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CLAVAL, Paul. Epistemologia Da Geografia
CLAVAL, Paul. Epistemologia Da Geografia
INTRODUÇÃO
“O real não se apresenta ao observador de acordo com categorias que fariam parte da ordem
natural: as divisões foram construídas pelos homens e colocam ordem na confusão das
primeiras impressões […] Como se instaurou a nossa maneira de ver o mundo? O que torna
o inventário dos corpos simples superior ao dos quatro elementos que o precedeu? Eis os
tipos de questões que a epistemologia busca responder. Há duas maneiras de achegar a uma
resposta. A primeira é muito ambiciosa: tenta estabelecer princípios válidos para todas as
ciências. O epistemólogo […] encontra-se no cume da pirâmide do saber. Não é ele que
explora o real e que o explica, mas é ele que sabe como convém fazê-lo […] A segunda
perspectiva sobre a epistemologia é mais modesta: analisa o trabalho dos pesquisadores,
segue passo a passo a sua progressão, nota as suas hesitações, seus remorsos e a maneira
como avançam no conhecimento do mundo” (p. 17-8);
“O objetivo da epistemologia não é impor um molde único à investigação. É fazer nascer
uma inquietação sobre a natureza da démarche científica. Leva assim os pesquisadores a
transformar e refinar incessantemente os seus procedimentos” (p. 18);
“Eis, por conseguinte, em dois níveis, o que a geografia oferece:
◦ Na vida diária, reúne os saberes-fazeres do bom senso para dirigir aos lugares, situar-se e
tirar proveito deles. Isso quer dizer que os conhecimentos geográficos não são todos
científicos […]
◦ A reflexão científica faz descobrir, por trás da paisagem e da distribuição dos homens e
das atividades, a gênese dos meios naturais, o seu equilíbrio frequentemente frágil e a
ocupação dos lugares por grupos que os modelam, que os exploram e os fazem viver,
organizam-nos ou os arruínam, sentem-se exilados ou ali se desenvolvem […]”(p. 20)
“O trabalho do geógrafo é sempre complexo. Não se resume a alguns métodos elementares.
Nasce da confrontação permanente de duas exigências. A primeira destaca o espaço, nas
relações que se estabelecem, em cada meio e no papel da distância na vida coletiva. A
segunda leva sistematicamente a efeito, num contexto espacial,os instrumentos e a as
categorias imaginadas pelas outras disciplinas para explorar o seu próprio lugar” (p. 21);
“Para explicar as distribuições que resultam, assim, do jogo das forças naturais e da
atividade dos homens, os geógrafos definiram diversos esquemas de explicação ou de
interpretação:
◦ 1) A ideia de meio é antiga, mas levou muito tempo para ser definida, nesse domínio,
distinguir uma longa pré-história, que vai da Antiguidade a meados do século XIX, e
uma fase contemporânea de aprofundamento rápido.
◦ 2) Os geógrafos interessam-se pelo papel da posição e foram assim levados a propor
uma física natural do mundo: as distribuições observadas explicam-se em razão da
latitude, da altitude, da continentalidade ou da maritimidade, etc. A geografia do final do
século XIX e do início do século XX reúne análise de posição e consideração do meio
quando coloca o foco no estudo do sítio e da situação. Permanece assim, uma disciplina
vizinha das ciências naturais, mesmo quando aborda o estudo dos fenômenos sociais.
◦ 3) Para sintetizar o conjunto das preocupações que foram sucessivamente aparecendo,
certos colegas propõem conceber a geografia como uma ciência das combinações, das
estruturas e dos sistemas.
◦ 4) A perspectiva se altera progressivamente no decorrer do século XX, à medida que os
geógrafos se aproximam do ponto de vista das ciências sociais. Isso os conduz, a partir
dos anos 1950, a elaborar uma interpretação das distribuições em termos de relações
dentre indivíduos ou entre grupos, uma física social por assim dizer.
◦ 5) O triunfo, a partir do fim do século XVIII, das concepções positivistas da ciência
desviou o olhar dos geógrafos da vivência das populações que estudavam, da sua
experiência própria dos lugares, dos fundamentos simbólicos da sua organização. A
preocupação em praticar uma ciência exata tinha-os proibido de explorar os pontos de
vistas normativos sobre o espaço que as ações de organização espacial implicam. É esse
campo que eles tentam explorar há cerca de trinta anos.
A geografia apoiou-se em famílias de epistemologias diferentes; combinou-as de maneira
variável ao longo do tempo muito mais do que as rejeitou” (p. 22-3).
