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Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE: uma etnografia das


experiências de caminhada ecológica em um grupo de

DOSSIÊ
ecoturistas1

Carlos Alberto Steil*


Rodrigo Toniol**

O presente trabalho tem como objeto de estudo a experiência dos ecocaminhantes, um grupo
de praticantes de caminhadas ecológicas que, apostando no cultivo de um bem-estar físico,
mental e espiritual, realiza caminhadas em meio à natureza. A partir da etnografia da experi-
ência dos caminhantes, procura-se investigar a vivência das trilhas como lugares repletos de
forças restauradoras, fluidos energéticos para saúde do corpo e da alma. Com base no esforço
teórico de uma proposta que pretende, sobretudo, traduzir a fenomenologia para o campo
antropológico e, assim, colapsar dicotomias como mente e corpo, natureza e cultura, sujeito e
objeto, busca-se refletir sobre o caráter terapêutico das caminhadas, compreendidas pelos
caminhantes não apenas como exercícios físicos, mas também como uma via de acesso às
questões relativas à alma.
PALAVRAS-CHAVE: ecoturismo, nova era, corporeidade, corpo, caminhadas ecológicas

INTRODUÇÃO riência etnográfica das caminhadas, atravessamentos


que compõem uma complexa trama de interesses,
Esta é uma etnografia sobre a experiência de motivações, sentimentos e sensações próprias do
caminhadas em um grupo de ecoturistas: o ato de caminhar no contexto das peregrinações con-
Ecocaminhantes, uma empresa de turismo ecológi- temporâneas junto à natureza.
co que promove trilhas em meio à natureza. Procura- Alinhados com a proposta do paradigma
mos identificar, na pesquisa, os pontos de conver- da corporeidade de Thomas Csordas (2008), pro-
gência entre práticas ecológicas, de saúde e de curamos compor a narrativa etnográfica tomando
espiritualidade voltadas para o aperfeiçoamento de como ponto de partida as experiências daqueles

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si. O que está em jogo é apresentar, a partir da expe- que caminham nas condições de sujeitos urbanos,
escolarizados, religiosos ou não, defensores da
*
Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa causa ecológica ou indiferentes a ela. Trata-se, en-
de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). fim, de explorar como as experiências da paisa-
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento gem, do ambiente e do lugar em que se caminha
de Antropologia. Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio
43311, Sala 104A -Agronomia. Cep: 91509-900 - Porto estão articuladas com as práticas e pertencimentos
Alegre, RS - Brasil. steil.carlosalberto@gmail.com
**
Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-
cotidianos dos caminhantes. Assim, procuramos
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal privilegiar a polifonia das experiências do cami-
do Rio Grande do Sul (UFRGS). rodrigo.toniol@gmail.com
1
Este artigo decorre da contribuição de Rodrigo Toniol ao nhar, afastando-nos da imagem de uma caravana
projeto “O cultivo de Si nas paisgens da ecologia e do que se desloca em uma mesma direção, tanto obje-
sagrado”, coordenado por Carlos Alberto Steil e Isabel
Carvalho (PUC-RS) e financiado pelo CNPq. Ao longo tiva como simbólicamente, e aproximando-nos de
do texto, a flexão verbal varia entre a primeira e a terceira
pessoa, por conta da participação de Carlos Alberto Steil um olhar que enfoca essa prática como uma arena
em apenas algumas das experiências de campo e entre-
vistas citadas, enquanto Rodrigo Toniol participou de de disputas capaz de acolher tensões entre dife-
todas as idas a campo e entrevistas. Assim, a primeira rentes discursos, enunciados e sentidos.
pessoa do singular, usada no texto, refere-se sempre à
experiência de Rodrigo Toniol. A possibilidade de se estabelecer uma

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ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

interface entre espiritualidade, ecologia e aperfei- nente incorpora outra característica da moderni-
çoamento de si, a partir de práticas que assumem dade religiosa que, segundo Hervieu-Léger (2008),
como central a busca por uma vida saudável, nos remete à autonomia do indivíduo em com-
sedimenta-se numa série de trabalhos (Carvalho, por seu próprio sistema de crenças.2 Essas ca-
2002; Carvalho; Steil, 2008; Magnani, 1999; Soa- racterísticas – da imanência e da autonomia –
res, 1994) que apontam para certa reordenação do permitem-nos situar a experiência religiosa no
panorama religioso que teria transformado, em al- plano da experiência pessoal dos sujeitos, que se
guns contextos, a relação com o sagrado. Alguns tornam o parâmetro de certificação da verdade.
autores têm sugerido que determinadas atitudes Ou seja, a certificação da verdade afasta-se das
responsáveis em relação ao meio ambiente têm normalizações institucionalizadas e passa a ser
conformado uma espécie de ascese ecológica, atestada pelo próprio indivíduo – configurando
indicativa da incorporação de sistemas de crenças o que temos denominado como religiões do self
religiosas por parte de sujeitos e grupos ecologica- (Steil, 1999, 2004, 2006). Nesses contextos, as
mente orientados que, ao fim e ao cabo, terminam experiências dos sujeitos são os próprios princí-
por promover uma espécie de sacralização da na- pios geradores de autenticidade da relação que
tureza. Um modelo analítico para se pensar expe- se estabelece com o sagrado (Hervieu-Léger,
riências religiosas na natureza é o sugerido por 1993, 2008). Pretendemos, assim, sugerir que a
Campbell (1997), que compreende esse processo modernidade secular, governada em sua base pela
como fruto do “espírito de um tempo”, caracteriza- razão científica e técnica, ao mesmo tempo em
do, sobretudo, pela substituição do paradigma cul- que imprimiu uma marca a-religiosa no funcio-
tural e da teodiceia que tem sustentado as práticas e namento da sociedade, também permitiu a emer-
concepções ocidentais por um paradigma que gência de uma verdadeira nuvem de novas cren-
comumente caracterizou o Oriente, o qual o autor ças que encontram, nos corpos que se conectam
denomina como “orientalização do Ocidente”. O que com a natureza por meio de caminhadas, um de
é central nessa transformação é o deslocamento da seus pontos de ancoragem.
noção ocidental de religião – tradicionalmente con- Desse modo, sugerimos que as relações
cebida como transcendente – para a de imanência, com o sagrado, vividas pelos sujeitos de nossa
característica de concepções orientais. pesquisa, estão implicadas com as noções de
Uma das consequências da “orientalização” um corpo saudável para os caminhantes. Ao
é a mudança no espaço ocupado por Deus, que que parece, diferentemente da experiência dos
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deixa de ser situado em um plano fora do mundo peregrinos tradicionais, que usavam seus cor-
e passa, aos poucos, a habitar “no mundo”, tor- pos penitentes como instrumentos de perdão e
nando-se acessível por meio de experiências parti- salvação para transcender este mundo, os ca-
culares de caráter místico e energético, fruto, espe- minhantes que acompanhamos compreendem
cialmente, de um maior contato com a natureza. seus corpos como o lugar privilegiado de cone-
Refletir sobre essa mudança é, basicamente, reali- xão com o mundo e principal meio de aperfei-
zar um esforço para compreender como a çoamento de si. Por outro lado, se, nas peregri-
centralidade do sagrado foi dando lugar a uma nações tradicionais, a busca da saúde física é
experiência de sacralidade mais difusa, que tem a uma dádiva divina, que pode ser concedida den-
natureza como espaço privilegiado de manifesta- tro de um regime de reciprocidade entre seres
ção (Carvalho; Steil, 2008). Em certa medida, é esse humanos e divinos, para os ecocaminhantes,
deslocamento do transcendente para o imanente alcançar o bem estar físico e a saúde é uma
que possibilita aos sujeitos conceberem a natureza 2
As religiões afro-brasileiras, por exemplo, apesar de con-
como o lugar privilegiado do sagrado. siderarem os Orixás como entidades imanentes, não são,
a princípio, religiões que compõem esse novo quadro de
Essa centralidade atribuída ao sagrado ima- crenças que procuramos descrever.

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responsabilidade dos sujeitos humanos, que cussões na Internet, em que as pessoas divulgam
buscam se integrar num todo hamonioso que seus roteiros, discutem sobre o peso ideal da mo-
aponta para a superação das divisões entre cor- chila, o calçado mais adequado, as novidades
po e alma, natureza e cultura. tecnológicas para caminhantes, etc.4 A caminhada
Ao longo de um ano e meio de trabalho de deixou de ser experienciada como um evento pon-
campo – iniciado em fevereiro de 2008 e finaliza- tual e isolado, sendo incorporada ao nosso cotidi-
do em novembro de 2009 –, realizei dez caminha- ano.
das, participei de diversas reuniões dedicadas a
elaborar roteiros, confraternizações para receber
caminhantes regressos de longas viagens e festas PEREGRINAÇÕES, CAMINHO DE SANTIAGO E
de despedidas.3 Pude eu mesmo, depois de mui- NOVA ERA NAS CAMINHADAS ECOLÓGICAS
tos desconfortos musculares, desânimos e frustra-
ções traduzidas na minha incapacidade física em
Embora o foco de interesse empírico deste tra-
realizar mais que uma caminhada por mês, con-
balho não seja o de eventos de peregrinação, os des-
frontar-me com o meu próprio corpo, com os limi-
locamentos analisados relacionam-se, de algum modo,
tes físicos que ele me impunha e, com isso, apro-
com tal fenômeno e com o próprio movimento turís-
ximar-me da prática de caminhadas a partir da re-
tico (Graburn, 1989; Steil, 1996). Do ponto de vista
flexão sobre o modo pelo qual minhas próprias
histórico, a formação do Ecocaminhantes deu-se,
experiências corporais foram sendo padronizadas
justamente, com o rompimento dos três sócios da
naquela prática. Para pesquisar caminhantes, fui
empresa com outro grupo de caminhadas, a Asso-
convocado a caminhar, a engajar meu corpo na-
ciação dos Amigos do Caminho de Santiago
quele contexto etnográfico e concebê-lo não ape-
(ACASARGS).5 Ademais, a referência ao Caminho
nas como objeto para reflexão, mas também como
de Santiago é constante nas falas e imagens acio-
instrumento analítico. No que diz respeito à pro-
nadas pelos caminhantes quando descrevem suas
dução da narrativa etnográfica, isso implica expor
experiências de espiritualidade nas paisagens da
também minhas próprias experiências, expectati-
natureza. No verbete que escrevemos para o Dicio-
vas e sensibilidades ao caminhar. Foi somente as-
nário Brasileiro de Teologia, já oferecemos algu-
sim que pude tomar o corpo como diretriz
mas pistas dessa possível relação:
metodológica deste trabalho, concebendo-o “não
como um objeto que é bom para pensar, mas como

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Na condição da pós-modernidade, as peregrina-
um sujeito que é necessário para ser” (Csordas, ções têm adquirido um novo impulso que vem
2008, p. 367). tanto da revalorização de tradições pré-cristãs
(europeia, orientais e indígenas) quanto da emer-
Realizar caminhadas com os ecocaminhantes gência das religiões do self, que vão enfatizar a
não apenas conduziram-nos a cultivar hábitos rela- dimensão da experiência pessoal e a imanência
do sagrado na paisagem e na natureza. Valores
cionados ao condicionamento físico, como também como o cuidado do corpo, a ecologia, o sujeito
a nos inteirar de um vasto repertório de destinos psicológico como referência primeira para a
frequentemente percorridos por esses sujeitos. Ti- vivência da fé têm encontrado nas peregrinações
uma estrutura e um modelo ritual para se expres-
vemos de estudar os destinos mais comuns de ca- sarem (Steil, 2008, p.784).
minhadas, para conversar com nossos interlocutores
sobre os trajetos mais bonitos, os mais longos, os 4
Recebia notícias e participava das discussões, especial-
mais difíceis. Passamos a participar de listas de dis- mente em duas listas de e-mails sobre caminhadas: ca-
minhantes-do-brasil@yahoogrupos.com.br e
santiago@yahoogrupos.com.br.
3 5
Como foi explicitado no início deste artigo, o parágrafo Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que
que segue retrata a experiência de Rodrigo, que realizou visa a promover e conservar o Caminho de Santiago de
todas as caminhadas. A reflexão metodológica que Compostela em percursos de caminhadas que reprodu-
permeia a narrativa na primeira pessoa foi realizada pelos zem, no interior do Rio Grande do Sul, as dificuldades e
dois autores do artigo. as distâncias diárias percorridas no Caminho espanhol.

