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GEORGE W. FORELL
ÉTICA DA DECISÃO
INTRODUÇÃO À ÉTICA CRISTÃ
5a edição
(revisada)
Editora
Sinodal
1994
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Traduzido do original inglês Ethics of Decision, © 1955 Fomess Press, Phila-
delphia, Estados Unidos da América.
Editora Sinodal
Rua Amadeo Rossi, 467
93030-260 São Leopoldo - RS
Tel.: (051 ) 592-6366
Fax: (O51) 592-6543
ISBN: 85-233-0175-5
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ÍNDICE
Prefácio .................................................................................................................7
Prefácio para a edição em língua portuguesa .......................................................9
Introdução........................................................................................................... 11
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O Discipulado Cristão ...................................................................................... 76
Integridade ........................................................................................................ 94
Cobiça ............................................................................................................... 96
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PREFÁCIO
Este livrinho foi planejado para constituir uma breve introdução à ética
cristã. Seu objetivo é auxiliar o leitor a atingir uma compreensão mais clara do
Sentido da vida cristã em nossa época. Por essa razão a vida cristã é apresentada
contra o pano de fundo e dentro do contexto de vários outros esforços contem-
porâneos para entender o sentido da existência humana.
Fez-se um esforço, especialmente na primeira parte, para examinar as
alternativas possíveis à vida cristã. É a premissa básica desta abordagem que
toda pessoa, e especialmente toda pessoa instruída, precisa encontrar algum
princípio orientador que lhe possibilite viver uma vida coerente. Esse princípio
de integração pode ser encontrado em muitas ideologias contemporâneas . Em
todo caso, ele determinará a ética da pessoa que o escolher. A fé cristã torna
possível um modo de vida. Ela apresenta uma alternativa às outras ideologias de
nossa era. No mundo moderno, entretanto, freqüentemente essa alternativa
cristã nem mesmo é apresentada. De qualquer forma, não é oferecida como uma
alternativa séria ao "pragmatismo", "naturalismo", "relativismo" ou "positi-
vismo", mas na melhor das hipóteses como um adesivo sentimental da socie-
dade para aqueles que não podem acompanhar a argumentação lógica dos
defensores das outras alternativas. Contudo, como o cristianismo tem sido
durante muitos séculos o único modo de vida verdadeiro para muitas pessoas de
todos os níveis de inteligência, ele merece uma atenção imparcial. Espera-se
que as páginas seguintes contribuam um pouco para esclarecer o modo de vida
que está arraigado na fé de que "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo
o mundo".
O autor gostaria de expressar sua gratidão aos muitos amigos que leram o
manuscrito e fizeram sugestões úteis.
Acima de tudo, o autor agradece à sua esposa, Betty, a quem este livro é
dedicado.
Reconhecimento é devido aos seguintes editores, por sua gentil permissão
para que se fizessem citações de obras protegidas por direitos autorais: The
Macmillan Company, New York: Rudolf Otto, Mysticism East and West, e C. S.
Lewis, Christian Behaviour, The Philosophical Library, New York: Simone de
Beauvoir, The Ethics of Ambiguity; Princeton University Press, Princeton:
Robert Bretall, A Kierkegaard Anthology; Random House, New York: The
Philosophy of Nietzsche e Selected Papers of Bemand Russell; The Ronald
Press Company, New York: Charles H. Patterson, Moral Standards.
Iowa City, Iowa
Dia da Ascensão, 1955 George W. Forell
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PREFÁCIO PARA A EDIÇÃO
EM LÍNGUA PORTUGUESA
Uma das maiores satisfações de ser autor é a oportunidade de comparti-
lhar idéias com um número maior de pessoas do que jamais se poderia encon-
trar pessoalmente. Quando um livro é traduzido para outro idioma, essa opor-
tunidade de compartir é multiplicada mais ainda.
Saúdo a todos aqueles que vão ler este livrinho na língua portuguesa,
como anteriormente pude saudar aos que o estão lendo em japonês. Nos
Estados Unidos o livro está sendo usado em igrejas e escolas como introdução à
ética cristã e como instrumento para relacionar lei e evangelho, as normas
sociais e políticas que regem este mundo com o poder de Cristo que torna os
cristãos capazes de atuar como pecadores perdoados e levar o amor de Deus a ;
todas as áreas da vida humana.
O autor sentir-se-á recompensado se qualquer um de seus leitores encon-
trar, nas páginas que se seguem, ajuda e orientação para as decisões inevitáveis
que constituem a vida.
Iowa City
Março de 1973
George W. Forell
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INTRODUÇÃO
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Isto é igualmente verdadeiro no domínio da economia. Dependemos dos
recursos econômicos de quase todos os países do mundo. Para fazer as roupas
que usamos, os carros que dirigimos, as casas nas quais moramos, utilizam-se
materiais provenientes de todo o mundo. Distúrbios econômicos no Brasil
podem afetar o preço de uma xícara de café para nós. E da marcha dos
acontecimentos no Oriente Próximo pode depender a possibilidade de dirigir-
mos um carro ou não.
As distâncias geográficas reduziram-se à completa insignificância. Tive
um aluno que pilotava um avião ao redor do mundo nos fins de semana e às
terças-feiras estava de volta às aulas como se nunca se houvera ausentado.
Custa menos tempo e esforço, hoje em dia, ir à Europa ou Ásia do que custava
visitar parentes em uma cidade vizinha, há cem anos. Meios de transporte cada
vez mais rápidos unem este mundo em termos geográficos: um mundo que
outrora estava dividido por rios, montanhas e oceanos.
Mas, apesar dessa unicidade material, o mundo está espiritualmente mais
dividido do que nunca. Pode ter sido difícil viajar da Rússia à Grã-Bretanha no
século XVII, mas após a longa jornada as pessoas encontravam outras que
acreditavam nos mesmos valores básicos, que acreditavam que há um único
Deus e que os Dez Mandamentos são a expressão fundamental de sua lei para a
humanidade. Hoje basta atravessarmos o corredor de nosso prédio de aparta-
mentos para encontrar pessoas que vivem em um mundo completamente dife-
rente, no qual não existe Deus nem lei divina, onde imperam apenas o egoísmo,
os instintos animais, a "sobrevivência do mais apto". Muitas pessoas hoje crêem
que "certo" é meramente sinônimo de "útil para seu grupo" e que a lei moral é o
egoísmo codificado das pessoas que estão no poder. Existem tantos mundos
quantos grupos desses que acreditam serem sua própria lei.
A anarquia dos valores dividiu este mundo, materialmente uno, num
número sempre crescente de mundos que absolutamente não se compreendem
uns aos outros. Podemos usar a mesma linguagem científica, depender econo-
micamente uns dos outros e ter condições de viajar rapidamente de um lugar
para outro, porém vivemos cada vez mais em mundos diferentes.
Quando menino, aprendi que os alemães haviam inventado o avião e o
telefone. Nos Estados Unidos, aprendi que os americanos é que os haviam
inventado. Sei que na Rússia se aprende que os inventores foram russos. Pode
não importar realmente quem na verdade inventou esses aparelhos, mas essa
confusão acerca de algo que deveria ser bastante fácil de estabelecer mostra
como nosso mundo está se dividindo em mundos diferentes onde nem mesmo
os "fatos" permanecem constantes. Ser comunista é um crime nos Estados
Unidos e uma virtude na Rússia. Crer no capitalismo é um crime na Rússia e
umá virtude nos Estados Unidos. A democracia social é desaprovada em ambos
os países, mas é o mais adequado na Suécia.
Na verdade, este mundo é unido apenas materialmente. Espiritualmente
está mais dividido do que nunca na história. A causa de nossa confusão é o caos
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dos valores e dos critérios morais. Isto se mostra claramente no âmbito da fé:
não existe uma fé prevalecente, que abranja toda a nossa civilização e a domine.
Houve uma época, na Europa e em certas partes dos Estados Unidos, em que se
podia dizer com segurança que o cristianismo dominava as vidas de toda a
população. Obviamente isto não significa que naquele tempo todos fossem
cristãos. Mas na Europa do século XII não havia nenhum aspecto da vida que
não estivesse, de alguma forma, relacionado com valores cristãos; o mesmo
poderia ser dito a respeito da Genebra do século XVI, da Escócia ao tempo de
John Knox ou das colônias fundadas pelos "pilgrim fathers", os puritanos
ingleses que emigraram para os Estados Unidos.
Não é só o cristianismo que ofereceu tais estruturas de valores que
dominaram a cultura em períodos diversos da história; o maometismo, o hin-
duísmo e o budismo fizeram o mesmo. Houve muitas épocas em que o mundo -
todo o território que se sabia existir, o mundo conhecido na época - foi
dominado por uma única fé.
O mundo contemporâneo não está realmente dominado por tal fé. O
hinduísmo não domina a Índia. Quando se conversa com um hindu moderno,
ele parece tão secularizado como seu interlocutor norte-americano. A estrutura
de valores cristãos não domina a Europa ou os Estados Unidos. Isto é apenas
uma ilusão conveniente. Não existe uma fé dominante e abrangente que daria
sentido à vida de todos os seres humanos em toda parte.
Mas novamente estamos envolvidos em uma contradição peculiar. En-
quanto falta essa fé una, temos mais crenças do que as pessoas de qualquer
outra época - nenhuma fé real, mas numerosas crenças substitutivas. Isto é fácil
de observar em outras pessoas. Os alemães que acreditavam na raça e na
terra - raça e terra alemãs, é claro - foram um bom exemplo. Eles substituíram
sua fé cristã anterior pela fé na sua raça e em um homem, Hitler, que era
praticamente deificado.
O mesmo pode ser dito a respeito da Rússia. O comunismo é uma religião
que tem tudo o que qualquer religião sempre teve, exceto um deus verdadeiro;
é uma religião substitutiva. Entre nossos contemporâneos, muitos se tomaram
comunistas porque o ser humano precisa de uma religião e a educação deles
havia destruído sua fé em todas as religiões tradicionais. Homens como
Chambers, Hiss ou Klaus Fuchs não se tomaram comunistas por dinheiro ou
prestígio; estes e muitos outros se tornaram comunistas porque o ser humano é
um ser crente. Se o seu coração não estiver tomado pela fé cristã, alguma outra
coisa ocupará seu lugar. No caso de Chambers, Hiss e Fuchs foi o comunismo.
Alguns desses convertidos, desiludindo-se com a religião comunista, es-
creveram um livro que expressa esta desilusão: The God That Failed (“O Deus
que Fracassou”). Alguns dos autores são Richard Wright, Arthur Koestler e
Ignazio Silone. Todos eles revelam que o mundo que não tem uma fé prepon-
derante será dominado por religiões sobressalentes, as crenças substitutas que
tomam o lugar da fé verdadeira.
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É típico de nossa confusão de valores o fato de que a fé em Deus foi
substituída pela fé em vários expedientes, idéias e personalidades humanas.
Pessoas que não mais crêem no Salvador forjam seus próprios salvadores, os
adoram e glorificam com zelo idólatra. Essas crenças substitutas podem apare-
cer em versões diferentes nos diversos lugares do mundo, mas em toda parte se
observa o mesmo caos de valores. A confiança no ser humano e nas suas
conquistas substituiu uma fé em Deus integradora e unificadora.
Às vezes um forasteiro pode perceber isto melhor do que nós. O
professor Arnold Nash certa vez falou a respeito do filho de um chefe africano,
um jovem muito brilhante, que viera estudar na Inglaterra. Depois de algum
tempo no país, ele disse a Nash que os ingleses eram politeístas. Esta era sua
opinião literal. O ser humano moderno tem muitos deuses, muitas crenças que
coexistem, sem que haja uma fé dominante que controle a tudo. Esse jovem
intelectual africano contou que encontrara pessoas que eram bons membros de
Igreja, mas que diziam: "Negócio é negócio." O deus dos negócios existia, com
os seus preceitos, ao lado do Deus da Igreja dessas pessoas. Elas prestavam
culto em ambos os santuários, só que com muito mais freqüência no santuário
do deus dos negócios. Existem também pessoas que dizem: "Política é política."
Quanto ao mais são membros da Igreja, mas a política tem suas próprias regras
e valores, que não se encontram no Novo Testamento. E a gente não deve
misturar a política com o cristianismo. Há outras que afirmam: "Educação é
educação." E uma tarefa completamente independente de todas as outras; e
certamente o cristianismo não deveria ser introduzido de modo a confundir o
trabalho dos educadores!
Esse jovem africano encontrara uma senhora que entalhava pequenas
obras em madeira. Ele perguntou por que ela o fazia: queria vendê-las? Não!
Queria colocá-las em exposição? Não! Ela explicou: "Sabe, pratico a arte pela
arte. Você não entende?" E o africano, que não entendeu, percebeu que o
homem branco tinha tantos deuses, que adorava simultaneamente, quantos
tinham as tribos politeístas da África: negócios, política, educação, arte e muitos
outros.
É verdade que não temos a fé que faria de nossa vida um todo. Substituí-
mo-la por muitas crenças e diversos critérios substitutivos que fazem de nossa
vida um caos. Como esses vários deuses e suas exigências não concordam uns
com os outros e não sabemos a quem seguir, tomamo-nos confusos e divididos
contra nós mesmos. Apesar dessa confusão óbvia, ou talvez mesmo por causa
dela, fala-se muito, hoje, em todos os lugares, em preservar os valores cristãos e
nossa civilização cristã.
Nos Estados Unidos dos dias atuais não é mais elegante ser "ateu" ou
mesmo "agnóstico". Admitir que não se crê em Deus ou que não se tem certeza
de crer no cristianismo estigmatiza a pessoa quase como subversiva ou inimiga
da nação. Defensores da fé aparecem em toda parte, às vezes em lugares bem
inesperados. Entre políticos, homens de negócios e educadores, tomou-se moda
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ser religioso. Mas, em vista da óbvia confusão de valores e de crenças,
deveríamos perguntar: que "religião" é essa, pregada tão agressivamente em
nosso tempo? Essa ênfase na religião e nos valores cristãos acaso significa que
realmente queremos levar a sério a vida cristã e seguir sinceramente a liderança
de Jesus Cristo? Ou essa ênfase é apenas um esforço para ocultar a profunda
incerteza concernente a todos os valores morais que nos ameaça e apavora?
