conceitos
como o prazer ou a natureza, apesar de não serem igualmente ambíguos, ainda
assim têm um grande número de sentidos. É por causa dessa dificuldade óbvia
que os relativistas em termos de ética afirmam que é inútil tentar descobrir um
padrão significativo para o comportamento ético. É impossível, dizem, encon-
trar um método que nos possibilitaria descobrir se qualquer decisão específica é
certa ou errada. Não existe uma abordagem experimental para a ética, pois cada
situação é única. Em uma situação específica podemos ter a opção entre salvar
uma vida ou dizer a verdade. Mas o que pode ser correto nesta situação pode ser
irremediavelmente errado em outra. É impossível fazer experiências, pois
situações idênticas não podem ser produzidas.
Em vista dessas dificuldades, os relativistas em termos de ética sugerem
com Protágoras, um sofista grego, que o "homem é a medida de todas as
coisas". Uma opinião é tão boa quanto outra, e cada pessoa tem de estabelecer
seus próprios padrões éticos, que então serão verdadeiros para ela e mais
ninguém. Em outras palavras: certo é o que eu considero certo, e errado o que
eu considero errado. Existem tantas "éticas" quanto existem pessoas, e não há
maneira de julgar objetivamente qual de todos esses sistemas seja mais correto
do que qualquer outro.
Essa abordagem é extremamente popular em nossa época, e tem a vanta-
29
gem de ser considerada culta e objetiva. Ela é esposada por todos aqueles que
afirmam estarem tentando ser imparciais e sem preconceitos. Vilfredo Pareto, na
sua obra Mind and Society, diz: "O termo `deveria' não corresponde a nenhuma
realidade concreta."2 E em outra passagem: "Dizer que a ‘injustiça’, quer
praticada contra uma pessoa ou muitas, implica uma ofensa igual contra a
justiça, é dizer algo que não tem sentido. Não existe a pessoa "Justiça", e não se
pode imaginar que ofensas poderiam ser praticadas contra ela."; Esta é uma
ilustração da tentativa dos defensores do relativismo ético de desmascarar todos
os valores como irrelevantes e sem sentido. Os termos bom ou mau, certo ou
errado não têm sentido, e espera-se do intelectual que opere sem eles. Juízos de
valor por parte do historiador, sociólogo, psicólogo ou filósofo o tornam sus-
peito entre seus pares e indiscutivelmente "não-científico". Se um sociólogo
como P. A. Sorokin transgride esse código, ele cai no ostracismo e é chamado
de charlatão, ainda que seja chefe do Departamento de Sociologia da Universi-
dade de Harvard.
É importante demorarmo-nos por um momento nesse aspecto da ética
relativista, pois os estudantes hoje estão sendo treinados para aceitar o relativis-
mo ético como dogma infalível. A autocontradição implicada neste ensinamento
é óbvia. Em defesa de uma postura de mente aberta, confrontamo-nos com
pessoas de mente totalmente fechada, que afirmam dogmaticamente a verdade
absoluta de que não existe verdade absoluta.
Novamente é importante perceber que a Igreja cristã não tem estado
imune ao relativismo ético. A afirmação: "O homem é a medida de todas as
coisas", expressa em temos religiosos, tem significado que não existe verdade
ou falsidade religiosa, que todas as religiões são igualmente boas se professadas
com sinceridade. Não importa o que você creia; tudo o que você precisa é
alguma espécie de crença: lei seca, a cruz, pacifismo, são todas iguais. Não
existe algo assim como a heterodoxia, pois qualquer pessoa sincera é também
ortodoxa. Em linguagem popular isso significa: "Estamos todos indo para o
mesmo lugar", mesmo que alguns pensem que é o nirvana, o céu, o inferno, o
purgatório ou uma época de ouro.
Para os relativistas éticos existe uma exceção a essa regra na religião. A , pessoa
que insiste na existência da verdade e, portanto, na existência da falsi- dade; na
existência do bem e, portanto, também na existência do mal: a pessoa que
insiste que aquilo que se crê faz uma diferença é considerada "intolerante".
Também aqui, como todo homem é seu próprio papa infalível e sua
própria Escritura inspirada, a heterodoxia se tornou ortodoxa; e as pessoas que
não se conformam à heterodoxia ortodoxa por causa de sua ortodoxia hetero-
doxa colocam em risco sua aceitação no círculo eleito dos tolerantes e liberais.
Novamente vemos que o relativismo ético afeta a cristandade tanto quanto a
todos os outros setores de nossa sociedade. Como os cristãos não vivem em
isolamento, os padrões de pensamento que dominam nossa cultura nunca dei-
xam de influenciar a Igreja cristã.
30
ÉTICA ESTÉTICA
Enquanto a ética prudencial está sempre voltada em direção ao futuro,
existem outros esforços para tomar a vida significativa aqui e agora sem
considerar qualquer coisa que o futuro possa trazer ou tirar. A pessoa que
acredita em qualquer tipo de ética prudencial vê todo ato justificado pelo que
poderiam ser seus resultados futuros. É o resultado do ato que o toma bom ou
mau, e não o ato em si. Por exemplo, os assassinatos cometidos pelos nazistas
em seus campos de concentração eram considerados "bons" por muitos nazistas
sinceros porque se supunha que resultariam no triunfo de uma raça biologi-
camente superior sobre raças biologicamente inferiores. De modo semelhante,
mas em roupagem eclesiástica, o bispo de Verden disse em 1411: "Quando a
existência da Igreja está ameaçada, ela é liberada dos mandamentos da morali-
dade. Com a unidade como fim, a utilização de qualquer meio é santificada,
mesmo que seja dissimulação, traição, violência, simonia, prisão, morte. Pois
toda ordem visa o benefício da comunidade, e o indivíduo deve ser sacrificado
pelo bem comum." É muito possível que a pessoa comprometida com tal
sistema ético passe a vida toda fazendo coisas desagradáveis, ou mesmo coisas
más, para a obtenção de algum bem que se acredite ser o resultado que
sobrevirá como conseqüência. Esse bem pode nunca ser de fato atingido. O bem
está sempre no futuro, e o mal presente é apenas um meio passageiro para
alcançar o bem.
Todos conhecemos pessoas que durante toda a sua vida fazem um
trabalho do qual realmente não gostam, mas que é lucrativo, para que no final
possam, por algum tempo, fazer as coisas das quais gostam. O problema é que
muitas vezes uma pessoa assim se aposenta aos 65 anos de idade, para fazer o
que quer, e então morre aos 66. Durante 50 anos essa pessoa fez coisas que lhe
pareciam maçantes ou mesmo más, de modo que pudesse fazer o que era
agradável e bom durante alguns meses apenas.
Em virtude desse aspecto frustrante do método prudencial de conduzir a
vida, algumas pessoas sugerem um caminho diferente. Esqueça o passado e o
futuro, é o que elas dizem. Viva agora! De que adianta trabalhar para prazeres
futuros ou preocupar-se com dores futuras? E por que preocupar-se com a
natureza? A natureza não se preocupa com você. Tente tornar sua vida signifi-
cativa, apesar de em última análise ela não ter sentido. Tente desfrutar a vida,
mesmo que a dor sobrepuje o prazer. E se é para existir a dor, talvez você possa
aprender a desfrutar até mesmo a dor. Não tente dar ao universo um sentido que
ele não tem. Não tente encontrar para sua vida um propósito situado no futuro.
Encare a desesperança de sua situação e então tente tirar o melhor partido
possível dela.
Escreve Bertrand Russell:
Breve e impotente é a vida do homem; sobre ele e toda a sua raça a ruína, lenta
e certa, cai negra e sem piedade. Cega para o bem e o mal, sem se importar com
31
a destruição, a matéria onipotente rola no seu curso incansável; para o homem,
condenado hoje à perda de seus entes mais queridos, amanhã a passar ele próprio
o limiar da escuridão, resta apenas acalentar, ainda antes que desça o golpe, os
elevados pensamentos que enobrecem seu curto dia; desdenhando os terrores
covardes do escravo do destino, adorar no santuário que suas próprias mãos
construíram; sem se intimidar com o império do acaso, preservar uma mente
livre da arbitrária tirania que rege sua vida exterior; desafiando orgulhosamente
as forças irresistíveis que toleram, por um instante, seu conhecimento e sua
condenação, sustentar sozinho, um Atlas cansado mas pertinaz, o mundo que
seus próprios ideais modelaram, apesar da marcha esmagadora do poder
inconsciente.'
Apesar da evidente desesperança da situação humana, é bom extrair dela
o máximo sentido que pudermos - ainda que a vida não tenha realmente sentido
absoluto algum. O sentido que a vida tem é aquele que estamos dispostos a lhe
dar. O homem, desafiadoramente, torna significativa uma vida que na verdade é
apenas uma parte de um universo completamente sem sentido. Em outras
palavras, apesar de não existir um propósito na vida, no amor ou no sofrimento,
apesar de a morte ser o fim de tudo, os homens podem tentar usar sua breve
existência para dar o seu próprio sentido à vida enquanto ela durar. O sentido da
vida não está no futuro, mas no aqui e agora.
Damos a esse tipo de ética o nome de "ética estética" porque nossos
sentidos e emoções são utilizados para dar sentido à vida e transformar a
ausência de sentido em beleza. Talvez a tentativa mais brilhante de transforma-
ção estética possa ser encontrada nas tragédias gregas. Ali a vida é transformada
poeticamente. Assistindo a uma tragédia grega, podemos apreciar a ausência de
sentido da vida. Somos pessoalmente enriquecidos e talvez até purificados,
apesar de não haver aí um final feliz, apesar de a vida continuar tão carente de
sentido como antes. De alguma forma vimos o sofrimento tornar-se belo.
O drama grego é um esforço supremo de desa6ar o universo caótico e de
torná-lo significativo e transparente ao representá-lo de maneira bela. Em As
Troianas, de Eurípides, vemos os gregos matarem o filho infante do herói
troiano Heitor, porque de outra forma ele poderia vingar a derrota e destruição
de Tróia. Ao mesmo tempo em que o matam, eles sabem que isso é um crime
horrível e sem sentido. O poeta torna o horrível esteticamente belo. Até mesmo
o horror da guerra, da escravidão, da doença, da morte pode ser tomado
significativo para o homem porque o artista pode torná-lo belo. Na pintura, na
escultura e na poesia, o sofrimento se torna belo e a ausência de sentido da vida
recebe significado estético. Talvez uma citação da obra Either/Or, de Soren
Kierkegaard, nos auxilie a entender o sentido da ética estética. Diz ele:
Que é um poeta? Um poeta é um ser infeliz cujo coração é partido por sofrimen-
tos secretos, mas cujos lábios são tão estranhamente formados que, quando os
suspiros e gritos lhes escapam, soam como bela música. Seu destino é igual ao
das vítimas desafortunadas a quem o tirano Falaris encerrava em um touro de
bronze e torturava lentamente sobre um fogo constante; seus gritos não podiam

32
atingir os ouvidos do tirano, para lançar terror no seu coração; quando eles
chegavam a seus ouvidos, soavam como doce música.5
Antes de examinarmos um pouco mais de perto dois tipos de ética estéti-
ca, devemos lembrar-nos mais uma vez que o cristianismo pode ser
destituído do seu sentido último se lhe for dado o tratamento estético.
Quando pensamos em alguns de nossos hinos e em algumas de nossas
pinturas, podemos notar que nós cristãos tentamos escapar ao horror da
decisão pró ou contra o Filho crucificado de Deus transformando seu
sofrimento esteticamente e fazendo dele algo diferente do homem de
dores, do servo do sofredor de Isaías. Lembrando Isaías 53.2,3:
Ele não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia
que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem
de dores e que sabe o que é padecer; e como um de quem os homens escondem o
rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.6
Compare isto com sua imagem favorita de Jesus, e pergunte a você
mesmo: estarei envolvido em uma fuga estética da decisão? Quero uma
alternativa diferente de "Cristo crucificado" ou "ausência de sentido"? Na
maioria dos casos de fato queremos uma alternativa diferente. A
cristandade tem sempre estado em perigo de escapar do discipulado do
Cristo vivo para a adoração de algum belo salvador.
Agora, porém, algumas breves palavras sobre dois tipos específicos de
ética estética. A ética estética pode se ocupar do ser, da pessoa ou personalidade
e seu desenvolvimento; ou pode se ocupar da existência, ação e decisão. Para
fins de classificação, daremos à primeira o nome de ética de auto-realização.
Aqui o bem é aquilo que ajuda a produzir o desenvolvimento mais completo da
personalidade. O "eu" não é apenas o corpo, mas também a mente; ele inclui
também nossos amigos, colegas e todas as coisas e acontecimentos ao nosso
redor que fazem de nós o que somos. Quanto mais eu compreender esse ser na
medida em que toca minha personalidade, tanto maior será meu eu. Minha
tarefa ética é aumentar e integrar meu eu tanto quanto possível. Quanto mais eu
souber, tanto maior se tomará meu eu e tanto mais significativa se tornará minha
vida. A meta da ética de auto-realização é o desenvolvimento da personalidade,
i. é, uma personalidade mais inclusiva, que exista em harmonia com todas as
outras personalidades. O indivíduo deve se perder no eu universal. A pergunta
sobre o sentido último da vida e personalidade é ignorada.
Um tipo diferente de ética estética é sugerido pelo moderno existencialis-
mo ateísta. Esse movimento enfatiza a liberdade e responsabilidade do homem e
encontrou seu mais famoso porta-voz no francês Jean Paul Sartre. Embora os
existencialistas protestassem com veemência se fossem classificados como de-
fensores de uma ética estética, tal classificação parece justificável por uma série
de razões.

33
Os existencialistas não crêem que suas ações tenham algum sentido últi-
mo, porque a própria vida não tem sentido último. Como diz Simone de
Beauvoir: "O homem se realiza dentro do transitório, ou não se realiza." Em
outras palavras, nossas ações devem ter sentido para nós agora; não existe outro
lugar, inferno ou céu, após a revolução ou após a aceitação mundial da livre
iniciativa, onde tudo correrá bem.
As pessoas que acreditam em um futuro no qual todas as dificuldades
desaparecerão podem justificar suas aflições e sacrifícios como meios para esse
futuro glorioso. O existencialismo nega completamente tal futuro. Não existe
meta na vida, exceto a vida como é vivida agora. Diz Madame de Beauvoir: "Se
divisão e violência definem a guerra, o mundo sempre esteve e sempre estará
em guerra; se o homem está esperando pela paz universal a fim de estabelecer
sua existência de modo válido, vai esperar indefinidamente: nunca haverá
nenhum outro futuro. "8 O bem é ação, a afirmação da liberdade humana sobre
tudo o que tenta bloqueá-la. A vida ética é "querer liberdade" para si e para
todos os homens. É vivendo ao máximo que vivemos melhor. A decisão e a ação
são autojustificadoras. Madame de Beauvoir diz mais:

Qualquer homem que tenha conhecido amores verdadeiros, revoltas verdadeiras.


desejos verdadeiros e vontade verdadeira sabe muito bem que não necessita de
qualquer garantia externa para estar seguro de suas metas; sua certeza vem de
seu próprio impulso. Existe um provérbio muito antigo que afirma: "Faça o que
você precisa fazer, aconteça o que acontecer." Isso eqüivale a dizer de forma
diferente que o resultado não é exterior à boa vontade que se realiza na tentativa
de atingi-lo. Se ocorresse que cada homem fizesse o que deve fazer, a existência
estaria salva em cada um, sem que houvesse qualquer necessidade de sonhar com
um paraíso no qual todos seriam reconciliados na morte.9
O certo e o errado não dependem da humanidade, mas do homem como
indivíduo, que sozinho faz com que qualquer coisa seja certa ou errada.
Certo é agir; errado é vegetar.
Antes de abandonarmos a ética da auto-realização e do existencialismo.
devemos novamente lembrar-nos que essas idéias também podem ser encontra-
das na cristandade. Existem muitos pretensos cristãos que descartam a verdade
última do cristianismo e o usam meramente como meio para uma vida mais
plena. Eles precisam de paz de espírito; querem parar de se preocupar e
começar a viver aqui e agora. Não estão preocupados com o futuro, mas o
cristianismo lhes parece uma forma de viver agora a vida esteticamente válida.
Seu suposto cristianismo se expressa num amor por hinos, especialmente can-
ções natalinas, apesar de não acreditarem no Cristo. Expressa-se no amor por
igrejas góticas suavemente iluminadas, que criam uma atmosfera esteticamente
satisfatória. A verdade última de Cristo não lhes interessa. O cristianismo é
apenas uma muleta psicológica.
Similarmente, existem pessoas que dissolvem a essência do evangelho

34
cristão transformando a Igreja num meio de ação por amor à ação. Elas não
querem perguntar se o cristianismo é verdadeiro; querem fazer coisas. Algumas
das coisas que querem fazer são muito elogiáveis: querem eliminar favelas,
construir hospitais, reabilitar alcoolistas, abolir o alcoolismo e o crime. Mas no
lufa-lufa de todas as suas atividades elas nunca encontram tempo para pergun-
tar: por quê? Por que eliminar favelas? Por que trabalhar pela justiça social?
Essas perguntas elas ignoram. Fogem da decisão para a ação. A atividade -
qualquer atividade - se torna a substituta da decisão responsável. Em conse-
qüência, essas pessoas confundem o importante com o sem importância, e
perdem toda a oportunidade de viver uma vida cristã significativa. Estão tão
ocupadas em toda parte que nem mesmo podem ouvir o que Cristo está tentando
lhes dizer em sua palavra.
A ética da auto-realização e da atividade pela atividade podem ser encon-
tradas bem no coração da cristandade.

ÉTICA IDEALISTA

Além dos proponentes da ética prudencial e da ética estética, há aqueles


que procuram seus critérios ou padrões de certo e errado não no homem ou na
natureza, não na personalidade ou na ação, mas em um ideal fora do homem e
da natureza. Eles propõe uma ética idealista, acreditando que esse ideal pode ser
encontrado e que é dever do homem agir de acordo com ele. Mas como pode
esse ideal ser descoberto? Aqui as opiniões divergem.

Ética de Intuição - Há pessoas que acreditam que todos os homens têm


um conhecimento "intuitivo" de certo e errado como parte de sua própria
constituição. Assim como os homens têm olhos e assim podem ver e têm
ouvidos e assim podem ouvir, da mesma maneira todos têm um senso moral que
lhes possibilita distinguir o certo do errado. Esse senso moral é comumente
localizado na consciência, mas até os defensores desta teoria discordam quanto
ao conteúdo exato da consciência. Existem alguns que acreditam que a cons-
ciência diz a todos os homens que é errado matar, mentir, enganar, roubar ou
cometer adultério, e que é certo ser honesto, cortês, corajoso e justo. Quem quer
que negue um fato tão óbvio, dizem, é moralmente cego.
Certos filósofos tentaram dar uma descrição mais sofisticada dessas
regras que todos sabemos por intuição serem corretas. O filósofo inglês Henry
Sidgwick afirmou que existem três regras ou máximas óbvias as quais sabemos
por intuição serem verdadeiras e razoáveis. À primeira regra ele dá o nome de
Máxima da Benevolência. Ela diz: "Não devo preferir meu bem menor ao bem
maior do próximo." A segunda é a Máxima da Prudência: "Um bem presente
35
menor não deve ser preferido a um bem futuro, maior." (Levando em conside-
ração a certeza e a possibilidade de obtê-lo.) A terceira regra é a Máxima da

36
Justiça: "O que eu julgo certo deve, a menos que eu esteja errado, ser julgado
certo por todos os seres racionais que julguem verdadeiramente o assunto."
Mesmo um exame muito superficial dessas máximas revela que elas são
vagas e sujeitas a um sem-número de interpretações. Ainda que duas pessoas
aceitassem esses critérios, sua interpretação dessas regras gerais tornaria seus
critérios pessoais bem diferentes.
Apesar de todas as dificuldades óbvias da "ética intuicionista", mesmo
um filósofo como Henri Bergson acreditava que existem experiências suprain-
telectuais que estão na base dos juízos morais de heróis e santos. No entanto, o
caráter inconstante da consciência humana e sua sensibilidade variável tomaram
difícil a defesa do ponto de vista dos intuicionistas. Mesmo que concordás-
semos com os críticos do intuicionismo de que tais regras de certo e errado que
são acessíveis a todos os homens através da consciência são difíceis de estabe-
lecer, isto ainda não significaria que essas regras não existam. Há uma diferença
importante entre a afirmação de que existe algo assim como certo e errado
independentemente dos desejos e opiniões humanas e a afirmação dos intuicio-
nistas de que esse conhecimento do certo e errado é facilmente acessível e pode
ser obtido com a ajuda do senso moral.