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ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

Na sua raiz etimológica, o termo “peregrina- com uma divindade que habita o santuário – con-
ção” deriva do vocábulo latino peregrinus, que sig- trasta com a busca mística de si, como uma jorna-
nifica “o estrangeiro, aquele que vive alhures e que da de santificação que encontra seu ponto de che-
não pertence à sociedade autóctone estabelecida, gada no reconhecimento de uma divindade que se
ou seja, é aquele que percorreu um espaço e, nes- manifesta no interior de cada peregrino.
se espaço, encontra o outro” (Dupront, 1987). Tal
acepção aponta, portanto, para o encontro com “o
outro” como indicativo de um duplo aspecto. Por A FORMAÇÃO DO ECOCAMINHANTES
um lado, esse encontro remete às dificuldades
objetivas da jornada empreendia pelo peregrino Desde 1994, segundo dados da OMT (Or-
que, ao percorrer lugares desconhecidos e enfren- ganização Mundial do Turismo),6 o ecoturismo tem
tar as adversidades do caminho, termina por im- um crescimento constante de 20% ao ano em todo
primir, nessa viagem, características de uma jorna- o mundo. Apesar de escassos, os indicadores so-
da heróica. E, por outro, refere-se ao ato de trans- bre esse segmento do turismo no Brasil também
formação de si, alcançado por meio de um deslo- apontam para um aumento no número de agênci-
camento do “eu” em busca do “Outro”, constitu- as, operadoras e grupos especializados em ofere-
indo um percurso interior, de cunho místico e cer atividades de turismo e de lazer em meio à
ascético, a ser realizado por aquele que peregrina. natureza. Sob certo aspecto, esse aumento foi im-
Nancy Frey, em Pilgrim Stories: on and off the pulsionado, nos últimos quinze anos, pela cria-
road to Santiago (1998), mostra como a peregrinação ção de unidades de conservação ambiental ou
se inicia num período anterior à ida efetiva do pere- mesmo pelas adaptações infraestruturais em algu-
grino a Santiago. O movimento físico no Caminho é mas cidades que se tornaram conhecidos sítios de
antecipado por uma espécie de movimento interno ecoturismo.7 Ademais, as atividades propostas se
que convoca o peregrino a refletir sobre si, colocar diversificaram e, assim, determinadas parcelas da
em xeque seus “apegos”, obrigando-o a decidir, por população, como a terceira idade, que até então
exemplo, o que levará na mochila durante os longos estavam fora do alcance desse mercado, tornaram-
dias de caminhada. Essa convocação ao “desapego” se ecoturistas em potencial. Conforme a
se apresenta aos sujeitos como um exercício não- EMBRATUR (Empresa Brasileira de Turismo),8 as
habitual, contrastivo com sua vida cotidiana. A utili- caminhadas na natureza passaram a ser uma das
zação desse recurso, que coloca em relevo oposições práticas mais procuradas do ramo, contribuindo
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como cotidiano e não-cotidiano, trabalho e não-tra- para um salto na geração de recursos desse seg-
balho, ordinário e extraoridinário, para analisar e des- mento, que passou de R$ 2,2 bilhões em 1994 para
crever práticas turísticas – sejam elas religiosas ou pouco mais de R$ 15 bilhões em 2007.9
não –, tem sido frequente entre os pesquisadores No entanto, o aumento na procura por
desses fenômenos (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry, esse tipo de atividade, que impulsiona os inves-
1996). timentos no setor, acompanha a lógica de trans-
Embora o “desapego” e a “viagem ao interi- formações históricas nas relações entre huma-
or de si” possam ser vistas como características nos e natureza que, repletas de disputas e confli-
marcantes das peregrinações cristãs, os sentidos
6
que elas assumem, na experiência dos atuais pere- Fonte: www.unwto.org/index.php (consultado em 08/
05/2009).
grinos do Caminho de Santiago, apontam para as 7
Apenas para citar alguns que buscaram atender às de-
transformações pelas quais passa a religião na soci- mandas do ecoturismo: Bauru (SP), Bonito (MT) e Três
Coroas (RS).
edade moderna. A permanência de certas caracte- 8
Fonte: www.turismo.gov.br/turismo/home.html (con-
sultado em 08/05/2009)
rísticas das peregrinações cristãs – uma jornada 9
Fonte: www.turismo.gov.br/ (consultado em 08/05/
penitencial, que encontra seu ápice no encontro 2009).

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tos, promoveram, especialmente a partir da déca- são praticantes de caminhadas, a Ecocaminhantes


da de 1970, a expansão de certo ideário ecológico presta um serviço profissionalizado, em que o
(Carvalho, 2002; Thomas, 2010). Os movimentos contato dos clientes com a empresa é feito ape-
alinhados com a contracultura foram importantes nas virtualmente – desde a inscrição para parti-
nesse processo de contestação das perspectivas que cipação nas caminhadas até os trâmites bancári-
tomavam a natureza como manancial de recursos os – por meio de um website.12
para uso humano e passaram a concebê-la como Ao constituir-se como uma empresa de
espaço privilegiado para a harmonização da vida ecoturismo, a Ecocaminhantes passou a operar em
cotidiana, contribuindo, assim, para a expansão uma faixa de preço que varia entre duzentos e
de determinadas sensibilidades relacionadas ao cinquenta e trezentos e cinquenta reais para uma
meio ambiente.10 caminhada de um final de semana. Ainda que os
O grupo Ecocaminhantes consolidou-se destinos sejam variados, essas atividades podem
como uma das principais empresas de trilhas eco- ser descritas como de médias distâncias,13 percor-
lógicas do Rio Grande do Sul, mantendo uma agen- ridas em trilhas com mata fechada ou em extensos
da de atividades com a média de duas caminha- descampados, como os campos localizados na ser-
das por mês. Os destinos e a duração dessas ativi- ra gaúcha e regiões litorâneas pouco habitadas.
dades são variados, podendo acontecer ao longo Esses grupos não passam de trinta pessoas e são
de um único dia, em cidades do entorno de Porto sempre orientados por guias que os auxiliam ao
Alegre, durante um final de semana ou feriado, longo do trajeto.
em localidades mais distantes da capital gaúcha, No que diz respeito à formação da
como São José dos Ausentes (RS), ou ainda, po- Ecocaminhantes, ela se deu, justamente, a partir
dem ser caminhadas com mais de uma semana de da discordância com alguns membros da
duração, em outros estados e países, tais como: ACASARGS com relação, por exemplo, aos rotei-
Chapada Diamantina (BA), Deserto do Atacama (Chi- ros de caminhadas, ao caráter turístico e ao enfoque
le), Aconcágua (Argentina) e diversos parques na religioso de suas atividades. A partir de então, três
África do Sul. Para cada uma dessas atividades, participantes da ACASARGS começaram a orga-
constituem-se grupos com cerca trinta pessoas, nizar suas próprias caminhadas, deixando de pri-
sendo a maioria formada por mulheres com ensi- vilegiar estradas rurais parecidas com o Caminho
no superior, idade entre trinta e cinquenta anos, de Santiago e passando a ter, como foco, trilhas na
solteiras e residentes em grandes cidades.11 Fun- natureza. Nesse sentido, pensar a própria consti-

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dada e administrada por três amigos que também tuição da Ecocaminhantes pode fornecer uma cha-
ve interpretativa para não somente situar a dimen-
10
A expansão de determinado ideário ecológico, a partir da são religiosa do campo ecológico, como também
segunda metade do século XX, esteve atrelada a um con-
junto de movimentos contraculturais, que reconhece- para compreender as próprias transformações do
ram nas questões ambientais uma via de acesso às críti-
cas antimodernas por eles produzidas. Na esteira de al- campo religioso em direção a um movimento que
guns analistas do campo ambiental (Ferry, 1994; Carva-
lho 2002, 2009), pode-se situar o romantismo como aponta para a natureza como lugar do sagrado.
uma importante fonte de produção da sensibilidade eco- Assim, se, por um lado, a ACASARGS cons-
lógica, bem como de um tipo de engajamento político
por ela promovida. Conforme sugerem tais autores, a titui-se como um grupo de caminhadas de orienta-
recusa às normatizações do fazer político, a valorização
do self, da autoconscientização como ação transformadora ção, a priori, religiosa, na qual o Caminho de Santia-
e da politização do cotidiano individual são alguns dos
elementos que caracterizam esse legado romântico na go de Compostela é uma das principais referências
postura política ecológica. Essa perspectiva histórica, que para seus integrantes, por outro, a Ecocaminhantes
situa o romantismo como balizador da emergência de
determinada postura ecológica, pode ser tencionada a apresenta-se como um grupo que realiza trilhas
partir de textos que pontuam o projeto normatizador
com raízes iluministas, que deram visibilidade às ques-
tões ambientais (Baubéro, 2001; Ribeiro 1992)
12
11
Esses dados foram fornecidos pela empresa www.ecocaminhantes.com.br
13
Ecocaminhantes e estão publicados em Manieri (2008). As caminhadas têm em média 10 a 15 km.