A fim de responder de modo significativo a esta pergunta é necessário
examinar a natureza da vida cristã. Que é esse cristianismo que todos defendem
hoje em dia? Tem ele alguma relação ou semelhança com a fé histórica da Igreja
e com o testemunho da Bíblia? Qual é a resposta cristã ao problema dos
critérios ou padrões morais? Sob que aspectos a vida cristã difere .da vida
apregoada por aqueles que não crêem no cristianismo? E não devemos nos
iludir. Apesar da nova popularidade do cristianismo, muitas outras religiões
podem ser encontradas nos Estados Unidos. Essas religiões que competem com
a fé cristã não são necessariamente conhecidas de modo explícito como reli -
giões. Não é o xintoísmo, o budismo ou o maometismo que está empolgando a
imaginação do ser humano moderno no Ocidente. Mas existem alternativas
religiosas para o cristianismo. O naturalismo é uma dessas alternativas. Sua
deusa é a natureza, seu credo é que a natureza não pode fazer o mal e o seu
critério ético é que tudo o que é natural é bom. O relativismo 'é outra religião
dessas. Seu deus é o ser humano, e seu critério ético é que tudo o que o ser
humano considera bom é de fato bom porque ele assim o considera. Existem
ainda muitos outros modos de vida que nos são oferecidos como alternativas
para o modo cristão.
Devemos perguntar-nos: "que torna cristã uma vida"? Vida cristã é o
mesmo que vida feliz, vida bem ajustada, vida normal? Quais são as caracte-
rísticas, os traços distintivos da estrutura moral cristã? É cristianismo o mesmo
que "americanismo", e é a vida cristã o mesmo que o "modo de vida americano"?
Nas páginas que se seguem fez-se um esforço para examinar a vida cristã
e chegar a uma compreensão mais clara do seu significado. Trata-se de uma
tentativa de ver a vida cristã em contraste com outros modos possíveis de
organizar a vida de maneira significativa. Queremos observar todas as alterna-
tivas: aquelas que estão claramente fora do cristianismo, bem como aquelas que
se infiltraram tão profundamente que recebem o nome de cristianismo. Toda a
evidência indica que o ser humano moderno terá que escolher uma fé pela qual
viverá. O caos presente parece ser a preparação para essa escolha. Seja qual for
nossa opção no final das contas, o estudo das alternativas oferecidas ao cristia-
nismo deveria tornar mais inteligente nossa decisão.
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PARTE I:
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A VIDA COMO DECISÃO
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de 30 de novembro até 25 de dezembro, p. ex., que parece uma eternidade
quando temos 6 anos, parece incrivelmente mais curto quando temos 30. Nota-
se também que pessoas idosas têm uma tendência de se referir a todo tempo
passado como "ainda ontem" ou "no outro dia". Essa aceleração que faz o
tempo fluir cada vez mais depressa é particularmente desagradável porque nos
dá cada vez menos tempo para tomar nossas decisões.
A vida não apenas exige decisão; a vida é decisão. O próprio ato de
permanecer vivo implica decisão diária, e até mesmo suicidar-se exige decisão.
O ser humano não pode evitar as decisões. Não pode escapar de sua liberdade.
Mas agora surge a pergunta importante: existe algo que possa nos guiar nessas
decisões que têm que ser tomadas todos os dias, horas, minutos de nossas vidas?
Existe algum critério ou padrão com o qual se possa medir o valor dessas
decisões, sua boa ou má qualidade? Se quisermos saber a distância de nossa
casa à rua, existe um modo bastante simples de descobri-lo. Podemos pegar
uma trena e medir a distância exata. Podemos quantificá-la em metros e
centímetros. A distância assim estabelecida estará fora de dúvida; qualquer
pessoa que duvide de nossa palavra poderá tomar o mesmo instrumento de
medição e verificar por si. O padrão que estamos usando é a trena, que está
dividida em unidades universalmente aceitas. Parece ser um padrão absoluto, e
seus resultados estão fora de dúvida.
De modo semelhante podemos estabelecer o peso de um carro, a veloci-
dade de um avião e muitos outros fatos. Temos padrões: a libra ou o grama, a
milha por hora ou o quilômetro por hora; com a ajuda desses padrões e de
instrumentos de medição comumente aceitos, os fatos que buscamos podem ser
estabelecidos com exatidão.
Mas e as decisões que temos de tomar a cada minuto de nossa vida?
Existe algum padrão pelo qual possam ser medidas com precisão? Por exemplo,
você pode apresentar razões para sua decisão de ler estas páginas? Por que é
que você está lendo uma introdução à ética ao invés de um romance policial?
Por que você está lendo ao invés de ir ao cinema ou ver televisão? Como foi
que você chegou a esta decisão? Houve algum critério importante que você
usou para se orientar? Igualmente, quando você escolhe uma pessoa como
amiga, em vez de outra, sua decisão é guiada por algum critério de atratividade?
Acredito que poucos de nós diriam que tomamos essas decisões por puro
acaso, como resultado de um "acidente". Diríamos, antes, que temos certos
critérios ou padrões do que é importante ou não, do que é atraente ou não, do
que é certo ou errado. Mas que espécie de critérios são esses? Podem resistir à
luz de um exame sóbrio e minucioso?
Para os que ainda estejam confusos com esta discussão sobre nossos
critérios para decisão, permitam-me outro exemplo. A pele de um homem -
chamemo-lo de A - está sendo penetrada por uma faca segurada por um
homem a quem chamaremos B. O resultado é a morte de A. Seria possível
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descrever este evento simples fisiologicamente, do ponto de vista de A ou
B. Ele poderia ser descrito fisicamente, do ponto de vista da força dispendida e
das calorias gastas por B. Existem muitas maneiras de descrever cientificamente
o que aconteceu. Mas, para que possamos saber se a ação de B sobre A é um
assassinato ou, digamos, uma operação malograda, precisamos fazer uma inves-
tigação detalhada dos motivos de B. Em outras palavras, temos de lidar com as
decisões que induziram sua ação e aplicar algum critério a essas decisões.
A diferença entre uma ação boa e uma ação má parece depender quase
inteiramente dos motivos que guiam a decisão da pessoa atuante, e não de
qualquer descrição, científica ou de outro gênero, da ação em si.
A grande confusão de nossa época parece ter sua origem em nossa
capacidade de descrever cientificamente quase todos os processos que ocorrem,
e em nossa incapacidade de entender as razões pessoais subjacentes a todas as
nossas ações. Vemos ao nosso redor pessoas tomando decisões, mas temos
dificuldades em encontrar algum modo de medir o valor das decisões que elas
tomam
Na área mais importante de nossa vida, onde diariamente estamos envol-
vidos em decisões, somos singularmente incapazes de descobrir quaisquer re-
gras ou critérios bem definidos que pudessem ser comparados às regras e
critérios objetivos que governam o comportamento dos elementos do universo
físico. Conhecemos a lei da gravidade, que funciona conforme as previsões;
mas temos dificuldade de encontrar uma lei similarmente confiável no campo
da decisão. Que devemos fazer?
Neste ponto algumas pessoas lançam suas mãos para o alto, horrorizadas,
e dizem: "Não façamos nada. A situação é desesperadora. Não existe resposta
para o problema. Vamos ignorá-lo; vamos continuar vivendo sem fazer pergun-
tas embaraçosas sobre os motivos e decisões implicadas em nossa vida."
Algumas pessoas ficam muito zangadas quando se tenta interrogá-las
acerca de seus motivos. Mesmo pacifistas manifestam um surpreendente espí-
rito combativo quando sua motivação e seus critérios éticos são questionados.
Não existe ninguém que goste de ser interrogado acerca dos assuntos que
considera evidentes por si mesmos a todas as pessoas de boa vontade, o que
geralmente quer dizer: todas as pessoas que casualmente concordam com ele. O
filósofo grego Sócrates descobriu que pessoas gentis e liberais como seus
compatriotas atenienses, quando questionadas com suficiente persistência
acerca de suas suposições básicas, não hesitariam em matar seu questionador.
Isto deveria servir de aviso para nós. É um assunto delicado. Sempre é perigoso
fazer perguntas, mesmo a nós próprios, naquele aspecto da vida que está
atulhado com preconceitos e superstições que mantivemos por tanto tempo, que
sua própria idade lhes deu autoridade.
No entanto, se desejamos avançar para uma compreensão mais clara da
vida cristã, teremos de procurá-la em meio à vida e sempre sobre o pano de
fundo de outras tentativas de entender o sentido da vida.
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Devemos sempre ter em mente que os critérios ou padrões usados para
avaliar decisões estão baseados num compromisso com alguma fonte básica de
valor. Veremos que há muita discordância quanto à natureza dessa fonte básica.
Alguns a vêem no ser humano, outros na natureza, outros no processo dialético,
outros no princípio da sobrevivência dos mais aptos, outros ainda na verdade.
Alguns a chamam de Deus. Observaremos que o caráter dos critérios vai variar
muito conforme a natureza dessa fonte básica, ou "deus". Mas em todos os
casos lidamos com um compromisso inicial. Obviamente, existem pessoas em
nossa época que acreditam poder posicionar-se à margem da corrente da vida e
ser espectadores descomprometidos. Mas parece óbvio que assumir essa posi-
ção também é o resultado de uma decisão baseada em um critério de avaliação.
Ninguém pode escapar desse compromisso fundamental.
Qual é o compromisso subjacente à presente investigação? Seria realmen-
te uma tolice sustentar a necessidade de compromisso e então proceder como se
a necessidade se aplicasse apenas aos outros, e não a nós. Nossa investigação
sobre a vida cristã está baseada no compromisso com Jesus Cristo como 0
critério absoluto para as decisões. O significado concreto desse compromisso
com a pessoa de Jesus Cristo deveria se tornar mais claro no curso de nossa
exposição.
A vida cristã como resposta à procura do ser humano por um critério para
a decisão só é significativa se tomarmos o tempo de investigar a questão de
maneira profunda e completa. A vida cristã como resposta à procura do ser
humano por uma vida significativa não tem valor para a pessoa que nunca
procurou. A vida cristã é uma cura para a doença da falta de sentido, mas, para
avaliar a cura - para que estejamos dispostos a tomar o medicaménto - é
essencial que reconheçamos nossa doença. Parece, de fato, que um dos grandes
problemas com que se defronta o cristianismo em nossa era é que ele oferece
uma cura radical a pessoas que nem mesmo acreditam estarem doentes. Não é
de admirar que elas não dêem valor à cura!
Nada é mais inútil do que a resposta a uma pergunta que nunca foi feita.
Para que a resposta tenha importância, teremos de colocar a pergunta cuidadosa
e conscienciosamente. A pergunta que teremos de fazer estará centrada no
assunto da ética. Que é certo e que é errado? Existem critérios para as decisões
que o ser humano deve tomar, ou são suas decisões igualmente sem sentido e
sua vida, uma grande piada cósmica onde afinal tudo é inútil?
ESTÁGIOS PRÉ-ÉTICOS
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Essas tentativas artificiais de retornar a um estágio de existência que já
ultrapassamos são esforços patéticos de nossa época para escapar aos rigores da
decisão. São reflexos significativos do caráter de nosso tempo. Deveríamos
revelá-los implacavelmente como o que são: tentativas de esquivar-se de ser o
que não podemos deixar de ser, tentativas de escapar de nossa responsabilidade
como seres humanos.
Mas, antes de pormos de lado o estágio de imediação como um estágio
que ultrapassamos e que já não nos diz respeito, deveríamos lembrar-nos de que
há muitas decisões cotidianas que não são tomadas num nível mais elevado do
que este. Todos nós, de certa forma, continuamos com parte de nosso ser no
estágio sub-humano da imediação.
O segundo estágio do comportamento humano que também pode ser
descrita como pré-ético é o estágio do costume. Muitas pessoas tomam quase
todas as suas ditas decisões não como resultado de qualquer esforço de inteli-
gência, mas meramente como tentativa de conformar-se ao costume predomi-
nante. Em muitas sociedades e entre inúmeras pessoas de nossa própria socie-
dade, a pergunta não é: "Esta ação é boa ou má?", ou: "Esta decisão está certa
ou errada?", mas: "É isto o que todos fazem?" Boa parte do que passa por bom
poderia ser descrito mais adequadamente como sendo a coisa costumeira em
nossa sociedade específica. Há certa quantidade de decisão implicada aqui, a
saber, a decisão de obedecer ou desobedecer aos costumes. Essa decisão, no
entanto, não é tomada num nível elevado, pois nós não avaliamos os costumes,
mas os aceitamos sem questioná-los seriamente.
Obedecer ao hábito é, obviamente, com freqüência muito útil e
inteligente. Em muitos casos o costume é o bom senso e a experiência
acumulados de nosso grupo social, e quem segue o costume em geral se
beneficia inconscientemente das percepções de seus ancestrais. Seria de fato
tolice rejeitar todos os costumes apenas porque foram aceitos sem crítica em
outros tempos. Sua aceitação ou rejeição por outros não deveria de modo algum
validar ou invalidar os mandamentos do costume. No entanto, um dos pontos
fracos básicos da ação no nível do hábito, do ponto de vista da vida cristã, é que
muitas vezes assuntos muito importantes e assuntos absolutamente sem
importância são de igual modo costumeiros. O costume em si não nos fornece
os critérios que nos capacitariam a distinguir entre o que se situa na periferia da
vida e o que é verdadeiramente essencial.
Em certas partes dos Estados Unidos é hábito ir à igreja aos domingos.
Qualquer pessoa que seja alguém vai à igreja. De outra forma, entretanto, a vida
da comunidade não indica que o amor de Cristo é uma influência dominante. Ir
à igreja se tornou um hábito social, em vez de ser a adoração do Cristo vivo.
Mas, nas mentes das pessoas que agem no nível do hábito, a obediência ao
costume de ir à igreja se identifica com a fé cristã. Dessarte um aspecto
marginal da vida cristã se torna o critério pelo qual se mede a saúde desta vida.
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Como resultado, freqüentemente vivemos em um paraíso ilusório, porque con-
fundimos obediência ao costume com vida cristã.
