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CLAVAL, Paul. Epistemologia da Geografia. 2 ed. rev. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2014, 407p.

INTRODUÇÃO

 “O real não se apresenta ao observador de acordo com categorias que fariam parte da ordem
natural: as divisões foram construídas pelos homens e colocam ordem na confusão das
primeiras impressões […] Como se instaurou a nossa maneira de ver o mundo? O que torna
o inventário dos corpos simples superior ao dos quatro elementos que o precedeu? Eis os
tipos de questões que a epistemologia busca responder. Há duas maneiras de achegar a uma
resposta. A primeira é muito ambiciosa: tenta estabelecer princípios válidos para todas as
ciências. O epistemólogo […] encontra-se no cume da pirâmide do saber. Não é ele que
explora o real e que o explica, mas é ele que sabe como convém fazê-lo […] A segunda
perspectiva sobre a epistemologia é mais modesta: analisa o trabalho dos pesquisadores,
segue passo a passo a sua progressão, nota as suas hesitações, seus remorsos e a maneira
como avançam no conhecimento do mundo” (p. 17-8);
 “O objetivo da epistemologia não é impor um molde único à investigação. É fazer nascer
uma inquietação sobre a natureza da démarche científica. Leva assim os pesquisadores a
transformar e refinar incessantemente os seus procedimentos” (p. 18);
 “Eis, por conseguinte, em dois níveis, o que a geografia oferece:
◦ Na vida diária, reúne os saberes-fazeres do bom senso para dirigir aos lugares, situar-se e
tirar proveito deles. Isso quer dizer que os conhecimentos geográficos não são todos
científicos […]
◦ A reflexão científica faz descobrir, por trás da paisagem e da distribuição dos homens e
das atividades, a gênese dos meios naturais, o seu equilíbrio frequentemente frágil e a
ocupação dos lugares por grupos que os modelam, que os exploram e os fazem viver,
organizam-nos ou os arruínam, sentem-se exilados ou ali se desenvolvem […]”(p. 20)
 “O trabalho do geógrafo é sempre complexo. Não se resume a alguns métodos elementares.
Nasce da confrontação permanente de duas exigências. A primeira destaca o espaço, nas
relações que se estabelecem, em cada meio e no papel da distância na vida coletiva. A
segunda leva sistematicamente a efeito, num contexto espacial,os instrumentos e a as
categorias imaginadas pelas outras disciplinas para explorar o seu próprio lugar” (p. 21);
 “Para explicar as distribuições que resultam, assim, do jogo das forças naturais e da
atividade dos homens, os geógrafos definiram diversos esquemas de explicação ou de
interpretação:
◦ 1) A ideia de meio é antiga, mas levou muito tempo para ser definida, nesse domínio,
distinguir uma longa pré-história, que vai da Antiguidade a meados do século XIX, e
uma fase contemporânea de aprofundamento rápido.
◦ 2) Os geógrafos interessam-se pelo papel da posição e foram assim levados a propor
uma física natural do mundo: as distribuições observadas explicam-se em razão da
latitude, da altitude, da continentalidade ou da maritimidade, etc. A geografia do final do
século XIX e do início do século XX reúne análise de posição e consideração do meio
quando coloca o foco no estudo do sítio e da situação. Permanece assim, uma disciplina
vizinha das ciências naturais, mesmo quando aborda o estudo dos fenômenos sociais.
◦ 3) Para sintetizar o conjunto das preocupações que foram sucessivamente aparecendo,
certos colegas propõem conceber a geografia como uma ciência das combinações, das
estruturas e dos sistemas.
◦ 4) A perspectiva se altera progressivamente no decorrer do século XX, à medida que os
geógrafos se aproximam do ponto de vista das ciências sociais. Isso os conduz, a partir
dos anos 1950, a elaborar uma interpretação das distribuições em termos de relações
dentre indivíduos ou entre grupos, uma física social por assim dizer.
◦ 5) O triunfo, a partir do fim do século XVIII, das concepções positivistas da ciência
desviou o olhar dos geógrafos da vivência das populações que estudavam, da sua
experiência própria dos lugares, dos fundamentos simbólicos da sua organização. A
preocupação em praticar uma ciência exata tinha-os proibido de explorar os pontos de
vistas normativos sobre o espaço que as ações de organização espacial implicam. É esse
campo que eles tentam explorar há cerca de trinta anos.
A geografia apoiou-se em famílias de epistemologias diferentes; combinou-as de maneira
variável ao longo do tempo muito mais do que as rejeitou” (p. 22-3).