Ética Racionalista - Além do intuicionismo, existe um outro tipo de ética


idealista que afirma que o critério ou padrão básico para o certo e o errado pode
ser encontrado mediante o uso exato da razão. Talvez o mais famoso represen-
tante de tal ética racionalista tenha sido o filósofo alemão Immanuel Kant. Em
sua famosa Crítica da Razão Prática ele sugeriu que um exame cuidadoso da
mente humana revela no âmago um senso de dever que é a base para toda ação
ética. Todos temos em nós um "senso do deveria". Todos sabemos que existe
uma diferença entre o que gostamos de fazer e o que deveríamos fazer. Com
freqüência sabemos muito claramente que gostaríamos de fazer uma coisa, mas
deveríamos fazer outra; e muito freqüentemente fazemos o que deveríamos ao
invés do que gostamos. Se há um incêndio em uma casa e, passando perto,
ouvimos alguém gritar no interior, gostaríamos de ficar fora, na calçada, onde é
seguro; mas muitos de nós, cristãos e pagãos, tentaremos entrar e ajudar não
porque queremos, mas porque sabemos que deveríamos.
Há alguns anos atropelei um homem com meu carro. Estava chovendo
muito, era uma hora da manhã, e não havia vivalma por perto. Meu carro não
ficou danificado, o homem estava inconsciente e, pelo que pude observar,
morto. Meu impulso imediato foi entrar no carro e me afastar. Isso era o que eu
queria fazer; em vez disso, corri ao telefone mais próximo e chamei uma
ambulância e a polícia, porque sabia que isso era o que eu deveria fazer - e o
deveria foi mais forte que o queria.
Kant diz que uma lei moral não é uma afirmação de como os homens se
comportam, mas de como eles deveriam se comportar. Uma lei moral é sempre
37
um imperativo. Todos sabemos que um homem inocente não deveria ser punido
pelos atos de um homem culpado. Um homem não deveria pagar o bem com o
mal.
Foi sobre esse "senso do deveria", que a razão pode descobrir e analisar,
que Kant construiu seu famoso "imperativo categórico". Diz o seguinte: "Aja de
tal forma que as regras que governam sua ação pudessem se tomar a lei
universal." Esta é, obviamente, a Regra Áurea em terminologia complicada:
Faça aos outros o que você gostaria que fizessem a você.
Kant acreditava que com isso tivesse descoberto o fundamento de uma
ética racional. Não eram necessárias a fé ou a intuição, mas apenas raciocínio
lógico para chegar a essa posição e perceber sua sensatez.
Para nós permanece a dificuldade representada por aquelas pessoas dis-
postas a deixar o assassínio ou o adultério se tornar a lei universal. Sua ação
será correta porque concordam em deixar todos os demais agir da mesma
forma? Por mais atraente que seja, a ética kantiana não fornece a fundamenta-
ção firme para a vida boa que ele esperava dela.
Também no intuicionismo e no racionalismo vemos tentativas de
encontrar padrões para viver que afetaram seriamente a cristandade. Muitos
cristãos consideram certo aquilo que sabem intuitivamente ser certo. Essas são
as pessoas que afirmam terem uma ligação particular com Deus e por isso
tomam suas decisões éticas não imitando o Cristo, mas baseadas em suas
próprias percepções intuitivas. Em toda geração, em toda congregação cristã
existem alguns ``entusiastas" que tentam conduzir os cristãos por sua própria
trilha inspirada.
De modo semelhante, é possível mostrar que o racionalismo não deixou
de influenciar a ética cristã. Os esforços de atenuar as exigências absolutas do
discipulado cristão geralmente se baseiam na alegação de que as leis éticas
precisam ser razoáveis e que algumas ordens do Novo Testamento simplesmen-
te não se ajustam a esta especificação. Por exemplo, durante toda a Idade Média
fizeram-se esforços teológicos para provar que amar ao próximo significa,
primeiro, amar a Deus; segundo, amar a si próprio; terceiro, amar pessoas
naturalmente próximas de nós, nossos parentes e amigos; e somente em quarto
lugar, todas as outras pessoas. Esse conceito de amor ordenado foi um esforço
para atenuar as exigências do evangelho que são "não-razoáveis" do ponto de
vista da competência e razão humanas. Repetidamente são pregados sermões
em que se faz a tentativa de tornar o "amarás ao inimigo" mais razoável -
atenuando-o por meio de explicações. O Sermão da Montanha é uma passagem
favorita daqueles que gostariam de tomar o modo de vida cristão mais aceitável
para a razão humana. Durante toda a história da Igreja cristã pode-se observar a
influência da ética racionalista sobre a vida cristã.
Aqui, como em todos os outros esforços para encontrar padrões para as
decisões da vida, descobrimos que tentativas filosóficas de fundamentar a ética
exerceram grande influência sobre a Igreja cristã. Deve estar claro, a esta altura,
38
que a vida cristã não pode ser entendida à parte dos esforços do homem de dar
sentido a suas decisões. O cristianismo sempre existiu em conflito e tensão com
todos os outros sistemas éticos. Esse conflito não apenas mudou o mundo, mas
também influenciou a Igreja.
Antes de abandonarmos o exame dos esforços filosóficos de encontrar
padrões para as decisões com que se confrontam os homens, é necessário
destacar uma distinção básica entre todos os sistemas éticos. Todos eles são ou
formalistas ou teleológicos. Isto é, estão centrados ou no motivo ou na meta da
ação humana. Uma abordagem formalista da ética enfatiza a importância da
intenção. Uma mentira não é a afirmação de uma inverdade, mas uma tentativa
de enganar. Se eu lhe disser que Nova Iorque é a capital dos Estados Unidos,
isso não será uma mentira se eu honestamente acreditar que é este o caso. Para
que essa afirmação seja mentirosa, ela deve ser o resultado de minha intenção
de enganar. Se eu lhe disser a verdade por engano, mas a minha intenção era lhe
mentir, de acordo com o formalismo estarei realmente mentindo.
Por outro lado, podemos julgar as ações por seus resultados, ao invés de
julgá-las por suas intenções. Se eu dirigir meu carro de maneira imprudente,
mesmo não tendo intenção de matar ninguém, não estarei livre de culpa, se isto
acontecer. Um médico que por seu descuido dá a um paciente uma droga errada
não está livre de culpa só por não ter tido a intenção de fazê-lo. Aqui vemos
claramente uma abordagem teleológica da ética: o que conta é o resultado e não
o motivo.
Apesar de ser importante distinguir entre essas duas abordagens éticas,
deveríamos lembrar-nos que a maioria de nós usa ambas simultaneamente.
Mesmo os tribunais levam em consideração tanto o motivo quanto a conseqüên-
cia. É significativo, entretanto, que o cristianismo afirme que em todas as
decisões éticas importantes o motivo é o aspecto significativo. É a árvore que
produz os frutos. Se ela é má, nenhum dos resultados pode ser bom, do ponto de
vista da ética cristã. Neste sentido, a ética cristã é mais formalista do que
teleológica.

39
A BUSCA RELIGIOSA DE VALOR

Estudamos a procura de critérios ou padrões de decisão e vimos como ela


levou os homens a estabelecer muitos objetivos diferentes. Alguns esperavam
dar sentido à vida advogando a busca do prazer. Alguns esperavam encontrar o
sentido de nossa existência na natureza e defenderam a conformidade às leis
que observamos dia após dia. Alguns viram sentido somente naquela vida que
desiste de toda busca de sentido e tira o melhor partido da vida assim como ela
é a cada dia. Outros esperavam encontrar a chave para a vida significativa e
padrões válidos de decisão pela intuição ou razão.
Até agora examinamos apenas a busca de valor que espera encontrar
sentido na vida sem recorrer à origem e fundamento de toda a vida. Todos os
esforços discutidos até agora foram essencialmente esforços para descobrir
padrões de decisão à parte de Deus. Observamos brevemente o caráter incerto e
ambíguo de todos esses padrões. Mas, repetimos, o homem precisa agir. Ele
necessita absolutamente de padrões para suas decisões inevitáveis. Onde poderá
encontrá-los? Sempre existiu a resposta - na religião.
A busca religiosa de valor principia com a aceitação de Deus como o
padrão para todas as decisões. E aqui nos deparamos imediatamente com
dificuldades, porque nem todas as religiões acreditam em um Deus que é bom e,
como tal, uma fonte aceitável de vida ética. Os gregos, por exemplo, adoravam
seres divinos que eram de pouco auxílio na busca humana de uma vida plena de
sentido. Os deuses gregos tinham todos os vícios e virtudes do ser humano, mas
em escala muito maior. Zeus, o rei dos deuses gregos, mentia e cometia
adultério, e o mesmo faziam seus companheiros. O filósofo Platão ficou tão
desgostoso com essa teologia popular grega que baniu os escritos de Homero e
Hesíodo do seu Estado ideal.
Nem todas as religiões forneceram a seus devotos padrões para o certo e
o errado. De fato, em muitos casos não houve uma correlação clara entre
"religioso" e "moral", e muita imoralidade organizada foi praticada em nome
dos deuses. Mas sempre existiram profetas e santos que protestaram contra essa
identificação dos deuses com nossos próprios desejos e vícios. Homens como
Platão eram de opinião que deve haver um deus que seja a fonte e o padrão da
bondade. De modo semelhante, a religião persa e a hindu e muitas outras
grandes religiões históricas tentaram encontrar entre os deuses os padrões para a
vida boa.
Mas, mesmo admitindo que um deus é bom, que ele é o padrão para o
certo e o errado para os homens, ainda permanece a pergunta: como posso

40
tornar essa bondade de Deus real em minha vida? Admitindo que minha
vida teria sentido se estivesse em afinidade com Deus, que posso fazer para
atingir esse fim? Como posso chegar à conformidade com Deus?
Essa pergunta tem sido respondida de modo diferente por várias religiões,
e às vezes a mesma religião deu respostas diferentes em épocas diferentes. Mas
o problema tem sido sempre o mesmo: admitindo que Deus é o padrão absoluto
para uma vida significativa e moral, como posso fazer com que minha vida
esteja em concordância com sua vontade? Esta é a pergunta milenar da busca
religiosa de valor. Confrontamo-nos com respostas humanas a essa pergunta
quando vemos um faquir hindu em seu leito de pregos, a dança ritual de uma
tribo africana ou as manifestações ruidosas de uma reunião de pentecostais. O
eremita sobre seu pilar no Egito e o mendigo religioso de burel na estação
Grand Central em Nova Iorque, o soldado maometano e o cruzado que luta
contra ele, o missionário-médico cristão e o nativo africano que mata seus filhos
gêmeos- todos estão dando sua resposta à pergunta: se Deus é Deus, que deve
fazer o homem para viver a vida boa?
Para o bem da simplicidade, podemos dividir todas as respostas humanas
a essa pergunta em três grupos. Em primeiro lugar, há aqueles que acreditam
poder encontrar o sentido religioso último de suas vidas pela disciplina da
vontade. Em segundo lugar, há aqueles que crêem poder encontrar o sentido da
vida através de exercícios da alma. Em terceiro lugar, há aqueles que acreditam
que o sentido último da vida pode ser encontrado mediante o intelecto. Essas
três abordagens são comumente conhecidas como legalismo, misticismo e ra-
cionalismo.

LEGALISMO

Todos sabemos o que é a religião "legalista". O Novo Testamento a


descreve para nós como a religião dos escribas e fariseus. Mas ela não se
encontra apenas entre os judeus. Entre todos os homens religiosos há alguns que
tentam atingir o objetivo da vida por meio da lei.
O legalista acredita que a vontade de Deus foi expressa na forma de
mandamentos ou leis que o homem pode e deve cumprir. Fazer o bem é viver de
acordo com essas leis; fazer o mal é transgredir qualquer uma delas.
Sabemos como era importante, para os judeus do tempo de Jesus, a "Tora", a
Lei. Parecia-lhes tão importante que acrescentaram às leis do Pentateuco toda
sorte de explicações e comentários que visavam tomar mais fácil para os
homens agir de acordo com elas. Construíram, como diziam, uma cerca I em
torno da "Tora".
Sabemos, por exemplo, como eles ampliaram a lei do sábado. Em Êxodo
41
31.14-15 lemos: "Portanto guardareis o sábado, porque santo é para vós
outros:

42
aquele que o profanar, morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra
será eliminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, porém o sétimo dia
é o sábado do repouso solene, santo ao Senhor; qualquer que no dia do sábado
fizer alguma obra morrerá."
Esta era uma das leis da aliança de Deus, e a relação do homem com
Deus dependia da obediência a essa lei. Por essa razão os rabinos judeus logo
começaram a estabelecer interpretações dessas leis que visavam impedir a
transgressão do mandamento. Por exemplo, um judeu ortodoxo não viaja no
sábado. Mesmo que a jornada seja claramente um passeio, ela é proibida,
porque constituiria uma quebra do mandamento do sábado. Da mesma forma,
um judeu ortodoxo não liga uma luz elétrica no sábado, pois mesmo esse ato
simples é considerado trabalho, sendo, portanto, proibido. Ele não carrega nada,
nem mesmo um lenço, no sábado, pois isso também seria trabalho e uma
transgressão da lei.
Ilustrações semelhantes poderiam ser dadas com referência a todos os
outros mandamentos. O aspecto importante de que devemos nos lembrar é que
certo e errado aqui são determinados "legalmente". Conformidade com a lei
divina é certo, sua transgressão é errado. E essa lei é um código acessível a
todos os homens. Para o legalista o problema: "Que é certo?" não existe. Seu
problema principal é, antes, o da observação exata das leis que estão estabele-
cidas como certas. Considera-se óbvio que os homens podem observar essas
leis. Além disso, "advogados religiosos" desenvolvem sistemas que tomam a
observância dessas leis um pouco menos dificultosa. Por exemplo, inventaramse
maneiras de viajar mais do que a distância permitida no sábado. De modo
semelhante, é possível carregar um lenço atando-o ao redor do pulso, onde
constitui uma peça de vestuário, e assim contornar a proibição da lei do sábado,
caso se necessite de um lenço.
A religião judaica do tempo de Jesus tinha formalizado completamente a
vida ética. A obediência a um código havia tomado o lugar de qualquer
preocupação verdadeira com a justiça e retidão. Dava-se mais atenção à obser-
vância do sábado do que ao amor e à misericórdia, e nosso Senhor foi criticado
severamente por curar doentes no sábado.

Mas o legalismo judeu é apenas uma das formas de legalismo religioso.


Os ensinamentos de Confúcio, a autodisciplina dos estóicos, as observâncias
rituais dos maometanos - tudo isso são tentativas de viver a vida boa através da
obediência à lei. Para nosso estudo da vida cristã é da maior importância
lembrar que tal legalismo também pode ser encontrado na Igreja cristã. Menos
de um século depois de S. Paulo, a Igreja cristã começou a ser dominada por
uma mentalidade que reduzia o evangelho a uma nova lei. Ser cristão signifi-
cava obedecer às leis da Igreja. Sempre houve vozes proféticas que protestaram
contra essa codificação da vida cristã, mas eram vozes que clamavam no
deserto. A cristandade acabou desenvolvendo um sistema legal de certo e errado
43
que tornou possível catalogar cada ação como virtuosa, indiferente, pecado
venial ou pecado mortal. Novamente os teólogos se degeneraram, transforman-
do-se em legisladores, e os grandes papas da Idade Média eram quase todos
advogados brilhantes e não teólogos criativos. Eles conheciam a lei e sabiam
como aplicá-la. Na sua opinião, o cristianismo era lei. O cristão era a pessoa que
obedecia essa lei, e, se a desobedecesse, era informado dos procedimentos
legais necessários para corrigir seus erros e pagar as penalidades devidas.
Apesar de a Reforma ter sido essencialmente uma revolta contra esse
conceito legalista de cristianismo, as igrejas reformatórias logo se viram envol-
vidas em uma espécie semelhante de legalismo. Além do mais, se inquirirmos
uma pessoa comum, hoje, acerca do sentido do cristianismo para ela, ela
pensará, quase invariavelmente, em leis e regras. Se você segue essas regras e
cumpre essas leis, presume-se que você seja cristão; se não obedece às leis,
você não o é. Essas regras podem tratar da sua dieta na sexta-feira, ou do
conteúdo alcóolico de suas bebidas em qualquer dia da semana. Mas onde
encontrarmos a obediência a regras como o critério da vida cristã, estaremos
tratando com legalismo, a tentativa de encontrar o sentido religioso último da
vida através da vontade.

MISTICISMO

Há também aquelas pessoas que acreditam poder encontrar o sentido


último da vida mediante exercícios da alma. Para viver a vida boa, para viver
em contato com Deus, elas sugerem o treinamento das emoções religiosas. Para
elas a religião e o valor religioso são essencialmente o âmbito dos sentimentos,
e não da vontade. Schleiermacher, o famoso teólogo alemão do século XIX,
descreveu a religião como o "sentimento de dependência absoluta". Assim,
podemos aproximar-nos de Deus cultivando nossos sentimentos religiosos.
As duas características essenciais do misticismo religioso são: primeira, ele
apaga qualquer distinção clara entre Deus e o homem, identificando o melhor
do homem e o melhor de Deus; segunda, existe um método que os homens
podem usar para enfatizar o aspecto divino neles e, assim, se unir com Deus.
Mais uma vez, é possível encontrar tal busca mística de valor em todas as
religiões; mas é no Oriente que o misticismo chegou a seu mais completo
desenvolvimento. Talvez um exemplo ajude a ilustrar essa típica auto-identifi-
cação com Deus que caracteriza o místico. No misticismo persa de Rumi
Jalaluddin encontramos o seguinte:
Eu sou a poeira na luz do sol, sou o círculo do sol; à poeira eu digo: fique, e ao
sol: continue.
Sou a névoa matinal. Sou o suspiro do poente. Sou o sussurrar do bosque, a onda
crescente do mar.

44
Sou o mastro, o leme, o timoneiro e o barco. Sou o recife de coral sobre o qual
ele soçobra.
Sou a árvore da vida e o papagaio em seus galhos, silêncio, pensamento, língua e
voz.
Sou o sopro da flauta, o espírito do homem, sou a centelha na pedra, o reflexo de
ouro no metal.
A vela e a mariposa volitando ao seu redor, a rosa e o rouxinol ébrio de sua
fragrância.
Sou a cadeia do ser, o círculo das esferas, a escala da criação, a ascensão e a
queda. Sou o que é e não é. Eu sou - ó Tu que sabes, Jalaluddin, ó dize-o - sou a
alma em tudo.10

Que a alma e Deus são o mesmo na crença do místico, é ilustrado ainda


pelo hindu Acharya Sankara. Comentando os Upanixades, diz:
O Atman (alma ou deus, identificados por Sankara), a quem conhecer é salvação,
a quem não conhecer é servidão ao mundo, que é a origem do mundo, que é a
base de toda a criação, através de quem tudo existe, através de quem tudo é
concebido - o não-nascido, o imortal, o destemido, o bom, sem par - Ele é o
Verdadeiro. Ele é o seu ser. E, portanto, isso é você.11

Mais tarde:
Mais precioso do que o precioso, eu sou ainda o maior, sou o Todo em sua
completa plenitude; sou o mais antigo, o Espírito, o Senhor Deus. De brilho
dourado sou e divina forma, sem pé nem mão, rico em poder inimaginável. Visão
sem olhos, audição sem ouvidos, livre de toda forma, eu conheço mas a mim
ninguém conhece. Pois eu sou Espírito, sou Ser.12

Há muitas afirmações similares que mostram a identificação mística da


alma com Deus na literatura religiosa do Oriente. A trilha para a vida boa
é essencialmente uma trilha de introspecção. O homem se toma bom
sacudindo as cadeias de terra e unindo sua alma com o divino. Ele se
toma bom não por fazer algo para alguém, não por obedecer a leis que se
confrontam com ele do exterior; antes, toma-se bom se perdendo no Todo
Divino. Retira-se do mundo dos sentidos e ascende para Deus. E os
místicos até sugerem uma escada (scala paradisi) que se pode usar para
chegar até Deus. Há certas práticas - toda sorte de rituais ascéticos, jejuns
e flagelações - que tornam possível a uma alma humana ascender a Deus.
Há também alguns místicos que sugerem orgias alcóolicas e
grosseiramente sexuais para libertar a alma do corpo. Apesar de haver
grandes diferenças de detalhe, o misticismo em toda parte insiste que há
um método que o homem pode utilizar para ascender a Deus.
Dissemos que as características da busca mística de valor são a ausência
45
de uma distinção clara entre Deus e o homem e a utilização de um método, de
uma escada mística para chegar a Deus. Essas características se encontram tanto
no misticismo cristão quanto no não-cristão. Uns poucos exemplos devem
bastar. Meister Eckhart, um místico alemão medieval, disse: "Deus fez todas as
coisas através de mim, quando eu tinha minha existência na imensurável
profundidade de Deus." Outro místico, Angelus Silesius, disse no Peregrino
Querubínico: "Nada existe exceto você e eu, e se nós dois não fôssemos Deus
, Deus não mais seria; os céus tombariam. Eu sou o outro eu de Deus, somente
em mim ele encontra o que eternamente será igual e semelhante a ele."
Mesmo no misticismo cristão a alma e Deus são identificados. E também aqui
sugere-se uma série de métodos que visam libertar a alma de seus grilhões
terrenos para a união com Deus. O ascetismo, o jejum e a autoflagelação são
algumas das maneiras que supostamente conduzem o indivíduo à união com o
divino. Os místicos cristãos não hesitam em descrever essa união com Deus em
termos completamente sensuais e mesmo sexuais. A freira Mechthild de Mag-
deburgo, por exemplo, que escreveu no século XIII, usou termos quase doen-
tiamente sensuais para descrever em detalhes a união da alma com Deus.
Para nosso estudo é importante observar que o místico sempre vê o
problema da ética como um problema puramente pessoal da relação da alma
com Deus. Para os místicos geralmente os problemas da sociedade parecem
completamente irreais. Eles estão preocupados apenas com o avanço da alma
em direção a Deus. Sua salvação pessoal parece ser o único “bem” que conhecem.
Deveria ser óbvio que existem muitos cristãos, na atualidade e no
passado, cujo comportamento é determinado completamente por esse padrão
ético do misticismo. Eles divorciaram a ética, o problema da decisão, da
sociedade na qual vivem. O bem para eles é uma intoxicação emocional.
Existem hoje movimentos dentro da cristandade que têm todas as marcas de tal
misticismo, fornecendo a base para a reputação do cristianismo como “ópio” do
povo. Em sua preocupação com a ascensão a Deus estão completamente
esquecidos do mundo no qual vivem.
O misticismo desse tipo encoraja uma completa irresponsabilidade
política e social. Torna-se uma ferramenta nas mãos do imperialismo e da
corrupção política. O misticismo religioso com que nos defrontamos em nossa
época carece da maior parte da exaltação espiritual verdadeira e profunda que
pode ser observada em Meister Eckhart ou nos grandes místicos hindus. Mas,
ao nosso redor, vemos hoje o crescimento de um "misticismo de pobre", nos
cultos entusiásticos da adoração pentecostal. Aqui podemos observar a tentativa
de escapar às duras realidades da vida pela intoxicação emocional, e ao mesmo
tempo uma completa ausência de participação social e política responsável.
O misticismo na verdade ainda está conosco. Em nossos dias, como em
todas as eras antes de nós, há muitas pessoas que tentam atingir a vida boa
unindo-se a Deus através da exaltação emocional e que encontram seu guia para
as decisões da vida no âmbito dos sentimentos.
46
RACIONALISMO