Uma situação similar prevalece no campo da política. Certas afirmações
a respeito da liberdade e igualdade dos seres humanos são costumeiras neste
país. Sem qualquer reflexão, a maioria dos americanos afirmará que acredita
que os seres humanos são iguais e livres. Todavia, para muita gente tal afirma-
ção não é o resultado de nenhuma decisão ou convicção pessoal, mas meramen-
te a repetição de expressões aceitas, ditadas pelo hábito. Sempre que tentarmos
medir a saúde de nossa democracia simplesmente pelo número de pessoas que
usarão as costumeiras expressões democráticas da boca para fora, estaremos
confundindo costume com decisão pessoal, e nossa avaliação será extremamen-
te imprecisa.
Visto que muito de nossa moralidade cotidiana não é resultado de
decisão ética, mas mera imitação do comportamento observado em outros,
vivemos grande parte de nossa vida moral em um estágio pré-ético. Precisamos
nos dar conta de que todos nós continuamos nesse estágio do costume, mesmo
que tenhamos tentado conscientemente levar a sério a vida cristã.
Existem numerosos exemplos notáveis do poder do hábito na vida do cristão.
Por exemplo, a maioria dos protestantes, depois de assistir a um ofício em uma
igreja católica romana, dirão que não gostaram da celebração. Quando
tentarmos chegar à raiz dessa antipatia, aqueles de nós que têm algum interesse
em teologia em geral ficarão gravemente decepcionados. Usualmente as obje-
ções principais à missa católica romana têm a ver com o uso do latim, o
ajoelhar-se, as vestes, o incenso ou os acólitos. Algumas ou todas essas práticas
podem ser contrárias a nossos costumes, mas elas estão na periferia da teologia.
Suponhamos que um sacerdote católico romano, usando as vestes próprias a
nosso grupo particular, pregasse do púlpito de uma de nossas igrejas e exaltasse
a salvação pelas obras e a necessidade de nossa cooperação em nossa salvação.
A maioria dos fiéis ficaria menos chocada do que se ouvisse um sermão
completamente evangélico sobre a salvação pela graça somente. feito por um
pregador que então passasse a usar um incensório.
Isso pode ajudar-nos a compreender quanto de nossa vida diária,
mesmo na Igreja, é vivida no nível do costume. Em um estudo da vida cristã,
devemos perguntar constantemente se estamos falando a respeito do evangelho
de Cristo ou a respeito dos costumes e hábitos do nosso grupo social.
Freqüentemente, e em especial no campo da ética, os costumes morais do nosso
grupo se confundiram completamente com o evangelho do Senhor Jesus Cristo.
Dizemos "comportamento cristão" e muitas vezes nos referimos ao
comportamento de americanos brancos, da classe média. Esquecemo-nos de que
nosso Senhor Jesus Cristo questionou e derrubou muitos dos mais venerados
costumes de seu tempo.
O Cristo que comia com traidores e prostitutas, que desrespeitou as leis
religiosas protegendo o sábado é, se levado a sério, um inimigo perigoso de
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todos os nossos costumes e preconceitos morais. Perante ele nossas ações não
podem ser defendidas meramente apelando para precedentes. Deste ponto de
vista torna-se claro que o estágio do costume, como o estágio de imediação, é
um estágio pré-ético.
ÉTICA PRUDENCIAL
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atingir os ouvidos do tirano, para lançar terror no seu coração; quando eles
chegavam a seus ouvidos, soavam como doce música.5
Antes de examinarmos um pouco mais de perto dois tipos de ética estéti-
ca, devemos lembrar-nos mais uma vez que o cristianismo pode ser
destituído do seu sentido último se lhe for dado o tratamento estético.
Quando pensamos em alguns de nossos hinos e em algumas de nossas
pinturas, podemos notar que nós cristãos tentamos escapar ao horror da
decisão pró ou contra o Filho crucificado de Deus transformando seu
sofrimento esteticamente e fazendo dele algo diferente do homem de
dores, do servo do sofredor de Isaías. Lembrando Isaías 53.2,3:
Ele não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia
que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem
de dores e que sabe o que é padecer; e como um de quem os homens escondem o
rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso.6
Compare isto com sua imagem favorita de Jesus, e pergunte a você
mesmo: estarei envolvido em uma fuga estética da decisão? Quero uma
alternativa diferente de "Cristo crucificado" ou "ausência de sentido"? Na
maioria dos casos de fato queremos uma alternativa diferente. A
cristandade tem sempre estado em perigo de escapar do discipulado do
Cristo vivo para a adoração de algum belo salvador.
Agora, porém, algumas breves palavras sobre dois tipos específicos de
ética estética. A ética estética pode se ocupar do ser, da pessoa ou personalidade
e seu desenvolvimento; ou pode se ocupar da existência, ação e decisão. Para
fins de classificação, daremos à primeira o nome de ética de auto-realização.
Aqui o bem é aquilo que ajuda a produzir o desenvolvimento mais completo da
personalidade. O "eu" não é apenas o corpo, mas também a mente; ele inclui
também nossos amigos, colegas e todas as coisas e acontecimentos ao nosso
redor que fazem de nós o que somos. Quanto mais eu compreender esse ser na
medida em que toca minha personalidade, tanto maior será meu eu. Minha
tarefa ética é aumentar e integrar meu eu tanto quanto possível. Quanto mais eu
souber, tanto maior se tomará meu eu e tanto mais significativa se tornará minha
vida. A meta da ética de auto-realização é o desenvolvimento da personalidade,
i. é, uma personalidade mais inclusiva, que exista em harmonia com todas as
outras personalidades. O indivíduo deve se perder no eu universal. A pergunta
sobre o sentido último da vida e personalidade é ignorada.
Um tipo diferente de ética estética é sugerido pelo moderno existencialis-
mo ateísta. Esse movimento enfatiza a liberdade e responsabilidade do homem e
encontrou seu mais famoso porta-voz no francês Jean Paul Sartre. Embora os
existencialistas protestassem com veemência se fossem classificados como de-
fensores de uma ética estética, tal classificação parece justificável por uma série
de razões.
33
Os existencialistas não crêem que suas ações tenham algum sentido últi-
mo, porque a própria vida não tem sentido último. Como diz Simone de
Beauvoir: "O homem se realiza dentro do transitório, ou não se realiza." Em
outras palavras, nossas ações devem ter sentido para nós agora; não existe outro
lugar, inferno ou céu, após a revolução ou após a aceitação mundial da livre
iniciativa, onde tudo correrá bem.
As pessoas que acreditam em um futuro no qual todas as dificuldades
desaparecerão podem justificar suas aflições e sacrifícios como meios para esse
futuro glorioso. O existencialismo nega completamente tal futuro. Não existe
meta na vida, exceto a vida como é vivida agora. Diz Madame de Beauvoir: "Se
divisão e violência definem a guerra, o mundo sempre esteve e sempre estará
em guerra; se o homem está esperando pela paz universal a fim de estabelecer
sua existência de modo válido, vai esperar indefinidamente: nunca haverá
nenhum outro futuro. "8 O bem é ação, a afirmação da liberdade humana sobre
tudo o que tenta bloqueá-la. A vida ética é "querer liberdade" para si e para
todos os homens. É vivendo ao máximo que vivemos melhor. A decisão e a ação
são autojustificadoras. Madame de Beauvoir diz mais:
34
cristão transformando a Igreja num meio de ação por amor à ação. Elas não
querem perguntar se o cristianismo é verdadeiro; querem fazer coisas. Algumas
das coisas que querem fazer são muito elogiáveis: querem eliminar favelas,
construir hospitais, reabilitar alcoolistas, abolir o alcoolismo e o crime. Mas no
lufa-lufa de todas as suas atividades elas nunca encontram tempo para pergun-
tar: por quê? Por que eliminar favelas? Por que trabalhar pela justiça social?
Essas perguntas elas ignoram. Fogem da decisão para a ação. A atividade -
qualquer atividade - se torna a substituta da decisão responsável. Em conse-
qüência, essas pessoas confundem o importante com o sem importância, e
perdem toda a oportunidade de viver uma vida cristã significativa. Estão tão
ocupadas em toda parte que nem mesmo podem ouvir o que Cristo está tentando
lhes dizer em sua palavra.
A ética da auto-realização e da atividade pela atividade podem ser encon-
tradas bem no coração da cristandade.
ÉTICA IDEALISTA
36
Justiça: "O que eu julgo certo deve, a menos que eu esteja errado, ser julgado
certo por todos os seres racionais que julguem verdadeiramente o assunto."
Mesmo um exame muito superficial dessas máximas revela que elas são
vagas e sujeitas a um sem-número de interpretações. Ainda que duas pessoas
aceitassem esses critérios, sua interpretação dessas regras gerais tornaria seus
critérios pessoais bem diferentes.
Apesar de todas as dificuldades óbvias da "ética intuicionista", mesmo
um filósofo como Henri Bergson acreditava que existem experiências suprain-
telectuais que estão na base dos juízos morais de heróis e santos. No entanto, o
caráter inconstante da consciência humana e sua sensibilidade variável tomaram
difícil a defesa do ponto de vista dos intuicionistas. Mesmo que concordás-
semos com os críticos do intuicionismo de que tais regras de certo e errado que
são acessíveis a todos os homens através da consciência são difíceis de estabe-
lecer, isto ainda não significaria que essas regras não existam. Há uma diferença
importante entre a afirmação de que existe algo assim como certo e errado
independentemente dos desejos e opiniões humanas e a afirmação dos intuicio-
nistas de que esse conhecimento do certo e errado é facilmente acessível e pode
ser obtido com a ajuda do senso moral.
39
A BUSCA RELIGIOSA DE VALOR
40
tornar essa bondade de Deus real em minha vida? Admitindo que minha
vida teria sentido se estivesse em afinidade com Deus, que posso fazer para
atingir esse fim? Como posso chegar à conformidade com Deus?
Essa pergunta tem sido respondida de modo diferente por várias religiões,
e às vezes a mesma religião deu respostas diferentes em épocas diferentes. Mas
o problema tem sido sempre o mesmo: admitindo que Deus é o padrão absoluto
para uma vida significativa e moral, como posso fazer com que minha vida
esteja em concordância com sua vontade? Esta é a pergunta milenar da busca
religiosa de valor. Confrontamo-nos com respostas humanas a essa pergunta
quando vemos um faquir hindu em seu leito de pregos, a dança ritual de uma
tribo africana ou as manifestações ruidosas de uma reunião de pentecostais. O
eremita sobre seu pilar no Egito e o mendigo religioso de burel na estação
Grand Central em Nova Iorque, o soldado maometano e o cruzado que luta
contra ele, o missionário-médico cristão e o nativo africano que mata seus filhos
gêmeos- todos estão dando sua resposta à pergunta: se Deus é Deus, que deve
fazer o homem para viver a vida boa?
Para o bem da simplicidade, podemos dividir todas as respostas humanas
a essa pergunta em três grupos. Em primeiro lugar, há aqueles que acreditam
poder encontrar o sentido religioso último de suas vidas pela disciplina da
vontade. Em segundo lugar, há aqueles que crêem poder encontrar o sentido da
vida através de exercícios da alma. Em terceiro lugar, há aqueles que acreditam
que o sentido último da vida pode ser encontrado mediante o intelecto. Essas
três abordagens são comumente conhecidas como legalismo, misticismo e ra-
cionalismo.
LEGALISMO
42
aquele que o profanar, morrerá; pois qualquer que nele fizer alguma obra
será eliminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, porém o sétimo dia
é o sábado do repouso solene, santo ao Senhor; qualquer que no dia do sábado
fizer alguma obra morrerá."
Esta era uma das leis da aliança de Deus, e a relação do homem com
Deus dependia da obediência a essa lei. Por essa razão os rabinos judeus logo
começaram a estabelecer interpretações dessas leis que visavam impedir a
transgressão do mandamento. Por exemplo, um judeu ortodoxo não viaja no
sábado. Mesmo que a jornada seja claramente um passeio, ela é proibida,
porque constituiria uma quebra do mandamento do sábado. Da mesma forma,
um judeu ortodoxo não liga uma luz elétrica no sábado, pois mesmo esse ato
simples é considerado trabalho, sendo, portanto, proibido. Ele não carrega nada,
nem mesmo um lenço, no sábado, pois isso também seria trabalho e uma
transgressão da lei.
Ilustrações semelhantes poderiam ser dadas com referência a todos os
outros mandamentos. O aspecto importante de que devemos nos lembrar é que
certo e errado aqui são determinados "legalmente". Conformidade com a lei
divina é certo, sua transgressão é errado. E essa lei é um código acessível a
todos os homens. Para o legalista o problema: "Que é certo?" não existe. Seu
problema principal é, antes, o da observação exata das leis que estão estabele-
cidas como certas. Considera-se óbvio que os homens podem observar essas
leis. Além disso, "advogados religiosos" desenvolvem sistemas que tomam a
observância dessas leis um pouco menos dificultosa. Por exemplo, inventaramse
maneiras de viajar mais do que a distância permitida no sábado. De modo
semelhante, é possível carregar um lenço atando-o ao redor do pulso, onde
constitui uma peça de vestuário, e assim contornar a proibição da lei do sábado,
caso se necessite de um lenço.
A religião judaica do tempo de Jesus tinha formalizado completamente a
vida ética. A obediência a um código havia tomado o lugar de qualquer
preocupação verdadeira com a justiça e retidão. Dava-se mais atenção à obser-
vância do sábado do que ao amor e à misericórdia, e nosso Senhor foi criticado
severamente por curar doentes no sábado.
MISTICISMO
44
Sou o mastro, o leme, o timoneiro e o barco. Sou o recife de coral sobre o qual
ele soçobra.
Sou a árvore da vida e o papagaio em seus galhos, silêncio, pensamento, língua e
voz.
Sou o sopro da flauta, o espírito do homem, sou a centelha na pedra, o reflexo de
ouro no metal.
A vela e a mariposa volitando ao seu redor, a rosa e o rouxinol ébrio de sua
fragrância.
Sou a cadeia do ser, o círculo das esferas, a escala da criação, a ascensão e a
queda. Sou o que é e não é. Eu sou - ó Tu que sabes, Jalaluddin, ó dize-o - sou a
alma em tudo.10
Mais tarde:
Mais precioso do que o precioso, eu sou ainda o maior, sou o Todo em sua
completa plenitude; sou o mais antigo, o Espírito, o Senhor Deus. De brilho
dourado sou e divina forma, sem pé nem mão, rico em poder inimaginável. Visão
sem olhos, audição sem ouvidos, livre de toda forma, eu conheço mas a mim
ninguém conhece. Pois eu sou Espírito, sou Ser.12
É crença característica dos racionalistas que "o bem" ou "Deus" pode ser
alcançado pelo método do pensamento racional, pela lógica e pelo processo
dialético. É pela razão, e não pela lei ou pelo sentimento, que a vida significa-
tiva, i. é, a vida boa, pode ser atingida.