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ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

ecológicas, pontuando, entre os objetivos de suas Quando era mais novo, eu caminhava, mas aí,
por causa de rumos que a vida tomou, tive que
atividades: parar. Agora faz três anos que me separei e tive
um grave problema de saúde e então fiz uma
Organizar e promover caminhadas que permi- reorientação de minha vida e a primeira coisa
tam a integração entre os caminhantes e o meio que fiz foi voltar a caminhar. (Vinícius)
ambiente; buscar percursos variados, onde o con-
tato com a natureza esteja presente; incentivar e
Gilberto, outro ecocaminhante, conta que co-
conscientizar sobre a importância de nosso
ecossistema, despertando, assim, uma consciên- meçou a caminhar depois de uma mudança em sua
cia ecológica.14 vida profissional e de uma separação conturbada:

Ao narrar os motivos que levaram Daniel, um Eu tinha uma empresa familiar, um hotel. Era
dos fundadores da Ecocaminhantes e antigo respon- um hotel médio, tinha 70 apartamentos, mas a
gente ficava muito ligado e eu acho que foi no
sável pela elaboração dos roteiros de caminhadas da mês seguinte que terminou o hotel que eu pensei
ACASARGS, a deixar o grupo de peregrinos, Ana, assim: eu quero me dar um presente, quero me
dar uma coisa prazerosa. Eu não gosto do verão,
também sócia da Ecocaminhantes, aponta:
quero ir pra um lugar frio. E ai alguém comen-
tou: tu não queres ir para a Patagônia caminhar?
Ele [Daniel] queria oferecer mais para as pesso- Como também tinha acabado de me separar, de-
as. Por exemplo, aquela coisa de a gente ir atrás cidi ir, pra mudar de vez. (Gilberto)
de patrocínio, de poder dar lanche, de oferecer
coisas melhores, de não pegar um ônibus comum
da prefeitura, de dar um ônibus mais legal, de Juliana, uma professora de inglês aposenta-
comer num lugar melhor. Ele queria outro pú- da, já fez o Caminho de Santiago duas vezes, além
blico e poder fazer trilha que o pessoal da Asso-
de ter sido hospitaleira15 em um albergue em Nájera,
ciação não faz... Eles fazem caminho em
estradinha rural. Sei lá, longos, mas fáceis. (Ana) na Espanha. Ela também participou de um curso
internacional sobre o Caminho na Universidade
A fala de Ana nos auxilia a depreender dois de Santiago de Compostela, é membro do conse-
elementos importantes que consolidam alguns dos lho fiscal da ACASARGS e também participante
principais aspectos das experiências que estão em da Ecocaminhantes. Em entrevista, conta que co-
jogo nas caminhadas: o perfil de quem caminha e meçou a caminhar após uma depressão psíquica.
a paisagem em meio da qual se caminha.
Eu tive uma vez um problema de depressão e acho
que, com isso, eu comecei a me antenar com essa
coisa de caminhada, mais contato com a natureza
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QUEM SÃO OS ECOCAMINHANTES? e viver uma vida mais saudável. (Juliana)

Embora diversas, as principais motivações Se, ao que parece, o início da caminhada dá-
que levaram os caminhantes a iniciarem a prática se, para alguns, a partir de momentos de transfor-
de caminhadas estão, na maioria das vezes, relaci- mação de determinados estados, a confirmação dessa
onadas com alguma ruptura, com alguma transfor- mudança – narram os próprios caminhantes – ocorre
mação na vida desses sujeitos. A caminhada apa- por meio da manutenção da prática da caminhada.
rece, nesses casos, como uma espécie de “Caminho porque gosto, agora faz parte de mim e
demarcador dessas mudanças. Vinícius, um ad- me lembra quem sou”, diz Vinícius. É assim que a
vogado paulista de 39 anos, que vem a Porto Ale- prática da caminhada torna-se uma constante na
gre (RS) todos os meses para caminhar com a vida desses sujeitos e deixa de estar restrita apenas
Ecocaminhantes, afirma: às atividades promovidas por empresas de
ecoturismo e associações de peregrinos, passando a
15
Hospitaleiros são voluntários que trabalham nos albergues
14
Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (consultado em espalhados ao longo do Caminho de Santiago, recepcionando
28/10/2009). e acomodando os peregrinos que chegam.

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ser planejada por pequenos grupos que se formam a interagiram para chegar seja à Ecocaminhantes, seja
fim de realizar caminhadas pelo interior do Estado ou à ACASARGS, oferece-nos algumas pistas sobre
mesmo grandes atividades para o exterior. As falas de os contornos desse circuito (Toniol; Steil, 2010).
Gilberto, participante da Ecocaminhantes há quatro Gilberto narra o início de sua prática de ca-
anos, e de Juliana, participante da ACASARGS e da minhadas a partir do contato com outra empresa de
Ecocaminhantes, nos dão a dimensão de algumas caminhadas ecológicas, chamada Rota Alternativa,16
dessas caminhadas: com a qual fez sua primeira caminhada na Patagônia.

Então, daí começou a aparecer muitos passeios Acho que a Rota foi precursora da Ecocaminhantes
tipo esses da Ecocaminhantes de final de semana [...]. E aí eu comecei justamente no programa top
e, normalmente, coisas no interior do estado. E foi deles [referindo-se à Patagônia]. Os proprietários
muito legal. Eu acho que a maioria desses passei- são o Nelson e a esposa dele. Eu também era cli-
os eu já fiz. Aquilo ali vai numa progressão [...]. No ente deles, mas agora viramos amigos, agora a
ano passado, por exemplo, a gente foi pra Tanzânia, gente faz passeios “extra Rota”, faz passeios por
fomos subir o Kilimanjaro, mas aí a gente come- conta. A gente até está indo no mês que vem para
çou a fazer as coisas por conta, porque fica muito o Vale do Pati [...]. Daí eu acabei conhecendo um
mais barato [...]. A gente fazia assim: um procura pessoal que já tinha caminhado com a Eco e en-
passagem, outro roteiro... (Gilberto) tão fui caminhar com eles também. (Gilberto)
A Ecocaminhantes, para um dia só, eu acho que
eles estão ficando caros. E eu tenho um grupo de Ana fez sua primeira caminhada com a
amigos que a gente se reúne e faz caminhadas
em Morro Reuter, numa caminhada da prefeitu- ACASARGS, a partir do convite de uma amiga, mas
ra de lá que tu pagas a alimentação e o resto é de reconstrói essa trajetória apontando uma espécie de
graça, pagas uma taxinha para uma camiseta, predisposição hereditária para as aventuras.
uma coisa assim. Quer dizer, tu gastas trinta re-
ais e ficas dois dias caminhando. Convives com
um monte de gente. E também tem uma turma Primeiro, o que eu posso dizer é que eu não tinha
de Taquara que estão sempre organizando cami- o hábito da caminhada. Nunca tive, aliás, eu sem-
nhadas e são pessoas muito queridas, eu cami- pre tive um hábito, uma vida meio sedentária.
nhei com eles em Ivoti. Então é assim, junta o Ginástica sempre fiz por obrigação, por saúde, eu
grupo e tu passas um fim de semana legal e bara- tinha que fazer, para fazer alguma coisa mas eu
to. A gente começa a formar os nossos próprios nunca tive essa coisa de ginástica em si. Gostava
grupos de caminhadas por afinidades. (Juliana) de esportes e tal, sempre gostei muito do mar, des-
sas atividades onde vai todo mundo. Sempre gos-
tei de umas coisas meio diferentes e acho que isso
é de família, tenho dois irmãos velejadores, um é
A CONSTITUIÇÃO DE CIRCUITOS DE CAMI- montanhista. Então, todo mundo é meio ligado à
NHADAS natureza. Comecei sem querer a fazer caminhadas

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porque uma amiga minha namorava um rapaz que
era o presidente, na época, da Associação do Ca-
Tanto entre os peregrinos quanto entre os minho de Santiago de Compostela, muito amiga
minha. E eles sempre organizavam as caminha-
ecocaminhantes, a prática de caminhadas é uma das e sempre me convidavam: vai, vai. Mas eu não
constante e não está restrita às atividades promo- tinha vontade, porque eu visualizava aquela coisa
vidas pelos respectivos grupos. Ao que parece, há de caminho de Santiago, peregrinação, que não
tinha nada a ver comigo: não vou, não vou, não
um circuito de atividades no qual os caminhantes vou. Daí um dia ela disse: vem me ajudar. Porque
estão inseridos. No entanto, ainda que seja possí- era uma caminhada que tinha muita gente, era em
Torres e eu: tá, então vou pra te ajudar. Daí fui
vel estabelecer distinções entre essas práticas e seus caminhar e lá eu conheci o Daniel. Já na primeira
praticantes, o que nos interessa não são tanto as caminhada. (Ana)
diferenças entre elas, mas sim o que permite a for-
mação desse conjunto. Isto é, aquilo que amálgama Ao sugerir essa herança familiar como possi-
essas atividades e que possibilita aos sujeitos em bilidade explicativa de sua identificação com a prá-
questão pertencerem, com aparente facilidade, a tica de caminhadas na natureza, a fala de Ana adquire
múltiplos grupos. Seguir os caminhantes nas suas 16 Atualmente, essa empresa promove apenas caminhadas
narrativas acerca dos grupos com os quais internacionais.

35
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

similitudes às narrativas de uma conversão religiosa, A primeira grande caminhada de Vinícius


em que uma predisposição já manifesta nos irmãos foi “Passos de Anchieta”.19 Nessa peregrinação,
iria, um dia, manifestar-se nela também. conheceu alguns gaúchos que já haviam feito ca-
Fábio, primeiro, tomou contato com o minhadas com a Ecocaminhantes:
Anamastê.17 Após uma passagem por esse grupo,
passou a frequentar as atividades da Biodança18 e, Caminhei no Passos de Anchieta e um pessoal
me comentou sobre os Eco. Agora todo mês ve-
por meio de alguns amigos da Biodança, com quem nho para cá caminhar. Sair na sexta-feira do es-
planeja fazer o Caminho de Santiago em 2010, co- critório em São Paulo e dizer que vai fazer trilhas
no Rio grande do Sul tem seu charme. (Vinícius)
nheceu a Ecocaminhantes.

Faz seis meses que comecei a caminhar com os Juliana começou a caminhar com a Ecocami-
Eco e já fiz caminhadas lá no morro Reuter, de- nhantes por meio da indicação de uma sobrinha
pois fui pra Florianópolis, Malacara, Praia Gran-
que já conhecia o grupo. Após fazer algumas cami-
de, Lagoa do Peixe e passei o ano novo com eles
no Aconcágua. Mas tudo começou com um ami- nhadas, começou também a frequentar a Biodança,
go meu do teatro, na verdade, um grupo que colo- com quem foi para o Caminho de Santiago pela
cava muitos exercícios de preparação de ator na
coisa da bioenergética que eles tinham aprendi- primeira vez. Após seu retorno de Santiago, en-
do lá no Anamastê, aí eu fiquei curioso. Aí eu fui trou em contato com a ACASARGS.
lá e fiz seis aulas, eu não fiz as duas últimas. Fiz
um trabalho fortíssimo e decidi me poupar. O
trabalho de bioenergética é um trabalho forte, Eu fazia Biodança com uma facilitadora muito
que ativa emoções que tu não conheces. Depois, legal, mas aí ela foi fazer uns cursos na Índia e
conheci o pessoal da Biodança e aí fiz muitos acabou ficando por lá, se estabeleceu na Espanha
trabalhos com eles. Neste ano, agora, vou para a e agora está em Ibiza. Continuei na Biodança, e
Noruega e ano que vem para Santiago. É que o os facilitadores novos fizeram um projeto de ali-
pessoal lá da Biodança tem um lado de ar exercícios da Biodança com o Caminho de
espiritualidade forte, na coisa do desapego. Eu Santiago, foi aí que fui pela primeira vez. Mas,
acho que essa coisa das caminhadas tem um lan- eu já caminhava com os Eco antes disso. (Juliana)
ce inconsciente do desapego. O fato de tu saires
da tua rotina e teres desapego à rotina, ao confor- Parece evidente, ao se avaliar os grupos pe-
to... Aí acho que pega a todos [esses grupos]. Mes-
mo aqueles que não sabem o que é los quais passaram os caminhantes até chegar à
espiritualidade. Acho que a questão do desapego Ecocaminhantes ou à ACASARGS, a existência de
está presente em todos [os grupos]. A
um trânsito livre, sem muitos constrangimentos,
Ecocaminhantes pode ter uma intenção pedagó-
gica na parte da ecologia. Eles explicam algu- que permite a esses sujeitos começar, parar ou per-
mas coisas sobre ecoturismo. Eles fizeram uma
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