É crença característica dos racionalistas que "o bem" ou "Deus" pode ser
alcançado pelo método do pensamento racional, pela lógica e pelo processo
dialético. É pela razão, e não pela lei ou pelo sentimento, que a vida significa-
tiva, i. é, a vida boa, pode ser atingida.
Por causa dessa insistência no pensamento claro e na lógica, o caminho
racionalista para Deus nunca foi tão popular como o “caminho do sentimento”
ou mesmo o "caminho da lei". Qualquer pessoa pode ficar emocionalmente
intoxicada, sob orientação adequada; e quase qualquer pessoa pode obedecer a
certas leis, sé elas forem suficientemente simples; mas nem todas podem pensar
corretamente ou mesmo seguir uma argumentação lógica. É este fato que
sempre fez do racionalismo religioso o método de uma minoria.
Assim como os judeus fornecem um exemplo de legalismo e os hindus
um exemplo de misticismo, da mesma maneira os gregos podem ser descritos
como um povo particularmente dedicado à senda da razão. Foi Sócrates, o
grande mestre grego, que acreditou ser o mal essencialmente o mesmo que a
ignorância. Isso significa que as pessoas poderiam ser libertadas do mal se
pudessem apenas ser libertadas de sua ignorância. Durante toda a sua vida,
Sócrates tentou pôr em prática essa crença ensinando, fazendo a seus contem-
porâneos perguntas destinadas a revelar e desfazer a ignorância humana. Ele
acreditava sinceramente que a maldade é prejudicial a quem a pratica. Reduzida
a suas implicações mais simples, essa opinião era o resultado do seguinte
processo de raciocínio: o homem mau torna más as pessoas em seu redor. São as
pessoas más, e não as boas, que lhe fazem mal. Se você toma maus aos que o
cercam, essas pessoas que você perverteu irão, no fim, lhe causar dano. Assim,
sendo mau, a longo prazo você prejudica a si mesmo. Como Sócrates explicou
em vão a seus juízes em sua Apologia, simplesmente não é inteligente tomar
más as pessoas.
Para Sócrates e outros pensadores gregos Deus era o intelecto supremo, a
razão, o logos do universo. Tornando-nos racionais é que nos tornaríamos
semelhantes a Deus; a filosofia seria a estrada para a bondade. Os pensadores
gregos acreditavam firmemente que a virtude poderia ser ensinada. Tanto Platão
quanto Aristóteles, apesar de discordarem em muitas coisas, acreditavam que a
existência de Deus podia ser demonstrada racionalmente, e desenvolveram
provas intelectuais intricadas que deveriam demonstrá-la. Logo que a existência
de Deus ficasse estabelecida, a natureza da vida boa e a necessidade de vivê-la
47
seguir-se-iam logicamente.
O intelectualismo dos gregos penetrou no cristianismo. Muitos dos gran-
des teólogos da Idade Média foram profundamente influenciados por Platão e
Aristóteles. Eles aceitavam o caminho da razão como um caminho válido para
chegar a Deus. No século II Justino Mártir disse: "Aqueles que vivem confor-

48
me a razão são cristãos, mesmo que sejam considerados ateus. Assim
eram Sócrates e Heráclito entre os gregos, e outros como eles." Essa noção tinha
sido assumida por dois grandes teólogos cristãos de Alexandria no Egito,
Clemente e Orígenes. Essa linha de raciocínio levou os grandes teólogos
escolásticos Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo e Pedro Lombardo a
construir sistemas teológicos firmemente baseados na razão. Esse
desenvolvimento atingiu seu clímax com o filósofo-teólogo Tomás de Aquino,
do século XIII.
Tomás de Aquino, que sempre falava de Aristóteles como o filósofo,
como se não houvesse outro, adotou a idéia de que Deus pode ser alcançado por
meio do intelecto. Ele sugeriu cinco provas da existência de Deus que visavam
tornar Deus intelectualmente real para nós. Para ele, uma pessoa que não crê em
Deus é essencialmente uma pessoa que não pode seguir uma argumentação
lógica. Essa concepção nos remete a Sócrates, para quem o mal e a ignorância
pareciam o mesmo. Existe na escolástica até uma tendência de fazer da
ignorância uma virtude salvadora. Se um homem é ignorante, ele não pode ser
considerado responsável, e assim esses teólogos afirmavam que as pessoas que
são pagãs e heréticas honestamente, porque não conhecem algo melhor, podem
ser salvas fazendo o que, apesar de falso, elas acreditam ser correto.
Isso indica quanta ênfase a escolástica cristã dava à razão e a seu uso
correto. Como diz Tomás de Aquino: "Existem certas coisas que mesmo a razão
natural pode alcançar, como, por exemplo, que Deus existe, que Deus é uno e
outras como estas as quais os filósofos demonstraram a respeito de Deus,
guiados pela luz da razão natural.”13
A senda racionalista para uma vida significativa pode ser encontrada não
apenas na escolástica católica romana, mas também em muito do que passa por
calvinismo ou luteranismo. Sempre que o caminho para Deus como fonte de
todo valor for essencialmente o caminho da razão, estaremos lidando com o
racionalismo. Em toda parte onde o cristianismo é concebido como um conjunto
de proposições lógicas às quais assentimos, a razão reina soberana. Por
exemplo, existem muitos luteranos que acreditam que ser luterano é essencial-
mente esposar certas opiniões, aceitar certas proposições a respeito do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, ou esposar certa doutrina acerca da inspiração das
Escrituras. Especialmente no que em geral é chamado de "ortodoxia luterana"
deparamo-nos com um conceito de Deus e de sua verdade que deve muito aos
gregos e aos escolásticos medievais.
Em questões de ética, esta abordagem sempre leva a uma retirada do
mundo de conflitos. O bem e o intelectualmente correto são identificados, e o
discipulado do Cristo vivo é reduzido ao assentimento intelectual a seu nasci-
mento milagroso, aos milagres por ele operados e a sua ressurreição. O homem
bom é o homem que tem a crença certa - que conhece as coisas certas para crer,
compreende o que está em jogo e então crê nelas. Sempre que se supõe que o
sentido último da decisão seja uma decisão intelectual, estamos lidando com
49
racionalismo.
Destacamos que a busca religiosa de valor pode tomar o caminho da
vontade no legalismo, o caminho das emoções no misticismo e o caminho do
intelecto no racionalismo. Talvez seja conveniente lembrarmo-nos a esta altura
que essas diferentes abordagens de fato nunca estão tão claramente separadas
como neste estudo. Encontramos tanto o misticismo quanto o racionalismo na
religião judaica, ó legalismo no hinduísmo. Para o bem da classificação, entre-
tanto, podemos dizer que esses são os caminhos básicos que o homem usa para
encontrar em Deus a fonte de todos os valores. Nossa própria seleção é deter-
minada por nossa constituição emocional e intelectual, bem como pelo espírito
da época na qual vivemos. Mas é indubitavelmente verdade que, se somos
pessoas religiosas, estamos empenhados em ascender a Deus pela disciplina de
nossa vontade, pelos exercícios de nossas emoções e/ou pelo cultivo de nosso
intelecto. Podemos até tentar combinar os três métodos.
Apesar de haver muitas definições diferentes de religião, no contexto de
nosso estudo a religião pode ser definida como a busca humana de critérios ou
padrões de valor. Temos que enfatizar que a religião, como a vemos agora e a
conhecemos ao longo da história, é busca humana. O homem tenta encontrar a
vida boa - aproximar-se do Movedor Não-Movido, como Aristóteles chamou a
Deus, ou do Arquiteto do Universo, como os maçons gostam de chamá-lo. É o
homem que usa açoites e encantações místicas, em jejuns e danças frenéticas,
para unir-se ao Uno, à Alma do Mundo, como os místicos vêem a Deus. É o
homem que pensa que a mais rigorosa obediência à lei divina força Deus, o Juiz
justo dos legalistas, a declará-lo apto para o reino dos céus. Em toda busca
religiosa de valor Deus é muito real, mas o caminho para Deus é um caminho
humano. Depende do homem se ele vai ou não viver a vida plena de sentido. É
o homem que tenta salvar-se. Mesmo na religião o homem permanece mestre de
seu destino e comandante de sua alma. Apesar de a meta ser Deus, é o homem
que por seus esforços torna possível atingir essa meta.

50
A VIDA DO HOMEM ,
E O JUIZO DE DEUS

Em nossa exposição até agora descrevemos os esforços do homem para


encontrar uma base para tomar as decisões que a vida lhe impõe. Reconhecemos
que o homem, quer goste, quer não, está forçado à decisão pelo mero fato de
sua existência. Acompanhamos o homem em seus esforços para descobrir como
pode tomar a decisão certa. Tentamos, junto com ele, encontrar a base para
decisões corretas na filosofia e na religião. Até agora estivemos preocupados
unicamente com o caminho humano rumo aos valores, com a busca humana de
Deus. Agora está na hora de perguntar: "Como se relaciona a ética cristã com
essa busca? Como se compara ela com as respostas que o homem pode obter
nessa busca religiosa e filosófica?"
Respondendo a essas perguntas, outra ilustração da situação humana pode
ajudar a descrever a necessidade de decisão:
Você é uma criança presa em uma casa incendiada. Seu pai está sob a
janela, chamando por você; mas está escuro lá fora e você não o pode ver. Você
tem que saltar ou então morrer nas chamas. Se você pular, seu pai o apanhará;
mas ele não o pode apanhar a menos que você salte.
Embora este exemplo seja falho em vários pontos, servirá para o nosso
propósito. Pode-se dizer que, depois de saltar, você perceberá que não saltou
realmente, mas foi empurrado. Isso, é claro, não o ajuda enquanto o fogo está
rugindo às suas costas e você sente que a decisão depende completamente de
você. Os teólogos lhe dirão mais tarde que você nunca esteve tão sozinho como
pensou que estivesse, e estou convencido de que eles têm razão; mas do seu
ponto de vista, entre a escuridão vazia e o estalar das chamas, ofuscado pelo
fogo, você está tão só como uma pessoa pode estar.
Em nosso exame do homem que delibera e tenta tomar suas decisões pela
filosofia e religião, falamos do homem antes de ele "saltar" aos braços esten-
didos para ele na escuridão. A ética cristã, por outro lado, é a descrição da
situação humana depois do "salto" para os braços de Deus. A vida cristã é a vida
vivida na fé em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o Salvador, que nos é revelado na
Bíblia e em sua santa Igreja. É significativo que reconheçamos a autoridade da
Bíblia e da Igreja apenas depois de "saltarmos".
É importante lembrar-nos que não deixamos de ser seres humanos pelo
salto. Examinemos agora a situação humana com base em nossa fé na invasão
divina na história humana, na encarnação de Jesus Cristo prometida e procla-
mada no Antigo Testamento e cumprida e proclamada no Novo. Que é o
homem, com seus hábitos e ideais, com seu legalismo, misticismo e racionalis-
51
mo religioso? Que é o homem, que está "fadado a ser livre", aos olhos de Deus?
Que é o homem no juízo divino?

A IMAGEM DE DEUS

A resposta bíblica a essa pergunta é simplesmente assombrosa: "E disse


Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança."'4 Em
outras palavras, a Bíblia atribui ao homem uma singularidade que o distingue
profundamente do resto da criação.
Esta é uma singularidade característica de todos os homens. Lemos no
Salmo 139.1-16:

Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me assento e quando me


levanto; de longe penetras os meus pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o
meu deitar, e conheces todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou
à língua, e tu, Senhor, já a conheces toda. Tu me cercas por trás e por diante, e
sobre mim pões a tua mão. Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é
sobremodo elevado, não o posso atingir. Para onde me ausentarei do teu
Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a
minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da
alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me haverá de guiar a tua
mão e a tua destra me susterá. Se eu digo: As trevas, com efeito, me encobrirão,
e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas não te serão escuras:
as trevas e a luz são a mesma coisa. Pois tu formaste o meu interior, tu me teceste
no seio da minha mãe. Graças te dou, visto que por modo assombrosamente
maravilhoso me formaste; as tuas obras são admiráveis, e a minha alma o sabe
muito bem; os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui
formado, e entretecido como nas profundezas da terra. Os teus olhos me viram a
substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada
um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.
Transcrevemos um trecho tão extenso do salmo porque ele descreve o valor do
homem em relação a Deus como valor que se aplica a toda a humanidade, não
apenas às criaturas pré-históricas do Gênesis, mas a todos os homens. No juízo
divino o homem é único, pois Deus o criou à sua imagem. É essa relação única
com Deus que toma o homem o que ele é. O que a Igreja afirma aqui é que o
homem é "sem sentido" à parte de Deus, que, para entender o homem, devemos
entendê-lo no seu relacionamento com Deus. Todo esforço de entender o
homem à parte do Criador em cuja imagem ele foi criado significa abandonar
toda esperança de jamais encontrar o sentido de sua vida. Esta é uma razão pela
qual os esforços que fizemos até agora pareciam infrutíferos. Em termos filo-
sóficos, começando com o homem, ou em termos religiosos, começando com o
homem, ele não pode ser entendido. Se ele é "imagem", mesmo sendo uma

52
imagem completamente distorcida, como veremos, ele só pode ser entendido
em relação com o Original de quem é imagem.
A característica especial do homem, comparado ao resto da criação, é que
ele foi criado para estar em contato verbal com Deus. Deus fala ao homem e o
homem pode falar a Deus. Aqui se expressa a singularidade da relação de Deus
com o homem. Deus não se limitou a criar o homem por sua palavra como um
produto acabado, mas está em comunicação constante com ele. Ou, como 0
expressa Emil Brunner:

Falando em termos figurados, Deus produz as outras criaturas em um estado


final; elas são o que deveriam ser, e assim permanecem. Mas Deus retém o
homem em Sua oficina, em Suas mãos. Ele não o faz e termina, simplesmente; a
natureza humana, na verdade, consiste no fato de que podemos e temos que
permanecer nas mãos de Deus. A estampa característica do homem, entretanto,
só se desenvolve com base na determinação divina, como resposta a um
chamado, por meio de uma decisão. A necessidade da decisão, uma obrigação à
qual ele nunca pode fugir, é a característica distintiva do homem.15

O homem é criado para estar em contato verbal com Deus. Mas, para
responder a Deus, ele tem que ouvir. Você não se comunica pela fala com
alguém a quem não ouve. Se sua sogra o incomoda tanto que, sempre que
ela fala, você tapa os ouvidos para expressar exasperação e rebeldia, você
não está em contato verbal com sua sogra. Penso que é significativo que,
sempre que estamos zangados com uma pessoa, não falamos com ela.
Mesmo criancinhas dirão desafiantes: "Nunca mais falarei com você
enquanto eu viver" - o que em geral significa meia hora.
Embora essa capacidade de ouvir e responder a Deus tome humano 0
homem, ela não é simplesmente uma característica natural como a capacidade
de latir de um cachorro, ou o perfume de uma rosa; antes, ela é algo que é real
somente na medida em que for usada. E aqui novamente se toma claro como é
importante a "decisão" na vida do homem. Um cão é um cão - ele não pode
decidir ser outra coisa. Mas o homem pode decidir não ser homem; ele pode se
recusar a ouvir Deus e falar com Ele. Deus falou ao homem em amor e lhe
ofereceu comunhão. O tempo no qual o homem assim ouvia e respondia a Deus
é uma época pré-histórica, o status integritatis, o "estado de integridade" dos
teólogos. Não é a situação que encontramos registrada na História. Que acon-
teceu à relação entre o Criador e a criatura formada à sua imagem? O homem
assim como o descobrimos na História, o homem acerca de quem lemos em
nossos jornais, o homem ou a mulher que vemos quando olhamos no espelho -
eles não são a imagem de Deus. Não são, propriamente falando, "homens", se
com este termo nos referimos ao objeto do propósito criador de Deus - o ser que
deveria ser muito bom. Que aconteceu? Por que o homem não é aquilo para que
ele foi criado? Por que o homem não é homem? A resposta a esta

53
pergunta reside no fato de que a humanidade implica decisão, e isso sempre
implica a possibilidade de decisão errada. O problema do homem é que ele
tomou a decisão errada e continua a tomá-la.

PECADO ORIGINAL E PECADOS

O homem foi criado para ouvir a Deus e falar com Ele. Foi criado para
ser amado por Deus e amá-lo por sua vez. Foi criado para ter comunhão com
seu Criador. Mas o homem decidiu não ouvir a Deus. Decidiu não falar com
Deus. Orgulhoso de ser imagem do Criador, ele decidiu ser o criador. Esque-
cendo que sua grandeza dependia inteiramente de seu relacionamento com
Deus, ele orgulhosamente passou a afirmar sua grandeza à parte de Deus e,
assim, deixou de ser verdadeiramente homem. Essa evolução é descrita na
estória de Adão e Eva. Existiu um primeiro homem que podia ouvir a Deus e
falar com ele e, assim, podia recusar-se a ouvir e recusar-se a falar. Não é
realmente muito importante se você acredita que esse homem viveu há seis mil
anos ou que ele é produto do processo evolutivo. O que importa é que Deus
criou um primeiro ser que era diferente: ele podia ouvir, podia falar, podia
obedecer ou desobedecer. E o homem desobedeceu. Sabemos que essa desobe-
diência também foi parcialmente resultado de poderes demoníacos que encora-
jaram o homem em sua descrença. A Bíblia sabe de tais poderes que exploram a
fraqueza do homem e o encorajam em sua revolta contra Deus. Apesar disso, é
importante para nós que a Igreja ensina que o homem poderia ter seguido a
Deus - ele não estava predeterminado a desobedecer; o homem desobedeceu
baseado em sua própria decisão, e essa desobediência estabeleceu um padrão
que tornou impossível aos homens jamais obedecerem a Deus a partir de seu
próprio poder. A Bíblia fala de todos os homens como sendo "por natureza
filhos da ira"16. Os teólogos dizem que o pecado original significa que herdamos
não o ato de Adão, ma a revolta contra a vontade de Deus, uma revolta na qual
participamos desde a infância. O pecado original é a revolta do homem contra
Deus. O homem histórico é sempre um "homem em revolta". Ele não precisa
aprender a se revoltar; nasce num estado de revolta contra Deus. Lutero fala
desse pecado como "uma corrupção tão profunda e má da natureza, que
nenhuma razão a entende, mas na qual se deve acreditar a partir da revelação
das Escrituras". É este o pecado responsável pela morte; é a "doença até a
morte" da Bíblia. O homem histórico é sempre o homem prestes a morrer, pois
o pecado é tão universal quanto a morte. O paraíso significa imortalidade, a
História significa mortalidade. De acordo com a fé cristã, estamos envolvidos
coletivamente no pecado assim como estamos envolvidos coletivamente na
morte. Não podemos escapar de um, assim como não podemos escapar da outra.
Para a pergunta: "As crianças estão livres do pecado?" a resposta é: "As
54
crianças estão livres da morte?" A humanidade, sem exceção, está envolvida no
pecado e na morte.

55
Dissemos que o pecado é essencialmente revolta contra Deus. Esta é
uma concepção da raiz do mal bastante diferente da explicação dos filósofos,
para os quais o mal geralmente parecia uma deficiência, uma falta de alguma
coisa. Para Platão, o mal era o "não-ser", um menos; um homem mau era um
homem como ele existia na mente de Deus - menos algo que o tornava menos
do que ele deveria ser. O mal era uma doença de deficiência, uma pura negação;
ou, como afirmou Sócrates, ignorância.
À luz das Escrituras, o mal é algo muito mais positivo. Não é tanto uma
negação como uma afirmação, uma afirmação do homem contra Deus. É a
declaração de independência do homem em relação a Deus. Se olhamos o
capítulo 3 de Gênesis, vemos que o pecado é descrito como a tentativa do
homem de ser igual a Deus, de afirmar sua independência de Deus. Na estória
da torre de Babel os homens quiseram construir uma "torre que alcance os
céus"1'. No Novo Testamento encontramos essa mesma arrogância e orgulho
em ação. Na parábola dos maus lavradoresl8, os lavradores dizem entre si, após
terem morto os servos do senhor e este lhes ter mandado seu filho: "Este é o
herdeiro: venham, matemo-lo, e apoderemo-nos da sua herança." Novamente,
na parábola do filho pródigo, o filho mais moço chega ao pai dizendo: "Dá-me a
parte que me cabe dos bens."19
A estória do pecado humano é a estória do esforço do homem de viver
sem Deus, de viver independentemente e em revolta contra Deus. Além do
mais, como é da própria natureza humana viver em relação com Deus, a estória
da humanidade na História é também a estória da fuga do homem de ser
homem. A fuga humana de Deus é na verdade a fuga do homem de si mesmo,
pois ele só é verdadeiramente homem em comunhão com Deus. Essa fuga de,
Deus está na raiz de todos os males da História humana. Quando a razão, por,
exemplo, não é mais o instrumento humano a serviço de Deus, ela conduz a
uma completa irracionalidade. Quando a liberdade deixa de ser liberdade a
serviço de Deus, para se tomar liberdade em relação a Deus, ela se transforma
em escravidão. E o culto da razão, o culto da lógica em nossa época que tornou
o mundo completamente irracional. As pessoas que afirmam serem guiadas
apenas pela razão vêem no universo um caos, sem sentido e sem esperança, de
elétrons e nebulosas em espiral. Os adoradores da razão humana independente
tornaram o universo totalmente irracional. Os adoradores da lógica, os positi-
vistas lógicos, delegaram tudo o que tem valor ao âmbito do sem sentido. De
modo semelhante, quando a liberdade é meramente liberdade em relação a
Deus, o homem se toma inteiramente cativo. Os homens que advogam liberdade
em relação a Deus chegaram à conclusão de que o homem é apenas o produto
do seu ambiente e hereditariedade; que o homem é o que come; que ele é
totalmente determinado por forças irracionais, fora do seu controle; que ele é,
nas palavras de C. S. Lewis, meramente "um macaco de calças". A
tragédia do pecado é que ele corrompe o melhor do homem, os próprios dons
que fazem com que o homem seja humano. Não é meramente em suas concu-
56
piscências, mas particularmente em suas mais altas aspirações que o pecado é
mais eficaz. A revolta contra Deus se expressa em nossa razão, nossa morali-
dade, nossa cultura e religião. Não existe parte do esforço humano que não seja
corrompida pelo pecado. A doença até a morte afeta o homem em sua
totalidade.
Dissemos que o pecado básico, psicologicamente falando, é o orgulho e a
autocentração. Esse pecado básico de estarmos centrados em nós mesmos, ao
invés de em Deus, está na origem de todos os outros pecados. Cada pecado
efetivo é expressão do pecado original. Cada pecado específico é expressão de
nossa revolta contra Deus. O homem, em seu esforço de organizar sua vida ao
redor de si mesmo em vez de ao redor de seu centro verdadeiro, Deus, cai em
toda sorte de pecados. Do ponto de vista da revelação, nossos pecados efetivos
não são os erros morais ocasionais de pessoas de outra forma bem intenciona-
das; eles são, antes, o resultado de nossa perversidade básica, nossa tentativa
egocêntrica de organizar o universo ao redor de nós mesmos. Essa tentativa
principia com o bebê chorando em seu berço, que "inconscientemente" tenta
organizar o universo, o lar no qual nasceu, ao redor de si mesmo (e freqüente -
mente consegue fazê-lo). O esforço continua até morrermos, e mesmo então
tentamos, por meio de pedidos finais e testamentos, continuar organizando 0
universo ao redor de nossa própria pessoa, apesar de essa pessoa ter passado do
ponto em que tal organização possa dar satisfação pessoal. Assim, minha vida
inteira é o esforço orgulhoso de desafiar a Deus e fazer de minha própria
personalidade o centro de tudo.
Essa posição central do orgulho no pecado foi expressa muito claramente
por C. S. Lewis. Diz ele:
De acordo com os mestres cristãos, o vício essencial, o pior mal, é o
ORGULHO. Incastidade, raiva, avareza, embriaguez e outros são ninharias em
comparação com isso. Foi pelo orgulho que o diabo se tomou o diabo. O orgulho
conduz a todos os outros vícios. É o estado mental completamente antiDeus.
E ele continua dizendo:
Isso lhe parece exagerado? Se assim for, pondere. Frisei há pouco que, quanto
mais orgulho se tivesse, tanto mais se detestaria o orgulho nos outros. Na
verdade, se você quer saber o quanto é orgulhoso, a maneira mais fácil é
perguntar-se: "Quanto me irrito quando as outras pessoas me desdenham, ou se
recusam a tomar conhecimento de mim, ou me tratam com condescendência, ou
se exibem?" A questão é que o orgulho de cada pessoa está em concorrência com
o de todas as outras. É porque eu queria ser o centro das atenções na festa que
iico aborrecido quando o centro das atenções é outra pessoa. O orgulho é
essencialmente competitivo - é competitivo por sua própria natureza -, ao passo
que os outros vícios são competitivos apenas, digamos, por acidente. O orgulho
não obtém prazer por ter algo, mas apenas por ter mais do que o próximo.
Dizemos que as pessoas se orgulham de serem ricas, ou inteligentes, ou bonitas,
mas elas não o fazem. Elas se orgulham de serem mais ricas, ou mais
inteligentes, ou mais bonitas do que outras.20