10) OS GRANDES DEBATES EPISTEMOLÓGICOS: OS ANOS 1970 E O INÍCIO DOS ANOS


1980
 “A nova geografia pertencia ao passado. Não se desprezava o que tinha trazido – a
compreensão das redes e as hierarquias urbanas por exemplo -, mas considerava-se que ela
estava um pouco acinzentada, um pouco apagada. Por que alguém se torna geógrafo, se não
for porque se vê fascinado pela infinita diversidade de paisagens e costumes? Enfatizar as
regularidades que apresentam as distribuições humanas é útil, mas não pode satisfazer a
curiosidade profunda da maior parte dos colegas. As questões que estavam na moda
dedicavam-se ao sentido dos lugares. Diziam respeito, igualmente, à ausência da dimensão
crítica da nova geografia: esta mostrava como o mundo funciona, mas não se preocupava em
fazê-lo funcionar de maneira mais justa, eliminando as desigualdades” (p. 279);
 “O estruturalismo empregado pela geografia humana desde o início só século XX era
empírico. O que os jovens geógrafos sonham é dar à sua disciplina a dimensão teórica que
lhes falta, apoiando-se no estruturalismo” (p. 287);
 “Um segundo grupo de geógrafos insurge-se contra a indiferença manifestada pela nova
geografia em relação à pobreza, ao sofrimento, às desigualdades e injustiças. Não basta que
uma sociedade funcione de modo que seja aceitável: o papel dos pesquisadores não é
justificar o que existe, mas analisá-lo para compreendê-lo e para denunciar seus defeitos,
suas fraquezas e os descumprimentos aos direitos mais elementares do homem, dos quais
são culpados tal ou tal regime, tal ou tal sociedade (BUNGE, 1971). A sua tarefa também é
questionar o impacto que os grupos humanos têm sobre o seu ambiente, e analisar as
degradações frequentemente irreparáveis pelas quais são culpados. Os geógrafos tinham se
inspirado, sobretudo, nas ciências naturais e na economia. Isso os havia levado a enfatizar o
papel dos adultos – e mais particularmente dos homens – na vida dos grupos: a eles era
devido o essencial das atividades produtivas capazes de alterar a paisagem e de alimentar os
fluxos de trocas. Entre as críticas dirigidas à disciplina como até então tinha sido concebida,
a da ausência das mulheres (mas também das crianças e dos idosos) ocupava um lugar
essencial. Existe, em todas as sociedades, uma divisão das tarefas entre os dois sexos. Por
que submetê-la ao silêncio e recusar-se a falar do trabalho das esposas e das mães? Um novo
interesse pelo 'gênero' (a construção social dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres)
desenvolve-se” (p. 291);

11) A AMPLIAÇÃO DOS DEBATES EPISTEMOLÓGICOS NA ERA DO PÓS-MODERNISMO


E DO PÓS-COLONIALISMO
 “A geografia não pretende mais ter a missão de dar conta de uma realidade objetiva, a do
mundo: tem primeiramente por objetivos desvendar as motivações escondidas da
investigação, revelar as verdadeiras finalidades e mostrar quem ela beneficia e quem ela
prejudica […] O geógrafo não se satisfaz mais em descrever o mundo: apreende o jogo dos
poderes que se depreendem, e maneira como se desenham seus contornos” (p. 308-9);

12) COMO PANO DE FUNDO: A EPISTEMOLOGIA DOS FILÓSOFOS E A DOS CIENTISTAS


 “Nessa ótica, o geógrafo é aquele que sabe ler uma paisagem: é uma testemunha do mundo,
tal como ele é. Isso o autoriza a participar das emoções que experimenta diante dos
elementos. Essa falta momentânea de objetividade garante a autenticidade daquilo que faz a
qualidade geral do seu trabalho” (p. 324);