CONCLUSÃO
“Os geógrafos conceberam, durante muito tempo, sua disciplina como um estudo das
relações do homem com a natureza. Os resultados a que chegaram eram substanciais, mas
certos resultados da realidade lhes escapavam. Eles compreendiam a sociedade do exterior,
em termos de densidades, de ambiente construído, de organizações espaciais. Recusavam-se
a voltarem-se para as estruturas sociais, para os processos de decisão e para o papel dos
diferentes atores […] A industrialização a urbanização obrigam a repensar a geografia: o
instrumento de análise constituído pela noção de gênero de vida pouco se aplicam a
sociedades que se tornaram mais complexas. O problema não é mais explorar as relações
entre os grupos humanos e a natureza, mas levar em conta o papel do espaço nas sociedades
nas quais a mobilidade e a circulação desempenham um papel crescente. Num mundo mais
profundamente humanizado, o pesquisador parte dos homens e não mais dos lugares. A
disciplina procura sempre explicar o mundo tal qual nos revelam as paisagens e as enquetes,
mas, para consegui-lo, ela vai mais a fundo no campo social ” (p. 373);
“Os resultados obtidos pela Nova Geografia são rapidamente substanciais […] ela mostra
que as cidades são feitas para melhor assegurar as melhores condições de comunicação entre
os indivíduos e os grupos […] evidencia também as dimensões espaciais da procura de
prestígio e de status; ela revela os jogos de poder. Permite entender o papel das relações
institucionalizadas na organização dos grupos dotados de uma estrutura, de uma arquitetura
social. A Nova Geografia não é, entretanto, capaz de esclarecer todos os aspectos da
realidade social. Aqueles que chegaram mais longe nesta via sentem a necessidade de levar
em consideração dimensões até então negligenciadas” (p. 373-4);
“O campo das curiosidades se amplia. Os geógrafos se interessam ao vivido, ao subjetivo,
ao corporal também. A disciplina só tem olhos para o indivíduo. Ele não fala mais de
sociedade ou de economia, mas de microrrealidades locais. Ela termina, entretanto, por
descobrir o papel que desempenham os contextos coletivos da existência, mas apreendendo-
os de outras formas, a partir de um esforço original de reconstrução: as reações individuais
são modeladas pelo meio ambiente social onde elas acontecem, como o demonstram os
trabalhos dedicados às representações e aos discursos” (p. 374);
“ […] a sociedade ou a economia não existem enquanto realidades globais; elas são feitas da
coexistência, da imbricação e da integração de células locais. A diversidade geográfica é um
dado primordial. As realidades globais resultam de uma ação frequentemente lenta e sempre
de difícil organização, e não da assinatura de um contrato social imaginário que apagaria de
uma vez o espaço geográfico […] Não existem saberes sobre a sociedade, a economia, a
vida política ou a cultura que se constituam em um universo aespacial, e que os geógrafos
não tenham que aplicar diferentemente de acordo com os lugares . As sociedades são
fenômenos espaciais. As ciências que permitem compreender sua natureza e seu
funcionamento devem levar em consideração os meios e as distâncias: elas precisam da
geografia” (p. 375);
A reflexão geográfica chama a atenção para as noções-chave de todas as disciplinas do
homem e da sociedade: em um primeiro registro, condicionantes naturais, riscos, catástrofes,
recursos; em um segundo, empreendimentos fundiários, transportes e comunicação; em
outras perspectivas, cidades e campos, rede urbana, sentimento de identidade, território,
globalização, etc.” (p. 375);
“Um lapso se aprofunda em certos momentos entre os dispositivos da ciência e as
expectativas da sociedade; usualmente, ele é rapidamente preenchido: esse é um dos
interesses dos trabalhos sobre epistemologia das ciências, destacar como a vontade de
melhorar os procedimentos científicos e o desejo de responder às expectativas do público se
combinam e se conjugam no desenvolvimento da pesquisa” (p. 376);
“A geografia moderna não se assemelha à imagem envelhecida que o grande público ainda
mantém. Seu objetivo não é enumerar os lugares e situá-los com um mapa – já faz muito
tempo que essas questões não se configuram mais como problemas. Sua ambição é
compreender o mundo tal qual os homens o vivem: ela fala da sensibilidade de uns e de
outros, das paisagens que eles modelaram, dos patrimônios aos quais estão vinculados, dos
enraizamentos sentidos; ela descreve ao mesmo tempo, a mobilidade crescente dos
indivíduos, a confrontação das culturas, as reações de contorno que ela provoca,
regionalismos, nacionalismos ou fundamentalismos, mas destaca também a exploração dos
multiculturalismos e a fecundidade dos contatos renovados” (p. 376-7).