57
O orgulho se compraz em tratar os outros com superioridade. Não é
realmente dinheiro o que se quer, mas mais dinheiro do que alguma outra
pessoa. Não meramente uma casa, mas uma casa maior ou melhor do que
a do vizinho. Não só meramente uma namorada, mas a namorada de
outro, ou, viceversa, não meramente um namorado, mas o de outra moça.
O professor Lewis salienta que alguns vícios juntam as pessoas: embria-
guez, incastidade ou glutonaria podem criar alguma espécie de comunhão; mas
o orgulho sempre divide as pessoas, separa-as umas das outras e as torna inimigas.
O que é pior, o orgulho nos separa irrevogavelmente de Deus. Por ser da
própria natureza de Deus estar acima de nós, e como o orgulho não pode tolerar
nada acima de si, o orgulho efetivamente nos separa de Deus. Isto se aplica
tanto ao orgulho religioso quanto ao irreligioso. As pessoas irreligiosas são
freqüentemente separadas de Deus pelos vícios animais, como a cobiça e
incastidade, mas pessoas religiosas são separadas de Deus pelo orgulho. É o
pecado religioso, o pecado dos fariseus e de todos os seus numerosos descen -
dentes, e é o pecado que mais efetivamente nos separa de Deus. Nosso Senhor
podia lidar com prostitutas e coletores desonestos de impostos, porque esses
eram pecadores que sabiam que tinham pecado. Os fariseus, por outro lado,
tinham perdido toda perspectiva correta por causa do orgulho. O orgulho é o
pecado camuflado de virtude, o pecado que pode expulsar outros pecados e,
ainda assim, manter-nos efetiva e indefinidamente afastados de Deus. O orgulho
afasta certas pessoas de muitos males, do adultério, do roubo, da desonestidade.
Elas são orgulhosas demais para mentir ou para roubar mesmo a esposa de
outras pessoas; mas esse mesmo orgulho às mantém à parte de Deus. Elas são
orgulhosas demais para levantar os olhos para Deus, para se reconhecer como
pecadores que necessitam de seu perdão e como crianças que necessitam de seu
' amor paternal. Desafiadoramente, insistem que o homem está só, que ele é o
"Atlas cansado, mas pertinaz", nas palavras de Russell 21, de quem dependem
toda esperança, toda decência, toda bondade. É o orgulho que nos impede de
nos atirar nos braços estendidos de Deus.
O orgulho como revolta contra Deus é o pecado básico do homem. Todos
os nossos muitos pecados - dos quais podem ser encontrados catálogos no Novo
Testamento - são expressões dessa revolta. São efeitos da revolta básica e ao
mesmo tempo nossa maneira de continuar em nosso estado de revolta contra
Deus. O homem, visto da perspectiva da revelação de Deus em Jesus Cristo, é
sempre um pecador. Em tudo o que faz, ele se afirma contra Deus e se revolta
contra o Criador. Existem ações que são melhores do que outras do ponto de
vista da lei, mesmo da lei divina. Mas mesmo uma ação que é melhor não é
necessariamente boa. Depois de termos feito todas as coisas, somos ainda
servos inúteis. O homem sempre foi e sempre será um pecador. O pecado o
separou efetivamente da comunhão com Deus, para a qual ele foi criado. O
pecado destruiu efetivamente a imagem de Deus no homem, deixando apenas
um resíduo. O homem não se transformou em um animal. Ele ainda é homem,
58
mas em situação desesperadora. Criado para receber o seu sentido da comunhão
com Deus, de ser interlocutor de. Deus, ele agora existe em revolta contra Deus.
Nem homem verdadeiro nem animal, ele é um ser cujo sentido é a falta de
sentido, cuja esperança é a desesperança. É um ser que sabe o que é o amor, mas
vive o ódio; que sabe o que é a paz, mas vive em desassossego e guerra; que
sabe o que é a vida, mas cujo viver é morrer. Sabendo do céu, ele está destinado
ao inferno. Esta é a situação do homem como resultado do pecado. Este é o
juízo de Deus sobre o orgulho e a revolta do homem.
Examinamos o dilema do homem sob o juízo divino psicologicamente e
constatamos que era o orgulho; se agora o examinarmos teologicamente, vere-
mos que é a descrença. O dilema do homem é que ele, que foi criado pelo amor
divino para confiar em Deus, vive em descrença e desconfiança. O orgulho no
relacionamento com Deus é descrença: nem mesma acreditamos que ele é Deus.
Vivemos como se não houvesse Deus. Mas de alguma forma sabemos que não
estamos realmente sós, que não estamos apenas assobiando no escuro. De
alguma forma sabemos que não somos realmente o Atlas que carrega o
universo. De alguma forma sabemos que não somos os mestres de nosso destino
e comandantes de nossa alma. Deus está em toda parte ao nosso redor. Nele
vivemos, nos movemos e temos nossa existência; no entanto, não cremos.
Teologicamente falando, a descrença é o pecado básico, o pecado último:
descrença no amor divino ante a própria face desse amor; descrença na morte
ante a própria face da morte; e descrença no juízo divino ante a própria face
desse juízo.
O homem observado do ponto de vista da revelação aparece de modo
bem diferente do homem que temos examinado em termos filosóficos e
religiosos até agora. À luz da revelação, o homem está incuravelmente doente.
Sua enfermidade é o pecado, a "doença até a morte". É uma doença que ele
contraiu voluntariamente, mas da qual não se pode livrar voluntariamente. É
uma doença que afeta e corrompe tudo o que faz, mas acima de tudo uma
doença que o separa do seu Criador e o condena à falta de sentido e de
esperança. A doença cria muitos sinais exteriores. Poderíamos mencionar os
tradicionais pecados capitais como exemplos: orgulho, inveja, raiva, cobiça,
indolência, gula e lascívia. Mas, teologicamente falando, temos que dizer que
todas essas características da doença são expressões de uma única dificuldade
básica: o pecado principal do qual se derivam todos os outros é a descrença. É
pelo fato de não crer em Deus que o homem não pode viver uma vida com
sentido. Enquanto a descrença governar os corações humanos, a vida cristã é
impossível. É a descrença que separa o homem de Deus; é a descrença que o
leva ao juízo; é a descrença que o condena por toda a eternidade. O homem
criado à imagem de Deus se toma, pela descrença, uma caricatura. Criado para
revelar o amor de Deus, ele opta revelar a sua ira e o seu juízo. Mas, para não
acusarmos um ancestral pré-histórico por tudo isso, devemos ter em mente que
diante de Deus nossa descrença é tão real quanto a de Adão e Eva. Estamos
59
todos juntos nisso. Compartilhamos da culpa de Adão e Eva e eles comparti-
lham da nossa. Como o expressou Kierkegaard: "O homem a quem Deus criou é
sempre tanto este indivíduo quanto a humanidade." Porque o homem peca, ele é
pecador; e porque é pecador, ele peca, disse Emil Brunner. Mesmo que nunca
cheguemos a entender plenamente este fato, o seu resultado está claramente
diante de nossos olhos. O salário do pecado é a morte. E todos nós morremos.

60
A VIDA DO HOMEM
E A LEI DE DEUS

O homem é criado à imagem de Deus. Ele é criado para estar em contato


verbal com Deus, mas revolta-se contra seu Criador, recusando-se a ouvi-lo,
falar com ele ou crer nele. O resultado dessa revolta é completa catástrofe.
Ódio, ciúme, cupidez, lascívia, doença, desespero e, finalmente, a morte são
todos resultados da descrença do homem, do seu pecado básico. Mas de algum
modo, apesar de nossa descrença, apesar da revolta do homem contra Deus, o
mundo continua a girar. Se se deixasse o homem fazer o que quisesse com os
meios de sua descrença, poderíamos esperar um caos maior do que de fato
existe. A razão para a ordem relativa que impede o homem de destruir comple-
tamente a si e os outros se encontra na lei divina.
Deus estabeleceu uma lei moral que mantém o mundo numa aparência de
ordem apesar do pecado e de seus resultados catastróficos. Abandonado a seu
egoísmo e orgulho, o homem estaria realmente na situação que Tomas Hobbes,
o grande filósofo britânico, acreditava ser a condição original do homem, a
saber, uma guerra de todos contra todos. Isso seria uma tentativa desapiedada de
indivíduos de organizarem o mundo ao seu redor, uma tentativa que tornaria
impossível qualquer ordem e que traria completa ruína e destruição ao universo
do homem.
O fato de que isso não é, na verdade, o caso, de que temos uma aparência
de ordem em nossas famílias, em nossa vida social, em nossa vida política e
econômica, é o resultado da lei natural divina. Esta não é uma "lei da natureza"
independente de Deus; pois a natureza nunca é independente de Deus. A todo
momento ela é mantida pelo ilimitado poder criador e preservador de Deus. Mas
essa lei natural divina é um dos meios de Deus para lidar com sua criação. O
Deus que criou os homens e que tem um propósito para eles apesar da sua
descrença e desobediência estabeleceu "ordens de preservação" que impedem os
homens de seguir completamente suas tendências revolucionárias e destruir seu
mundo e a si próprios.
A razão da lei natural divina é que Deus quer dar aos homens uma
oportunidade de se defrontarem com o evangelho. É um expediente de sua
paciência, que dá aos homens tempo para se arrependerem e mudarem. Um pai
rico que tenha um filho completamente irresponsável poderá fazer um testamen-
to que impossibilite ao filho desperdiçar sua herança e destruir-se totalmente. O
filho encarará o testamento do pai como uma restrição cruel e mesquinha da sua
liberdade. Mas talvez o testamento dê ao filho tempo para amadurecer. Talvez
ele entre na posse completa de sua herança quando atingir a idade de 35,
40 ou 50 anos. Assim Deus nos deu sua lei natural divina, que refreia nossa
61
irresponsabilidade humana pecaminosa durante algum tempo. Talvez também
Deus nos deixe agir por nossa própria conta quando houver chegado o tempo de
fazer a História atingir seu clímax final, e talvez este tempo esteja mais próximo
do que pensamos.
Seja como for, Deus instituiu sua lei natural divina. Como é ela?

A NATUREZA DA LEI DIVINA

A lei natural de Deus é parte da estrutura do universo. Não é algo que


tenhamos que descobrir para torná-la real, pois existe inteiramente à parte de
nossa consciência ou inconsciência dela.
Quando pensamos em lei natural, geralmente imaginamos algo como a lei
da gravidade. E de certa forma a lei da gravidade é uma boa ilustração da lei
divina assim como ela opera no âmbito da decisão humana, na vida humana. O
fato significativo acerca da lei da gravidade é que ela não é propriamente uma
lei, mas uma descrição da maneira como as coisas funcionam. Elas funcionam
dessa maneira, quer tenhamos conhecimento da lei, quer não. Se a conhecemos,
podemos tê-la em mente ao agir e evitar muitas dificuldades, e, mesmo que não
a conheçamos como "lei", conhecemos os fatos que ela descreve. Se em alguma
época tivemos ancestrais que saltavam de árvore para árvore - e tenho minhas
dúvidas a respeito -, eles certamente nada sabiam de uma "lei da gravidade".
Mas, ao pularem de árvore em árvore, eles percebiam que se errassem o
próximo galho dariam de cara no chão. Totalmente ignorantes da teoria relativa
ao assunto, os fatos eram muito claros para eles. Em outras palavras, a lei da
gravidade e outras chamadas "leis" das ciências naturais são meramente
convenientes descrições básicas de fenômenos naturais que os cientistas
observaram serem invariáveis. Porque esses fenômenos são invariáveis, eles
receberam o nome de "leis".
A lei natural divina opera de um modo muito semelhante. Não é, estrita-
mente falando, um código legal que tenha sido escrito e cuja força e poder
dependam de sua proclamação pública. Pelo contrário, o poder da lei natural
divina reside no fato de que ela descreve exatamente como as coisas são.
Você não precisa ser filósofo ou teólogo para descobrir certas leis morais
básicas em ação no universo. Por exemplo, suponhamos por um momento que
não exista injunção religiosa ou social contra a mentira, que mentir não seja
nem certo nem errado. Afirmo que uma pessoa que mentisse constante e
consistentemente, que sempre dissesse uma falsidade, com a intenção de enga-
nar, ao invés de dizer a verdade, se tornaria efetivamente muda. Ela não mais
seria compreendida por outros seres humanos, pois a realidade é simplesmente
que a linguagem se baseia num mínimo de honestidade. Se você diz "cadeira",
62
deve pensar "cadeira". Se você diz "cadeira" e pensa "mesa"; diz "mesa"
e pensa "teto"; diz "marrom" e pensa "quente", você simplesmente não será
mais entendido por nenhuma outra pessoa. Se você diz: "A cadeira marrom está
na cozinha" e pensa: "O carro está na garagem", você não está se comunicando
com eficácia. E depois de você ter procedido assim por algum tempo, ninguém
mais lhe dará atenção, pois você terá perdido sua capacidade de falar.
A fala não é apenas som, mas som que comunica sentido; e para haver
uma comunicação eficaz, certa quantidade de honestidade é essencial. Inteira-
mente à parte de qualquer lei religiosa ou social, a mentira torna qualquer
homem efetivamente mudo. Na verdade, mesmo para ser um mentiroso eficaz,
você tem que ser uma pessoa honesta; se você mentir sempre, ninguém lhe dará
crédito, mesmo quando você estiver dizendo a verdade. Esta é simplesmente
uma das leis morais básicas, que você só poderá ignorar se estiver disposto a
sofrer as conseqüências.

Existem outros exemplos da ação da lei natural divina. Platão salientou


em República que mesmo um bando de assaltantes só é tão eficaz quanto o
remanescente de honradez que existir entre os ladrões. Pessoas completamente
desonestas são maus assaltantes. O vigia tem que vigiar e não apenas ficar aí
parado. Por mais nocivo que seja seu trabalho, ele tem que fazê-lo bem e ser de
confiança, para que os ladrões tenham êxito. Encontramos outro exemplo no
relacionamento dos sexos. É simplesmente uma inverdade afirmar que todo
comportamento sexual é igualmente bom. Após a revolução russa em 1917,
quando o governo soviético tentou abolir as leis que protegiam a família, os
resultados foram tão desastrosos que eles logo mudaram as leis de novo e agora
protegem o casamento com mais cuidado do que a maioria dos estados ameri-
canos. A proteção da família é essencial para a preservação da sociedade, e
sempre que os homens a solapam, os resultados são imediatamente desastrosos.
Se promulgássemos uma lei tornando a homossexualidade socialmente aceitável
e legalmente correta, ela nem por um momento alteraria o fato de que a
homossexualidade como prática generalizada destrói a civilização, como foi
demonstrado pelos gregos e romanos. No primeiro capítulo da Epístola de S.
Paulo aos Romanos encontramos uma referência a esse fato estabelecido da lei
natural divina. Diz ele: "A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de
Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. "~'
Essas leis não são invenções dos homens. Elas simplesmente existem
como parte da estrutura do mundo em que vivemos; e se tentamos quebrá-las,
elas nos quebram. Não é muito importante que você e eu acreditemos ou não
que há uma lei da gravidade, contanto que tenhamos em mente que ela existe. A
lei da gravidade é real, quer gostemos, quer não; ela é igualmente real para o
professor de física, que sabe tudo a respeito dela, e para o bebê que se inclina
demais para fora do berço. Com ou sem nossa aprovação, ela simplesmente
63
existe. De modo semelhante, a lei natural divina simplesmente existe, inteira-
mente à parte de nosso conhecimento ou aprovação, e qualquer pessoa que a
transgrida consistentemente descobre que no fim das contas será destruída por
ela.
Embora seja razoavelmente fácil perceber que existe alguma lei básica
assim, é muito mais difícil descrever seu conteúdo específico. De fato, todos os
esforços para estabelecer em detalhes as regras específicas que constituem a lei
natural divina provam ser fúteis e desorientadores. A razão desse estado de
coisas é que o pecado tomou impossível que percebamos claramente até mesmo
a lei natural divina. Dissemos anteriormente que o pecado afeta todos os
aspectos de nossa vida e personalidade. Ele também afeta nossa compreensão
da lei natural divina. Apesar de essa lei existir e ser efetiva, o homem sei a
percebe acidentalmente e dentro da confusão de sua natureza pervertida pelo
pecado.
Mas o homem sabe alguma coisa a respeito dessa lei. O apóstolo Paulo
diz: "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder coma
também sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do
mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas." 23 Esse
conhecimento natural da lei de Deus está indicado nos códigos morais de todos
os povos e nações. É verdade que um estudo comparativo dos códigos morais
de várias nações revela muitas diferenças impressionantes. Mas é um fato,
muito mais admirável e pouco mencionado em nossos dias, que em toda parte
existem certas relações humanas básicas que são reguladas por lei. Existe muita
confusão moral, porém as leis básicas em toda parte tratam dos mesmos
problemas e servem para refrear o homem. Entre todos os povos existem leis
que regulam as relações de pais e filhos, a responsabilidade mútua das gerações.
Em toda parte a lei ordena as relações da vida e limita o homem no seu desejo
de tirar a vida das pessoas de que não gosta. É claro que existe uma tremenda
diferença entre os quacres da Pensilvânia e os caçadores de cabeças da Nova
Guiné; mas a diferença reside antes no alcance da proibição do que na própria
proibição. Mesmo os caçadores de cabeças têm leis que os impedem de tirar a
vida de seus companheiros de tribo ou aldeia. Em toda parte existem leis sobre
as relações entre os sexos. Existem variações enormes, e qualquer pessoa
interessada no assunto pode ler o estudo um tanto superficial mas ainda assim
valioso de Ford e Beach intitulado Pattems of Sexual Behaviour 24. Mas o fato
admirável é que os padrões existem; em toda parte, entre seres humanos, o
impulso sexual é refreado. E nas chamadas sociedades primitivas as sanções
contra o infrator são geralmente mais severas do que nas chamadas sociedades
avançadas. Em nenhum lugar o comportamento sexual é assunto indiferente à
sociedade; em toda parte existe lei. Similarmente, a verdade e a propriedade são
sempre protegidas por lei. A despeito de todas as variações, pode-se observar
um padrão comum.
A lei existe, e as leis da humanidade são tentativas, mais ou menos
64
adequadas, de codificar a lei de Deus com que o homem se confronta na própria
estrutura do mundo.
Agora surge a pergunta: qual é o propósito dessa lei para a vida humana`?
Por que Deus deu uma lei aos homens que, no seu estado de revolução
pecaminosa, querem transgredi-la de qualquer modo? Além do mais, por causa
do pecado, a espécie humana não pode nem mesmo compreender claramente a
natureza dessa lei natural divina e está por isso fadada ao fracasso quando
confrontada com ela. Qual é o bem que traz a lei? Qual sua utilidade`?
A resposta a esta pergunta é dupla. A lei natural divina tem dois usos, um
teológico e outro político.

O USO PRÓPRIO DA LEI

Do ponto de vista do cristianismo, o uso básico, o uso teológico, o uso


próprio da lei é que ela mostra o homem no juízo divino. Ela acusa o homem
ante a face de Deus. Melanchthon diz, na Apologia da Confissão de Augsburgo:
"Lex semper accusat", ou: "A lei sempre acusa." Deus usa a lei para nos mostrar
que somos pecadores, e nós podemos usar a lei para perceber nossa situação
desesperançada ante o trono divino. Enquanto o legalista acredita que a lei é um
meio pelo qual o homem pode se justificar perante Deus, que ela é um meio de
forçar Deus a nos aceitar em seu reino, o Novo Testamento vê na lei um meio de
revelar a situação do homem no juízo de Deus, de mostrar o homem em revolta.
A tarefa primária da lei é inteiramente negativa.
Em sua Epístola aos Romanos, Paulo diz que o homem pode conhecer a
Deus, mas por causa de seu pecado ele o conhece apenas como juiz. E a lei
sempre nos acusa ante esse juiz. Escreve Paulo acerca dos gentios: "Tais
homens são por isso indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus,
não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes se tornaram nulos
em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato." De-
pois ele continua: “E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o
próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem
coisas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade;
possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamado-
res, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, in-
ventores de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição
natural e sem misericórdia. Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que
são passíveis de morte os que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas
também aprovam os que assim procedem.” 25 E Paulo continua: "Portanto és
indesculpável (...), ó homem, quem quer que sejas (...)." A lei sempre acusa.
Escreve Paulo em 1 Timóteo 1.9: "(...) não se promulga lei para quem é
65
justo, mas para transgressores e rebeldes, irreverentes e pecadores (...)." A lei
sempre acusa!
Do ponto de vista do cristão, a função principal da lei divina é mostrar ao

66
homem a desesperança de sua situação. É como o termômetro para medir a
febre: não cura doenças, mas auxilia os doentes a perceber que estão doentes e
necessitam de um médico. Se usada propriamente, a lei nos mostra a desespe-
rança de nossa situação e nos torna dispostos a aceitar o evangelho do Senhor
Jesus Cristo.