Por causa dessa insistência no pensamento claro e na lógica, o caminho
racionalista para Deus nunca foi tão popular como o “caminho do sentimento”
ou mesmo o "caminho da lei". Qualquer pessoa pode ficar emocionalmente
intoxicada, sob orientação adequada; e quase qualquer pessoa pode obedecer a
certas leis, sé elas forem suficientemente simples; mas nem todas podem pensar
corretamente ou mesmo seguir uma argumentação lógica. É este fato que
sempre fez do racionalismo religioso o método de uma minoria.
Assim como os judeus fornecem um exemplo de legalismo e os hindus
um exemplo de misticismo, da mesma maneira os gregos podem ser descritos
como um povo particularmente dedicado à senda da razão. Foi Sócrates, o
grande mestre grego, que acreditou ser o mal essencialmente o mesmo que a
ignorância. Isso significa que as pessoas poderiam ser libertadas do mal se
pudessem apenas ser libertadas de sua ignorância. Durante toda a sua vida,
Sócrates tentou pôr em prática essa crença ensinando, fazendo a seus contem-
porâneos perguntas destinadas a revelar e desfazer a ignorância humana. Ele
acreditava sinceramente que a maldade é prejudicial a quem a pratica. Reduzida
a suas implicações mais simples, essa opinião era o resultado do seguinte
processo de raciocínio: o homem mau torna más as pessoas em seu redor. São as
pessoas más, e não as boas, que lhe fazem mal. Se você toma maus aos que o
cercam, essas pessoas que você perverteu irão, no fim, lhe causar dano. Assim,
sendo mau, a longo prazo você prejudica a si mesmo. Como Sócrates explicou
em vão a seus juízes em sua Apologia, simplesmente não é inteligente tomar
más as pessoas.
Para Sócrates e outros pensadores gregos Deus era o intelecto supremo, a
razão, o logos do universo. Tornando-nos racionais é que nos tornaríamos
semelhantes a Deus; a filosofia seria a estrada para a bondade. Os pensadores
gregos acreditavam firmemente que a virtude poderia ser ensinada. Tanto Platão
quanto Aristóteles, apesar de discordarem em muitas coisas, acreditavam que a
existência de Deus podia ser demonstrada racionalmente, e desenvolveram
provas intelectuais intricadas que deveriam demonstrá-la. Logo que a existência
de Deus ficasse estabelecida, a natureza da vida boa e a necessidade de vivê-la
47
seguir-se-iam logicamente.
O intelectualismo dos gregos penetrou no cristianismo. Muitos dos gran-
des teólogos da Idade Média foram profundamente influenciados por Platão e
Aristóteles. Eles aceitavam o caminho da razão como um caminho válido para
chegar a Deus. No século II Justino Mártir disse: "Aqueles que vivem confor-
48
me a razão são cristãos, mesmo que sejam considerados ateus. Assim
eram Sócrates e Heráclito entre os gregos, e outros como eles." Essa noção tinha
sido assumida por dois grandes teólogos cristãos de Alexandria no Egito,
Clemente e Orígenes. Essa linha de raciocínio levou os grandes teólogos
escolásticos Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo e Pedro Lombardo a
construir sistemas teológicos firmemente baseados na razão. Esse
desenvolvimento atingiu seu clímax com o filósofo-teólogo Tomás de Aquino,
do século XIII.
Tomás de Aquino, que sempre falava de Aristóteles como o filósofo,
como se não houvesse outro, adotou a idéia de que Deus pode ser alcançado por
meio do intelecto. Ele sugeriu cinco provas da existência de Deus que visavam
tornar Deus intelectualmente real para nós. Para ele, uma pessoa que não crê em
Deus é essencialmente uma pessoa que não pode seguir uma argumentação
lógica. Essa concepção nos remete a Sócrates, para quem o mal e a ignorância
pareciam o mesmo. Existe na escolástica até uma tendência de fazer da
ignorância uma virtude salvadora. Se um homem é ignorante, ele não pode ser
considerado responsável, e assim esses teólogos afirmavam que as pessoas que
são pagãs e heréticas honestamente, porque não conhecem algo melhor, podem
ser salvas fazendo o que, apesar de falso, elas acreditam ser correto.
Isso indica quanta ênfase a escolástica cristã dava à razão e a seu uso
correto. Como diz Tomás de Aquino: "Existem certas coisas que mesmo a razão
natural pode alcançar, como, por exemplo, que Deus existe, que Deus é uno e
outras como estas as quais os filósofos demonstraram a respeito de Deus,
guiados pela luz da razão natural.”13
A senda racionalista para uma vida significativa pode ser encontrada não
apenas na escolástica católica romana, mas também em muito do que passa por
calvinismo ou luteranismo. Sempre que o caminho para Deus como fonte de
todo valor for essencialmente o caminho da razão, estaremos lidando com o
racionalismo. Em toda parte onde o cristianismo é concebido como um conjunto
de proposições lógicas às quais assentimos, a razão reina soberana. Por
exemplo, existem muitos luteranos que acreditam que ser luterano é essencial-
mente esposar certas opiniões, aceitar certas proposições a respeito do Pai, do
Filho e do Espírito Santo, ou esposar certa doutrina acerca da inspiração das
Escrituras. Especialmente no que em geral é chamado de "ortodoxia luterana"
deparamo-nos com um conceito de Deus e de sua verdade que deve muito aos
gregos e aos escolásticos medievais.
Em questões de ética, esta abordagem sempre leva a uma retirada do
mundo de conflitos. O bem e o intelectualmente correto são identificados, e o
discipulado do Cristo vivo é reduzido ao assentimento intelectual a seu nasci-
mento milagroso, aos milagres por ele operados e a sua ressurreição. O homem
bom é o homem que tem a crença certa - que conhece as coisas certas para crer,
compreende o que está em jogo e então crê nelas. Sempre que se supõe que o
sentido último da decisão seja uma decisão intelectual, estamos lidando com
49
racionalismo.
Destacamos que a busca religiosa de valor pode tomar o caminho da
vontade no legalismo, o caminho das emoções no misticismo e o caminho do
intelecto no racionalismo. Talvez seja conveniente lembrarmo-nos a esta altura
que essas diferentes abordagens de fato nunca estão tão claramente separadas
como neste estudo. Encontramos tanto o misticismo quanto o racionalismo na
religião judaica, ó legalismo no hinduísmo. Para o bem da classificação, entre-
tanto, podemos dizer que esses são os caminhos básicos que o homem usa para
encontrar em Deus a fonte de todos os valores. Nossa própria seleção é deter-
minada por nossa constituição emocional e intelectual, bem como pelo espírito
da época na qual vivemos. Mas é indubitavelmente verdade que, se somos
pessoas religiosas, estamos empenhados em ascender a Deus pela disciplina de
nossa vontade, pelos exercícios de nossas emoções e/ou pelo cultivo de nosso
intelecto. Podemos até tentar combinar os três métodos.
Apesar de haver muitas definições diferentes de religião, no contexto de
nosso estudo a religião pode ser definida como a busca humana de critérios ou
padrões de valor. Temos que enfatizar que a religião, como a vemos agora e a
conhecemos ao longo da história, é busca humana. O homem tenta encontrar a
vida boa - aproximar-se do Movedor Não-Movido, como Aristóteles chamou a
Deus, ou do Arquiteto do Universo, como os maçons gostam de chamá-lo. É o
homem que usa açoites e encantações místicas, em jejuns e danças frenéticas,
para unir-se ao Uno, à Alma do Mundo, como os místicos vêem a Deus. É o
homem que pensa que a mais rigorosa obediência à lei divina força Deus, o Juiz
justo dos legalistas, a declará-lo apto para o reino dos céus. Em toda busca
religiosa de valor Deus é muito real, mas o caminho para Deus é um caminho
humano. Depende do homem se ele vai ou não viver a vida plena de sentido. É
o homem que tenta salvar-se. Mesmo na religião o homem permanece mestre de
seu destino e comandante de sua alma. Apesar de a meta ser Deus, é o homem
que por seus esforços torna possível atingir essa meta.
50
A VIDA DO HOMEM ,
E O JUIZO DE DEUS
A IMAGEM DE DEUS
52
imagem completamente distorcida, como veremos, ele só pode ser entendido
em relação com o Original de quem é imagem.
A característica especial do homem, comparado ao resto da criação, é que
ele foi criado para estar em contato verbal com Deus. Deus fala ao homem e o
homem pode falar a Deus. Aqui se expressa a singularidade da relação de Deus
com o homem. Deus não se limitou a criar o homem por sua palavra como um
produto acabado, mas está em comunicação constante com ele. Ou, como 0
expressa Emil Brunner:
O homem é criado para estar em contato verbal com Deus. Mas, para
responder a Deus, ele tem que ouvir. Você não se comunica pela fala com
alguém a quem não ouve. Se sua sogra o incomoda tanto que, sempre que
ela fala, você tapa os ouvidos para expressar exasperação e rebeldia, você
não está em contato verbal com sua sogra. Penso que é significativo que,
sempre que estamos zangados com uma pessoa, não falamos com ela.
Mesmo criancinhas dirão desafiantes: "Nunca mais falarei com você
enquanto eu viver" - o que em geral significa meia hora.
Embora essa capacidade de ouvir e responder a Deus tome humano 0
homem, ela não é simplesmente uma característica natural como a capacidade
de latir de um cachorro, ou o perfume de uma rosa; antes, ela é algo que é real
somente na medida em que for usada. E aqui novamente se toma claro como é
importante a "decisão" na vida do homem. Um cão é um cão - ele não pode
decidir ser outra coisa. Mas o homem pode decidir não ser homem; ele pode se
recusar a ouvir Deus e falar com Ele. Deus falou ao homem em amor e lhe
ofereceu comunhão. O tempo no qual o homem assim ouvia e respondia a Deus
é uma época pré-histórica, o status integritatis, o "estado de integridade" dos
teólogos. Não é a situação que encontramos registrada na História. Que acon-
teceu à relação entre o Criador e a criatura formada à sua imagem? O homem
assim como o descobrimos na História, o homem acerca de quem lemos em
nossos jornais, o homem ou a mulher que vemos quando olhamos no espelho -
eles não são a imagem de Deus. Não são, propriamente falando, "homens", se
com este termo nos referimos ao objeto do propósito criador de Deus - o ser que
deveria ser muito bom. Que aconteceu? Por que o homem não é aquilo para que
ele foi criado? Por que o homem não é homem? A resposta a esta
53
pergunta reside no fato de que a humanidade implica decisão, e isso sempre
implica a possibilidade de decisão errada. O problema do homem é que ele
tomou a decisão errada e continua a tomá-la.
O homem foi criado para ouvir a Deus e falar com Ele. Foi criado para
ser amado por Deus e amá-lo por sua vez. Foi criado para ter comunhão com
seu Criador. Mas o homem decidiu não ouvir a Deus. Decidiu não falar com
Deus. Orgulhoso de ser imagem do Criador, ele decidiu ser o criador. Esque-
cendo que sua grandeza dependia inteiramente de seu relacionamento com
Deus, ele orgulhosamente passou a afirmar sua grandeza à parte de Deus e,
assim, deixou de ser verdadeiramente homem. Essa evolução é descrita na
estória de Adão e Eva. Existiu um primeiro homem que podia ouvir a Deus e
falar com ele e, assim, podia recusar-se a ouvir e recusar-se a falar. Não é
realmente muito importante se você acredita que esse homem viveu há seis mil
anos ou que ele é produto do processo evolutivo. O que importa é que Deus
criou um primeiro ser que era diferente: ele podia ouvir, podia falar, podia
obedecer ou desobedecer. E o homem desobedeceu. Sabemos que essa desobe-
diência também foi parcialmente resultado de poderes demoníacos que encora-
jaram o homem em sua descrença. A Bíblia sabe de tais poderes que exploram a
fraqueza do homem e o encorajam em sua revolta contra Deus. Apesar disso, é
importante para nós que a Igreja ensina que o homem poderia ter seguido a
Deus - ele não estava predeterminado a desobedecer; o homem desobedeceu
baseado em sua própria decisão, e essa desobediência estabeleceu um padrão
que tornou impossível aos homens jamais obedecerem a Deus a partir de seu
próprio poder. A Bíblia fala de todos os homens como sendo "por natureza
filhos da ira"16. Os teólogos dizem que o pecado original significa que herdamos
não o ato de Adão, ma a revolta contra a vontade de Deus, uma revolta na qual
participamos desde a infância. O pecado original é a revolta do homem contra
Deus. O homem histórico é sempre um "homem em revolta". Ele não precisa
aprender a se revoltar; nasce num estado de revolta contra Deus. Lutero fala
desse pecado como "uma corrupção tão profunda e má da natureza, que
nenhuma razão a entende, mas na qual se deve acreditar a partir da revelação
das Escrituras". É este o pecado responsável pela morte; é a "doença até a
morte" da Bíblia. O homem histórico é sempre o homem prestes a morrer, pois
o pecado é tão universal quanto a morte. O paraíso significa imortalidade, a
História significa mortalidade. De acordo com a fé cristã, estamos envolvidos
coletivamente no pecado assim como estamos envolvidos coletivamente na
morte. Não podemos escapar de um, assim como não podemos escapar da outra.
Para a pergunta: "As crianças estão livres do pecado?" a resposta é: "As
54
crianças estão livres da morte?" A humanidade, sem exceção, está envolvida no
pecado e na morte.
55
Dissemos que o pecado é essencialmente revolta contra Deus. Esta é
uma concepção da raiz do mal bastante diferente da explicação dos filósofos,
para os quais o mal geralmente parecia uma deficiência, uma falta de alguma
coisa. Para Platão, o mal era o "não-ser", um menos; um homem mau era um
homem como ele existia na mente de Deus - menos algo que o tornava menos
do que ele deveria ser. O mal era uma doença de deficiência, uma pura negação;
ou, como afirmou Sócrates, ignorância.