manecer participando das atividades de diversos


formação de ecoturismo... Então ali acho que há
uma intenção pedagógica, mas pedagogia para grupos inadvertidamente. Exemplo disso é a parti-
relações humanas ou terapia não é intenção de- cipação simultânea de Juliana na Ecocaminhantes
les. Mas, no final todos os grupos acabam sendo
e na ACASARGS, ou, ainda, o contraste entre o
da mesma linha. Todos esses trabalhos procu-
ram uma integração do homem com a natureza, caso de Fábio e Juliana, em que o primeiro chegou
uma parte menos artificial. (Fábio) à Ecocaminhantes por meio de amigos da Biodança,
e a segunda que somente após participar de cami-
17
Anamastê é uma prática de terapia alternativa que pas-
sou a se difundir com mais vigor a partir dos anos 2000. nhadas com a Ecocaminhantes iniciou suas ativi-
“A proposta é a de alcançar, por meio de exercícios físicos,
a saúde plena do espírito”. (Disponível em: dades na Biodança. Mas, afinal, o que permite
www.anamastê.com.br. Acesso em: 28 jun. 2009) essa mobilidade entre grupos? Quais são os con-
18
O primeiro centro de formação em Biodança no Brasil a
define do seguinte modo: “Biodança, a dança da vida, é tornos desse circuito? O que há de solo comum
um sistema de autoconhecimento, de integração, reno- entre essas práticas?
vação orgânica e crescimento pessoal. Através do afeto –
19
por si mesmo, pelas pessoas, pela vida – os exercícios da O caminho “Os Passos de Anchieta” reconstitui o trajeto
Biodança, mediados pela música e pelo movimento, pos- percorrido habitualmente pelo Padre Anchieta no final do
sibilitam o reforço da identidade: ser aquilo que se é, fazer século XVI, no litoral do Espírito Santo. A rota estende-
o que se sonha, ter coragem para desenvolver os próprios se por 105 quilômetros, margeando o litoral desde Vitória
potenciais.” (Disponível em: www.biodanzabrasil.com.br) até a cidade de Anchieta, onde se encontra a Matriz erguida
Acesso em: 28 jun. 2009) pelo padre e que foi a sua última residência.

36
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

Ao investigar como se dá a conformação busca da redenção, mas de um corpo em direção


de um circuito neoesotérico, que agrega práticas ao aperfeiçoamento pessoal e ao cultivo de si.
distintas de xamanismo urbano na cidade de São Enquanto caminha na natureza, o caminhan-
Paulo, Magnani (1999, 1999b) afirma que um dos te não cultiva apenas seu bem-estar físico, mas seu
elementos que possibilita esse fenômeno é: corpo se constitui como um lugar em que se esta-
belece um fluxo constante entre as coisas relativas
... a intensa movimentação entre xamãs nacio- à alma, à mente e ao próprio corpo. Parece haver,
nais e internacionais, seus auxiliares, contatos,
clientes, donos de espaços neo-esôs e de sítios no ideal de saúde desses sujeitos, uma espécie de
que sediam as vivências. Assim é formada a interdependência entre as dimensões físicas e psí-
malha ao longo da qual floresce esta particular
quicas, e o contato com a natureza torna-se, nesse
modalidade de xamanismo, inventada a partir
de elementos descritos em algumas obras consi- contexto, um evento privilegiado na busca desse
deradas clássicas, de ritos e crenças atribuídos a ideal. Ao compreender a prática de caminhada
povos que ainda mantêm suas tradições e do
multifacetado acervo mantido e continuamente ecológica como uma terapia capaz de dar conta
realimentado pelo circuito neo-esô (1999, p. 133). dessa concepção holística de corpo, o caminhante
traz à tona o ambiente em que caminha – a nature-
Para Magnani (1999, 1999b), outro elemen- za – como elemento-chave que compõe essa noção
to que dá forma a esse circuito de práticas distin- de bem estar.
tas de xamanismo urbano é a construção de certa A busca pelo aperfeiçoamento de si a partir
continuidade no discurso dos grupos, instituições do exercício físico da caminhada na natureza diz
e “facilitadores” que privilegiam noções como a de respeito também a uma tentativa por atingir o bem-
comunidade, de indivíduo e de totalidade. A arti- estar das coisas relativas à mente e à alma, que se
culação desses três polos, ainda que com varia- estende para o ambiente. Perpassa essas práticas uma
ções, parece fornecer uma matriz que demarca al- noção ampla de saúde que extrapola os próprios
guns limites desse conjunto de práticas. limites corpóreos dos sujeitos e incorpora os con-
De certo modo, a articulação desses elemen- tornos físicos em que esses corpos estão situados,
tos – comunidade, indivíduo e totalidade – atra- como condição para que se intaure uma experiência
vessa algumas das práticas em questão. No entan- de bem-estar e saúde para tais sujeitos. Ou seja, não
to, isso se dá não como discurso norteador, mas há possibilidade de os indivíduos alcançarem o ide-
como questões em voga que compõem um panora- al de saúde física ou mental em descontinuidade
ma mais amplo de transformações em alguns as- com a saúde e o cuidade do ambiente.

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011


pectos da espiritualidade dos sujeitos. Essa relação, que torna intrínseca à expe-
Ao que parece, esse circuito percorrido pe- riência o ambiente em que se caminha, pode ser
los ecocaminhantes é composto por grupos que melhor compreendida quando refletida a partir da
desenvolvem atividades sumariamente corporais. noção de paisagem explicitada por Tim Ingold, em
Na Biodança e no Anamastê, conforme explicaram seu livro The perception of the environment
Fábio e Juliana, pretende-se, por meio de exercíci- (2000). Sua perspectiva afasta-se de concepções que
os físicos, alcançar determinados estados psíqui- tomam esses espaços como objetos, panos de fun-
cos, ativar sensações e experiências subjetivas a do, palcos, ou ainda como um cenário inerte no
partir da exaustão. Já na Ecocaminhantes, na qual que se inscrevem as relações sociais. Para
ACASARGS e na Passos de Anchieta, a atividade Ingold, a paisagem é a própria condição de ser no
principal é a caminhada. O que sugerimos é que o mundo, onde cultura, natureza e sujeito estão en-
corpo constitui-se como figura central nessas prá- trelaçados. A paisagem é concebida não como
ticas. Trata-se, no entanto, mesmo nos casos cita- elemento externo às relações, mas ela própria
dos de contato com o Caminho de Santiago e Pas- constitui e é constituída pelas relações daqueles
sos de Anchieta, não de um corpo penitente em que a habitam. Nas palavras do autor:

37
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

... nossa percepção do ambiente como um todo ência dos sujeitos para certo ideário ecológico que
não provém de uma ascensão, de uma perspecti-
va panóptica e global, mas surge na passagem de só se torna eficaz porque tais práticas se efetuam
um lugar para outro, e em histórias de movimen- numa paisagem que remete a uma concepção de
to e de horizontes variáveis ao longo do caminho.
natureza associada a uma ruptura com o cotidia-
(Ingold, 2005, p.93.)
no, vivido no meio urbano. Assim, não é somente
Assim, é na medida em que estabelecemos o fato de estar ambientada numa paisagem bucólica
relações, constituímos histórias, e percorremos a ou rural que faz da caminhada uma prática ecoló-
paisagem que ela toma forma. Apreender o que gica, mas a própria noção de natureza, que inclui
significa a experiência da caminhada para os cami- humanos e não-humanos numa totalidade e numa
nhantes envolve, portanto, um esforço que com- simetria relacional, o que a torna um evento capaz
preende a maneira como esses sujeitos se relacio- de se disseminar, de forma crescente, em muitas
nam com a paisagem em que caminham. Busca- partes do país e do planeta.
mos, assim, entender a paisagem não mais como Ana, uma das fundadoras da Ecocaminhantes,
algo externo à cultura, mas como constitutiva das Fábio, também frequentador da Ecocaminhantes,
dinâmicas sociais e temporais daqueles que a ha- e Juliana, que caminha tanto com a Ecocaminhantes
bitam, bem como, ela mesma, constituída pela rede como com a ACASARGS, relatam a relação entre a
de relações entre humanos e não-humanos que se caminhada, a paisagem e a percepção:
encontram engajados nela.
É super importante na caminhada ter a paisagem;
Ao justificar sua falta de interesse em fazer o acho que é um momento que todo mundo para,
Caminho de Santiago, Gilberto afirma: “Parece que olha e relaxa. O pessoal fica curtindo, é necessá-
rio. Faz parte, assim, para sair um pouco da vida
a paisagem lá não é o bicho, e nosso grupo valoriza
da cidade. Por que caminhar no meio do mato ou
muito a paisagem”. Ao saírem da ACASARGS, os numa estradinha? Eu acho que tem que haver um
fundadores da Ecocaminhantes parecem ter deslo- atrativo... Como paisagens diferentes sempre:
mar, serra, cânion. Os cânions, por exemplo, a
cado a preocupação com elaborar roteiros que re- caminhada em si é uma caminhada de campo o
metam ao Caminho de Santiago,20 para priorizar tempo inteiro, mas o que é legal é caminhar e, no
final, tu teres a paisagem: uma vista maravilho-
destinos que coloquem os sujeitos em contato di-
sa. (Ana)
reto com certo tipo de paisagem ecológica, como Nossa sociedade está muito acostumada ao raci-
é apresentado em seus objetivos.21 ocínio, sempre olhamos pela lógica, e isso serve
O que sugerimos, enfim, é que há uma pra algumas coisas e outras não. Então, a gente
tem que treinar a percepção direta do mundo. Às
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importante dimensão na prática de caminhadas eco- vezes, a gente está acostumada com uma rotina
lógicas que cria sensibilidades e orienta a experi- só, e nossa forma de perceber o mundo fica vici-
ada. Então, a percepção é o carro chefe da cami-
nhada. (Fábio)
20
As caminhadas promovidas pela ACASARGS consistem Eu, sinceramente, não gosto de repetir paisagem,
na realização de trajetos que reproduzem, em alguma me-
dida, na paisagem, a dificuldade e as distâncias que o pere- não gosto de fazer circuitos, de caminhar em cír-
grino enfrentará diariamente enquanto estiver percorrendo culos. Com os Ecocaminhantes, por exemplo, já
os quase 800 quilômetros do Caminho espanhol. Os traje- fui duas vezes para Fazenda Potrerinhos. Lá é
tos são sinalizados com setas amarelas, como as existentes muito lindo, muito legal. Mas, quando começa a
no Caminho de Santiago, as quais auxiliam o peregrino a
encontrar sozinho a rota correta que deve seguir. A coloca- repetir, não vou mais. (Juliana)
ção desses sinais é justificada pelos membros da diretoria
do grupo como tentativa de tornar aquela caminhada o mais
parecida possível com o Caminho. Mesmo que essas posições possam mar-
21
Conforme o website, os objetivos da Ecocaminhantes são: car algumas descontinuidades entre as caracte-
organizar e promover caminhadas que permitam a
integração entre os caminhantes e o meio ambiente; buscar rísticas e perfis dos sujeitos que participam dos
percursos variados, onde o contato com a natureza esteja
presente; incentivar e conscientizar sobre a importância de diferentes grupos de caminhada apresentados, o
nosso ecossistema, despertando, assim, uma consciência
ecológica; incentivar e conscientizar a prática da atividade que nos interessa aqui, sobretudo, são as conti-
física como manutenção da saúde mental e física; permitir nuidades, as possibilidades de sobreposições das
a participação de todos os caminhantes, independente da
preparação física, da idade e do ritmo de caminhada. experiências. Ao sugerir interfaces entre as di-