O USO POLÍTICO DA LEI

A lei tem ainda outra função, se bem que secundária; indicamo-la em


nossa introdução a este capítulo. A lei, apesar de sempre acusadora, apesar de
nunca obedecida, ajuda a manter este mundo em uma aparência de ordem até a
História chegar a seu fim, até Deus intervir em seu juízo final.
Pela lei natural divina, Deus estabeleceu certas ordens como o casamento
e a família, e a ordem social, econômica e política, que têm a finalidade de
tornar possível a vida, apesar do poder autodestruidor do pecado. A proteção
dessas ordens constitui o "uso político" da lei. Sob a lei de Deus a sociedade
tem a responsabilidade de proteger a família, de proteger a vida, de proteger a
propriedade contra destruição arbitrária, de proteger os homens uns contra os
outros e contra si próprios.
É importante nos lembrarmos que Deus não estabeleceu uma forma espe-
cífica de organização social, mas deu regras básicas para toda organização
social. A Regra Áurea é um resumo conciso dos princípios que devem governar
todas as instituições sociais para que elas protejam a sociedade contra a auto-
destruição. É significativo que tais leis apareçam não apenas em solo cristão,
mas também entre os pagãos. Longe de depreciar o valor absoluto do cristia-
nismo, elas comprovam a afirmação do Novo Testamento de que a lei está
gravada nos corações de todos os homens. Os estóicos romanos e os confucio-
nistas chineses, as pessoas em toda parte concordam admiravelmente acerca de
algumas regras básicas para todos os homens.
Mas mesmo o "uso político" da lei, que ajuda a preservar a ordem e
confinar um pouco o caráter anárquico do pecado, sempre mostra o homem
como pecador. Deveríamos saber que os homens são iguais, que têm certos
direitos inalienáveis, que entre esses direitos estão a vida, a liberdade e a busca
da felicidade. Podemos dizer que de fato sabemos, mas mesmo a nação que
incorporou esta idéia em um dos seus documentos políticos básicos viola
constante e publicamente esse mesmo princípio. Para dar apenas um exemplo:
cidadãos cristãos de uma grande cidade de um estado do norte dos Estados
Unidos recusaram-se a permitir que um homem morto em uma guerra lutando
por esses mesmos bons cristãos fosse enterrado no cemitério deles. A razão: o
soldado morto era um índio!
67
Em nosso exame da natureza e do uso da lei natural de Deus chegamos

68
à conclusão de que a lei existe como parte da estrutura do mundo em que
vivemos. Ela existe inteiramente à parte de nosso reconhecimento ou de nossa
obediência a ela. Está na raiz de todos os esforços práticos de codificação e
redação de leis. Mas nenhum desses esforços é plenamente bem-sucedido. Eles
são meramente tentativas mais ou menos adequadas de descrever o modo pelo
qual o mundo de fato funciona. A lei natural divina é parte deste mundo assim
como ele se nos defronta.
O propósito da lei é duplo. Seu propósito teológico, seu propósito básico
do nosso ponto de vista, é sua função acusadora. A lei acusa o homem,
revelando-o a si mesmo e ante Deus como um transgressor da lei, como homem
em revolta.
A segunda função da lei é fornecer uma base para uma organização
razoavelmente bem ordenada da sociedade, para estabelecer o casamento e a
família, o governo e a sociedade. Em sua segunda função, a lei também é
prejudicada pelo pecado humano, mas ela de fato estabelece um padrão mais ou
menos viável, que protege a espécie humana do caos e anarquia completos. Mas
mesmo nesta função política a lei permanece como eterna acusadora do homem
pecador. A lei nunca justifica o homem; sempre o acusa.

O HOMEM MODERNO E A LEI DE DEUS

Enquanto a lei divina foi uma força muito real na vida dos homens em
todos os tempos, o homem moderno pensou que podia ignorar essa lei. O
relativismo e o naturalismo que examinamos anteriormente são esforços para
agir como se não existisse lei e o homem pudesse realmente fazer o que lhe
agrada. Em todos os tempos houve pessoas que desafiaram a lei divina, que
fizeram o que sabiam ser errado e de alguma forma esperavam ficar impunes.
Mas em nossa época há um grande número de pessoas, em todos os lugares, que
simplesmente negam que exista algo assim como certo e errado. Algumas
afirmam que o homem é apenas um animal e que nada que um animal faz é
certo ou errado. O que ele faz simplesmente é. Uma ação pode não ser útil para
a sobrevivência do homem, mas ela nunca é "errada". Desta forma tentam livrar
o homem do dedo acusador da lei. Outras afirmam que todo homem é o produto
de circunstâncias sobre as quais não tem controle. Ele é determinado pelo que é
comumente chamado de "ambiente" ou "hereditariedade". Nada que ele faça é
certo ou errado, pois de qualquer forma ele não tem possibilidade de escolha a
respeito. Todo homem faz o que tem que fazer. Também aqui se afirma que a lei
não mais nos acusa.
Muitos homens modernos pensam que escaparam efetivamente da lei
natural divina, assim como ela se nos apresenta, acusadora. Mas qual é o
resultado disso? Antes de mais nada, a lei ainda existe; nenhum esforço de
69
nossa parte pode apagá-la. Você pode, se quiser, criar uma teoria muito enge-

70
nhosa sobre a inexistência da lei da gravidade; mas se você se inclinar muito
para fora de uma janela do segundo andar de sua casa, você cairá - mesmo que
isso não devesse acontecer, de acordo com sua teoria. O universo não funciona
conforme suas teorias sobre a gravidade. Similarmente podemos todos votar e
aprovar por unanimidade a inexistência de uma lei moral no universo; mas isso
não altera os fatos nem por um momento. O universo também não funciona
conforme nossas teorias sobre a moralidade. Este fato se toma claro na literatura
de nossa época. Grande parte de nossa literatura é chamada de "realista", o que
significa que ela tenta descrever as coisas como realmente são. Como resultado,
descreve o homem moderno como estando quebrantado pelo mundo no qual
tem que viver. Os novelistas e dramaturgos vitorianos muitas vezes tentaram
indicar uma moral, e freqüentemente fracassaram por tentarem com demasiada
intensidade. Nossos escritores estão tentando descrever as coisas como elas
“realmente” são. Eles não acreditam em uma lei natural divina que governa o
universo, mas, quando descrevem as pessoas como "realmente" são, mostram
com demasiada clareza que o homem (que sabemos ser pecador) é quebrantado
pelo mundo no qual vive (sabemos que é o mundo governado pela lei de Deus).
Nossos autores seculares diriam: "O homem sempre perde; ele não pode
vencer; as cartas estão arranjadas contra ele; os dados do jogo são viciados."
Isto é apenas observar a superfície. Sabemos, baseados na revelação em Jesus
Cristo, que o salário do pecado é a morte. A lei sempre acusa - quer você, goste,
quer não, quer você acredite nela, quer não. De certo modo, Eugene O’ Neill ou
Tennessee Williams ou Morte de um Caixeiro Viajante são leitura melhor para
nós do que alguns dos livros sentimentais e imbecis de auto-
aperfeiçoamento, escritos por pregadores e pseudopregadores, que nos dizem
que tudo o que precisamos fazer é não perder a coragem - ou manter o sorriso
ou fazer exercícios respiratórios - e tudo estará bem e a vida será bela, pois a
"paz da mente" e a "paz do espírito" imediatamente descerão sobre nós. Tente
substituir Dale Carnegie por Norman Mailer. O mundo é exatamente tão duro
quanto nossos escritores mais realistas o podem descrever. A razão, entretanto,
está oculta a eles. Nós sabemos a razão: a lei sempre acusa a todos nós, e o
salário do pecado é a morte.

Além do mais, o resultado de tudo isso é ansiedade e desespero. O homem


moderno pode não temer a Deus como seus ancestrais o faziam antigamente,
mas ele tem mais medo do que eles jamais tiveram. Para as pessoas que temiam
a Deus o universo parecia ordenado e cheio de sentido. Para o homem moderno
o universo não tem sentido nenhum. O homem moderno é acossado não pelo
temor de Deus ou do diabo, mas pelo medo do nada. Esse medo do nada é uma
forma muito grave de doença mental que não pode ser facilmente superada. Se
você teme a Deus, poderá ter condições de encontrar paz com Deus. Se você
teme o nada, você não pode encontrar paz com o nada. Como resultado, nossa
situação de homens e mulheres do século XX é, no mínimo, um pouco pior do
71
que a situação humana tem sido por algum tempo. Tentamos escapar de
Deus, mas isso é mais difícil do que escapar de nós mesmos. "Para onde me
ausentarei do teu Espírito? para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá
estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo
as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares: ainda lá me haverá de
guiar a tua mão e a tua destra me susterá. " 26
É impossível escapar de Deus. É impossível escapar de sua lei. Todos os
esforços humanos de assim proceder terminam em desespero. Esta é a posição
peculiar do homem: conhecer a Deus e mesmo assim sempre tentar escapar
dele; conhecer sua lei e contudo ser sempre acusado por ela. O homem histórico
vive em eterna contradição. Criado para a comunhão com Deus, ele tenta em
vão ser um animal. Diz Pascal: "Que quimera, então, é o homem! Que novi-
dade! Que monstro, que caos, que contradição, que prodígio! (...) Juiz de todas
as coisas, verme imbecil da terra; depositório da verdade, um fosso de erro e
incerteza; o orgulho e refugo do Universo." 27 Esta é uma descrição do homem, a
mais horrível descrição de fracasso. Mas este não é o fim da estória. A vida do
homem sob o evangelho só começa quando o homem sucumbiu completamente
em conseqüência do pecado e da lei.

72
PARTE II

A VIDA DO HOMEM SOB O EVANGELHO

73
A NATUREZA DO EVANGELHO
Para o homem preso na teia do pecado, para o homem condenado ao
fracasso e à morte, para o homem perdido vem o evangelho de Jesus Cristo. A
palavra "evangelho" significa literalmente "boa nova". Ora, qual a boa nova que
o evangelho traz?
A situação do homem não é desesperançada. O homem não está só. A
morte não é o fim. O que vemos na natureza - que o poder faz o direito, que o
animal grande devora o pequeno - não é o padrão verdadeiro.
O verdadeiro padrão do universo foi revelado no Jesus Cristo que nasceu
da Virgem Maria em um barraco dilapidado em um país dilapidado, que viveu,
trabalhou e foi executado sob Pôncio Pilatos e ao terceiro dia ressuscitou dos
mortos, derrotando a morte não só para sua pessoa, mas para toda a espécie
humana. Ele é o segundo Adão. Assim como em Adão todos os homens
pecaram - não no sentido de que não tenham sido responsáveis, mas no sentido
de que foi estabelecido o padrão que todos seguiriam -, da mesma maneira em
Jesus Cristo todos os homens são salvos. Não no sentido de nada poderem
fazei- a respeito, pois eles não são salvos automaticamente; mas no sentido de
que foi estabelecido um padrão alternativo. Nós que dissemos "sim" a Adão e ao
pecado também podemos dizer "sim" a Cristo e à salvação. Assim como nossa
aceitação de Adão estabeleceu um padrão de condenação e morte, da mesma
maneira nosso "sim" a Cristo estabelece um padrão de esperança e salvação.
"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. "~ "Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que
nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. " 29
Este é o evangelho. Estou ciente de que ele soa antiquado e gasto pelo
tempo. Mas isso é assim apenas porque todos o ouvimos muitas vezes sem lhe
dar atenção. Ainda é a melhor notícia do mundo, a única notícia que realmente
importa. É a única base para uma vida com sentido, para uma vida cristã.
Seria tarefa de um estudo da fé cristã analisar em detalhes o que esse
evangelho significa. E mesmo então apenas estaríamos tratando de fatos super-
ficiais. Ninguém - nunca - poderá esgotar o sentido pleno. Em nosso estudo da
vida cristã temos que enfatizar que o "sim" a esse evangelho é o início da vida
cristã. É o salto da fé sobre o qual já falamos várias vezes. Sem esse salto, sem
essa fé, a vida cristã não é possível. A vida cristã começa com a fé - e todas as
atividades, todas as "boas obras" do cristão devem ser um resultado dessa fé, ou
elas não serão boas. "A primeira, suprema e mais nobre boa obra é a fé em
Cristo (...)."30 "(...) é a fé que, sozinha, torna todas as outras obras boas,
agradáveis e dignas (...)."31

Fé é crer em Cristo. É significativo que nenhuma outra palavra do voca-


74
bulário da Igreja cristã evangélica tenha sofrido transformações tão tristes quan-
to o termo "crer". Transformamos a mais profunda expressão do cristianismo em
uma palavra que na vida cotidiana expressa incerteza e dúvida. O motivo é que
as palavras ` `eu creio" significam algo inteiramente diferente quando aplicadas
a coisas e quando aplicadas a pessoas. Quando você diz: "Creio que vai chover
amanhã", você na realidade está dizendo: "Não tenho certeza", ou: "Talvez
chova." O mesmo se aplica a todos os outros objetos. Se eu disser que creio que
Harrisburg é a capital da Pensilvânia, estarei expressando dúvida; não sei com
certeza. Isto significa claramente que sempre que as palavras "eu creio" são
usadas em conexão com objetos, elas não expressam o que os cristãos chamam
de fé, mas o que nós chamamos de dúvida.
A situação muda tão logo usamos essas mesmas palavras em conexão
com uma pessoa. Digamos que o seu melhor amigo foi acusado de roubo. Você
se confronta com essa acusação, e então responde: "Eu creio em John." Você
não está dizendo: ``Não sei, talvez ele tenha mesmo roubado." Não está nem
mesmo dizendo que ele não roubou o que quer que tenha sido roubado. Mas
você está fazendo a afirmação suprema que pode fazer em relação a outra
pessoa. Ao dizer: "Eu creio em John", você está dizendo: "John é incapaz de
roubar; ele é incapaz de qualquer ato indigno e falso! " Você está expressando
sua fé. Quando falamos da fé cristã, que é o início da vida cristã e sem a qual
essa vida não pode ser vivida, estamos falando de fé em Cristo, o Filho de Deus,
o Salvador.

Se dizemos: "Cremos em Jesus Cristo como nosso Salvador pessoal",


estamos dizendo muito mais do que: acreditamos que ele nasceu de modo
miraculoso, ou que era capaz de fazer milagres, ou que era um homem bom, ou
que morreu inocente, ou mesmo que ele ressuscitou dos mortos. Todas essas
coisas são fatos de sua vida, nos quais podemos crer ou não. Creio que o próprio
diabo acredita nesses fatos. Mas ele apenas acredita em fatos a respeito de
Cristo; ele não crê em Cristo. A vida cristã começa com essa fé em uma pessoa,
com esse ato de confiança. É esta fé que torna boas todas as obras; e onde essa
fé está ausente, elas são más.
Lutero explicou a relação entre essa fé e as obras da vida cristã usando a
ilustração de um jovem casal verdadeiramente apaixonado. Quando você está
apaixonado por uma pessoa, não avalia os atos dessa pessoa por nenhum outro
critério ou padrão que não o de seu amor. É por isso que uma flor, um ramalhete
podem se tornar tão importantes. Não é realmente a flor, mas o amor expresso
com ela. Pessoas apaixonadas às vezes guardam os canhotos dos ingressos de
espetáculos que viram juntos, não porque esses canhotos tenham qualquer valor
- na verdade não valem absolutamente nada, mas eles são expressões e
lembretes daquilo que transforma todos os outros fatos: seu amor.
O relacionamento entre pessoas apaixonadas não se baseia em nenhum
outro critério externo. Elas não medem o que fazem uma pela outra, os presen -
75
tes que trocam, as cartas que escrevem uma à outra, pelos critérios geralmente
usados. Se a pessoa a quem você ama dirige 600 milhas para visitá-lo, você não
avalia isso a uma taxa de 6 centavos por milha percorrida. Para você é uma
expressão de amor, medida em termos deste amor. Da mesma maneira, você não
avalia as abotoaduras ou o bracelete que lhe foram dados pela pessoa amada em
termos de seu valor corrente na casa de penhores mais próxima. Se as pessoas
agem desta forma, certamente não estão apaixonadas. Quando você recebe uma
carta da pessoa que ama, não a julga como obra literária; você não conta os
erros de concordância e ortografia, pois também a carta é uma expressão da
realidade do amor.
Assim também deve ser na vida cristã, em que a relação pessoa-a-pessoa
da fé é o fato básico. O que os homens chamam de boas obras deve ser medido
inteiramente em relação a esse fato da fé. Somente na fé as nossas obras são
"boas", e sem essa fé não há obra boa. A fé é essa confiança completa, esse fiar-
se inteiramente em Deus e em seu amor por você; é esse saltar diário nos braços
estendidos do Deus que você não pode ver, mas sabe que sempre estará aí para
segurá-lo.

76
A NATUREZA DA FÉ CRISTÃ

Agora queremos examinar a vida cristã do ponto de vista dessa fé. E para
podermos ver todos os vários aspectos da vida à luz da fé, seguiremos a divisão
da vida que encontramos nos Dez Mandamentos. Esses mandamentos tratam
das muitas áreas da vida que ,Deus pode transformar para nós por sua graça.
Naquela fé que "salta" nós agarramos essa graça de Deus. Pela fé, esses
mandamentos são transformados de lei acusadora numa descrição das possibi-
lidades da vida cristã. Eles não são mais o estudo aterrador do que devemos
fazer para Deus e não podemos; mas, observados do ponto de vista do evange-
lho, tomam-se uma descrição do que Deus pode fazer de nossa vida se lho
permitirmos.
É isso que Lutero faz em seu tratado intitulado Das Boas Obras. Ele toma
os Dez Mandamentos, examina-os através do evangelho e eles se tomam a
descrição das possibilidades gloriosas dos filhos de Deus. Em nossa descrição
da vida cristã queremos seguir o método de Lutero, examinar os Dez Manda-
mentos e ver o que Deus pode fazer com todas as várias partes de nossa vida se
nós, na fé, nos apoderarmos de sua graça.

O Primeiro Mandamento: "Eu sou o Senhor, teu Deus. Não terás outros
deuses diante de mim."

De acordo com Lutero, a fé é a obra do primeiro mandamento, que diz:


"Visto que somente eu sou Deus, você deve colocar toda a sua confiança,
esperança e fé unicamente em mim e em mais ninguém." 32 É claro que para os
cristãos isto não é mais um mandamento no sentido da lei como a estudamos
anteriormente. É, antes, uma expressão de fé, uma espécie de confiança que só
podemos ter como dom de Deus. Assim, para se ter condições de cumprir este
primeiro mandamento da vida cristã, do qual dependem todos os outros, é
necessário que Deus, por sua graça, tenha tornado essa confiança possível. Em
última análise, a fé é sempre um milagre. Quando reconhecemos a situação
desesperada na qual o homem se encontra em conseqüência do pecado, sabemos
que por nossa própria capacidade não podemos cumprir o primeiro ou qualquer
outro mandamento. E Deus que, por sua graça, torna possível o cumprimento de
qualquer dos mandamentos.
Mas qual é a relação de nossa fé com a graça de Deus? Que podemos
fazer para contribuir para nossa salvação? Aqui a ética cristã diz um eterno
"não" a todos os esforços de fazer da ética algum meio de nos tornarmos
agradáveis a Deus. É impossível fazer qualquer boa obra fora da fé. "Todas as
obras sem fé são idolatria", diz Lutero 33. São "vícios esplêndidos", como o diz
77
Sto. Agostinho. Lembre-se, não é o valor intrínseco da obra que é significativo;
antes, ela precisa ser uma expressão da fé.
E essa fé é o dom da graça divina. Nessa relação, o homem é como uma
pessoa que está se afogando e que não sabe nadar mas pensa que sabe. Quando
volta à tona pela última vez, um bom nadador a vê da margem. O nadador
mergulha, nada até a pessoa e a traz para fora da água, salvando-lhe a vida.
Assim é com a graça divina. O homem não pode salvar a si próprio; na verdade,
se ele insistir em nadar sozinho, afogar-se-á. O melhor que pode fazer é ficar
quieto e deixar o salva-vidas realizar o salvamento. Muitos homens se afogaram
porque queriam ser salvos por sua própria conta, regatear com o salva-vidas,
sugerir sua própria e soberba técnica salvadora, que lera em algum lugar.
Talvez outra ilustração da graça divina seja útil. Um homem está sentado
em um quarto escuro, com todas as venezianas fechadas. Ele não quer que a luz
solar penetre no quarto, mas uma das venezianas não tranca; para mantê-la
abaixada, ele tem que segurá-la com as suas próprias mãos. Subitamente não a
pode mais segurar, a veneziana se levanta e a luz invade o quarto. Você e eu
somos esse homem, e Deus opera em nós através do mecanismo da mola e do
sol que brilha lá fora - se me permite a comparação - pela lei e pelo evangelho.
Finalmente nós cedemos, não porque queiramos, mas porque Deus superou
nossa revolta. Algumas pessoas resistem mais tempo do que outras; algumas
resistem para sempre - e isso é o inferno. Mas ninguém cede por sua própria
bondade e amor. É a bondade e o amor de Deus, a graça de Deus, que abrem a
veneziana para que tenhamos fé.
Quando, pela graça de Deus, existe fé em nossos corações, todas as obras
que fazemos tornam-se boas. Elas são boas porque são uma expressão de nossa
confiança em Deus e apenas na medida em que expressam essa confiança.
Lutero diz que a fé é como a saúde e as boas obras são como a utilização
de nossos membros que a saúde toma possível. Quando falamos da importância
absoluta da fé, não dizemos que as obras não sejam boas, mas dizemos que a fé
é necessária para tornar boas obras possíveis.
Por esta razão, se alguns dizem que as boas obras estariam proibidas quando
pregamos somente a fé, isto é como se eu dissesse a um doente: "Se tivesses
saúde, terias as obras de todos os membros do corpo; sem ela, de nada adianta
todo o funcionamento dos membros", e ele quisesse deduzir daí que eu teria
proibido a atuação dos membros. Na realidade, eu quis dizer que primeiro
precisa haver a saúde que leve todos os membros a funcionar. Da mesma forma,
também a fé precisa ser mestre de obras e capitão em todas as obras, ou então
elas nada serão.34
Essa descrição da fé como confiança perfeita em Deus parece estar em
vivo contraste com a nossa vida cotidiana e nossas tentações diárias. Mas
é fé acreditar que Deus pode nos salvar a despeito de nós mesmos, que
ele está disposto a perdoar os nossos pecados - não porque o mereçamos,
mas porque ele é amor.

78
DISCIPULADO CRISTÃO

O Segundo Mandamento: "Não tomarás em vão o nome do Senhor, teu


Deus, porque o Senhor não deixará impune aquele que abusar do seu nome."