À luz das Escrituras, o mal é algo muito mais positivo. Não é tanto uma
negação como uma afirmação, uma afirmação do homem contra Deus. É a
declaração de independência do homem em relação a Deus. Se olhamos o
capítulo 3 de Gênesis, vemos que o pecado é descrito como a tentativa do
homem de ser igual a Deus, de afirmar sua independência de Deus. Na estória
da torre de Babel os homens quiseram construir uma "torre que alcance os
céus"1'. No Novo Testamento encontramos essa mesma arrogância e orgulho
em ação. Na parábola dos maus lavradoresl8, os lavradores dizem entre si, após
terem morto os servos do senhor e este lhes ter mandado seu filho: "Este é o
herdeiro: venham, matemo-lo, e apoderemo-nos da sua herança." Novamente,
na parábola do filho pródigo, o filho mais moço chega ao pai dizendo: "Dá-me a
parte que me cabe dos bens."19
A estória do pecado humano é a estória do esforço do homem de viver
sem Deus, de viver independentemente e em revolta contra Deus. Além do
mais, como é da própria natureza humana viver em relação com Deus, a estória
da humanidade na História é também a estória da fuga do homem de ser
homem. A fuga humana de Deus é na verdade a fuga do homem de si mesmo,
pois ele só é verdadeiramente homem em comunhão com Deus. Essa fuga de,
Deus está na raiz de todos os males da História humana. Quando a razão, por,
exemplo, não é mais o instrumento humano a serviço de Deus, ela conduz a
uma completa irracionalidade. Quando a liberdade deixa de ser liberdade a
serviço de Deus, para se tomar liberdade em relação a Deus, ela se transforma
em escravidão. E o culto da razão, o culto da lógica em nossa época que tornou
o mundo completamente irracional. As pessoas que afirmam serem guiadas
apenas pela razão vêem no universo um caos, sem sentido e sem esperança, de
elétrons e nebulosas em espiral. Os adoradores da razão humana independente
tornaram o universo totalmente irracional. Os adoradores da lógica, os positi-
vistas lógicos, delegaram tudo o que tem valor ao âmbito do sem sentido. De
modo semelhante, quando a liberdade é meramente liberdade em relação a
Deus, o homem se toma inteiramente cativo. Os homens que advogam liberdade
em relação a Deus chegaram à conclusão de que o homem é apenas o produto
do seu ambiente e hereditariedade; que o homem é o que come; que ele é
totalmente determinado por forças irracionais, fora do seu controle; que ele é,
nas palavras de C. S. Lewis, meramente "um macaco de calças". A
tragédia do pecado é que ele corrompe o melhor do homem, os próprios dons
que fazem com que o homem seja humano. Não é meramente em suas concu-
56
piscências, mas particularmente em suas mais altas aspirações que o pecado é
mais eficaz. A revolta contra Deus se expressa em nossa razão, nossa morali-
dade, nossa cultura e religião. Não existe parte do esforço humano que não seja
corrompida pelo pecado. A doença até a morte afeta o homem em sua
totalidade.
Dissemos que o pecado básico, psicologicamente falando, é o orgulho e a
autocentração. Esse pecado básico de estarmos centrados em nós mesmos, ao
invés de em Deus, está na origem de todos os outros pecados. Cada pecado
efetivo é expressão do pecado original. Cada pecado específico é expressão de
nossa revolta contra Deus. O homem, em seu esforço de organizar sua vida ao
redor de si mesmo em vez de ao redor de seu centro verdadeiro, Deus, cai em
toda sorte de pecados. Do ponto de vista da revelação, nossos pecados efetivos
não são os erros morais ocasionais de pessoas de outra forma bem intenciona-
das; eles são, antes, o resultado de nossa perversidade básica, nossa tentativa
egocêntrica de organizar o universo ao redor de nós mesmos. Essa tentativa
principia com o bebê chorando em seu berço, que "inconscientemente" tenta
organizar o universo, o lar no qual nasceu, ao redor de si mesmo (e freqüente -
mente consegue fazê-lo). O esforço continua até morrermos, e mesmo então
tentamos, por meio de pedidos finais e testamentos, continuar organizando 0
universo ao redor de nossa própria pessoa, apesar de essa pessoa ter passado do
ponto em que tal organização possa dar satisfação pessoal. Assim, minha vida
inteira é o esforço orgulhoso de desafiar a Deus e fazer de minha própria
personalidade o centro de tudo.
Essa posição central do orgulho no pecado foi expressa muito claramente
por C. S. Lewis. Diz ele:
De acordo com os mestres cristãos, o vício essencial, o pior mal, é o
ORGULHO. Incastidade, raiva, avareza, embriaguez e outros são ninharias em
comparação com isso. Foi pelo orgulho que o diabo se tomou o diabo. O orgulho
conduz a todos os outros vícios. É o estado mental completamente antiDeus.
E ele continua dizendo:
Isso lhe parece exagerado? Se assim for, pondere. Frisei há pouco que, quanto
mais orgulho se tivesse, tanto mais se detestaria o orgulho nos outros. Na
verdade, se você quer saber o quanto é orgulhoso, a maneira mais fácil é
perguntar-se: "Quanto me irrito quando as outras pessoas me desdenham, ou se
recusam a tomar conhecimento de mim, ou me tratam com condescendência, ou
se exibem?" A questão é que o orgulho de cada pessoa está em concorrência com
o de todas as outras. É porque eu queria ser o centro das atenções na festa que
iico aborrecido quando o centro das atenções é outra pessoa. O orgulho é
essencialmente competitivo - é competitivo por sua própria natureza -, ao passo
que os outros vícios são competitivos apenas, digamos, por acidente. O orgulho
não obtém prazer por ter algo, mas apenas por ter mais do que o próximo.
Dizemos que as pessoas se orgulham de serem ricas, ou inteligentes, ou bonitas,
mas elas não o fazem. Elas se orgulham de serem mais ricas, ou mais
inteligentes, ou mais bonitas do que outras.20
57
O orgulho se compraz em tratar os outros com superioridade. Não é
realmente dinheiro o que se quer, mas mais dinheiro do que alguma outra
pessoa. Não meramente uma casa, mas uma casa maior ou melhor do que
a do vizinho. Não só meramente uma namorada, mas a namorada de
outro, ou, viceversa, não meramente um namorado, mas o de outra moça.
O professor Lewis salienta que alguns vícios juntam as pessoas: embria-
guez, incastidade ou glutonaria podem criar alguma espécie de comunhão; mas
o orgulho sempre divide as pessoas, separa-as umas das outras e as torna inimigas.
O que é pior, o orgulho nos separa irrevogavelmente de Deus. Por ser da
própria natureza de Deus estar acima de nós, e como o orgulho não pode tolerar
nada acima de si, o orgulho efetivamente nos separa de Deus. Isto se aplica
tanto ao orgulho religioso quanto ao irreligioso. As pessoas irreligiosas são
freqüentemente separadas de Deus pelos vícios animais, como a cobiça e
incastidade, mas pessoas religiosas são separadas de Deus pelo orgulho. É o
pecado religioso, o pecado dos fariseus e de todos os seus numerosos descen -
dentes, e é o pecado que mais efetivamente nos separa de Deus. Nosso Senhor
podia lidar com prostitutas e coletores desonestos de impostos, porque esses
eram pecadores que sabiam que tinham pecado. Os fariseus, por outro lado,
tinham perdido toda perspectiva correta por causa do orgulho. O orgulho é o
pecado camuflado de virtude, o pecado que pode expulsar outros pecados e,
ainda assim, manter-nos efetiva e indefinidamente afastados de Deus. O orgulho
afasta certas pessoas de muitos males, do adultério, do roubo, da desonestidade.
Elas são orgulhosas demais para mentir ou para roubar mesmo a esposa de
outras pessoas; mas esse mesmo orgulho às mantém à parte de Deus. Elas são
orgulhosas demais para levantar os olhos para Deus, para se reconhecer como
pecadores que necessitam de seu perdão e como crianças que necessitam de seu
' amor paternal. Desafiadoramente, insistem que o homem está só, que ele é o
"Atlas cansado, mas pertinaz", nas palavras de Russell 21, de quem dependem
toda esperança, toda decência, toda bondade. É o orgulho que nos impede de
nos atirar nos braços estendidos de Deus.
O orgulho como revolta contra Deus é o pecado básico do homem. Todos
os nossos muitos pecados - dos quais podem ser encontrados catálogos no Novo
Testamento - são expressões dessa revolta. São efeitos da revolta básica e ao
mesmo tempo nossa maneira de continuar em nosso estado de revolta contra
Deus. O homem, visto da perspectiva da revelação de Deus em Jesus Cristo, é
sempre um pecador. Em tudo o que faz, ele se afirma contra Deus e se revolta
contra o Criador. Existem ações que são melhores do que outras do ponto de
vista da lei, mesmo da lei divina. Mas mesmo uma ação que é melhor não é
necessariamente boa. Depois de termos feito todas as coisas, somos ainda
servos inúteis. O homem sempre foi e sempre será um pecador. O pecado o
separou efetivamente da comunhão com Deus, para a qual ele foi criado. O
pecado destruiu efetivamente a imagem de Deus no homem, deixando apenas
um resíduo. O homem não se transformou em um animal. Ele ainda é homem,
58
mas em situação desesperadora. Criado para receber o seu sentido da comunhão
com Deus, de ser interlocutor de. Deus, ele agora existe em revolta contra Deus.
Nem homem verdadeiro nem animal, ele é um ser cujo sentido é a falta de
sentido, cuja esperança é a desesperança. É um ser que sabe o que é o amor, mas
vive o ódio; que sabe o que é a paz, mas vive em desassossego e guerra; que
sabe o que é a vida, mas cujo viver é morrer. Sabendo do céu, ele está destinado
ao inferno. Esta é a situação do homem como resultado do pecado. Este é o
juízo de Deus sobre o orgulho e a revolta do homem.
Examinamos o dilema do homem sob o juízo divino psicologicamente e
constatamos que era o orgulho; se agora o examinarmos teologicamente, vere-
mos que é a descrença. O dilema do homem é que ele, que foi criado pelo amor
divino para confiar em Deus, vive em descrença e desconfiança. O orgulho no
relacionamento com Deus é descrença: nem mesma acreditamos que ele é Deus.
Vivemos como se não houvesse Deus. Mas de alguma forma sabemos que não
estamos realmente sós, que não estamos apenas assobiando no escuro. De
alguma forma sabemos que não somos realmente o Atlas que carrega o
universo. De alguma forma sabemos que não somos os mestres de nosso destino
e comandantes de nossa alma. Deus está em toda parte ao nosso redor. Nele
vivemos, nos movemos e temos nossa existência; no entanto, não cremos.
Teologicamente falando, a descrença é o pecado básico, o pecado último:
descrença no amor divino ante a própria face desse amor; descrença na morte
ante a própria face da morte; e descrença no juízo divino ante a própria face
desse juízo.
O homem observado do ponto de vista da revelação aparece de modo
bem diferente do homem que temos examinado em termos filosóficos e
religiosos até agora. À luz da revelação, o homem está incuravelmente doente.
Sua enfermidade é o pecado, a "doença até a morte". É uma doença que ele
contraiu voluntariamente, mas da qual não se pode livrar voluntariamente. É
uma doença que afeta e corrompe tudo o que faz, mas acima de tudo uma
doença que o separa do seu Criador e o condena à falta de sentido e de
esperança. A doença cria muitos sinais exteriores. Poderíamos mencionar os
tradicionais pecados capitais como exemplos: orgulho, inveja, raiva, cobiça,
indolência, gula e lascívia. Mas, teologicamente falando, temos que dizer que
todas essas características da doença são expressões de uma única dificuldade
básica: o pecado principal do qual se derivam todos os outros é a descrença. É
pelo fato de não crer em Deus que o homem não pode viver uma vida com
sentido. Enquanto a descrença governar os corações humanos, a vida cristã é
impossível. É a descrença que separa o homem de Deus; é a descrença que o
leva ao juízo; é a descrença que o condena por toda a eternidade. O homem
criado à imagem de Deus se toma, pela descrença, uma caricatura. Criado para
revelar o amor de Deus, ele opta revelar a sua ira e o seu juízo. Mas, para não
acusarmos um ancestral pré-histórico por tudo isso, devemos ter em mente que
diante de Deus nossa descrença é tão real quanto a de Adão e Eva. Estamos
59
todos juntos nisso. Compartilhamos da culpa de Adão e Eva e eles comparti-
lham da nossa. Como o expressou Kierkegaard: "O homem a quem Deus criou é
sempre tanto este indivíduo quanto a humanidade." Porque o homem peca, ele é
pecador; e porque é pecador, ele peca, disse Emil Brunner. Mesmo que nunca
cheguemos a entender plenamente este fato, o seu resultado está claramente
diante de nossos olhos. O salário do pecado é a morte. E todos nós morremos.
60
A VIDA DO HOMEM
E A LEI DE DEUS
66
homem a desesperança de sua situação. É como o termômetro para medir a
febre: não cura doenças, mas auxilia os doentes a perceber que estão doentes e
necessitam de um médico. Se usada propriamente, a lei nos mostra a desespe-
rança de nossa situação e nos torna dispostos a aceitar o evangelho do Senhor
Jesus Cristo.
68
à conclusão de que a lei existe como parte da estrutura do mundo em que
vivemos. Ela existe inteiramente à parte de nosso reconhecimento ou de nossa
obediência a ela. Está na raiz de todos os esforços práticos de codificação e
redação de leis. Mas nenhum desses esforços é plenamente bem-sucedido. Eles
são meramente tentativas mais ou menos adequadas de descrever o modo pelo
qual o mundo de fato funciona. A lei natural divina é parte deste mundo assim
como ele se nos defronta.
O propósito da lei é duplo. Seu propósito teológico, seu propósito básico
do nosso ponto de vista, é sua função acusadora. A lei acusa o homem,
revelando-o a si mesmo e ante Deus como um transgressor da lei, como homem
em revolta.