38
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

mensões ecológicas e religiosas, estamos apostan- pouco de paisagem, um pouco de tudo. [...] Por
exemplo, nesse final de semana, a gente vai para
do não nas transformações, mas, justamente, na Florianópolis, que é caminhada de praia, mas
permanência de determinadas sensibilidades em não é como aqui no Sul, que é uma reta só. Lá
tem costão, sobe morro, desce morro, um
jogo. Trata-se de evidenciar, na constituição de gru-
pouquinho de praia plana, aí passa nas dunas...
pos identificados com práticas de turismo ecológi- Então, é um pouco isso que a gente gosta de fazer,
co, como a Ecocaminhantes, trocas, disputas, ten- mesclar o tipo de paisagem. (Gilberto)
sões que envolvem outros universos de sentido,
como o Caminho de Santiago de Compostela. E, O tipo de paisagem em que se caminha bem
assim, chamar a atençao para a porosidade entre o como o fato de sempre haver novos roteiros são
ecológico e o religioso que aparece no contexto características apontadas pelos participantes como
etnográfico que vimos acompanhando, experien- algumas das principais razões pelas quais a
cialmente imbricados. Ecocaminhantes se tornou um dos grupos com
maior visibilidade na promoção desse tipo de prá-
tica no estado. A periodicidade dos passeios e a
“VAMOS CAIR NA TRILHA”: a experiência existência de uma loja virtual, na qual se pode,
das caminhadas ecológicas além de escolher a caminhada, efetuar seu paga-
mento, também possibilitam que a empresa tenha
Diante de uma oferta bastante ampla de locais clientes espalhados pelo país.
em que se pode realizar uma caminhada, os
idealizadores da Ecocaminhantes procuram propor
roteiros que convirjam para seus próprios interesses. COMPRANDO UMA ECOCAMINHADA: o
grupo e seus atores
... [o roteiro] é da nossa vontade, é o que a gente
tem vontade de fazer. Porque é bem isso, como [a
administração] da Ecocaminhantes é uma ativi- A empresa Ecocaminhantes não tem uma
dade que a gente tem que juntar com o nosso sede física, mas sim o domínio de um espaço na
tempo livre de férias, então tem que ser uma
coisa que a gente está com vontade de fazer tam- Internet, no qual divulga e comercializa caminha-
bém. Nas minhas férias, eu quero ir pra Patagônia. das. Nessa página, encontram-se a agenda de ativi-
Então, tentamos montar, organizar um passeio e
juntar as duas coisas. Para o Aconcágua, eu e o dades do grupo, fotografias dos passeios já reali-
Daniel fomos no ano passado de férias e a gente zados e algumas seções especiais que dão desta-
falou: temos que trazer o pessoal pra cá. Então, que a destinos como Patagônia, Chapada

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011


sempre que a gente gosta de ir para um lugar, a
gente tem vontade de levar todo mundo... É en- Diamantina, Aconcágua e África do Sul. Há ainda
graçado isso. Assim, num final de semana, a gen- uma seção dedicada ao programa Trilha Limpa,
te sai para passear... Bah, aqui era legal de trazer
o grupo, então a gente está sempre tentando en- que, segundo seus idealizadores, ao incentivar
xergar esse tipo de coisa. (Ana) os caminhantes a recolherem o lixo que encon-
tram pela trilha, endossa o principal objetivo da
A maior parte desses destinos se concentra empresa: o de propiciar, por meio de caminha-
em trilhas na natureza. No entanto, apesar de das na natureza, “o desenvolvimento da ativida-
predominantes, essas trilhas não são os únicos de física e da consciência ecológica”.22
tipos de paisagem em que se realizam as cami-
Cada passeio a ser realizado é apresenta-
nhadas. Como transparece nas falas registradas do no site com informações sobre a programa-
acima, essa escolha está também relacionada com
ção geral da atividade e uma classificação da ca-
a “não-monotonia da paisagem”.
minhada segundo seu nível de dificuldade. Se-
Nossas praias [as do Rio Grande do Sul], por exem-
plo, é aquela reta interminável, com super vento
22
que não dá trégua, e caminhar ali não é uma Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (Acesso em: 01 dez.
2009).
coisa agradável e acho que tem que juntar um

39
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

gue-se uma descrição dos trajetos a serem percor- bilidade não apenas para aqueles que já se co-
ridos. A trilha do Rio do Boi (SC), por exemplo, nhecem, mas também para aqueles que preten-
classificada com um grau de dificuldade “pesado/ dem estabelecer novos contatos:
difícil”, é assim descrita na página do Ecocami-
Tem duas coisas que são boas: a caminhada em
nhantes:
si, que independe do lugar, e também tem um
tipo de gente que faz essas caminhadas que é o
Trilha do Rio do Boi: a caminhada ocorre no inte- tipo de pessoas com quem eu gosto de estar, que
rior do cânion Itaimbezinho, sendo seu início em eu me sinto bem. Não importa se é com a
trilha por mata nativa, e, após, caminhada pelas Ecocaminhantes, com a Rota. Nem precisas sa-
pedras, no leito do rio do boi, com diversas tra- ber se tem algum amigo teu. Tu vais encontrar
vessias no mesmo rio, com direito a parada para alguém, às vezes eles mudam de nome, mas no
banho nas piscinas e nas cachoeiras. Caminhada final são todos iguais. (Gilberto)
de aproximadamente 7h e dificuldade alta.23
Diversos trabalhos (Amirou, 1995; Siqueira,
Além da obtenção de informações pelo site, 2006; Steil, 2003), que tiveram como foco de inte-
os caminhantes também podem se atualizar sobre resse atividades turísticas, sugerem a existência,
as atividades do grupo por meio de informativos nesses contextos, da emergência da modalidade de
via e-mail. A demanda pelos passeios é crescente, inter-relacionamento que Turner denominou de
e muitas caminhadas têm o número de vagas esgo- communitas. É essa experiência da communitas,
tado em menos de uma semana após sua divulga- marcada pela facilidade em estabelecer vínculos, pela
ção. Segundo Ana, mais de mil pessoas estão ca- camaradagem e pelo espírito de igualitarismo, que
dastradas no mailing da empresa, das quais cerca permite, por exemplo, a Gilberto afirmar que os
de seiscentas já participaram de alguma das cami- sujeitos apenas mudam de nome, “mas no final são
nhadas promovidas. Embora sejam números ex- todos iguais”. Para Turner, todos esses aspectos são
pressivos, a Ecocaminhantes não se utiliza de ve- característicos de momentos não-estruturados, nos
ículos de propaganda além do próprio site. quais as marcas da diferenciação social, as posi-
ções, enfim, tudo aquilo que classifica os sujeitos
A gente não faz propaganda. Então, ou vai ser por
em uma determinada estrutura desaparece, permi-
indicação de alguém que a pessoa fica sabendo de
nós. Já aconteceu de gente que está procurando tindo o surgimento de um modelo de relações não-
alguma coisa para fazer, digitou no Google “cami- pautado pelo que é normativo e estruturado, mas
nhada” e aí apareceu “Ecocaminhantes”. Com um
ou outro já aconteceu isso, mas normalmente é sim pelo não-estrutural (Turner, 2008).
por indicação. Nem é no site que se entra primei- Contudo, um dos limites desse tipo de lei-
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

ro. Muitos ligam direto, sem entrar no site. Nor-


tura é que, ao se creditar à communitas relações
malmente é por indicação e nunca por propagan-
da. Até porque, como a gente não tinha a ideia de de tipo não-estrutural, corre-se o risco de não per-
transformar isso num negócio, a gente nunca quis ceber que, embora possam parecer fluidas e
fazer propaganda, porque aí tu tem que estar pre-
parado para receber uma demanda grande. (Ana) indiferenciadas, essas relações se originam da con-
vergência das posições estruturais ocupadas por
Ao que parece, a indicação configura-se tais sujeitos. Isto é, o modelo de análise processual
como elemento central do ingresso nesse tipo de turneriano, que concebe a dinâmica social como
atividade. Trata-se, portanto, não somente de uma fruto da contínua tensão entre estrutura e
prática na qual os sujeitos se engajam por inte- communitas, quando verificado empiricamente,
resses pessoais, mas também por estarem envol- parece um tanto rígido. Nessa mesma linha, argu-
vidos em determinadas redes de sociabilidade mentamos que: “A estrutura e a communitas se
que proporcionam essa entrada. A caminhada, conjugam dentro do próprio evento, desconstruindo
nesse sentido, constitui-se num evento de socia- a ideia da contradição entre o espaço da estrutu-
ra e o da communitas enquanto entidades separa-
23
Fonte: www.ecocaminhantes.com.br (Acesso em: 01 dez. 2009). das” (Steil, 2003, p. 34)

40
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

Outra característica marcante das caminhadas ecológicos, religiosos. O engajamento informa ao


é a predominância de mulheres em relação aos ho- caminhante as habilidades técnicas, os gestos e
mens.24 Algumas atividades chegam a ser realizadas o saber-fazer valorizados nesses eventos. É ne-
com a presença, exclusivamente, feminina. cessário compreender, portanto, que o universo
das caminhadas remodela os corpos, converten-
Eu acho que os homens pensam que caminhada do-se em um marcador temporal na vida desses
não é para homem. Homem, se convidar para
um raffting ou rapel, eles vão, mas, se é pra uma sujeitos, transformando sua rotina e, possivel-
caminhada... Isso é totalmente preconceito mas- mente, alterando suas categorias de apreciação.
culino. Eles pensam que não é coisa que homem
Tornar-se caminhante é apropriar-se de
possa fazer: passar o fim de semana caminhan-
do. Talvez, se a gente desse outro nome, apare- uma determinada corporeidade, de modos espe-
cessem mais homens. As mulheres têm, nesse cíficos de estar atento “a” e “com” o corpo, sem
sentido, mais atitude. Quando estão sozinhas e
querem fazer uma coisa, elas vão atrás, buscam, que, no entanto, haja distinção entre aquilo que é
procuram e se juntam com outras para isso. Mas, domínio do físico, do mental ou do espiritual. No
homem sozinho, acho que é mais difícil de fazer
corpo, tudo isso está conjugado, e a corporeidade
isso. Se não é um amigo que convida, alguém
que traz junto... Acho que dificlmente, por conta refere-se, justamente, a tais arranjos.
própria, ele olha um anuncio e diz: “vou cami- Se, por um lado, a mediação da agência
nhar”. Mas, é sempre muito mais mulher. (Ana)
de turismo é importante e valorizada nas falas
dos ecocaminhantes, por outro, ela também é
A fala de Ana traz à tona dois focos explicativos
questionada e pode se tornar dispensável, de
para a pouca presença masculina nesses eventos.
modo que os seus participantes acabam valori-
O primeiro deles se refere ao caráter da própria
zando as caminhadas organizadas e empreendi-
prática da caminhada, a qual parece não estar tão
das por eles mesmos. Como relata Gilberto:
afeita às masculinidades quanto os chamados es-
portes de aventura. O segundo diz respeito à difi- Aparecem muitas dessas viagens curtas [...]. Por
culdade, por parte dos homens, de se mobiliza- exemplo, minha família tem apartamento em
Gramado, então nós já fomos três vezes em
rem para participar dessas atividades. Tendo em
Gramado caminhar. Meu irmão tem apartamen-
vista que as caminhadas são encaradas por muitos to em Torres, aí nós fomos lá nos dias 12 e 13 de
como um promissor evento de sociabilidade, a setembro, numa mistura de gente e inventamos
uma caminhada. Estas caminhadas acabam não
ausência masculina desestimula a permanência de saindo tão caras, porque tem só que pagar passa-
alguns sujeitos no grupo. Como ocorre no caso gem. O pessoal também gosta de cozinhar e aí
fazemos a caminhada. Nós também fomos para