Para a vida sob o evangelho, o primeiro mandamento trata da importância


da fé para a vida cristã. O segundo mandamento trata do louvor a Deus e da
confissão de seu nome que essa fé toma necessários. O louvor a Deus é o
resultado principal da fé.
E esta é a vida na presença de Deus, ou a vida de discipulado: tudo o que
fizermos e onde quer que o fizermos, fá-lo-emos na presença de Deus e como
discípulos de Jesus Cristo. Não é necessário sermos espetaculares em nosso
discipulado, andando em trajes exóticos ou fazendo um voto de nunca mais
falar. É importante louvarmos a Deus onde quer que estivermos. Quanto menos
atenção nossa vida atrai para si e quanto mais atenção atrai para nosso Senhor e
Mestre, tanto mais seguramente ela é vivida em obediência ao segundo
mandamento. É neste ponto que o orgulho penetra na vida cristã com a maior
facilidade - orgulho, o mais espiritual dos pecados, pois nem mesmo é
reconhecido como pecado.
É no sofrimento e na desonra que temos a maior oportunidade de louvar a
Deus. Quando as coisas estão difíceis, em tempos de tristeza e sofrimento,
temos a maior oportunidade de louvar a Deus sendo discípulos de Cristo.
Não é muito difícil viver uma vida superficialmente feliz segundo as
sugestões de Aristóteles. Ele diz que para ser feliz é necessário ser livre, isto é,
não ter que fazer nenhum trabalho servil, e ter boa saúde, uma renda indepen-
dente e substancial, uma esposa bonita, crianças atraentes e sadias. Aristôteles
diz que a menos que se tenha uma quantidade razoável dessas “matérias -
primas", é impossível ser feliz.
É aqui que o cristianismo difere completamente de tudo que o paganismo
jamais teve a oferecer. Mesmo dificuldades e sofrimento são oportunidades para
os cristãos se aproximarem de Deus, não apenas na teoria, mas também na
prática. Parece haver uma razão inversa entre nossa prosperidade e nossa
disposição de louvar a Deus e invocá-lo. Isto se aplica a indivíduos, e não
menos a nações inteiras. Quando lemos o Novo Testamento, ficamos atônitos
com o fato de que tão poucos dos membros abastados da sociedade estavam
dispostos a seguir a Cristo. Mas ele o explicou: "É mais fácil passar um camelo
79
pelo furo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus." 35 Nem os
ricos, nem os membros da raça superior (no tempo de Jesus os judeus advoga -
vam a teoria da raça superior) encontram facilidades. Por outro lado, os sama-
ritanos, os párias raciais que eram as vítimas da versão judaica da discrimina -
ção, estavam ansiosos para seguir a Cristo, como estavam as mulheres. Em
todas as sociedades onde as mulheres eram pouco mais bem tratadas do que os
animais, onde elas têm sofrido sob leis injustas, elas têm estado dispostas a
serem discípulas.
Individualmente, é pelo sofrimento que você e eu crescemos na graça.
Kierkegaard conta a estória de um homem que viaja numa diligência durante a
noite, com uma lanterna brilhando no assento ao seu lado. Subitamente um
sopro de vento apaga a chama; tudo se torna escuro ao seu redor, e pela primeira
vez durante a viagem ele pode levantar os olhos para o céu e ver as estrelas. É
muitas vezes pelo sofrimento - físico, mas acima de tudo pelo sofrimento
espiritual - que os homens são tomados conscientes de sua relação com Deus.
Por isso é perigoso falar do sofrimento como algo que o cristianismo
possa evitar ou eliminar. Não é verdade que os cristãos não sofram dor, que não
sofram tormentos espirituais, que estejam sempre "bem ajustados", ou que
estejam sempre sorrindo e não possam ser perturbados por nada que possa
ocorrer. Pelo contrário, o preço do discipulado é freqüentemente muito alto.
Não apenas a vida e morte de Jesus Cristo indicam isso, mas também a vida de
todos os grandes cristãos, desde os apóstolos até Dietrich Bonhoeffer, que
escreveu Discipulado e foi assassinado pelos carrascos nazistas no campo de
concentração de Flossenburg. É freqüentemente pelo sofrimento que os homens
se apercebem da precariedade de sua situação, de seu dilema como homens. Por
esta razão Lutero pode dizer: "Pois também isto é a provação mais perigosa:
quando não há provação, e tudo está e anda bem; que então a pessoa não se
esqueça de Deus, fique livre demais e abuse da temporada feliz. " 36
Lutero destaca que a paz e a tranqüilidade muitas vezes trazem à tona o
pior no homem. Isto certamente era verdade no caso dos antigos hebreus, e sua
verdade parece ser ilustrada também nos Estados Unidos da época moderna, em
períodos tais como a "exuberante década de vinte". Se existe algo como um
retorno à religião em nossos dias, em contraste com a exuberante década de
vinte de nossos pais, um retomo que afeta até mesmo a juventude, então a razão
deve ser que estamos mais conscientes do que nossos pais da precariedade da
existência humana. Não mais acreditamos, como eles, que a História é "reden-
tora", que tudo o que temos que fazer é permanecer firmes para que a situação
se ajeite, que o progresso está assegurado e que "amanhã será melhor". Pelo
contrário, a maioria de nós teme que o amanhã seja pior.
No entanto, aprendemos novamente através do sofrimento e dos desapon-
tamentos de nossa época que toda adversidade e sofrimento podem se tornar o
meio usado por Deus para nos empurrar por cima da borda, para dentro de seus
braços. Pelo sofrimento somos freqüentemente forçados a uma decisão clara em
80
nossa relação com Deus.

81
No seu tratado Das Boas Obras, Lutero menciona outras obras do
segundo mandamento, mas para ele o mais importante de todos os seus sentidos
é a pregação. O segundo mandamento obriga o cristão a proteger e proclamar o
santo nome de Deus contra todos os seus inimigos.
É aqui que o caráter revolucionário do cristianismo se toma particular-
mente claro. Diz Lutero: "Aqui temos que provocar contra nós os ricos, os
eruditos, os santos e tudo o que é alguma coisa no mundo. (...) cada cristão tem
esta obrigação (...)."37
A partir da fé no evangelho devemos resistir a toda injustiça. E isto
significa, particularmente, lutar contra a injustiça feita aos pobres, aos despre-
zados e aos nossos inimigos38. É muito simples lutar contra a injustiça praticada
por aqueles que não têm poder, que não podem se defender, que não podem
causar nenhuma dificuldade. Qualquer pessoa pode fazer isto, e quase todas o
fazem. É muito mais difícil combater as injustiças feitas pelos poderosos, pelos
ricos e por nossos amigos.
Como ilustração, poderíamos observar certos fatos sociológicos interes-
santes. Sabemos que o índice de delinqüência juvenil é muito mais alto nos
bairros pobres do que nos bairros ricos. Essa disparidade não pode ser simples-
mente atribuída ao fato estabelecido de que a pobreza gera o crime. Muitas
vezes entra em cena outro fator: a diferença entre as práticas de execução da lei
nos bairros abastados e nas favelas. Se um adolescente quebra uma vidraça em
um bairro rico e seu pai é uma pessoa influente, ele não será detido. É possível
que sofra uma reprimenda, mas, em todo caso, papal paga uma vidraça nova e o
caso é encerrado. Mas o adolescente da favela cujo pai é um bêbado será levado
ao juizado de menores. É muito mais fácil executar a lei contra um rapaz cujo
pai é um alcoolista com ficha policial do que executar a mesma lei contra um
rapaz cujo pai é companheiro de loja maçônica do juiz e que contribuiu com
elevadas somas para a máquina política que controla a cidade. Isto é apenas
uma ilustração do fato de que a justiça, longe de ser cega, é freqüentemente
vesga, deixando de notar os crimes dos "poderosos" enquanto gruda os seus
olhos naqueles que não têm poder.
O segundo mandamento descreve as obrigações do cristão de protestar
contra toda injustiça, praticada seja por quem for. Isto é revolucionário; é isto
que toma o cristianismo, se é reintroduzido na cristandade, mais poderoso do
que a bomba atômica.
Aqui Deus opera conosco e por nosso intermédio, se estivermos dispostos
a nos tornarmos suas ferramentas e instrumentos. Ele fez isso muitas vezes no
passado, freqüentemente usando a consciência cristã para iniciar grandes revo-
luções sociais. Grandes personalidades cristãs contribuíram para a abolição da
escravatura e o estabelecimento da igualdade de direitos para as mulheres. É
significativo que o único porta-voz branco corajoso a quem os hereros do
sudoeste da Africa eneontraram seja um clérigo anglicano, o Rev. Michael
Scott. Eles são um povo que foi despojado de suas terras e de seus direitos
82
como seres humanos pela União Sul-Africana, desafiando as Nações Unidas.
Mas as Nações Unidas não enviaram um exército para defender o povo herero.
porque a União Sul-Africana é anticomunista, e é moda ser anticomunista hoje
em dia. Nossa imprensa livre enterrou essa estória entre as receitas culinárias e
as colunas sociais. E fácil ser contra o comunismo nos Estados Unidos hoje; é,
na verdade, a maneira mais barata de se tornar popular.
Mas o segundo mandamento nos conclama a protestar contra a injustiça
onde quer que a encontremos, a falar pelos oprimidos, explorados, famintos e
nus em toda parte. Se não estamos dispostos a deixar Deus atuar por nosso
intermédio, diz Lutero, Deus "não deixará de realizar sua obra sozinho, de
ajudar os pobres. Quanto aos que não quiseram ajudar-1he nisto e menospreza-
ram a grande honra de sua obra, ele os condenará juntamente com os injustos
como aqueles que se colocaram do lado dos injustos." 39 Essa foi a experiência
dos israelitas; Deus os puniu por meio de pessoas que eram piores do que eles, a
saber, por meio dos babilônios e assírios. Essa foi a experiência dos romanos.
dos franceses e dos alemães - e pode tornar-se nossa experiência também. A
vontade de Deus será feita, quer estejamos dispostos a ser seus instrumentos,
quer não. Se não estamos dispostos, somos como a figueira que não produz
fruto e é cortada e lançada ao fogo.
Nossa responsabilidade de falar em favor da verdade também se estende
para o âmbito da Igreja. Sempre que a Igreja se tornar um clube social ou um
salão de palestras sobre psicologia popular, temos a responsabilidade de levan-
tar a voz em defesa da verdade na Igreja. É a Igreja em particular que deve
louvar e glorificar o nome de Deus, porém muitas vezes ela se ocupa com tudo
menos isso. É aqui que nós, como cristãos, temos a responsabilidade de fazer
com que a Igreja permaneça Igreja. O critério é sempre o evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Aqui é importante observar que o caminho para a justiça social passa pela
obediência a Cristo, e não ao largo dele. A tragédia dos homens e mulheres que
pensavam que podiam salvar o mundo através do evangelho social 40 anos atrás
foi que eles criam que o evangelho social significava menos ênfase no evange-
lho e mais ênfase na sociologia. Como resultado disso criou-se um grande
número de maus teólogos com uma fé incoerente e diluída; conseqüentemente o
zelo pela melhoria da sociedade também se diluiu em breve.
Se alguma vez quisermos produzir um impacto cristão na comunidade.
teremos que ser mais sérios em nossa fé em nosso Senhor divino. Só através
dele e a partir dele podemos receber a força para influenciar a ordem social. Só
uma Igreja que for fiel a seu Salvador divino será uma Igreja competente para
promover a justiça e probidade. Se quisermos melhorar o mundo através de
nosso humanismo, porque cremos que os homens são bons por natureza, sendo
tomados maus apenas por forças sobre as quais não têm controle. em breve

“vamos ficar sem combustível” e nosso desapontamento com os homens fará


83
com que nos tornemos cínicos. Se quisermos mudar o mundo por causa da
ordem de nosso Senhor e em seu poder, em breve descobriremos que ele
verdadeiramente tem poder para mudar as coisas.
Não há pessoa mais radical do que Jesus Cristo. Comparados com ele,
todos os radicais do mundo são meros conservadores. Mas seu poder só é eficaz
em nós enquanto crermos nele com todo o nosso ser.
É porque nosso Senhor Jesus Cristo é o Filho de Deus e nosso Salvador
que sabemos que seu caminho é o caminho verdadeiro. Só em seu poder "os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os
mortos são ressuscitados e aos pobres se prega o evangelho" 40. Somente através
de Cristo podemos ver os sinais do Reino até que finalmente vejamos "novo céu
e nova terra (...) a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de
Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então ouvi grande voz
vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus
habitará com eles. Eles serão povos de Deus e Deus mesmo estará com eles. " 41
O segundo mandamento descreve nosso relacionamento com Deus: deve-
mos louvá-lo e glorificá-lo e orar a ele em toda dificuldade e necessidade. Ele
também mostra nosso relacionamento com o mundo. Os cristãos não podem
viver sua vida em isolamento, mas são responsáveis pelo mundo. A fé precisa
estar sempre ativa no amor. "Assim brilhe também a luz de vocês diante dos
homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem a seu Pai que está nos
céus. "42

84
CULTO CRISTÃO

O Terceiro Mandamento: "Santificarás o dia de descanso."

Para Lutero o terceiro mandamento é aquele que descreve nossa atitude


para com Deus nas obras. No primeiro mandamento, diz ele, "está ordenado
como nosso coração deve se relacionar com Deus com pensamentos; no segun-
do, como a boca o deve fazer com palavras; neste terceiro mandamento é
preceituado como devemos proceder em relação a Deus com obras.'' 43 Devemos
nos lembrar que estamos falando da vida cristã, de uma vida vivida na fé. Que
significa então o terceiro mandamento?
A vida da fé é uma vida de culto. Culto não é uma ``lei" forçada sobre
pessoas indispostas a prestar culto. Na vida cristã, na vida sob o evangelho, o
culto é uma expressão de nossa fé e de nosso amor. Não nos tornamos cristãos
prestando culto; antes, por sermos cristãos queremos prestar culto a Deus. Isto
se aplica particularmente à oração. A oração é "um exercício especial da fé",
pois onde não existe fé não existe oração. Podemos praticar o cerimonial por
hábito, mas não estaremos orando. A oração se baseia na fé. Por outro lado, o
fato de nossa fé ser fraca e vacilante não é razão para não orar. Mesmo a menor
centelha de fé é razão para orar, e especialmente para pedir um incremento na
fé. A fé é confiança em Deus que crescerá ao orarmos por ela. Lutero salienta
que não oramos por causa de nossa santidade, mas oramos pedindo santidade,
porque carecemos dela.
Jesus descreveu nossa relação com Deus na oração como a relação de
crianças falando a seu pai, em quem confiam e a quem amam. Esse pai se digna
a ouvir qualquer coisa que elas tragam em seus corações, mesmo que seja algo
tolo ou perigoso. Assim, Deus ouve todas as nossas orações. Mas isso de modo
algum significa que ele sempre faça o que lhe pedimos, da mesma forma que
um bom pai não atenderia todos os desejos de seus filhos, mesmo que pudesse.
Minha filha de 6 anos pode pedir-me um revólver que dispare balas de verdade,
para poder mostrar aos meninos que ela é um cowboy melhor do que qualquer
outro. Fico satisfeito que ela me peça, que tenha a confiança em mim que esse
pedido expressa; mas, para o próprio bem dela, nunca atenderei tal pedido.
Deus não é uma loja celestial que atende por reembolso postal, a quem
enviamos nossos pedidos, esperando receber as encomendas pelo correio. Tal
85
oração não é expressão de fé e confiança, mas de descrença. Se você dá ordens
ou faz encomendas a Deus, ao invés de lhe pedir e abrir seu coração a ele, então
você não acredita realmente que ele seja Senhor, que saiba o que está fazendo,
mas você pensa que sabe melhor.
Podemos e devemos levar tudo a Deus em oração, pois não existe nada
pequeno demais ou grande demais para que ele não nos ouça. Mas ao final
devemos sempre dizer com nosso Senhor Jesus Cristo, que nos ensinou a orar:
"Senhor, seja feita a tua vontade, não a minha." Isto tem que acontecer com todo
o nosso culto e toda a nossa oração. Somente pela fé o terceiro mandamento e
todas as suas implicações tomam-se uma descrição da vida cristã. Assim, Lutero
podia dizer que o primeiro, o segundo e o terceiro mandamentos formam um
único anel e corrente de fé, descrevendo a vida que é vivida na fé e em que toda
ação se torna uma parábola expressando a verdade de que Deus é amor e tomou
esse amor conhecido a nós em Jesus Cristo, seu Filho. Isto é sempre a raiz e
fonte da vida cristã.

E os outros mandamentos?

Observados como expressões da vida sob o evangelho, cada um deles


descreve o que o amor de Deus significa em referência a outros homens quando
compreendido na fé. Quando Cristo é nosso Senhor e comanda nossa vida,
todas as relações de nossa vida mudam necessariamente. Como cristãos vemos
todas as relações naturais da vida sob uma luz diferente. Visto que Cristo é meu
Senhor, devo tentar expressar em minha família as implicações desse senhorio.
Devo perguntar: que significa para mim como filho ou pai, marido ou mulher,
empregador ou empregado, cidadão ou funcionário, pastor ou membro da
Igreja, o fato de que Cristo é Senhor? Esta pergunta nunca é apenas teórica ou
mera experiência de pensamento. A partir da perspectiva da fé os mandamentos
sempre se transformam em descrições do que deve acontecer e de fato acontece.
A fé cristã não é uma teoria sobre a vida que seja teoricamente verdadeira ou
falsa. A fé cristã é vida, e somente é verdadeira quando vivida. Para a vida cristã
sob o evangelho, os mandamentos são mudados de "lei" para uma descrição das
"boas obras" que devem necessariamente fluir da fé em Jesus Cristo.

86
A COMPREENSÃO CRISTÃ DE AUTORIDADE

O Quarto Mandamento: "Honrarás teu pai e tua mãe, para que prosperes
e se prolonguem os teus dias na terra."

Se agora examinarmos os outros mandamentos na perspectiva da fé,


encontraremos em cada um deles uma indicação para essa nova vida. O quarto
mandamento trata do fato da autoridade. A autoridade dos pais sobre os filhos se
toma simbólica de toda outra autoridade, a de nossos professores, de nossos
superiores, de toda autoridade política. É óbvio que todos os homens, com
exceção de alguns anarquistas, reconhecem alguma autoridade. Espera-se de
nós, como cristãos, que façamos mais do que meramente nos submeter à
autoridade sempre que isso for inevitável: devemos ver uma oportunidade de
serviço cristão em todas as posições de autoridade, bem como em todas as
posições em que estamos subordinados a ela.
Nada parece mais difícil para nós americanos do que chegar a uma
avaliação positiva da autoridade. A própria palavra nos lembra ditadura e
campos de concentração. No entanto, como cristãos deveríamos saber que a
autoridade da lei é a única proteção possível contra a usurpação da autoridade
por um ditador ou demagogo. O cristão não rejeita a autoridade, mas tenta ver
toda autoridade em referência a Cristo, que é a fonte de toda a autoridade. A
palavra de Deus afirma que toda autoridade legítima tem sua fonte em Deus e é
justificada na dependência dele.
Por isso, para o cristão a família não é apenas um grupo "biossocial" ou
"sociocultural", mas também o meio pelo qual as crianças são introduzidas na
comunhão da Igreja, onde elas deveriam conhecer a combinação de amor e
autoridade que lhes tornará possível orar "Pai nosso, que estás nos céus" e não
apenas murmurar expressões sem sentido. E como para o cristão a autoridade
dos pais participa da autoridade divina, é difícil defender uma organização
familiar que seja completa anarquia.
Parece significativo que atualmente os inimigos da Igreja cristã estejam
mais conscientes de sua necessidade de destruir a autoridade da família do que
os cristãos de sua responsabilidade de mantê-la. Onde quer que o totalitarismo e
o secularismo ataquem, eles principiam pela família. Percebem que a família
cristã, onde pais e filhos se amam mutuamente, é a mais perigosa célula de
oposição a um governo que tenta subordinar tudo e todos ao Estado total. Onde
quer que pais e filhos confiem e se amem mutuamente, o Estado não pode
penetrar com seu controle do pensamento e sua polícia secreta. Esse tipo de
relação familiar tem que ser destruído. As crianças são separadas dos pais para

87
serem educadas e controladas inteiramente pela escola e pelas organizações
juvenis do governo totalitário. Pais e mães são encorajados a viver afastados dos
filhos e ` também afastados um do outro, de modo que a família como unidade
viva seja destruída. Este era o padrão na Alemanha nazista e ainda o é na Rússia
Soviética. As crianças devem espionar seus pais e delatá-los à polícia secreta.
Tudo é feito para destruir a influência e a unidade da família, porque é o homem
em isolamento, quando não pensa em si como membro de uma família, que é o
mais suscetível aos aliciamentos de um Estado que quer ser pai e mãe e fonte de
toda autoridade.
Existem nos Estados Unidos forças atuando, de modo intencional ou
inadvertido, pela destruição da família e, assim, espalhando as sementes da
destruição de nossa liberdade religiosa e política. A melhor escola e o parque
mais bem organizado não substituem a família. Na medida em que nossa família
americana se desintegra, as possibilidades de sobrevivência de nosso modo de
vida diminuem constantemente. Quando o lar se torna apenas um dormitório
onde os membros da família dormem juntos, é chegado o tempo da completa
destruição da unidade natural mais forte que se opõe ao controle completo do
homem pelo Estado ou pelo partido.
Os cristãos terão que proclamar, em uma era que despreza toda autorida-
de, que a autoridade da família provém de Deus. Mais eficaz do que qualquer
proclamação dessas é o exemplo da família cristã, onde os pais se amam e
respeitam e onde as crianças obedecem aos pais em amor e não em temor servil.
Este é um sinal vivo, para todos os inimigos do lar cristão, de que "honrar pai e
mãe" não é um padrão de comportamento esquisito e arcaico, mas a vontade
eterna de Deus para seu povo. Neste mandamento, como em todos os outros, é
verdade que, se é visto a partir da perspectiva da fé, ele não apenas proclama
proposições acerca da verdadeira natureza da família; mas, se é colocado em
ação pelo cristão, ele é a família cristã e testemunha viva do poder e graça
divinos. A vida cristã é uma vida de discipulado dentro da estrutura natural da
família.
Similarmente, o quarto mandamento descreve a atitude do cristão para
com a realidade da autoridade política. Também no âmbito do poder político,
como alguém que governa e alguém que é governado, o cristão expressa sua fé
em Jesus Cristo por sua vida nesse âmbito. Para ele o âmbito da política não é
uma terrível cova de serpentes da qual espera ser redimido, mas um âmbito no
qual o fato de que Cristo é Senhor e Salvador é relevante e deve ser vivido.
Longe de destruir a autoridade do governo, o cidadão cristão tenta mostrar com
sua vida que o poder do governo também é poder emprestado e, como Paulo
nunca deixa de acentuar, em última análise é dependente e derivado do poder de
Deus.
É fatal e inútil se os cristãos tentam retirar-se da realidade da autoridade
política. Alguns o tentaram por um simples afastamento geográfico dos gover-

88
nos que desaprovavam. Os menonitas, quacres e outros pensaram que uma fuga
dos problemas do poder político é possível, mas a longo prazo suas tentativas
foram completamente fúteis.
Em nosso país hoje todo cidadão está envolvido em seu governo pagando
suas contas, mesmo que nunca vote e nunca participe de uma convenção
política. A única opção que efetivamente temos é o envolvimento, responsável
ou irresponsável. Isto se aplica igualmente àqueles que procuram fugir das
ambigüidades da vida política ignorando-a. Aqueles cristãos que dizem: "A
política é suja, não devemos nos envolver nela" estão expressando opiniões
sobre um assunto controvertido, mas não estão em condições de implementá-las
mediante a ação. Como já dissemos muitas vezes, não se foge de um problema
ao ignorá-lo. O próprio fato de deixar de participar é uma tentativa de resolver o
problema. Por exemplo, os cidadãos cristãos de Chicago não podem se
desculpar da corrupção política existente em sua cidade dizendo: "Nós nunca
votamos." Tal escusa apenas trai sua culpa pela situação que eles tentam ignorar.
A vida cristã deve ser vivida no mundo. Todo cristão tem a responsabilidade de
fermentar a sociedade em que vive, incluindo a área política.
Novamente, a obediência cristã não é apenas a aceitação de algumas
proposições teóricas a respeito da natureza do Estado e do governo. Não é
suficiente aceitar ou rejeitar algumas teorias sobre o direito divino dos reis ou
então sobre o direito divino das maiorias. Mais uma vez devemos acentuar que
a vida cristã nunca é tão teórica. Visto que ela é sempre discipulado, é também
discipulado no campo da política; e o quarto mandamento descreve a responsa-
bilidade dos homens e mulheres cristãos de serem discípulos como eleitores e
candidatos - na nossa forma particular de governo - da mesma forma que devem
viver seu discipulado como pais e filhos.
Nossa Igreja tem sido importunada por pessoas com teorias muito abran-
gentes sobre as relações entre a Igreja e o Estado, mas que nunca relacionaram
efetivamente sua fé cristã com a comunidade onde escreveram seus impressio-
nantes volumes sobre as relações Igreja-Estado. Não existe o cristianismo
teórico; ele é tão real quanto os acontecimentos sobre os quais se fundamenta.
Não pode existir uma encarnação teórica ou uma ressurreição teórica. Só como
acontecimentos, e nunca como teorias, é que essas palavras têm sentido para os
cristãos. Similarmente, a vida cristã só tem sentido se é vivida em comunhão
com Deus por Jesus Cristo. Talvez seja possível ser um budista, confucionista,
tomista ou barthiano teoricamente; mas nunca é possível ser cristão teoricamen-
te. Assim como a fé cristã se baseia em acontecimentos que ocorreram ou não
ocorreram e não pode ser diluída de modo a reduzir-se a algumas teorias a
respeito da natureza de Deus, do homem e do universo, da mesma forma a vida
cristã é discipulado em todas as ocupações e não alguma teoria sobre a natureza
da família ou do Estado que possa ser aceita teoricamente, mas não vivida no
dia-a-dia.