A segunda função da lei é fornecer uma base para uma organização
razoavelmente bem ordenada da sociedade, para estabelecer o casamento e a
família, o governo e a sociedade. Em sua segunda função, a lei também é
prejudicada pelo pecado humano, mas ela de fato estabelece um padrão mais ou
menos viável, que protege a espécie humana do caos e anarquia completos. Mas
mesmo nesta função política a lei permanece como eterna acusadora do homem
pecador. A lei nunca justifica o homem; sempre o acusa.
Enquanto a lei divina foi uma força muito real na vida dos homens em
todos os tempos, o homem moderno pensou que podia ignorar essa lei. O
relativismo e o naturalismo que examinamos anteriormente são esforços para
agir como se não existisse lei e o homem pudesse realmente fazer o que lhe
agrada. Em todos os tempos houve pessoas que desafiaram a lei divina, que
fizeram o que sabiam ser errado e de alguma forma esperavam ficar impunes.
Mas em nossa época há um grande número de pessoas, em todos os lugares, que
simplesmente negam que exista algo assim como certo e errado. Algumas
afirmam que o homem é apenas um animal e que nada que um animal faz é
certo ou errado. O que ele faz simplesmente é. Uma ação pode não ser útil para
a sobrevivência do homem, mas ela nunca é "errada". Desta forma tentam livrar
o homem do dedo acusador da lei. Outras afirmam que todo homem é o produto
de circunstâncias sobre as quais não tem controle. Ele é determinado pelo que é
comumente chamado de "ambiente" ou "hereditariedade". Nada que ele faça é
certo ou errado, pois de qualquer forma ele não tem possibilidade de escolha a
respeito. Todo homem faz o que tem que fazer. Também aqui se afirma que a lei
não mais nos acusa.
Muitos homens modernos pensam que escaparam efetivamente da lei
natural divina, assim como ela se nos apresenta, acusadora. Mas qual é o
resultado disso? Antes de mais nada, a lei ainda existe; nenhum esforço de
69
nossa parte pode apagá-la. Você pode, se quiser, criar uma teoria muito enge-
70
nhosa sobre a inexistência da lei da gravidade; mas se você se inclinar muito
para fora de uma janela do segundo andar de sua casa, você cairá - mesmo que
isso não devesse acontecer, de acordo com sua teoria. O universo não funciona
conforme suas teorias sobre a gravidade. Similarmente podemos todos votar e
aprovar por unanimidade a inexistência de uma lei moral no universo; mas isso
não altera os fatos nem por um momento. O universo também não funciona
conforme nossas teorias sobre a moralidade. Este fato se toma claro na literatura
de nossa época. Grande parte de nossa literatura é chamada de "realista", o que
significa que ela tenta descrever as coisas como realmente são. Como resultado,
descreve o homem moderno como estando quebrantado pelo mundo no qual
tem que viver. Os novelistas e dramaturgos vitorianos muitas vezes tentaram
indicar uma moral, e freqüentemente fracassaram por tentarem com demasiada
intensidade. Nossos escritores estão tentando descrever as coisas como elas
“realmente” são. Eles não acreditam em uma lei natural divina que governa o
universo, mas, quando descrevem as pessoas como "realmente" são, mostram
com demasiada clareza que o homem (que sabemos ser pecador) é quebrantado
pelo mundo no qual vive (sabemos que é o mundo governado pela lei de Deus).
Nossos autores seculares diriam: "O homem sempre perde; ele não pode
vencer; as cartas estão arranjadas contra ele; os dados do jogo são viciados."
Isto é apenas observar a superfície. Sabemos, baseados na revelação em Jesus
Cristo, que o salário do pecado é a morte. A lei sempre acusa - quer você, goste,
quer não, quer você acredite nela, quer não. De certo modo, Eugene O’ Neill ou
Tennessee Williams ou Morte de um Caixeiro Viajante são leitura melhor para
nós do que alguns dos livros sentimentais e imbecis de auto-
aperfeiçoamento, escritos por pregadores e pseudopregadores, que nos dizem
que tudo o que precisamos fazer é não perder a coragem - ou manter o sorriso
ou fazer exercícios respiratórios - e tudo estará bem e a vida será bela, pois a
"paz da mente" e a "paz do espírito" imediatamente descerão sobre nós. Tente
substituir Dale Carnegie por Norman Mailer. O mundo é exatamente tão duro
quanto nossos escritores mais realistas o podem descrever. A razão, entretanto,
está oculta a eles. Nós sabemos a razão: a lei sempre acusa a todos nós, e o
salário do pecado é a morte.
72
PARTE II
73
A NATUREZA DO EVANGELHO
Para o homem preso na teia do pecado, para o homem condenado ao
fracasso e à morte, para o homem perdido vem o evangelho de Jesus Cristo. A
palavra "evangelho" significa literalmente "boa nova". Ora, qual a boa nova que
o evangelho traz?
A situação do homem não é desesperançada. O homem não está só. A
morte não é o fim. O que vemos na natureza - que o poder faz o direito, que o
animal grande devora o pequeno - não é o padrão verdadeiro.
O verdadeiro padrão do universo foi revelado no Jesus Cristo que nasceu
da Virgem Maria em um barraco dilapidado em um país dilapidado, que viveu,
trabalhou e foi executado sob Pôncio Pilatos e ao terceiro dia ressuscitou dos
mortos, derrotando a morte não só para sua pessoa, mas para toda a espécie
humana. Ele é o segundo Adão. Assim como em Adão todos os homens
pecaram - não no sentido de que não tenham sido responsáveis, mas no sentido
de que foi estabelecido o padrão que todos seguiriam -, da mesma maneira em
Jesus Cristo todos os homens são salvos. Não no sentido de nada poderem
fazei- a respeito, pois eles não são salvos automaticamente; mas no sentido de
que foi estabelecido um padrão alternativo. Nós que dissemos "sim" a Adão e ao
pecado também podemos dizer "sim" a Cristo e à salvação. Assim como nossa
aceitação de Adão estabeleceu um padrão de condenação e morte, da mesma
maneira nosso "sim" a Cristo estabelece um padrão de esperança e salvação.
"Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo. "~ "Porque Deus amou
ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que
nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. " 29
Este é o evangelho. Estou ciente de que ele soa antiquado e gasto pelo
tempo. Mas isso é assim apenas porque todos o ouvimos muitas vezes sem lhe
dar atenção. Ainda é a melhor notícia do mundo, a única notícia que realmente
importa. É a única base para uma vida com sentido, para uma vida cristã.
Seria tarefa de um estudo da fé cristã analisar em detalhes o que esse
evangelho significa. E mesmo então apenas estaríamos tratando de fatos super-
ficiais. Ninguém - nunca - poderá esgotar o sentido pleno. Em nosso estudo da
vida cristã temos que enfatizar que o "sim" a esse evangelho é o início da vida
cristã. É o salto da fé sobre o qual já falamos várias vezes. Sem esse salto, sem
essa fé, a vida cristã não é possível. A vida cristã começa com a fé - e todas as
atividades, todas as "boas obras" do cristão devem ser um resultado dessa fé, ou
elas não serão boas. "A primeira, suprema e mais nobre boa obra é a fé em
Cristo (...)."30 "(...) é a fé que, sozinha, torna todas as outras obras boas,
agradáveis e dignas (...)."31
76
A NATUREZA DA FÉ CRISTÃ
Agora queremos examinar a vida cristã do ponto de vista dessa fé. E para
podermos ver todos os vários aspectos da vida à luz da fé, seguiremos a divisão
da vida que encontramos nos Dez Mandamentos. Esses mandamentos tratam
das muitas áreas da vida que ,Deus pode transformar para nós por sua graça.
Naquela fé que "salta" nós agarramos essa graça de Deus. Pela fé, esses
mandamentos são transformados de lei acusadora numa descrição das possibi-
lidades da vida cristã. Eles não são mais o estudo aterrador do que devemos
fazer para Deus e não podemos; mas, observados do ponto de vista do evange-
lho, tomam-se uma descrição do que Deus pode fazer de nossa vida se lho
permitirmos.
É isso que Lutero faz em seu tratado intitulado Das Boas Obras. Ele toma
os Dez Mandamentos, examina-os através do evangelho e eles se tomam a
descrição das possibilidades gloriosas dos filhos de Deus. Em nossa descrição
da vida cristã queremos seguir o método de Lutero, examinar os Dez Manda-
mentos e ver o que Deus pode fazer com todas as várias partes de nossa vida se
nós, na fé, nos apoderarmos de sua graça.
O Primeiro Mandamento: "Eu sou o Senhor, teu Deus. Não terás outros
deuses diante de mim."
78
DISCIPULADO CRISTÃO
81
No seu tratado Das Boas Obras, Lutero menciona outras obras do
segundo mandamento, mas para ele o mais importante de todos os seus sentidos
é a pregação. O segundo mandamento obriga o cristão a proteger e proclamar o
santo nome de Deus contra todos os seus inimigos.
É aqui que o caráter revolucionário do cristianismo se toma particular-
mente claro. Diz Lutero: "Aqui temos que provocar contra nós os ricos, os
eruditos, os santos e tudo o que é alguma coisa no mundo. (...) cada cristão tem
esta obrigação (...)."37
A partir da fé no evangelho devemos resistir a toda injustiça. E isto
significa, particularmente, lutar contra a injustiça feita aos pobres, aos despre-
zados e aos nossos inimigos38. É muito simples lutar contra a injustiça praticada
por aqueles que não têm poder, que não podem se defender, que não podem
causar nenhuma dificuldade. Qualquer pessoa pode fazer isto, e quase todas o
fazem. É muito mais difícil combater as injustiças feitas pelos poderosos, pelos
ricos e por nossos amigos.
Como ilustração, poderíamos observar certos fatos sociológicos interes-
santes. Sabemos que o índice de delinqüência juvenil é muito mais alto nos
bairros pobres do que nos bairros ricos. Essa disparidade não pode ser simples-
mente atribuída ao fato estabelecido de que a pobreza gera o crime. Muitas
vezes entra em cena outro fator: a diferença entre as práticas de execução da lei
nos bairros abastados e nas favelas. Se um adolescente quebra uma vidraça em
um bairro rico e seu pai é uma pessoa influente, ele não será detido. É possível
que sofra uma reprimenda, mas, em todo caso, papal paga uma vidraça nova e o
caso é encerrado. Mas o adolescente da favela cujo pai é um bêbado será levado
ao juizado de menores. É muito mais fácil executar a lei contra um rapaz cujo
pai é um alcoolista com ficha policial do que executar a mesma lei contra um
rapaz cujo pai é companheiro de loja maçônica do juiz e que contribuiu com
elevadas somas para a máquina política que controla a cidade. Isto é apenas
uma ilustração do fato de que a justiça, longe de ser cega, é freqüentemente
vesga, deixando de notar os crimes dos "poderosos" enquanto gruda os seus
olhos naqueles que não têm poder.
O segundo mandamento descreve as obrigações do cristão de protestar
contra toda injustiça, praticada seja por quem for. Isto é revolucionário; é isto
que toma o cristianismo, se é reintroduzido na cristandade, mais poderoso do
que a bomba atômica.
Aqui Deus opera conosco e por nosso intermédio, se estivermos dispostos
a nos tornarmos suas ferramentas e instrumentos. Ele fez isso muitas vezes no
passado, freqüentemente usando a consciência cristã para iniciar grandes revo-
luções sociais. Grandes personalidades cristãs contribuíram para a abolição da
escravatura e o estabelecimento da igualdade de direitos para as mulheres. É
significativo que o único porta-voz branco corajoso a quem os hereros do
sudoeste da Africa eneontraram seja um clérigo anglicano, o Rev. Michael
Scott. Eles são um povo que foi despojado de suas terras e de seus direitos
82
como seres humanos pela União Sul-Africana, desafiando as Nações Unidas.
Mas as Nações Unidas não enviaram um exército para defender o povo herero.
porque a União Sul-Africana é anticomunista, e é moda ser anticomunista hoje
em dia. Nossa imprensa livre enterrou essa estória entre as receitas culinárias e
as colunas sociais. E fácil ser contra o comunismo nos Estados Unidos hoje; é,
na verdade, a maneira mais barata de se tornar popular.
Mas o segundo mandamento nos conclama a protestar contra a injustiça
onde quer que a encontremos, a falar pelos oprimidos, explorados, famintos e
nus em toda parte. Se não estamos dispostos a deixar Deus atuar por nosso
intermédio, diz Lutero, Deus "não deixará de realizar sua obra sozinho, de
ajudar os pobres. Quanto aos que não quiseram ajudar-1he nisto e menospreza-
ram a grande honra de sua obra, ele os condenará juntamente com os injustos
como aqueles que se colocaram do lado dos injustos." 39 Essa foi a experiência
dos israelitas; Deus os puniu por meio de pessoas que eram piores do que eles, a
saber, por meio dos babilônios e assírios. Essa foi a experiência dos romanos.
dos franceses e dos alemães - e pode tornar-se nossa experiência também. A
vontade de Deus será feita, quer estejamos dispostos a ser seus instrumentos,
quer não. Se não estamos dispostos, somos como a figueira que não produz
fruto e é cortada e lançada ao fogo.
Nossa responsabilidade de falar em favor da verdade também se estende
para o âmbito da Igreja. Sempre que a Igreja se tornar um clube social ou um
salão de palestras sobre psicologia popular, temos a responsabilidade de levan-
tar a voz em defesa da verdade na Igreja. É a Igreja em particular que deve
louvar e glorificar o nome de Deus, porém muitas vezes ela se ocupa com tudo
menos isso. É aqui que nós, como cristãos, temos a responsabilidade de fazer
com que a Igreja permaneça Igreja. O critério é sempre o evangelho de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Aqui é importante observar que o caminho para a justiça social passa pela
obediência a Cristo, e não ao largo dele. A tragédia dos homens e mulheres que
pensavam que podiam salvar o mundo através do evangelho social 40 anos atrás
foi que eles criam que o evangelho social significava menos ênfase no evange-
lho e mais ênfase na sociologia. Como resultado disso criou-se um grande
número de maus teólogos com uma fé incoerente e diluída; conseqüentemente o
zelo pela melhoria da sociedade também se diluiu em breve.