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011


narrado por Gilberto, “a própria pessoa que me
Teutônia, uma das gurias mora lá. Em Caxias, tam-
convidou para caminhar pela primeira vez parou bém a gente foi para Caravagio, isso acaba saindo
de caminhar, porque disse: ali eu não arrumo nada. bem barato. E acho que tem opções... Fomos para
Sertão Santana num dia desses também. O pesso-
Até porque noventa por cento é mulher”. al acaba saindo por conta, parece que dá uns esta-
los, o pessoal começa a se afastar das agências e
fazer as coisas por conta. (Gilberto)

A CAMINHO DA CAMINHADA
Como podemos perceber, essas iniciativas
independentes das agências são formas de grupos
A construção de um corpo caminhante não
de caminhantes, que possuem uma sociabilidade
ocorre somente nas caminhadas. Esses corpos,
anterior estabelecida a partir de outras redes de
na verdade, são forjados gradualmente, confor-
relacionamento, se encontrarem. Mas essa socia-
me os sujeitos se engajam na prática de cami-
bilidade pregressa pode aparecer no âmbito das
nhar e incorporam determinados sensos éticos,
próprias agências. Em algumas caminhadas, um
24
Segundo dados fornecidos pela empresa Ecocaminhantes grupo de cinco ou seis pessoas faz a inscrição no
e publicados em Manieri (2008), 76% dos participantes
das caminhadas são mulheres. mesmo evento e se integra ao grupo maior. O senti-

41
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

do coletivo da prática da caminhada informa aos a gente fica cheio de coisas na cabeça e fica só
anotando e, claro, conforme o tempo dá, a gente
caminhantes o modo pelo qual devem se mover, vai fazendo as coisas que as pessoas falaram e o
relacionar-se com a paisagem, enfim, sustentar de- que a gente realmente acha legal. A gente gosta
de fazer coisas diferentes, sair do padrão. (Ana)
terminada hexis corporal. Esse compar-tilhamento
Eu acho que as coisas vão crescendo, que é um
está relacionado com a construção de uma técnica caminho natural. Tu começas com uma
do corpo específica que, conforme definiu Marcel caminhadinha pequena, depois você vai indo,
Mauss (2003), é obra da razão prática coletiva e in- indo, e aí tu queres fazer mais, não sei se chega a
ter um espírito de competição. Um fala: olha, eu
dividual. Em parte, é a partir da incorporação des- fiz isso. Aí o outro fala: isso é melhor. Eu acho que
sas técnicas que o corpo do caminhante é forjado. tem uma coisa de consumo, por que não? Que
diferencia até... Você conhece a pessoa e pensa: o
A relação entre a coletividade da prática e a cara já foi para tal lugar. Tem um grupo aqui que
incorporação das estruturas de sentido fomentadas está fazendo a cordilheira branca, no Peru, e eles
por essas práticas constitui também questão central têm o objetivo de caminhar em todos os lugares
do mundo e não repetir nenhuma caminhada.
ao paradigma da corporeidade de Thomas Csordas. (Gilberto)
No entanto, se, para Mauss, essa coletividade é
constituída por sujeitos que compartilham deter- Se a troca de informações sobre roteiros é
minadas técnicas corporais, para Csordas, a coleti- um aspecto importante da constituição de um ca-
vidade se dá com o compartilhamento de minhante, é na própria caminhada que esse aspec-
corporeidades. Noutro paralelo possível, aquilo to fica mais evidente. Durante uma das saídas de
que, para as teorias cognitivistas, é a intersub- campo que realizei – um passeio de três dias pelos
jetividade, na proposta de Csordas configura-se Campos de Cima da Serra Gaúcha, no município
como intercorporeidade. Isto é, trata-se da comu- de Cambará do Sul/RS – tomei a seguinte nota:25
nhão de determinados modos culturalmente ela-
borados de experienciar o mundo. Gilberto foi um dos últimos a chegar e, assim
que colocou sua mala no bagageiro, entramos no
Nas caminhadas, os participantes do grupo ônibus e começamos a viagem para Cambará do
trocam informações sobre os roteiros que devem e Sul/RS. A ida é o momento de menor interação
os que não devem ser feitos. Essa troca não apenas do grupo, mesmo tendo uma grande quantidade
de pessoas que procuram esta atividade justa-
informa um elenco de destinos interessantes para mente para estabelecer amizades. Sentei-me com
os caminhantes como também ajuda a constituir, Gilberto e começamos a conversar sobre algumas
trilhas que ele havia feito. Depois de algum tem-
de algum modo, um sistema hierárquico de classi- po de viagem, Ana juntou-se a nós e nos apre-
ficações desses roteiros. A partir de um conjun- sentou Vinícius, que estava sentado no banco logo
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

to heteróclito de elementos, tais como o contato à nossa frente. Ana acabara de voltar de uma
viagem de férias na África do Sul e narrou
com a natureza, a exoticidade e as dificuldades detalhadamente todas as trilhas que ela e Daniel
enfrentadas durante a viagem, os destinos turís- fizeram nos parques daquele país. Gilberto não
perdeu a oportunidade e passou a nos relatar as
ticos são hierarquizados e posicionados como dificuldades que estava enfrentando na prepara-
mais ou menos autênticos entre os caminhan- ção de sua viagem ao Nepal, aonde iria, com um
tes. Partilhar esses esquemas de classificação e grupo, subir até o acampamento base do Everest.
Vinícius, como que para apresentar sua relação
posicionar-se como consumidor das caminhadas de viagens, passou a nos descrever as principais
mais valorizadas é um elemento importante na caminhadas que já havia feito: “...o primeiro pas-
seio que fiz foi logo depois que me separei. Cha-
demonstração do engajamento nessa prática. ma Passos do Anchieta, são quatrocentos quilô-
metros entre o Espírito Santo e São Paulo. Aí pe-
Acho que isso mexe com a inveja, que o pessoal guei gosto pela coisa, vim pra cá fazer o Cami-
fala: bah, eu fui para...; bah, quero fazer esse aí nho das Missões e depois fiz duas coisas que sem-
também. Aí o outro: ah, mas eu fui para África. pre tive vontade, subir o pico da Bandeira e o da
Eu acho que tem uma oferta, uma troca de infor- Neblina, bicho, foi rojão! Lá eu conheci duas pes-
mação... (Fábio) soas que me convidaram para caminhar na
Hoje a gente tem bastante contato com o pessoal
25
que caminha. Aí, é um dando dica para o outro, e Diário de campo de Rodrigo Toniol.

42
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

Eslovênia, voltei de lá na semana passada. Cami- pretendemos retomar a questão da corporeidade


nhei em vários parques lá também.” [Nota de 15
de agosto de 2008] com que iniciamos este artigo. A experiência de
caminhar que vimos acompanhando aponta para
Uma das ideias-chave que vimos desenvol- o delineamento de dois modos somáticos de aten-
vendo neste artigo é a de que há uma relação entre ção que, ao que parece, constituem o corpo do ca-
ocupar uma posição privilegiada num sistema hi- minhante: a exaustão física e a relação estabelecida
erárquico que classifica as caminhadas como mais com a natureza.
ou menos autênticas e o grau de dificuldade que
tal destino impõe ao caminhante. Isto é, quanto
mais difíceis de serem acessados e concluídos, mais MODOS SOMÁTICOS DE ATENÇÃO E O
valorizados são os destinos. No entanto, se, por PARADIGMA DA CORPOREIDADE: uma breve
um lado, as dificuldades enfrentadas contribuem retomada
para a valorização de uma viagem, por outro, essas
dificuldades devem estar circunscritas a um limite O projeto teórico de Thomas Csordas é o
de tolerância que precisa ser respeitado. de desenvolver a corporeidade com um paradigma
para a antropologia. Esse modelo analítico conce-
Alguns que caminham com a gente curtem ir be o corpo não como como a base existencial da
para hotéis tipo Casa da Montanha, que é consi-
cultura. O que está em jogo, na corporeidade, é
derado quase um resort, é um hotel padrão clas-
se A. Eles são ligados à natureza, mas querem compreender o corpo como a própria condição da
luxo, querem passar bem. Podem sofrer na ca- existência humana e o solo da cultura. Amparado
minhada, não tem problema em se sujar todo, se
encher de lama, tomar banho de chuva, isso não nas contribuições da Filosofia Fenomenológica de
importa, mas depois querem chegar a um lugar Merleau Ponty (1971, 2000) e da Teoria da Prática
bom, confortável para poder tomar seu vinho e
de Bourdieu (2008), Csordas compõe seu próprio
tal. (Ana)
O mais importante pra mim não é chegar, mas arranjo teórico, tornando central, para sua análise,
sim caminhar, com certeza. Assim, o objetivo não as experiências culturalmente padronizadas nos
é ir lá, não! Uma das coisas que foram se refor- corpos dos sujeitos, onde reside o lócus da cultu-
çando com o tempo para mim foi isso. Eu não
recomendaria a Tanzânia, por exemplo, nem para ra. Assim, para refinar seu constructo teórico e
um inimigo, porque o final dela é muito, muito tornar a corporeidade um procedimento
difícil, e quando tu chegas nesse ponto, a coisa
fica desagradável, porque sai do controle, não tem metodológico, ele lança mão do conceito de modo
essa de dizer: Eu subi o Kilimanjaro. Grande coi- somático de atenção, que remete à experiência