89
A COMPREENSÃO CRISTÃ DE COMUNIDADE

O Quinto Mandamento: "Não matarás.'


A mesma verdade é aplicável a todos os outros mandamentos. O quinto
mandamento, observado como lei, é meramente a proibição de tirar a vida
humana. Como tal ele faz parte da lei natural que examinamos e que acredita-
mos estar inscrita no coração de todos os homens. Mas, para a vida sob o
evangelho, o quinto mandamento deixa de ser "lei natural" e se torna a
descrição do modo pelo qual nossa fé cristã pode e deve ser vivida na comuni-
dade local, nacional e internacional. Se somos os discípulos de nosso Senhor
Jesus Cristo, não é suficiente "não causar dano ou mal algum a nosso próximo
em seu corpo". Mostraremos que o amor de Cristo está em nossos corações ao
"ajudá-lo e favorecê-lo em todas as necessidades corporais".
Isso significa que a vida cristã nunca pode ser vivida em isolamento dos
outros homens. Não existe algo assim como uma vida cristã que seja apenas
uma relação entre o indivíduo e Deus. "Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a
seu irmão, é mentiroso: pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não
pode amar a Deus, a quem não vê. "44
Tudo isso tem conseqüências muito práticas para nossa vida diária. Com
isso rejeitamos todos os esforços de reduzir a fé cristã à promessa do que tem
sido chamado desdenhosamente de "cadeira no céu". Inimigos e amigos da
Igreja cristã insistiram às vezes nessa interpretação. Alguns acharam que os
interesses da Igreja cristã seriam protegidos se ela não se envolvesse nas
controvérsias desagradáveis que acirram os ânimos das pessoas nos dias úteis. A
Igreja só deveria lidar com pessoas em trajes domingueiros e com problemas
domingueiros em suas mentes, e assim manter o respeito e a admiração de
todos.
Inimigos da Igreja defenderam o mesmo ao perseguirem seus sonhos de
poder porque não queriam ser incomodados pela consciência cristã atribulada.
Isso foi demonstrado de modo muito interessante na luta eclesiástica travada na
Alemanha durante o regime nazista. Então algumas seitas muito fundamentalis-
tas receberam a aprovação da liderança nazista porque se satisfaziam em viver
sua vida cristã escondidas em algum canto bem afastado dos problemas diários
do povo alemão. Nada que elas diziam interferia o mínimo nos projetos do
partido nazista, e a relevância do quinto mandamento para as decisões diárias do
povo alemão era bem camuflada. A luta eclesiástica na Alemanha iniciou
quando cristãos começaram a perceber que o quinto mandamento era relevante
no tratamento dado aos judeus pelos alemães. Não é suficiente abster-se de
matar ou causar qualquer dano físico; antes, ajudar e favorecer o próximo em
perigo e necessidade faz parte da própria essência da vida cristã.

90
O que se mostrou tão espetacularmente na Alemanha sob os nazistas é
igualmente verdadeiro em nosso país. Como cristãos temos uma responsabili-
dade de cuidar para que as leis sejam cumpridas e nossas comunidades sejam
administradas com justiça. Não é suficiente estarmos preocupados com a exe-
cução da lei nos bairros abastados onde muitos de nós vivem; também somos
responsáveis pela sua observância no outro lado da cidade. Além da execução
da lei, o quinto mandamento implica responsabilidade pelo alívio de toda
necessidade humana. Controle de enchentes, luta contra a poliomelite, elimina-
ção de favelas, controle do trânsito - tudo isso serão responsabilidades cristãs,
caso o quinto mandamento seja encarado como descrição da vida de fé.
Porém, mais do que isso, não basta estar nominalmente preocupado com
todas essas causas nobres. Um dos grandes perigos desta era de superorganiza-
ção é que deleguemos o cumprimento cristão do quinto mandamento a organi-
zações que devem cumpri-lo por nós. Muitas vezes não demonstramos amor em
nossas relações pessoais, mas contribuímos para causas nobres que amam por
nós. Apesar de indubitavelmente ser nosso dever contribuir com generosidade
para todas essas organizações necessárias para aliviar a miséria e o sofrimento
humanos, estaríamos cometendo um grave erro se acreditássemos que tais
contribuições nos livram de nossas responsabilidades pessoais de demonstrar
amor ao próximo. Agências e organizações devem complementar nossas obras
pessoais de amor, mas nunca podem substituí-las. O fato de muitas tarefas
serem grandes demais para serem feitas por nós sozinhos não nos livra de nossa
responsabilidade de fazer as muitas coisas que podemos fazer como indivíduos.
Contribuições para a missão no exterior não nos dispensam de nossa própria
responsabilidade pessoal de sermos missionários onde quer que formos. Mesmo
o auxílio mais generoso a agências que combatem a discriminação racial não
nos livra de nossa própria responsabilidade de demonstrar o amor de Cristo a
todos os homens em nossa vida diária.
Finalmente, o teste do quinto mandamento cumprido em Cristo e no
cristão acontece em nossas relações com todas as pessoas que consideramos
claramente indignas de amor. Lutero diz que tolerar aqueles que não nos
molestam é, na verdade, muito fácil: "Este tipo de mansidão têm também os
animais irracionais, leões e serpentes (...) canalhas, assassinos, mulheres perver-
sas. Todos estes ficam pacíficos e mansos quando se faz o que querem ou se os
deixam em paz. Mas não são poucos os que se deixam enganar por mansidão
tão inefetiva, encobrem sua raiva e se desculpam dizendo: “Eu bem que não
ficaria com raiva se me deixassem em paz.” E Lutero continua: "Bem, meu
caro, desse jeito também o mau espírito ficaria manso, caso se fizesse segundo a
sua vontade. "45
O ponto crucial da obediência cristã ao quinto mandamento é sua aplica-
ção a nossos inimigos. Nossos inimigos são a verdadeira pedra de toque da vida
cristã. Por nossas próprias forças podemos realmente amar os bons, belos,
amáveis; porém apenas pelo poder da fé em Cristo é que poderemos amar
91
aqueles que nos odeiam e que são, humanamente falando, de todo indignos de
amor. Tal amor era considerado degradante pelos gregos. Eles mediam o valor
do amor pelo valor do objeto amado. Somente o amor ao perfeito era perfeito e,
portanto, somente o amor de Deus era justificado em última análise.
Para nós, no entanto, que fomos feitos discípulos do Cristo que é amor, a
bondade do objeto de nosso amor pouco significa. Nosso amor não depende da
dignidade ou da beleza do objeto, mas da realidade e da força do amor de Deus
agindo em nós. Na fé nos tomamos capazes de "temer a amar a Deus, de
maneira que não causemos dano ou mal algum ao nosso próximo em seu corpo,
mas o ajudemos e favoreçamos em todas as necessidades corporais". E o
próximo é toda pessoa que necessite de nossa ajuda, seja ela amiga ou inimiga,
boa ou má, esteja ela em nossa cidade natal ou a 5 mil milhas de distância.

92
O CRISTÃO E O SEXO
O Sexto Mandamento: "Não adulterarás."

A vida cristã sob o evangelho reconhece a realidade do sexo. Esta afirma-


ção pode nos parecer muito óbvia, mas deveríamos lembrar-nos que às vezes
certas pessoas consideraram o sexo em si algo mau e pecaminoso. Alguns
cristãos da atualidade consideram o instinto sexual a fonte de todo o pecado.
Pensam que o pecado original é um pecado sexual. Para eles, a única vida
realmente santa é vivida em celibato e na tentativa de ignorar ou combater a
realidade do sexo durante a vida. Aqui sexo e pecado são substancialmente,
identificados, de maneira que se torna impossível para tais pessoas falar de uma
vida cristã que utilizaria a realidade do sexo na fé para o louvor e a glória de
Deus.
Em sua obsessão pelo sexo como algo mau e como fonte de todo o mal,
essas pessoas se assemelham muito aos freudianos, que também consideram o
sexo o fator dominante em toda a vida e explicam toda arte e literatura, como de
resto toda ação humana, em termos da pulsão sexual. Ambos centram a vida no
sexo, quer positiva, quer negativamente. Mas, quer você passe seus dias lutando
contra seus instintos sexuais como o faziam os antigos ermitões, quer os cultive
como o herói de uma novela psicanalítica moderna, o sexo assumirá o lugar de
Deus e se transformará no centro de sua vida. Lendo as obras de autores
católicos modernos como Paul Claudel, tem-se a impressão de que a vida cristã
se exaure na luta contra o sexo, tão inutilmente quanto os esforços de um
moderno devoto da libido que busca eternamente a satisfação plena de seus
desejos sexuais. A vida de fé cristã inclui a realidade do sexo e a subordina, ao
relacionamento de fé e confiança em Deus que deve dominar toda a vida.
A existência do homem e da mulher faz parte da vontade criadora de
Deus. Deus, e não o diabo, criou a dependência mútua entre homem e mulher.
Não há nada de sujo ou vil nessa criação divina. A família, que é sancionada e
protegida no quarto mandamento, deriva sua existência da realidade do sexo.
De acordo com a vontade criadora de Deus, o sexo é canalizado no
relacionamento de homens e mulheres para a instituição do matrimônio. Como
relação ordenada dos sexos o casamento existe, de uma ou de outra forma, em
toda parte. Não existem "selvagens nobres" que vivam como animais, pois o
homem circunscreveu a relação entre homem e mulher com regras bem defini-
das em todos os lugares. Nós, cristãos, cremos que o casamento monogâmico
foi instituído por Deus.
Como diz Lutero em seu Catecismo Maior:

93
Por isso [Deus] também quer que honremos [o matrimônio], o mantenhamos e
vivamos como estado divino e bendito. Pois que o instituiu antes dos demais, e
criou diversamente homem e mulher, como é evidente, não para maroteira, [mas]
sim para que permaneçam unidos, sejam fecundos, gerem filhos e os sustentem e
eduquem para honra de Deus. (...) Essa [é] a razão por que sempre tenho
ensinado que não se despreze nem se menoscabe esse estado, como faz o mundo
cego e os nossos falsos clérigos, mas que se trate de avaliá-lo segundo a palavra
de Deus, que o adoma e santifica. Não só é igualado com outros estados, [mas] a
todos precede e ultrapassa, os de imperador, príncipes, bispos, ou de quem quer
que seja.
Entretanto, o matrimônio e a fidelidade nele ainda fazem parte da lei; não
há nada especificamente cristão a respeito deles. É sinal da vida cristã viver em
fidelidade e amor matrimonial de forma a dar um sentido sempre renovado às
muitas figuras de linguagem que encontramos no Novo Testamento, que com-
param a relação entre Cristo e sua Igreja a uma vida conjugal perfeita. O sexo
deve tornar-se um aspecto válido desta relação divinamente ordenada. O sexo é
uma parte do matrimônio, mas não o matrimônio todo. Por conseguinte, é
errôneo considerar a propagação da espécie o único propósito do sexo e do
casamento. E é indesculpável que o mero fato da ausência de filhos seja
transformado em base para anular um casamento. É interessante observar que
aqueles cristãos que desaprovam o sexo e aqueles que fazem do sexo o centro
de toda a vida concordam em seu desdém pela relação matrimonial à parte da
sua função para a propagação da espécie. Nem uns nem outros vêem qualquer
utilidade nessa relação de amor além da recompensa ou na "paixão" ou nos
filhos. Para a vida cristã, porém, a aceitação autêntica do sexo no matrimônio
como parte da vontade divina é de fundamental importância.
O homem não foi criado para passar a vida combatendo seus instintos
sexuais. Tampouco foi criado para passar a vida absorvido por esses impulsos.
Do ponto de vista do evangelho, o sexo e o matrimônio fazem parte da ordem
divina da vida através da qual homens e mulheres podem servir a Deus. O
propósito da vida do homem, porém, é viver em comunhão com Deus. A vida
cristã tem a oportunidade gloriosa de mostrar como, pela fé, o relacionamento
conjugal pode tornar-se um símbolo de amor, confiança e fidelidade. Então uma
canção de amor como a dos Cantares de Salomão pode se transformar para os
cristãos numa canção de louvor à ordem divina do matrimônio e, ao mesmo
tempo, num sinal e símbolo da relação entre Cristo e sua noiva, a Igreja.
"Maridos, amem as suas mulheres, como também Cristo amou a Igreja, e a si
mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio
da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo Igreja gloriosa,
sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito.
Assim também os maridos devem amar suas mulheres como a seus próprios
corpos. "46

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TRABALHO E PROPRIEDADE
O Sétimo Mandamento: "Não furtarás."

Onde quer que os seres humanos vivam em sociedade, as relações de,


propriedade criam problemas e são ordenadas por lei. Existe uma diferença
entre o que é meu, o que é seu e o que é nosso. Essas relações de propriedade
não são ordenadas da mesma forma em todos os lugares. Sempre há algumas
pessoas que não podem ter propriedade. Às vezes o grupo que controla toda a,
propriedade na realidade é muito pequeno. Às vezes os próprios seres humanos
são considerados propriedade.
O sétimo mandamento, compreendido como lei, diz a todos os homens,
que eles não têm direito de se apossarem de propriedade alheia, seja por roubo
declarado, seja por transações comerciais fraudulentas e injustas. Isso pode até
implicar, como sustentaram alguns, que a escravidão é sempre errada porque
constitui uma ofensa contra este mandamento.
Mas, do ponto de vista do evangelho e sob o ângulo da fé, o sétimo
mandamento mostra como a vida cristã deve levar o poder redentor de Deus
para todas as áreas envenenadas da vida econômica do homem. Analisando este
mandamento em seu tratado Das Boas Obras, Lutero não se demora em comen-
tar o roubo e o assalto, mas aborda extensamente a "caridade", a "avareza" e a
"liberalidade".
Não resta a mínima dúvida de que o testemunho cristão é de fundamental
importância no âmbito econômico, pois é neste âmbito que muitos dos conflitos
humanos têm sua origem. Diz o Novo Testamento: "O amor ao dinheiro é a raiz
de todo o mal." Em nossa época nos defrontamos com teorias sociais que fazem
dos homens meros animais econômicos e das leis da economia, as leis supremas
da existência humana. Para os comunistas a propriedade privada é a fonte
metafísica de todo o mal; para os capitalistas é a fonte metafísica de todo o bem.
Novamente, como no âmbito do sexo, os cristãos se defrontam com duas
interpretações contraditórias, ambas perigosas e falsas, porque fazem de algo
que é uma parte importante da vida - a propriedade - o centro de importância
absoluta da vida. Ambos os grupos estão usando pretensas "leis econômicas" e
convertendo-as em leis últimas do universo. Para os comunistas as leis do
materialismo dialético, expostas por Karl Marx e adicionalmente interpretadas
por Lenin e Stalin, são a vontade e lei eternas do universo sem Deus. Todos os
esforços de ver a vida em termos mais amplos do que meramente a concepção
unilateral do materialismo dialético são considerados heresia, ou, como eles
gostam de dizer, "desvios". Arte e literatura, religião e moral, tudo é forçado
para dentro dos limites estreitos desse pensamento econômico.

95
Similarmente, um capitalista convicto do gênero laissez faire acredita na
pretensa lei da oferta e procura como fonte de toda a bondade, verdade e justiça.
Como a "propriedade privada" para o comunista, a oposição a essa "lei" seria o
pecado original do qual se derivam todos os outros males. Também aqui o
homem é visto primariamente como um ser econômico, e a importância das leis
econômicas é exagerada até que se tornem o centro absoluto da existência
humana.
Contrariando esse pensamento pan-econômico, o cristão cumpre o sétimo
mandamento mostrando em sua vida que Deus, e não algumas pretensas leis
econômicas, deve ser o ponto focal da existência humana. A lei da oferta e
procura deve ser subordinada à responsabilidade do homem, sob Deus, de amar
o próximo. Nenhuma teoria econômica pode jamais transformar seres humanos,
pelos quais Jesus Cristo morreu, em meras mercadorias a serem usadas como
meios para fins econômicos. Faz pouca diferença se o fim para o qual se usam
seres humanos é a ditadura do proletariado ou a acumulação de riqueza nas
mãos dos capitalistas, pois o evangelho diz "não" a todas as tentativas de
subordinar o eterno propósito do homem de louvar e glorificar a Deus a
qualquer teoria econômica específica.
Nesse conflito é tarefa do cristão mostrar por sua vida diária que Deus é o
centro verdadeiro de toda a existência humana. Poder econômico e político ou
riqueza nunca são fins em si mesmos, mas são, para o cristão, meios e talentos
que ele deve utilizar para glorificar a seu Deus e Salvador. E o cristão também
sabe que nenhuma propriedade jamais é realmente "privada". Visto que tudo o
que temos são bens que nos foram confiados por Deus, não temos o direito de
os usar ou desperdiçar como se fossem absolutamente propriedade nossa. Isso
terá implicações para a conservação do solo e muitos outros problema
específicos. O cristão sempre se considerará um mordomo das dádivas de Deus.
Ele estará sempre consciente do fato de que algum dia terá que prestar contas de
sua mordomia. Nem a abolição nem a glorificação da propriedade privada, mas
a vida em comunhão com Deus é a saída para o dilema humano. O problema do
homem não é essencialmente econômico mas teológico, e nenhuma panacéia
econômica toca a raiz de sua ansiedade e frustração.
À luz do evangelho, a vida econômica é compreendida do ponto de vista
do conceito cristão de "vocação". Não se pode negar que os homens precisam
trabalhar para sobreviver. O trabalho é mais do que um mal necessário; ele dá
sentido e propósito a vidas que de outra forma seriam completamente fúteis.
Mas o trabalho não é nem mero meio de adquirir propriedade nem de servir ao
Estado ou ao partido; é, antes, uma oportunidade de servir a Deus. O conceito
cristão de "vocação" significa que pela fé todo cristão pode e deve encarar seu
trabalho diário como uma oportunidade de servir a Deus.
O caráter particular do trabalho faz de fato pouca diferença. Pela fé é
possível considerar não apenas as profissões mais espetaculares do cirurgião, do
estadista, do pastor e do missionário, mas também as do motorista de caminhão,
96
do rebitador, do escriturário e do faxineiro como caminhos de serviço cristão.
Um trabalho é uma vocação não em virtude de seu caráter inerente, mas em
virtude da compreensão cristã de quem o executa. Todo labor feito para a glória
de Deus e a serviço de nosso semelhante é vocação cristã. E nenhuma atividade
feita por motivos meramente egoístas é santa por sua natureza. O trabalho de
pastor ou missionário, de enfermeira ou médico não é inerentemente uma
vocação mais cristã do que qualquer outro empreendimento humano. Se feita de
maneira egocêntrica e sem fé, a própria proclamação do evangelho deixa de ser
vocação cristã. De fato um homem poderia batizar mais pessoas do que o
apóstolo Paulo, mas se ele o fizesse sem fé, seu trabalho não seria mais cristão,
do que o exercício sem fé de qualquer outra arte ou ofício. Não é o trabalho,
mas a fé do trabalhador que dá a uma ocupação seu caráter distintamente
cristão. O cumprimento do sétimo mandamento na fé significa que toda a nossa,
vida se toma um testemunho vivo do fato de que Cristo é nosso Senhor e nós
somos seus discípulos.
Em fabricas e fazendas, escritórios e cozinhas, os cristãos demonstrarão
em seu trabalho diário que todo trabalho deve ser feito por causa de Deus. Não
existe âmbito de trabalho em que Deus não seja Senhor. É impossível dizer,
como cristão: "Negócios são negócios", ou: "Política é política", como se
existissem áreas da vida que possam funcionar conforme suas próprias regras e
independentemente da vontade de Deus. E, como a fé cristã nunca é uma teoria
acerca da vida, mas uma vida de discipulado, não é suficiente reconhecer o
senhorio de Cristo em todas as áreas da vida como uma proposição teórica que,
consideramos verdadeira. A vida cristã tem que ser uma vida na qual esse
senhorio de Cristo seja vivido efetivamente. Tem que haver uma diferença na
maneira de um cristão fazer seu trabalho. Isso não significa que se espera dele
que interrompa suas atividades de soldador a cada meia hora para dirigir um
pequeno sermão a seus colegas. Significa, no entanto, que ele será o melhor
soldador que puder, porque estará soldando para a glória de Deus e verá em seu
trabalho diário uma oportunidade de glorificar a Deus e servir seu próximo.
O sétimo mandamento é cumprido sempre que fizermos nosso trabalho
diário, não por causa do chefe, nem para ficarmos ricos, nem para obtermos
aclamação pública, mas porque entendemos que nosso trabalho diário nos dá
uma oportunidade de agradecermos com ele por tudo o que Deus tem feito por
nós.
"Não furtarás." - Cumprido através do evangelho isto significa: traba-
lhar duro e bem, não por medo dos homens, mas para a glória de Deus e por
amor a nosso próximo.