Se alguma vez quisermos produzir um impacto cristão na comunidade.
teremos que ser mais sérios em nossa fé em nosso Senhor divino. Só através
dele e a partir dele podemos receber a força para influenciar a ordem social. Só
uma Igreja que for fiel a seu Salvador divino será uma Igreja competente para
promover a justiça e probidade. Se quisermos melhorar o mundo através de
nosso humanismo, porque cremos que os homens são bons por natureza, sendo
tomados maus apenas por forças sobre as quais não têm controle. em breve
84
CULTO CRISTÃO
E os outros mandamentos?
86
A COMPREENSÃO CRISTÃ DE AUTORIDADE
O Quarto Mandamento: "Honrarás teu pai e tua mãe, para que prosperes
e se prolonguem os teus dias na terra."
87
serem educadas e controladas inteiramente pela escola e pelas organizações
juvenis do governo totalitário. Pais e mães são encorajados a viver afastados dos
filhos e ` também afastados um do outro, de modo que a família como unidade
viva seja destruída. Este era o padrão na Alemanha nazista e ainda o é na Rússia
Soviética. As crianças devem espionar seus pais e delatá-los à polícia secreta.
Tudo é feito para destruir a influência e a unidade da família, porque é o homem
em isolamento, quando não pensa em si como membro de uma família, que é o
mais suscetível aos aliciamentos de um Estado que quer ser pai e mãe e fonte de
toda autoridade.
Existem nos Estados Unidos forças atuando, de modo intencional ou
inadvertido, pela destruição da família e, assim, espalhando as sementes da
destruição de nossa liberdade religiosa e política. A melhor escola e o parque
mais bem organizado não substituem a família. Na medida em que nossa família
americana se desintegra, as possibilidades de sobrevivência de nosso modo de
vida diminuem constantemente. Quando o lar se torna apenas um dormitório
onde os membros da família dormem juntos, é chegado o tempo da completa
destruição da unidade natural mais forte que se opõe ao controle completo do
homem pelo Estado ou pelo partido.
Os cristãos terão que proclamar, em uma era que despreza toda autorida-
de, que a autoridade da família provém de Deus. Mais eficaz do que qualquer
proclamação dessas é o exemplo da família cristã, onde os pais se amam e
respeitam e onde as crianças obedecem aos pais em amor e não em temor servil.
Este é um sinal vivo, para todos os inimigos do lar cristão, de que "honrar pai e
mãe" não é um padrão de comportamento esquisito e arcaico, mas a vontade
eterna de Deus para seu povo. Neste mandamento, como em todos os outros, é
verdade que, se é visto a partir da perspectiva da fé, ele não apenas proclama
proposições acerca da verdadeira natureza da família; mas, se é colocado em
ação pelo cristão, ele é a família cristã e testemunha viva do poder e graça
divinos. A vida cristã é uma vida de discipulado dentro da estrutura natural da
família.
Similarmente, o quarto mandamento descreve a atitude do cristão para
com a realidade da autoridade política. Também no âmbito do poder político,
como alguém que governa e alguém que é governado, o cristão expressa sua fé
em Jesus Cristo por sua vida nesse âmbito. Para ele o âmbito da política não é
uma terrível cova de serpentes da qual espera ser redimido, mas um âmbito no
qual o fato de que Cristo é Senhor e Salvador é relevante e deve ser vivido.
Longe de destruir a autoridade do governo, o cidadão cristão tenta mostrar com
sua vida que o poder do governo também é poder emprestado e, como Paulo
nunca deixa de acentuar, em última análise é dependente e derivado do poder de
Deus.
É fatal e inútil se os cristãos tentam retirar-se da realidade da autoridade
política. Alguns o tentaram por um simples afastamento geográfico dos gover-
88
nos que desaprovavam. Os menonitas, quacres e outros pensaram que uma fuga
dos problemas do poder político é possível, mas a longo prazo suas tentativas
foram completamente fúteis.
Em nosso país hoje todo cidadão está envolvido em seu governo pagando
suas contas, mesmo que nunca vote e nunca participe de uma convenção
política. A única opção que efetivamente temos é o envolvimento, responsável
ou irresponsável. Isto se aplica igualmente àqueles que procuram fugir das
ambigüidades da vida política ignorando-a. Aqueles cristãos que dizem: "A
política é suja, não devemos nos envolver nela" estão expressando opiniões
sobre um assunto controvertido, mas não estão em condições de implementá-las
mediante a ação. Como já dissemos muitas vezes, não se foge de um problema
ao ignorá-lo. O próprio fato de deixar de participar é uma tentativa de resolver o
problema. Por exemplo, os cidadãos cristãos de Chicago não podem se
desculpar da corrupção política existente em sua cidade dizendo: "Nós nunca
votamos." Tal escusa apenas trai sua culpa pela situação que eles tentam ignorar.
A vida cristã deve ser vivida no mundo. Todo cristão tem a responsabilidade de
fermentar a sociedade em que vive, incluindo a área política.
Novamente, a obediência cristã não é apenas a aceitação de algumas
proposições teóricas a respeito da natureza do Estado e do governo. Não é
suficiente aceitar ou rejeitar algumas teorias sobre o direito divino dos reis ou
então sobre o direito divino das maiorias. Mais uma vez devemos acentuar que
a vida cristã nunca é tão teórica. Visto que ela é sempre discipulado, é também
discipulado no campo da política; e o quarto mandamento descreve a responsa-
bilidade dos homens e mulheres cristãos de serem discípulos como eleitores e
candidatos - na nossa forma particular de governo - da mesma forma que devem
viver seu discipulado como pais e filhos.
Nossa Igreja tem sido importunada por pessoas com teorias muito abran-
gentes sobre as relações entre a Igreja e o Estado, mas que nunca relacionaram
efetivamente sua fé cristã com a comunidade onde escreveram seus impressio-
nantes volumes sobre as relações Igreja-Estado. Não existe o cristianismo
teórico; ele é tão real quanto os acontecimentos sobre os quais se fundamenta.
Não pode existir uma encarnação teórica ou uma ressurreição teórica. Só como
acontecimentos, e nunca como teorias, é que essas palavras têm sentido para os
cristãos. Similarmente, a vida cristã só tem sentido se é vivida em comunhão
com Deus por Jesus Cristo. Talvez seja possível ser um budista, confucionista,
tomista ou barthiano teoricamente; mas nunca é possível ser cristão teoricamen-
te. Assim como a fé cristã se baseia em acontecimentos que ocorreram ou não
ocorreram e não pode ser diluída de modo a reduzir-se a algumas teorias a
respeito da natureza de Deus, do homem e do universo, da mesma forma a vida
cristã é discipulado em todas as ocupações e não alguma teoria sobre a natureza
da família ou do Estado que possa ser aceita teoricamente, mas não vivida no
dia-a-dia.
89
A COMPREENSÃO CRISTÃ DE COMUNIDADE
90
O que se mostrou tão espetacularmente na Alemanha sob os nazistas é
igualmente verdadeiro em nosso país. Como cristãos temos uma responsabili-
dade de cuidar para que as leis sejam cumpridas e nossas comunidades sejam
administradas com justiça. Não é suficiente estarmos preocupados com a exe-
cução da lei nos bairros abastados onde muitos de nós vivem; também somos
responsáveis pela sua observância no outro lado da cidade. Além da execução
da lei, o quinto mandamento implica responsabilidade pelo alívio de toda
necessidade humana. Controle de enchentes, luta contra a poliomelite, elimina-
ção de favelas, controle do trânsito - tudo isso serão responsabilidades cristãs,
caso o quinto mandamento seja encarado como descrição da vida de fé.
Porém, mais do que isso, não basta estar nominalmente preocupado com
todas essas causas nobres. Um dos grandes perigos desta era de superorganiza-
ção é que deleguemos o cumprimento cristão do quinto mandamento a organi-
zações que devem cumpri-lo por nós. Muitas vezes não demonstramos amor em
nossas relações pessoais, mas contribuímos para causas nobres que amam por
nós. Apesar de indubitavelmente ser nosso dever contribuir com generosidade
para todas essas organizações necessárias para aliviar a miséria e o sofrimento
humanos, estaríamos cometendo um grave erro se acreditássemos que tais
contribuições nos livram de nossas responsabilidades pessoais de demonstrar
amor ao próximo. Agências e organizações devem complementar nossas obras
pessoais de amor, mas nunca podem substituí-las. O fato de muitas tarefas
serem grandes demais para serem feitas por nós sozinhos não nos livra de nossa
responsabilidade de fazer as muitas coisas que podemos fazer como indivíduos.
Contribuições para a missão no exterior não nos dispensam de nossa própria
responsabilidade pessoal de sermos missionários onde quer que formos. Mesmo
o auxílio mais generoso a agências que combatem a discriminação racial não
nos livra de nossa própria responsabilidade de demonstrar o amor de Cristo a
todos os homens em nossa vida diária.
Finalmente, o teste do quinto mandamento cumprido em Cristo e no
cristão acontece em nossas relações com todas as pessoas que consideramos
claramente indignas de amor. Lutero diz que tolerar aqueles que não nos
molestam é, na verdade, muito fácil: "Este tipo de mansidão têm também os
animais irracionais, leões e serpentes (...) canalhas, assassinos, mulheres perver-
sas. Todos estes ficam pacíficos e mansos quando se faz o que querem ou se os
deixam em paz. Mas não são poucos os que se deixam enganar por mansidão
tão inefetiva, encobrem sua raiva e se desculpam dizendo: “Eu bem que não
ficaria com raiva se me deixassem em paz.” E Lutero continua: "Bem, meu
caro, desse jeito também o mau espírito ficaria manso, caso se fizesse segundo a
sua vontade. "45
O ponto crucial da obediência cristã ao quinto mandamento é sua aplica-
ção a nossos inimigos. Nossos inimigos são a verdadeira pedra de toque da vida
cristã. Por nossas próprias forças podemos realmente amar os bons, belos,
amáveis; porém apenas pelo poder da fé em Cristo é que poderemos amar
91
aqueles que nos odeiam e que são, humanamente falando, de todo indignos de
amor. Tal amor era considerado degradante pelos gregos. Eles mediam o valor
do amor pelo valor do objeto amado. Somente o amor ao perfeito era perfeito e,
portanto, somente o amor de Deus era justificado em última análise.
Para nós, no entanto, que fomos feitos discípulos do Cristo que é amor, a
bondade do objeto de nosso amor pouco significa. Nosso amor não depende da
dignidade ou da beleza do objeto, mas da realidade e da força do amor de Deus
agindo em nós. Na fé nos tomamos capazes de "temer a amar a Deus, de
maneira que não causemos dano ou mal algum ao nosso próximo em seu corpo,
mas o ajudemos e favoreçamos em todas as necessidades corporais". E o
próximo é toda pessoa que necessite de nossa ajuda, seja ela amiga ou inimiga,
boa ou má, esteja ela em nossa cidade natal ou a 5 mil milhas de distância.
92
O CRISTÃO E O SEXO
O Sexto Mandamento: "Não adulterarás."
93
Por isso [Deus] também quer que honremos [o matrimônio], o mantenhamos e
vivamos como estado divino e bendito. Pois que o instituiu antes dos demais, e
criou diversamente homem e mulher, como é evidente, não para maroteira, [mas]
sim para que permaneçam unidos, sejam fecundos, gerem filhos e os sustentem e
eduquem para honra de Deus. (...) Essa [é] a razão por que sempre tenho
ensinado que não se despreze nem se menoscabe esse estado, como faz o mundo
cego e os nossos falsos clérigos, mas que se trate de avaliá-lo segundo a palavra
de Deus, que o adoma e santifica. Não só é igualado com outros estados, [mas] a
todos precede e ultrapassa, os de imperador, príncipes, bispos, ou de quem quer
que seja.
Entretanto, o matrimônio e a fidelidade nele ainda fazem parte da lei; não
há nada especificamente cristão a respeito deles. É sinal da vida cristã viver em
fidelidade e amor matrimonial de forma a dar um sentido sempre renovado às
muitas figuras de linguagem que encontramos no Novo Testamento, que com-
param a relação entre Cristo e sua Igreja a uma vida conjugal perfeita. O sexo
deve tornar-se um aspecto válido desta relação divinamente ordenada. O sexo é
uma parte do matrimônio, mas não o matrimônio todo. Por conseguinte, é
errôneo considerar a propagação da espécie o único propósito do sexo e do
casamento. E é indesculpável que o mero fato da ausência de filhos seja
transformado em base para anular um casamento. É interessante observar que
aqueles cristãos que desaprovam o sexo e aqueles que fazem do sexo o centro
de toda a vida concordam em seu desdém pela relação matrimonial à parte da
sua função para a propagação da espécie. Nem uns nem outros vêem qualquer
utilidade nessa relação de amor além da recompensa ou na "paixão" ou nos
filhos. Para a vida cristã, porém, a aceitação autêntica do sexo no matrimônio
como parte da vontade divina é de fundamental importância.
O homem não foi criado para passar a vida combatendo seus instintos
sexuais. Tampouco foi criado para passar a vida absorvido por esses impulsos.
Do ponto de vista do evangelho, o sexo e o matrimônio fazem parte da ordem
divina da vida através da qual homens e mulheres podem servir a Deus. O
propósito da vida do homem, porém, é viver em comunhão com Deus. A vida
cristã tem a oportunidade gloriosa de mostrar como, pela fé, o relacionamento
conjugal pode tornar-se um símbolo de amor, confiança e fidelidade. Então uma
canção de amor como a dos Cantares de Salomão pode se transformar para os
cristãos numa canção de louvor à ordem divina do matrimônio e, ao mesmo
tempo, num sinal e símbolo da relação entre Cristo e sua noiva, a Igreja.
"Maridos, amem as suas mulheres, como também Cristo amou a Igreja, e a si
mesmo se entregou por ela, para que a santificasse, tendo-a purificado por meio
da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo Igreja gloriosa,
sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito.
Assim também os maridos devem amar suas mulheres como a seus próprios
corpos. "46
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TRABALHO E PROPRIEDADE
O Sétimo Mandamento: "Não furtarás."
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Similarmente, um capitalista convicto do gênero laissez faire acredita na
pretensa lei da oferta e procura como fonte de toda a bondade, verdade e justiça.
Como a "propriedade privada" para o comunista, a oposição a essa "lei" seria o
pecado original do qual se derivam todos os outros males. Também aqui o
homem é visto primariamente como um ser econômico, e a importância das leis
econômicas é exagerada até que se tornem o centro absoluto da existência
humana.