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sa, o objetivo é o caminhar, não a chegada. Mas cultural de estar no mundo atento “a” e “com” o
para o pessoal é... Tanto assim que, no Everest,
quando tu chegas no campo base e o pessoal está corpo. “Estar atento a diz respeito à atenção dada
muito cansado, a 5600 metros, caminhando mui- ao estado do corpo no mundo, um modo de es-
to devagar e realmente não é o ponto mais boni-
to, você vai lá para dizer que chegou. O mais bo- tar atento ao meio intersubjetivo que ocasiona
nito não é lá, está atrás... Mas a maioria vai para aquela sensação. Estar atento com refere- se ao
dizer: eu cheguei. (Gilberto) modo de engajar os sentidos numa determinada
Tem uma coisa de provação também. A gente fez
a caminhada no Aconcágua e estávamos liquida-
atenção.” (Csordas, 2008, p.372).
dos, alguns passando mal e tal, mas é aquela coi- Para Csordas, é justamente na variação dos
sa: “Passei pela dificuldade, pelo desconforto, modos de estar atento “a” e “com” o corpo, na
mas agora eu vou pra Mendoça e quero a parte
fácil.” Aí a gente foi em vinícolas, free shop, aí corporificação das experiências e no compartilhamento
dá pra notar que ali teve o turismo como prêmio dessas corporeidades, que se deve iniciar uma
pela provação que passou. (Fábio)
análise fenomenológica da cultura. “O que quero
dizer é que as maneiras pelas quais damos atenção
Uma vez apresentado esse panorama geral aos e com os nossos corpos, e mesmo a possibili-
da Ecocaminhantes e da prática da caminhada, dade de dar atenção, não são nem arbitrárias nem

43
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

biologicamente determinadas, mas são cultural- experiência, na medida em que é compartilhada


mente constituídas” (Csordas, 2008, p.374). por uma coletividade, conforma uma situação de
intercorporeidade em que os caminhantes se
veem engajados existencialmente.
A EXAUSTÃO DOS CORPOS DOS CAMI- A descrição da experiência da caminhada, para
NHANTES E A VALORIZAÇÃO DA EXPERIÊN- muitos dos caminhantes, tem como fio condutor os
CIA DA CAMINHADA percalços, as dificuldades enfrentadas nas distânci-
as percorridas, os terrenos íngremes, as intempéries.
Partindo da premissa teórico-metodológica A exaustão física é posta em relevo, e essa valoriza-
de que a experiência corpórea é o fundamento exis- ção das dificuldades contribui para tornar mais “au-
tencial da cultura e do sujeito (Csordas, 2008), têntica” a experiência entre os sujeitos. Corporalmen-
buscamos colocar em foco a maneira pela qual al- te, essa sensação é narrada por meio de modalidades
guns aspectos da prática das caminhadas são arti- sensoriais indeterminadas, que oscilam entre a ex-
culadas nos corpos dos caminhantes. Trata-se de pressão da sensação de um “corpo esgotado” e de
tomar, como ponto inicial de análise, uma uma “mente revitalizada”. A elaboração de descri-
fenomenologia cultural das experiências ções ambivalentes, que ora tendem para expressões
corporeificadas pelos caminhantes para, desse relativas ao corpo e ora para expressões relativas à
modo, poder refletir sobre seus pertencimentos, mente ou alma, remete a um fluxo contínuo entre
suas sensações e os seus sentidos, postos em jogo modalidades sensoriais capazes de estarem presen-
na caminhada. tes nessas duas alçadas. Isto é, ao proporcionar des-
O modo somático de atenção que delinea- crições somáticas que se configuram a partir de um
remos nesta seção é o da “exaustão física” duran- arranjo híbrido, que conecta sensações físicas e ex-
te e após as caminhadas com a Ecocaminhantes. periências da ordem da mente ou alma, as caminha-
Como já foi apontado noutro momento, parece das tornam-se um contexto privilegiado para a análi-
haver uma relação entre as dificuldades enfrenta- se que tem como uma de suas premissas básicas o
das, sejam elas de acesso a um destino ou na colapso entre essas esferas.
conclusão de um trajeto com muitos obstáculos a A exaustão corporal parece ser somatizada
serem ultrapassados, e a valorização do consumo pelos caminhantes como aspecto essencial para que
do roteiro por parte dos caminhantes. Aqui, por a experiência da caminhada torne-se autêntica. Em
sua vez, nos interessa atentar para as dificulda- um passeio com os ecocaminhantes na cidade
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des físicas que a caminhada impõe aos sujeitos. de Mostardas (RS), perguntamos a Fábio se con-
Essas dificuldades podem ser expressas a partir siderava aquela uma experiência turística:
de diversas experiências corpóreas. Dentre elas,
podemos citar a dor. Não, porque turismo, como eu vou te dizer?
Quando você faz turismo tudo está certinho, nada
No horizonte de uma visão cartesiana, dá errado, você não vive aquele lugar direito, é
onde prevalece uma “preeminência da mente so- como se você não estivesse ali, é como fazer sexo
com camisinha! Aqui na Eco vivo intensamente
bre um corpo visto como inerte, passivo e estáti-
a caminhada. Prova disso é que a gente fica exaus-
co” (2008, p. 370), a exaustão e a dor seriam to, o corpo cansa e por isso não é turismo, aqui é
descritores de uma ordem cultural que se inscre- de verdade. (Fábio)
ve no corpo. Ao passo que, quando analisados
sob o paradigma da corporeidade, tanto a dor A fala de Fábio torna evidente que a expe-
quanto a exaustão tornam-se centrais em termos riência vivida como ecocaminhantes está distan-
epistemlogicos e analíticos para que se possa com- te do que pode ser experimentado como turismo,
preender a experiência vivida pelos caminhantes não apenas em termos conceituais, mas, sobretu-
e o solo cultural que sutenta a sua prática. Essa do, corporais. Assim, se a ausência da dor e da

44
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

exaustão – satisfação e lazer – caracterizam o tu-


a paisagem poderia ser percebida, segundo os
rismo, a presença dessas sensações somáticas é aecocaminhantes, pela constatação de que eles com-
marca do engajamento corporal dos ecocaminhan- partilhariam de uma sensibilidade que seria capta-
tes. Assim, a sensação de mergulho numa ativi- da por meio da técnica fotográfica. Como aponta
dade em que a dor é intensa e o esgotamento físi-
Fábio, “... tem um dado importante, acho que o
co profundo torna-se o divisor de águas entre o pessoal todo se interessa muito por fotografia, pode
que esses sujeitos vivenciam como turistas e como
ver que eles querem tirar foto na natureza porque é
ecocaminhantes. diferente de tudo, a imagem da natureza é diferen-
A dor e a exaustão são, assim, vividas como
te, e isso é uma coisa da percepção.” (Fábio).
uma espécie de via de acesso ao bem-estar produzi- Enfim, se a experiência da dor e da exaustão
do pela intensa atividade corporal – a caminhada –
corporal aponta para uma espécie de interdepen-
que termina por constituir-se como “uma maneira dência entre as dimensões físicas e mentais ou es-
de purificar a mente e a alma, um refúgio para pirituais, a referência à paisagem permite perceber
recarregar as energias e um momento para que os corpos que estão em jogo não podem ser
desestressar” (Marina). Caminhar junto à natureza
compreendidos como meros substratos biológicos,
torna-se, desse modo, uma experiência corpórea que
mas, ao contrário, são eles mesmos incorporados
estabelece um fluxo e uma corrente contínua entre
numa dimensão holística que os circunscreve. É
o físico e o mental, o material e o espiritual, o corpo
justamente essa experiência de uma natureza
individual e o seu contorno ambiental. Nesse senti-
revitalizante, capaz de gerar sensações que conectem
do, dois depoimentos são ilustrativos desse colap-
corpo, mente ou alma e paisagem, que procurare-
so que se realiza na experiência aqui analisada.mos apresentar, na próxima seção, como outro modo
somático de atenção presente na intercorporeidade
Fiz uma reorientação de vida em que decidi dos ecocaminhantes.
mudar. Para deixar de ser obeso, podia fazer ci-
rurgia de estômago, mas não ia estar saudável.
Tem que se encontrar consigo mesmo pra ficar
saudável. (Vinícius)
A RELAÇÃO CAMINHANTE–NATUREZA COMO
Através de exercício físico, você rompe com as
couraças que se formam nos chacras das pessoas UM MODO SOMÁTICO DE ATENÇÃO
por causa da falta de meditação, concentração,
bons fluidos, etc. Com as couraças quebradas, o O modo somático de atenção referido a par-
sujeito alcança determinado estágio que é por
todos almejado. Caminhar te coloca em certo es- tir de agora – o da relação caminhante–natureza

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011


tado mental interessante. (Fábio) – é articulado entre os ecocaminhantes em ter-
mos da potência dessa paisagem específica em
Ao lado da dor e da exaustão, que remetem produzir sensações ligadas a uma espécie de aper-
à corporeidade como um modo específico de estar feiçoamento de si, tais como “autoconhecimento”,
atento “a” e “com” o corpo, a experiência dos “mente e alma purificada” e “sensação de pleni-
ecocaminhantes define-se também pela paisagem tude”. A maior parte desses relatos está afinada
em que transcorre a caminhada. Como nos referi- com certo “espírito Nova Era”, cuja relação com o
mos anteriormente, assim como o corpo, a paisa- sagrado se dá a partir do contato com uma natu-
gem aparece aqui como um elemento ativo que reza investida de forças místicas e energéticas,
atravessa e constitui as experiências daqueles que capazes de ser incorporadas pelos sujeitos.
a percorrem nas caminhadas ecológicas. “É na Ao sugerir a existência de um modo
natureza, e somente nela”, afirma Marina, uma somático que articule caminhante–natureza, que-
caminhante de 29 anos, “que podemos sentir o remos chamar a atençao do leitor para uma for-
mundo de outro jeito, de um jeito em que a gen- ma específica de sensação corpórea na qual algu-
te não está acostumada”. Essa relação especial com mas das experiências vividas na natureza são vivi-

45
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

das como contatos com um transcendente.26 Essas za. No primeiro, o contato tátil e direto entre o
experiências são geralmente descritas como: sensa- corpo e a pedra permite ao caminhante incorpo-
ção de energia passando pelo corpo, purificação da rar as “boas energias” que esse elemento emana.
mente, leveza do corpo, sensação de presença de No segundo, o contato visual com a paisagem
boas energias, corpo revigorado, descarga de más busca a purificação e o rejuvenescimento dos
energias acumuladas, relaxamento. Esse breve in- corpos humanos. Essas experiências de contem-
ventário de sensações, retirado dos nossos diários plação da natureza podem harmonizar o estado
de campo, reitera a existência de um engajamento corporal e espiritual de sujeitos em sua relação
sensório específico que se concentra em três moda- com uma paisagem que integra, numa totalida-
lidades perceptivas: tato, visão e aquilo que chama- de, humanos e não-humanos. Ao descreverem
remos de cenestesia.27 essas sensações, os caminhantes recorrem com
As experiências táteis aparecem geralmen- frequencia a um léxico concernente ao “idioma
te associadas às manifestações sentidas na forma religioso”, tais como “purificação”, “plenitude” e
de energias. Um movimento corporal caracterís- “totalidade”.
tico dessa modalidade é a imposição de mãos Ainda na caminhada até a nascente do Rio dos
sobre pedras e árvores, acompanhada pelo fe- Sinos, questionei Mariana sobre possíveis motivações
chamento dos olhos. Por meio desse contato, afir- religiosas em sua participação naquela atividade:
ma Mariana, uma caminhante de quarenta anos,
“posso descarregar minhas energias ruins e rece- Motivação religiosa não tenho nenhuma. A natu-
reza é o lugar da espiritualidade, não é uma reli-
ber as boas que a natureza tem para me ofere-
gião, porque não é rígida, não impede o sujeito de
cer”. Num outro trecho do diário de campo, re- despertar suas próprias crenças. A natureza é
gistrado na caminhada à cidade de Caará (RS), viva, não tem dogmas. Você não acredita que aque-
la árvore ali está agora nos olhando? Aqui a gente
na nascente do Rio dos Sinos, anotei:28 é total, não está amarrado pela igreja. (Mariana)