97
INTEGRIDADE

O Oitavo Mandamento: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.”


Toda sociedade humana se baseia em pelo menos um mínimo de honesti-
dade. Se os homens não fossem em geral honestos no uso de seus símbolos
(palavras), nem mesmo poderiam falar uns com os outros. A própria linguagem,
para ter sentido, implica um mínimo de honestidade. Mesmo um mentiroso só
pode agir com sucesso porque as pessoas em geral querem dizer o que dizem.
Toda organização social se baseia em certa quantidade de confiança, de
forma que a sociedade está em perigo quando esse mínimo básico de honesti-
dade humana se evapora. É por essa razão que toda sociedade considera o
perjúrio um crime e insiste no "testemunho verdadeiro" pelo menos quando os
interesses essenciais da sociedade estão em jogo. Não há nada especificamente
cristão em não prestar falso testemunho. Isso faz parte da lei divina para todos
os homens, a fim de tornar possível a vida humana ordenada na terra.
Que significa o oitavo mandamento quando é examinado do ponto de
vista da fé? Que diz ele acerca da vida cristã sob o evangelho? Ele descreve a
vida cristã como uma vida na qual a linguagem, compreendida em seu sentido
mais amplo, é usada para a glória de Deus e a serviço do próximo, i. é, na
verdade. Lutero, em seu tratado Das Boas Obras, relaciona este mandamento
muito claramente com a responsabilidade cristã pela verdade. Diz ele:

Onde há esta confiança e esta fé (em Cristo), ali está um coração corajoso,
obstinado e destemido, que se arnsca e apóia a verdade, tanto faz se está em jogo
o próprio pescoço ou o manto, se é contra o papa ou contra os reis, como vemos
que o fizeram os caros mártires. Pois semelhante coração se contenta e se apraz
com o fato de ter um Deus gracioso e favorável. Por isso despreza favor e graça,
bens e prestígio junto a todas as pessoas, deixa ir e vir o que não quer
permanecer, conforme está escrito em Sl 14[15].4: "Ele despreza os que
desprezam a Deus e honra os que temem a Deus", isto é: ele não teme os tiranos,
os poderosos, que perseguem a verdade e desprezam a Deus; não os considera,
mas os despreza. Em contrapartida, os que são perseguidos por causa da verdade
e temem a Deus mais que aos seres humanos, a estes ele se apega, auxilia-os,
cuida deles e os honra, contrarie a quem contrariar.
Este mandamento tem toda sorte de implicações para a responsabilidade
do cristão na arte e literatura, na ciência e história, e pela liberdade em geral.
Freqüentemente na História os cristãos acharam que tais assuntos não eram de
sua alçada, ou que tinham a obrigação de suprimir a verdade para o bem de
alguma fórmula de propaganda eclesiástica. Sempre que isso aconteceu, o
oitavo mandamento foi transgredido. A vida cristã sob o evangelho tem que se
preocupar com o uso da linguagem para o bem da verdade. O âmbito da

98
literatura sempre foi uma área na qual os cristãos tentaram servir a verdade.
Desde os escritos dos antigos pais da Igreja até os de Dorothy Sayers e C. S.
Lewis hoje, pessoas cristãs tentaram dar testemunho da verdade em prosa e
poesia. De modo semelhante e talvez mais indireto pela pintura, arquitetura e
música, através de pesquisas eruditas nas humanidades e ciências, os cristãos
têm cumprido na fé o oitavo mandamento.
Este mandamento submete os cristãos a um exame severo. Podemos nos,
considerar servidores da verdade se escrevemos livros desonestos, mesmo que
tenham uma bonita lição cristã no final? Porventura estamos servindo a Cristo
quando construímos edifícios desonestos, e talvez especialmente igrejas deso-
nestas, mesmo que sejam populares entre pessoas que nada sabem de arquite-
tura? Acaso podemos nos considerar servidores de Cristo se o retratamos da
maneira como as pessoas que publicam arte religiosa pensam que deveria ser a
aparência de Cristo para maior sucesso de vendas? Não deveria um artista pintar
Cristo como ele sabe que Cristo é a partir da profundidade de sua inspiração
artística e cristã?
Cumprir o oitavo mandamento implica testemunhar a verdade não apenas
"contra papas e reis", que atualmente não são muito atemorizantes para nós em
nosso país, mas também contra pesquisas de opinião pública e comissões
parlamentares de inquérito. Isso nos leva ao problema da "liberdade". Viver o
oitavo mandamento significa também defender a integridade dos homens e seu
direito de buscar a verdade, mesmo que sua busca os conduza para muito longe
do que sabemos ser a verdade. Não prestar falso testemunho significa também
que não devemos dizer às pessoas que a verdade pode ser encontrada aceitando,
implicitamente as opiniões de pessoas que têm a verdade. A verdade não pode
ser herdada; ela não pode ser aprendida como se aprende um discurso famoso. A
verdade última precisa ser crida. Ninguém pode ser forçado a crer, e qualquer
esforço de fazer surgir a fé desta maneira é uma ofensa trágica contra o oitavo
mandamento. Se Deus se recusou a forçar os homens a crer, quem somos nós
para mexer com uma integridade humana que o próprio Deus respeitou? A fé
cristã sempre causou o maior impacto quando foi vista como uma alternativa
clara a outras crenças. No caos de crenças do mundo mediterrâneo dos três
primeiros séculos, o cristianismo emergiu vitorioso. Quando aceita meramente
como parte da nossa herança, a fé cristã degenera.
Repetindo, a vida cristã cumpre o oitavo mandamento quando os cristãos
vivem como testemunhas corajosas da verdade. Testemunhar a verdade não
significa apenas declarar nossa preocupação teórica com a verdade, mas tam -
bém mostrar em toda ação que cremos que o Deus que se revelou em Jesus
Cristo é a verdade, que temos infinito respeito por esta verdade e que viveremos
a verdade em todas as áreas de nossa vida. Não servimos a Deus na verdade
aceitando como verdadeiras certas proposições a seu respeito, mas deixando sua
verdade operar em nós de modo que em todos os atos de nossa vida demos
testemunho da verdade.
99
100
COBIÇA

O Nono e o Décimo Mandamentos: "Não cobiçarás."

Confrontados por estes mandamentos, faríamos bem em admitir que toda


a vida humana é dominada pela cobiça. Quer a chamemos "vontade de poder",
ou "libido", ou "desejo de felicidade", a vida do homem é impelida pela paixão
de obter o que os outros têm. Os dois últimos mandamentos descrevem este
pecado, que está na raiz de muitos outros. Pois mesmo em nosso relacio-
namento com Deus estamos sempre em revolta porque cobiçamos sua divinda-
de. Desde Adão e Eva, que queriam ser "como deuses" (Gênesis 3), até os
pensadores modernos que afirmam ruidosamente que o homem é Deus, os seres
humanos sempre se ressentiram de sua condição de criaturas dependentes de
Deus em todos os sentidos.
Em relação a nosso próximo, somos dominados desde a infância pelo
desejo de ter o que a outra pessoa tem. Não estamos verdadeiramente interes -
sados nos objetos em si, e sim mais em ter aquilo que pertence a outro. Não é
necessário estar perto de crianças por muito tempo para notar que mesmo uma
criança pequena deseja o brinquedo que a outra tem e também que a atração
principal está no fato de que é a outra criança que tem o brinquedo. É a cobiça,
e não o valor inerente ao objeto, que desperta o interesse.
Essa atitude permanece conosco por toda a vida. Quando ficamos mais
velhos, nossas namoradas ou namorados são freqüentemente escolhidos em
virtude de sua popularidade com outros rapazes e moças. Queremos a moça que
sai com nosso melhor amigo, ou o rapaz que se encontra com nossa colega. O
objeto do interesse mudou, mas seu caráter cobiçoso não. Mais tarde na vida
começamos a comprar coisas que não têm utilidade nenhuma, só porque que-
remos ter o que outros têm. Sob o título imaginoso de "consumo conspícuo",
uma civilização inteira pode ser descrita como baseada essencialmente numa
forma de cobiça.
É possível desenvolver essa cobiça humana básica até transformá-la em
"virtude" individual ou social. Quando falamos em termos ardorosos da busca
do lucro como o motivo básico de nossa sociedade, na verdade elevamos a
cobiça individual à posição de principal virtude social. Semelhantemente, se
glorificamos os interesses de nossa nação ou de nossa classe social e os
tornamos as principais forças motivadoras em nossa vida, elevamos a cobiça
grupal à condição de "força vital" básica.
Tal atitude pode ser muito realista. Pode até ser inevitável por causa da
atitude básica do homem pecador. Qualquer esforço na direção de uma organi-

101
zação social bem-sucedida provavelmente tem que levar em conta essa cobiça
humana fundamental. Parece que a Igreja cristã, com sua apresentação do
cristianismo como um seguro metafísico contra incêndio, também usou freqüen-
temente essa arquicobiça para seus próprios propósitos.
Mas não há mais nada a ser dito sobre esse estado de coisas com base no
evangelho?
Parece claro que mesmo a utilização da cobiça pela Igreja para impelir as
pessoas à sua comunhão está claramente em desarmonia com a vida de fé cristã.
Para aqueles que sabem que "quem procurar sua vida perdê-la-á e aquele que
perder sua vida por amor a Cristo encontrá-la-á", o motivo do lucro individual,
socialista ou eclesiástico deve parecer autodestruidor. Mesmo que tentemos usar
essa mesma palavra de Cristo para transformá-la em alguma prescrição pruden-
cial para encontrar nossa vida, estaremos perdendo nossa vida. Diz o apóstolo
Paulo: "E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que
entregue o meu próprio corpo para ser queimado, e não tiver amor, nada disso e
aproveitará."47 Em qualquer forma que possa aparecer, mesmo em sua
roupagem mais eclesiástica, a cobiça sempre separa o homem de Deus.
Mas qual é o cumprimento destes mandamentos quando Cristo é nosso
Senhor na fé? Como o apóstolo Paulo indica e todo o Novo Testamento
proclama claramente, o motivo básico de nossa vida tem que mudar. Se cremos
em Cristo - se somos seus discípulos e seu poder habita em nós -, então o amor
que serve ao próximo se toma a força básica em nossa vida. Ao invés de um
motivo de lucro individual, socialista ou mesmo eclesiástico, o motivo de nossa
vida tem que ser o amor que está em Cristo Jesus e que busca o interesse do
próximo. Este é o sentido do "arrependimento" ou do "novo rumo da mente"
que o Novo Testamento menciona tantas vezes. Nossa vida então não estará
dirigida para nosso próprio interesse, mas para o das pessoas ao nosso redor.
Tornamo-nos extrovertidos na acepção mais profunda da palavra. Perde-mos
diariamente nossa vida para servir aqueles que precisam de nós. Neste sentido
Jesus Cristo foi o maior "extrovertido" que já viveu, pois viveu apenas para o
bem dos outros.
Se entendido corretamente, esse amor cristão na obediência ao nono e
décimo mandamentos transformará toda a nossa vida e lhe dará um rumo
inteiramente novo. Ao invés de usarmos tudo e todos em proveito próprio,
deixaremos que Deus nos use em proveito de nossos semelhantes e da procla-
mação de seu reino. Tudo o que tivemos se tornará um meio de tornar efetivo
esse serviço. Nossa casa, nosso relacionamento com nosso cônjuge, todas as
nossas posses se tornarão meios de demonstrar o poder do amor divino. Da
mesma forma, na vida de Cristo todas as relações humanas e todas as posses, de
um banquete de casamento a alguns pães e peixes, se tomaram um caminho
para a proclamação da boa nova do grande amor de Deus.
Também os dois últimos mandamentos são cumpridos na vida, não na

102
desaprovação teórica da cobiça. A fé cristã, quando vivida, não é uma teoria
acerca do amor divino, mas é o amor de Deus em ação através de homens e
mulheres que se tomaram discípulos de Cristo. Precisamos dizê-lo novamente: a
fé cristã não é uma série de opiniões acerca da natureza de Deus, do homem e
do universo; ela é a vida como discípulos de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho
de Deus, o Salvador. As teorias são uma tentativa de descrever o que acontece
quando Cristo chama homens para serem seus discípulos. Elas podem todas ser
muito verdadeiras, mas não são substituto para o discipulado. Um livro-texto
sobre fisiologia não é substituto para a vida. Nenhuma descrição, por mais
acurada que seja, do processo de comer substitui o comer. Deus enviou seu
Filho, uma pessoa que nasceu, viveu, morreu e ressuscitou dos mortos, para que
o seguíssemos vivendo nossa fé a cada momento de nossa vida. O cristianismo
é discipulado. Esse discipulado só é possível quando Deus em sua graça nos dá
a fé de ver Cristo como Senhor de nossa vida.

103
ÉTICA DA DECIÃO

Sempre que o desafio da vida sob o evangelho nos atinge, ficamos


assombrados com suas possibilidades e deprimidos por nossa incapacidade de
viver de acordo com ele. Se examinamos os Dez Mandamentos na fé, ficamos
ao mesmo tempo estimulados pela oportunidade que descrevem e desanimados
com nossa incapacidade de corresponder a essa oportunidade. Pois homem
algum jamais vive sem ambigüidade sua fé em Cristo em amor para com seu
próximo. Como cristãos sabemos que somos sempre servos inúteis, que nunca
podemos nos desfazer do orgulho e da cobiça que pervertem todas as nossas
ações. Sabemos que em cada uma de nossas ações operamos com motivos que
não vêm de nossa fé, mas de nossa descrença e revolta contra Deus.
Além do mais, os cristãos estão cientes de que isso não é apenas uma
incapacidade pessoal de agir corretamente, mas parte do dilema humano em seu
todo. Muitas vezes temos a opção entre uma ação que é claramente boa e outra,
que é claramente má, mas com a melhor das intenções nos defrontamos cons-
tantemente com a necessidade de optar entre duas alternativas que parecem
igualmente más. Talvez o seguinte exemplo espetacular ajude a esclarecer a
questão. Tenho um amigo, um jovem oficial americano, cuja tarefa era organi-
zar o movimento secreto francês na sua luta contra os conquistadores nazistas.
Com esse propósito saltou de pára-quedas na França ocupada e estabeleceu
contato com agricultores e operários franceses que se escondiam nas matas e
montanhas. Depois de ele os ter organizado em algo semelhante a uma unidade
de combate, eles atacavam as tropas de ocupação nazistas. Todos arriscavam
suas vidas. Nessa luta não se faziam prisioneiros; havia apenas vencedores e
cadáveres. Durante um desses combates, com os nazistas em seu encalço, o
grupo sob o comando de meu amigo perdeu um homem por ferimentos. Ele não
podia ser transportado; tinha que ser deixado para trás. A questão era: devia ele
ser deixado morto ou vivo? Se ficasse vivo, provavelmente colocaria em risco a
vida de todos os seus companheiros, revelando seus nomes e esconderijos sob a
tortura da Gestapo. Mas esse homem era seu amigo; podiam eles matá-lo a
sangue frio? Que era correto? Meu amigo contou que decidiram escondê-lo nos
arbustos ao lado da estrada, esperando que os nazistas não 0 encontrassem. Deu
certo. Teria este sido um procedimento correto se não tivesse funcionado e
levado à execução de centenas de homens e suas famílias?
Nem todas as nossas decisões são tão complexas, mas não há nenhuma na
qual nosso egoísmo e presunção não estejam implicados em tudo que fazemos,
apesar de nossas ações poderem parecer muito "cristãs" ao observa dor de
fora. Mesmo o amor de uma mãe pelo filho é muitas vezes egoísta
na
104
sua exclusão de outras crianças. Mesmo o sacrifício da vida por outros é muitas
vezes manchado pelo desejo de receber publicidade e louvor, aqui ou no além.
Em vista de tudo isso, somos tentados a perguntar: "De que adianta?" A vida
cristã valeria a pena - mas somos demasiado fracos, egoístas, orgulhosos. Ela
não é para nós!
Esta teria que ser nossa resposta, não fosse o fato de que a vida cristã não
é vivida a partir de nossos recursos próprios, mas do poder e da graça de Deus.
É através desse poder que se torna possível que vivamos a vida cristã dia após
dia, apesar dos fracassos e pecados que sempre nos estorvarão e derrotarão. O
início, o centro e o fim da vida cristã na terra é o perdão de Deus em Jesus
Cristo, conforme nos foi revelado na cruz. Por causa da cruz e do poder daquele
que nela morreu por nós, podemos a cada dia nos tornar novamente cristãos.
Esse tipo de vida cristã não é uma possessão estática que tenhamos obtido para
sempre e agora apenas desfrutemos passivamente. Pelo contrário, ela requer
uma luta constante com os poderes do mal que tentam nos manter em sujeição.
Nunca somos cristãos no sentido de que atingimos o alvo e podemos descansar
sobre os louros obtidos. Estamos sempre nos tornando cristãos.
Essa concepção dinâmica da vida cristã foi expressa de maneira vívida
por Lutero em sua explicação do Sacramento do Batismo, onde diz: "Significa
que o velho homem em nós, por contrição e arrependimento diários, deve ser
afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos, e, por sua vez, sair e
ressurgir diariamente novo homem, que viva em justiça e pureza diante de Deus
eternamente." A vida cristã não é uma retirada do mundo; não é refúgio calmo
em ilha deserta. É conflito e tensão, como diz Paulo: "Porque a nossa luta não é
contra o sangue e a carne, e, sim, contra os principados e potestades, contra os
dominadores deste mundo, contra as forças espirituais do mal, nas regiões
celestes. "48
Nesse combate prevalecemos por causa do poder de Cristo e não somos
derrotados em virtude do recurso de seu perdão diário, que recebemos de
maneira única pelo sacramento da Santa Ceia. É por causa desse recurso que,
apesar de nossa própria fraqueza e incompetência, não temos medo de afrontar
o inimigo, confiando não em nossos próprios poderes, mas no poder de Deus
em Cristo.
Não somos derrotistas quando confrontados com o desafio da vida cristã
em um mundo que crucificou a Cristo. A percepção cristã da ambigüidade da
situação humana e da incapacidade do homem de se libertar dela não é pessi-
mismo. É o tipo de realismo que possibilita uma batalha com êxito. O provável
vitorioso não é o superconfiante, mas aquele que conhece sua própria fraqueza e
seus recursos.
Em nossa era vimos o colapso espetacular de cosmovisões que deposita-
vam sua confiança no homem e seus poderes. O nazismo e o fascismo não
foram vitoriosos, apesar de terem a opinião mais otimista imaginável a
respeito
105
das possibilidades dos povos alemão e italiano. Mesmo nossos próprios sonhos
de paz mundial e prosperidade universal são severamente abalados, por se
basearem em uma concepção excessivamente otimista da racionalidade e das
boas intenções do homem.
Uma vida com sentido só pode ser construída sobre o fundamento firme
de uma análise correta da situação humana. A palavra de Deus nos dá essa
análise correta, mostrando-nos o que o homem pode fazer e o que não pode. Ela
mostra a completa dependência do homem do Deus que o criou, o preserva e
quer salvá-lo.
A vida cristã é existência na presença desse Deus. É cumprimento da lei
pelo poder de Cristo, "que remiu a nós, criaturas perdidas e condenadas, nos
resgatou e salvou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo; não com
ouro ou prata, mas com seu santo e precioso sangue e sua inocente paixão e
morte, para que lhe pertençamos e vivamos submissos a ele, em seu reino, e o
sirvamos em eterna justiça, inocência e bem-aventurança, assim como ele
ressuscitou da morte, vive e reina eternamente."

106
NOTAS

1 Friedrich NIETZSCHE, The Philosophy of Nietzsche, New York, Modem Library,


1927, p. 578.
2 Charles H. PATTERSON, Moral Standards, New York, Ronald, 1949, p. 59.
3 ID., ibid., p. 60.
4 Berirand RUSSELL, Selected Papers ofBertrand Russell, New York, Modern Library,
1927, pp. 14s.
5 Robert BRETALL, A Kierkegaard Anthology, Princeton, N.J., Princeton University,
1947, p. xxvi.
6 As citações bíblicas são baseadas na tradução de João Femeira de Almeida, edição
revista e atualizada no Brasil.
7 Simone de BEAUVOIR, The Ethics of Ambiguity, New York, Philosophical Library,
1948, p. 127.
8 lD., ibid., p. 119.
9 Ibid., p. 159.
10 Rudolf OTTO, Mysticism East and West, New York, Macmillan, 1938, p. 74.
11 ID, ibid.
12 Ibid.
13 RANDALL, BUCHLER & SHIRK, Readings in Philosophy, New York, Bames &
Noble, 1946, p. 263.
14 Gênesis 1.26.
15 BRUNNER, Man in Revolt" London, Lutterworth, 1949, pp. 97-98.
16 Efésios 2.3.
17 Gênesis 11.
18 Mateus 21.33s.
19 Lucas 15.11-32.
20 C. S. LEWIS, Christian Behavior, New York, Macmillan, 1943.
21 Bertrand RUSSELL, Selected Papers, p. 15.
22 Romanos 1.18s.
23 Romanos 1.20.
24 New York, Harpers, 1951.
25 Romanos 1.18-32.
26 Salmos 139.7-10.
27 PASCAL, Penses, Fragmento 434.
28 2 Coríntios 5.19.
29 João 3.16.
30 LUT'ERO, Das Boas Obras, in: Obras Selecionadas, São Leopoldo, Sinodal; Porto,
Alegre, Concórdia, 1989, vol. 2, pp. 97-170, p. 102.
31 ID., ibid., p. 104.
32 Ibid., p. 107.
33 Ibid.
34 Ibid., p. 110.
107
35 Mateus 19.24.
36 Das Boas Obras, p. 120.
37 Ibid., p. 122.
38 Ibid., p. 123.
39 Ibid., p. 124.
40 Mateus 11.5.
41 Apocalipse 21.1-3.
42 Mateus 5.16.
43 Das Boas Obras, p. 126.
44 1 João 4.20.
45 Das Boas Obras, p. 160.
46 Efésios 5.25-28.
47 1 Coríntios 13.3.
48 Efésios 6.12.

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