Contrariando esse pensamento pan-econômico, o cristão cumpre o sétimo
mandamento mostrando em sua vida que Deus, e não algumas pretensas leis
econômicas, deve ser o ponto focal da existência humana. A lei da oferta e
procura deve ser subordinada à responsabilidade do homem, sob Deus, de amar
o próximo. Nenhuma teoria econômica pode jamais transformar seres humanos,
pelos quais Jesus Cristo morreu, em meras mercadorias a serem usadas como
meios para fins econômicos. Faz pouca diferença se o fim para o qual se usam
seres humanos é a ditadura do proletariado ou a acumulação de riqueza nas
mãos dos capitalistas, pois o evangelho diz "não" a todas as tentativas de
subordinar o eterno propósito do homem de louvar e glorificar a Deus a
qualquer teoria econômica específica.
Nesse conflito é tarefa do cristão mostrar por sua vida diária que Deus é o
centro verdadeiro de toda a existência humana. Poder econômico e político ou
riqueza nunca são fins em si mesmos, mas são, para o cristão, meios e talentos
que ele deve utilizar para glorificar a seu Deus e Salvador. E o cristão também
sabe que nenhuma propriedade jamais é realmente "privada". Visto que tudo o
que temos são bens que nos foram confiados por Deus, não temos o direito de
os usar ou desperdiçar como se fossem absolutamente propriedade nossa. Isso
terá implicações para a conservação do solo e muitos outros problema
específicos. O cristão sempre se considerará um mordomo das dádivas de Deus.
Ele estará sempre consciente do fato de que algum dia terá que prestar contas de
sua mordomia. Nem a abolição nem a glorificação da propriedade privada, mas
a vida em comunhão com Deus é a saída para o dilema humano. O problema do
homem não é essencialmente econômico mas teológico, e nenhuma panacéia
econômica toca a raiz de sua ansiedade e frustração.
À luz do evangelho, a vida econômica é compreendida do ponto de vista
do conceito cristão de "vocação". Não se pode negar que os homens precisam
trabalhar para sobreviver. O trabalho é mais do que um mal necessário; ele dá
sentido e propósito a vidas que de outra forma seriam completamente fúteis.
Mas o trabalho não é nem mero meio de adquirir propriedade nem de servir ao
Estado ou ao partido; é, antes, uma oportunidade de servir a Deus. O conceito
cristão de "vocação" significa que pela fé todo cristão pode e deve encarar seu
trabalho diário como uma oportunidade de servir a Deus.
O caráter particular do trabalho faz de fato pouca diferença. Pela fé é
possível considerar não apenas as profissões mais espetaculares do cirurgião, do
estadista, do pastor e do missionário, mas também as do motorista de caminhão,
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do rebitador, do escriturário e do faxineiro como caminhos de serviço cristão.
Um trabalho é uma vocação não em virtude de seu caráter inerente, mas em
virtude da compreensão cristã de quem o executa. Todo labor feito para a glória
de Deus e a serviço de nosso semelhante é vocação cristã. E nenhuma atividade
feita por motivos meramente egoístas é santa por sua natureza. O trabalho de
pastor ou missionário, de enfermeira ou médico não é inerentemente uma
vocação mais cristã do que qualquer outro empreendimento humano. Se feita de
maneira egocêntrica e sem fé, a própria proclamação do evangelho deixa de ser
vocação cristã. De fato um homem poderia batizar mais pessoas do que o
apóstolo Paulo, mas se ele o fizesse sem fé, seu trabalho não seria mais cristão,
do que o exercício sem fé de qualquer outra arte ou ofício. Não é o trabalho,
mas a fé do trabalhador que dá a uma ocupação seu caráter distintamente
cristão. O cumprimento do sétimo mandamento na fé significa que toda a nossa,
vida se toma um testemunho vivo do fato de que Cristo é nosso Senhor e nós
somos seus discípulos.
Em fabricas e fazendas, escritórios e cozinhas, os cristãos demonstrarão
em seu trabalho diário que todo trabalho deve ser feito por causa de Deus. Não
existe âmbito de trabalho em que Deus não seja Senhor. É impossível dizer,
como cristão: "Negócios são negócios", ou: "Política é política", como se
existissem áreas da vida que possam funcionar conforme suas próprias regras e
independentemente da vontade de Deus. E, como a fé cristã nunca é uma teoria
acerca da vida, mas uma vida de discipulado, não é suficiente reconhecer o
senhorio de Cristo em todas as áreas da vida como uma proposição teórica que,
consideramos verdadeira. A vida cristã tem que ser uma vida na qual esse
senhorio de Cristo seja vivido efetivamente. Tem que haver uma diferença na
maneira de um cristão fazer seu trabalho. Isso não significa que se espera dele
que interrompa suas atividades de soldador a cada meia hora para dirigir um
pequeno sermão a seus colegas. Significa, no entanto, que ele será o melhor
soldador que puder, porque estará soldando para a glória de Deus e verá em seu
trabalho diário uma oportunidade de glorificar a Deus e servir seu próximo.
O sétimo mandamento é cumprido sempre que fizermos nosso trabalho
diário, não por causa do chefe, nem para ficarmos ricos, nem para obtermos
aclamação pública, mas porque entendemos que nosso trabalho diário nos dá
uma oportunidade de agradecermos com ele por tudo o que Deus tem feito por
nós.
"Não furtarás." - Cumprido através do evangelho isto significa: traba-
lhar duro e bem, não por medo dos homens, mas para a glória de Deus e por
amor a nosso próximo.
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INTEGRIDADE
Onde há esta confiança e esta fé (em Cristo), ali está um coração corajoso,
obstinado e destemido, que se arnsca e apóia a verdade, tanto faz se está em jogo
o próprio pescoço ou o manto, se é contra o papa ou contra os reis, como vemos
que o fizeram os caros mártires. Pois semelhante coração se contenta e se apraz
com o fato de ter um Deus gracioso e favorável. Por isso despreza favor e graça,
bens e prestígio junto a todas as pessoas, deixa ir e vir o que não quer
permanecer, conforme está escrito em Sl 14[15].4: "Ele despreza os que
desprezam a Deus e honra os que temem a Deus", isto é: ele não teme os tiranos,
os poderosos, que perseguem a verdade e desprezam a Deus; não os considera,
mas os despreza. Em contrapartida, os que são perseguidos por causa da verdade
e temem a Deus mais que aos seres humanos, a estes ele se apega, auxilia-os,
cuida deles e os honra, contrarie a quem contrariar.
Este mandamento tem toda sorte de implicações para a responsabilidade
do cristão na arte e literatura, na ciência e história, e pela liberdade em geral.
Freqüentemente na História os cristãos acharam que tais assuntos não eram de
sua alçada, ou que tinham a obrigação de suprimir a verdade para o bem de
alguma fórmula de propaganda eclesiástica. Sempre que isso aconteceu, o
oitavo mandamento foi transgredido. A vida cristã sob o evangelho tem que se
preocupar com o uso da linguagem para o bem da verdade. O âmbito da
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literatura sempre foi uma área na qual os cristãos tentaram servir a verdade.
Desde os escritos dos antigos pais da Igreja até os de Dorothy Sayers e C. S.
Lewis hoje, pessoas cristãs tentaram dar testemunho da verdade em prosa e
poesia. De modo semelhante e talvez mais indireto pela pintura, arquitetura e
música, através de pesquisas eruditas nas humanidades e ciências, os cristãos
têm cumprido na fé o oitavo mandamento.
Este mandamento submete os cristãos a um exame severo. Podemos nos,
considerar servidores da verdade se escrevemos livros desonestos, mesmo que
tenham uma bonita lição cristã no final? Porventura estamos servindo a Cristo
quando construímos edifícios desonestos, e talvez especialmente igrejas deso-
nestas, mesmo que sejam populares entre pessoas que nada sabem de arquite-
tura? Acaso podemos nos considerar servidores de Cristo se o retratamos da
maneira como as pessoas que publicam arte religiosa pensam que deveria ser a
aparência de Cristo para maior sucesso de vendas? Não deveria um artista pintar
Cristo como ele sabe que Cristo é a partir da profundidade de sua inspiração
artística e cristã?
Cumprir o oitavo mandamento implica testemunhar a verdade não apenas
"contra papas e reis", que atualmente não são muito atemorizantes para nós em
nosso país, mas também contra pesquisas de opinião pública e comissões
parlamentares de inquérito. Isso nos leva ao problema da "liberdade". Viver o
oitavo mandamento significa também defender a integridade dos homens e seu
direito de buscar a verdade, mesmo que sua busca os conduza para muito longe
do que sabemos ser a verdade. Não prestar falso testemunho significa também
que não devemos dizer às pessoas que a verdade pode ser encontrada aceitando,
implicitamente as opiniões de pessoas que têm a verdade. A verdade não pode
ser herdada; ela não pode ser aprendida como se aprende um discurso famoso. A
verdade última precisa ser crida. Ninguém pode ser forçado a crer, e qualquer
esforço de fazer surgir a fé desta maneira é uma ofensa trágica contra o oitavo
mandamento. Se Deus se recusou a forçar os homens a crer, quem somos nós
para mexer com uma integridade humana que o próprio Deus respeitou? A fé
cristã sempre causou o maior impacto quando foi vista como uma alternativa
clara a outras crenças. No caos de crenças do mundo mediterrâneo dos três
primeiros séculos, o cristianismo emergiu vitorioso. Quando aceita meramente
como parte da nossa herança, a fé cristã degenera.
Repetindo, a vida cristã cumpre o oitavo mandamento quando os cristãos
vivem como testemunhas corajosas da verdade. Testemunhar a verdade não
significa apenas declarar nossa preocupação teórica com a verdade, mas tam -
bém mostrar em toda ação que cremos que o Deus que se revelou em Jesus
Cristo é a verdade, que temos infinito respeito por esta verdade e que viveremos
a verdade em todas as áreas de nossa vida. Não servimos a Deus na verdade
aceitando como verdadeiras certas proposições a seu respeito, mas deixando sua
verdade operar em nós de modo que em todos os atos de nossa vida demos
testemunho da verdade.
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COBIÇA
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zação social bem-sucedida provavelmente tem que levar em conta essa cobiça
humana fundamental. Parece que a Igreja cristã, com sua apresentação do
cristianismo como um seguro metafísico contra incêndio, também usou freqüen-
temente essa arquicobiça para seus próprios propósitos.
Mas não há mais nada a ser dito sobre esse estado de coisas com base no
evangelho?
Parece claro que mesmo a utilização da cobiça pela Igreja para impelir as
pessoas à sua comunhão está claramente em desarmonia com a vida de fé cristã.
Para aqueles que sabem que "quem procurar sua vida perdê-la-á e aquele que
perder sua vida por amor a Cristo encontrá-la-á", o motivo do lucro individual,
socialista ou eclesiástico deve parecer autodestruidor. Mesmo que tentemos usar
essa mesma palavra de Cristo para transformá-la em alguma prescrição pruden-
cial para encontrar nossa vida, estaremos perdendo nossa vida. Diz o apóstolo
Paulo: "E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que
entregue o meu próprio corpo para ser queimado, e não tiver amor, nada disso e
aproveitará."47 Em qualquer forma que possa aparecer, mesmo em sua
roupagem mais eclesiástica, a cobiça sempre separa o homem de Deus.
Mas qual é o cumprimento destes mandamentos quando Cristo é nosso
Senhor na fé? Como o apóstolo Paulo indica e todo o Novo Testamento
proclama claramente, o motivo básico de nossa vida tem que mudar. Se cremos
em Cristo - se somos seus discípulos e seu poder habita em nós -, então o amor
que serve ao próximo se toma a força básica em nossa vida. Ao invés de um
motivo de lucro individual, socialista ou mesmo eclesiástico, o motivo de nossa
vida tem que ser o amor que está em Cristo Jesus e que busca o interesse do
próximo. Este é o sentido do "arrependimento" ou do "novo rumo da mente"
que o Novo Testamento menciona tantas vezes. Nossa vida então não estará
dirigida para nosso próprio interesse, mas para o das pessoas ao nosso redor.
Tornamo-nos extrovertidos na acepção mais profunda da palavra. Perde-mos
diariamente nossa vida para servir aqueles que precisam de nós. Neste sentido
Jesus Cristo foi o maior "extrovertido" que já viveu, pois viveu apenas para o
bem dos outros.
Se entendido corretamente, esse amor cristão na obediência ao nono e
décimo mandamentos transformará toda a nossa vida e lhe dará um rumo
inteiramente novo. Ao invés de usarmos tudo e todos em proveito próprio,
deixaremos que Deus nos use em proveito de nossos semelhantes e da procla-
mação de seu reino. Tudo o que tivemos se tornará um meio de tornar efetivo
esse serviço. Nossa casa, nosso relacionamento com nosso cônjuge, todas as
nossas posses se tornarão meios de demonstrar o poder do amor divino. Da
mesma forma, na vida de Cristo todas as relações humanas e todas as posses, de
um banquete de casamento a alguns pães e peixes, se tomaram um caminho
para a proclamação da boa nova do grande amor de Deus.
Também os dois últimos mandamentos são cumpridos na vida, não na
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desaprovação teórica da cobiça. A fé cristã, quando vivida, não é uma teoria
acerca do amor divino, mas é o amor de Deus em ação através de homens e
mulheres que se tomaram discípulos de Cristo. Precisamos dizê-lo novamente: a
fé cristã não é uma série de opiniões acerca da natureza de Deus, do homem e
do universo; ela é a vida como discípulos de nosso Senhor Jesus Cristo, o Filho
de Deus, o Salvador. As teorias são uma tentativa de descrever o que acontece
quando Cristo chama homens para serem seus discípulos. Elas podem todas ser
muito verdadeiras, mas não são substituto para o discipulado. Um livro-texto
sobre fisiologia não é substituto para a vida. Nenhuma descrição, por mais
acurada que seja, do processo de comer substitui o comer. Deus enviou seu
Filho, uma pessoa que nasceu, viveu, morreu e ressuscitou dos mortos, para que
o seguíssemos vivendo nossa fé a cada momento de nossa vida. O cristianismo
é discipulado. Esse discipulado só é possível quando Deus em sua graça nos dá
a fé de ver Cristo como Senhor de nossa vida.
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ÉTICA DA DECIÃO
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NOTAS
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