Chegamos à nascente e nos deparamos com uma Noutro momento, enquanto conversáva-
cachoeira de cento e vinte metros de queda
d’água. Sentei-me perto de Marina e perguntei mos sobre roteiros de viagens, Joana, uma pro-
como se sentia. Descreveu-me que a natureza ti- fessora universitária, relatou:
nha o potencial de “purificá-la”, uma força que
poderia sentir agir em seu corpo por muitos dias Olha, teve uma vez que me perdi com meu filho
após aquela experiência. Enquanto conversava numa trilha em Fernando de Noronha e a gente
com Marina, observava Mariana, que se aproxi- caiu num lugar lindo. Demos sorte de ver o pôr
CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

mou de uma grande pedra e abraçou-a vagarosa- do sol e vou te dizer que podia morrer naquele
mente permanecendo ali por alguns minutos. momento, estava num estado de plenitude. Não
importa o que acontecesse, era como se não esti-
Essa descrição aponta para dois efeitos pos- vesse mais ali (Joana).
síveis, que são buscados no contato entre os cor-
pos dos caminhantes e os elementos da nature- O que parece estar em jogo, nessas falas,
26
são experiências do sagrado intimamente associa-
A ideia de transcendência utilizada nessa passagem, não
se refere a uma Transcendência da Revelação, como a que das à paisagem, em que a identidade religiosa é
pauta o cristianismo. Mas diz respeito a uma resolvida no plano da individualidade. A atenção
transcendência na imanênicia, em que a relação com o
sagrado não se dá a partir da mediação da Igreja, mas sim do modo somático a que nos referimos está dirigida
num plano individual, imanente. (Ferry; Gauche, 2008)
27
a essa paisagem natural que, experienciada por
Agradecemos a Luiz Fernando Dias Duarte que, por
ocasição da apresentação de uma versão inicial deste meio de sentidos como o tato e a visão, termina
texto no 34º Encontro da ANPOCS, sugeriu o uso desse
termo. Trata-se, segundo o dicionário Houaiss (2001), por promover um tipo de relação específica com
de uma “designação genérica para as impressões senso- o sagrado.
riais internas do organismo, que formam a base das sen-
sações, p.ex., de estar com saúde, de estar relaxado etc., Uma última modalidade de experienciação
por oposição às impressões do mundo externo, percebi-
das por meio dos órgãos dos sentidos” a ser descrita é a que chamaremos de cenestesia,
28
Trecho do diário de Rodrigo Toniol. referindo-nos, sobretudo, à sensibilização corpo-

46
Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

ral dos sujeitos para que possam perceber o fluxo de ser lido, mas como a própria condição para que
energético que os atravessa na sua relação com a os sujeitos se constituam como tal.
natureza. Essa percepção é resultado de uma edu-
cação para a atenção que permite aos caminhantes
conferirem agência a elementos como árvores, ani- (Recebido para publicação em novembro de 2010)
(Aceito em janeiro de 2011)
mais, lua, sol, pedras, que, por sua vez, passam a
ser capazes de agir sobre a própria percepção dos
sujeitos em relação a seus corpos.
Fábio, um ecocaminhante que chegou ao gru- REFERÊNCIAS
po por meio do teatro, narra sua trajetória religiosa:
AMIROU, Rachid. Imaginaire touristic et sociabilités du
voyage. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.
Quando eu comecei no teatro eu era cético, ateu.
Mas aí coisas foram acontecendo [...]. Por exem- BOURDIEU, Pierre. Razões prática: sobre a teoria da ação.
9.ed. Campinas: Papirus, 2008.
plo, tem uma coisa que a gente faz no teatro que
vem da yoga, que é a saudação ao sol e, se tu BAUBÉRO, Arnaud. La nature éducatrice. Ethnologie
imaginar que está saudando o sol mesmo, parece Française, Paris, PUF, v. 31, n. 4, p. 621-629, 2001.
que dá um tônus diferente no corpo. Isso dá outra CAMPBEL, Collin. A orientalização do Ocidente: refle-
disposição pra gente, aí o cético começa a ver xões sobre uma nova teodiceia para um novo milênio.
que tem coisas que não sabe explicar como acon- Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, ISER, v. 18, n. 1, p. 5-
22, 1997.
tecem e aí tu não sabe se aquilo é psicológico,
imaginativo... Aí é melhor tu aceitar assim, se tu CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. A invenção ecoló-
gica: narrativas e trajetórias da educação ambiental no Bra-
aceitar assim o resultado é melhor. (Fábio) sil. 2.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002.
———. Paisagem, historicidade e ambiente: as várias natu-
O relato de Fábio atribui ao contato com a rezas da natureza. Confluenze: rivista di studi iboamericani,
Bolongana,It, v. 1, p. 136-157, 2009.
natureza, investida da capacidade de emanar “boas
_______; STEIL, Carlos Alberto. A sacralização da nature-
energias”, a aquisição de um “tônus diferente” em za e a ‘naturalização’ do sagrado: aportes teóricos para a
compreensão dos entrecruzamentos entre saúde, ecologia
seu corpo. A possibilidade dessa aquisição, no e espiritualidade. Ambiente e Sociedade, Campinas, v. 11,
entanto, está diretamente relacionada com a cons- n. 2, p. 289-305, 2008.

tituição de uma forma específica de engajar os sen- CSORDAS, Thomas J. Corpo/ significado/ cura. Porto Ale-
gre: Ed. da UFRGS, 2008.
tidos na atenção. Isto é, a experienciação de uma DUPRONT, Alphonse. Du sacré. Paris: Gallimard, 1987.
natureza revitalizante, capaz de alterar o modo FERRY, Luc; GAUCHET, Marcel. Depois da religião. Rio de
pelo qual o corpo do caminhante é percebido Janeiro: DIFEL, 2008.

por ele mesmo, é resultado da incorporação de _______. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011


homem. São Paulo: Ensaio, 1994.
determinadas sensibilidades. FREY, Nancy Louise. Pilgrim Stories: on and off the road
Ao lançar mão de uma modalidade de ex- to Santiago. California: University of California Press, 1998.
perimentação da natureza – cenestesia – que não GRABURN, Nelson. Tourism: the sacred journey. In:
SMITH, V. (Ed.). Hosts and guests: the anthropology of
esteja restrita a um determinado sentido, procura- tourism. 2.ed. Philadelphia: University of Pennsylvania
Press, 1989. p. 21-36.
se dar conta de descrições como a de Fábio, que
HERVIEU-LÉGER, Daniele. La religion pour mémoire. Paris:
elabora um relato fenomenológico pautado no Éditions du Cerf, 1993.
modo pelo qual percebeu, naquela experiência, ______. O peregrino e o convertido. Petrópoles: Vozes, 2008.
seu próprio corpo. HOUAISS, Antônio; VILAR, Mauro de Salles. Dicionário
Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Ob-
Por fim, vale destacar que o esforço em em- jetiva, 2001
preender uma descrição sobre as experiências das INGOLD, Tim. The perception of the environment. Essays
caminhadas entre os ecocaminhantes, a partir do in livelihood, dwelling and skill. London/New York:
Routledge, 2000.
delineamento de alguns modos somáticos de aten- ______. Jornada ao longo de um caminho de vida – mapas,
ção, é uma tentativa de explorar outras possibilida- descobridor-caminho e navegação. Religião e Sociedade, Rio
de Janeiro, ISER, v. 25, n. 1, p. 76-110, 2005.
des da abordagem antropológica. Trata-se de buscar
MAUSS, M. As técnicas do corpo. São Paulo: Cosac & Naify,
apontar para o corpo não como um texto possível 2003

47
ECOLOGIA, CORPO E ESPIRITUALIDADE ...

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CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

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Carlos Alberto Steil, Rodrigo Toniol

ECOLOGY, BODY AND SPIRITUALITY: an ÉCOLOGIE, CORPS ET SPIRITUALITÉ: une


ethnography of experiences of ecological hikes ethnographie des expériences de marche
in a group of ecotourists écologique dans un groupe d’éco-touristes

Carlos Alberto Steil Carlos Alberto Steil


Rodrigo Toniol Rodrigo Toniol

This paper aims to study the experience L’objectif de ce travail est d’étudier
of the ecohikers, a group that go on ecological l’expérience des ‘éco-marcheurs’, un groupe de
hikes, betting on the cultivation of a spiritual, randonneurs écologiques qui, en faisant le pari
mental and physical well-being, hikes amidst d’un bien-être physique, mental et spirituel, fait
nature. From the ethnography of the experience des randonnées dans la nature. À partir de
of hikers, one aims to investigate the experience l’ethnographie de l’expérience des randonneurs,
of the trails as places full of restoring forces, on fait une recherche sur l’expérience vécue sur
energetic fluids for the health of body and soul. les pistes considérées en tant que lieux remplis de
Based on the theoretical effort of a proposal that forces régénératrices, de sources d’énergies bonnes
seeks, above all, to translate the phenomenology pour la santé du corps et l’esprit. Fondé sur l’effort
to the anthropological field and thus collapse théorique d’une proposition qui vise, avant tout, à
dichotomies such as mind and body, nature and traduire la phénoménologie pour le champ
culture, subject and object, one tries to reflect anthropologique et permettre ainsi l’effondrement
on the therapeutic character of nature walks, des dichotomies entre le corps et l’esprit, la nature
understood by hikers not only as an exercise, et la culture, le sujet et l’objet, on essaie de réfléchir
but also as a means of access to matters of the soul. à l’aspect thérapeutique des marches, considérées
par les randonneurs non seulement comme un
exercice physique mais aussi comme un moyen
d’accéder aux questions de l’âme.

KEYWORDS: ecotourism, new age, embodiment, body, MOTS-CLÉS: l’écotourisme, ère nouvelle, corporéité,
nature walks. corps, promenades écologiques.

CADERNO CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 29-49, Jan./Abr. 2011

Carlos Alberto Steil - Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Realizou seu Pós-Douto-
rado na Universidade da Califórnia, San Diego UCSD. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Núcleo
de Cultura e Turismo (CulTus) e membro do Núcleo de Estudos da Religião (NER). Seu interesse de
pesquisa se concentra nas áreas da antropologia da religião, da política e do turismo. Seu livro, O sertão
das romarias: um estudo antropológico sobre o Santuário de Bom Jesus da Lapa, BA (1996), recebeu o
premio Silvio Romero. É, ainda, autor de diversas coletâneas sobre temas de antropologia da religião e
da política e de artigos publicados em periódicos científicos.
Rodrigo Toniol - Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista CAPES-REUNI. Estudante associado dos
seguintes grupos de pesquisa (CNPq): Núcleo de Estudos da Religião (UFRGS), Núcleo de Pesquisa em
Cultura Turismo e Sociedade (UFRGS) e Cultura, Ambiente e Educação (PUC/RS). Colabora no processo
editorial do periódico Debates do NER. Desenvolve pesquisas nas áreas de religião, corpo, ecologia e
turismo.

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