13) EPISTEMOLOGIA E IMAGINAÇÃO GEOGRÁFICA


 “Os pesquisadores que trabalham no domínio das ciências sociais consideram geralmente,
como natural a maneira como são concebidos os países onde vivem, o ambiente
internacional do seu tempo, as tensões que se produzem e os meios utilizados para assegurar
a ordem ou certo equilíbrio. Essas noções influenciam as formas como percebem o mundo e
pesam sobre a geografia, sobre como a compreendem e a escrevem” (p. 351-2);
 “Eis pois, a humanidade fechada na geo-história, onde o movimento vai do Leste, a Ásia;
para o Oeste, a Europa, e, no no futuro, a América. A África ficou para trás. Hegel força até
a caricatura a apresentação que dá a geo-história da civilização, mas as visões que exprime
são compartilhadas pela maioria dos seus contemporâneos. Elas justificam a expansão
colonial da Europa” (p. 360);
 “Aqueles que escolhem mobilizar o seu trabalho científico para fazer avançar as causas que
lhes são caras são moralmente superiores aos que preferem continuar a ser neutros? A
resposta é matizada. Raros são os geógrafos que escolhem o seu ofício unicamente para
satisfazer o seu gosto por viagens ou o seu amor por mapas. Muitos se dedicam a efetuar o
seu trabalho sozinhos, sem barulho, sem publicidade; isso não quer dizer que não lhe
atribuem finalidade social […] Várias famílias de atitudes podem se distinguir: (i) aquelas
que são meramente egoístas e levam o pesquisador a se fechar na sua torre de marfim; (ii)
aquelas que veem na geografia um meio de mudar para melhor compreender o mundo e para
agir de maneira esclarecida; (iii) aquelas que mobilizam os conhecimentos geográficos para
defender as grandes causas sociais ou ecológicas e alertar a opinião pública sobre os
desafios importantes do momento” (p. 362-3);
 “Ignorar as preocupações e os problemas da humanidade parece sempre indefensável, mas
passar pela via da reflexão e da mudança interior pode ser tão satisfatório quanto o
engajamento militante” (p. 363);
 “A questão do engajamento está próxima daquela da ideologia: não se corre o risco,
participando dos debates políticos do mundo atual, de trocar a roupagem do especialista pela
do ideólogo?” (p. 364);

CONCLUSÃO
 “Os geógrafos conceberam, durante muito tempo, sua disciplina como um estudo das
relações do homem com a natureza. Os resultados a que chegaram eram substanciais, mas
certos resultados da realidade lhes escapavam. Eles compreendiam a sociedade do exterior,
em termos de densidades, de ambiente construído, de organizações espaciais. Recusavam-se
a voltarem-se para as estruturas sociais, para os processos de decisão e para o papel dos
diferentes atores […] A industrialização a urbanização obrigam a repensar a geografia: o
instrumento de análise constituído pela noção de gênero de vida pouco se aplicam a
sociedades que se tornaram mais complexas. O problema não é mais explorar as relações
entre os grupos humanos e a natureza, mas levar em conta o papel do espaço nas sociedades
nas quais a mobilidade e a circulação desempenham um papel crescente. Num mundo mais
profundamente humanizado, o pesquisador parte dos homens e não mais dos lugares. A
disciplina procura sempre explicar o mundo tal qual nos revelam as paisagens e as enquetes,
mas, para consegui-lo, ela vai mais a fundo no campo social ” (p. 373);
 “Os resultados obtidos pela Nova Geografia são rapidamente substanciais […] ela mostra
que as cidades são feitas para melhor assegurar as melhores condições de comunicação entre
os indivíduos e os grupos […] evidencia também as dimensões espaciais da procura de
prestígio e de status; ela revela os jogos de poder. Permite entender o papel das relações
institucionalizadas na organização dos grupos dotados de uma estrutura, de uma arquitetura
social. A Nova Geografia não é, entretanto, capaz de esclarecer todos os aspectos da
realidade social. Aqueles que chegaram mais longe nesta via sentem a necessidade de levar
em consideração dimensões até então negligenciadas” (p. 373-4);
 “O campo das curiosidades se amplia. Os geógrafos se interessam ao vivido, ao subjetivo,
ao corporal também. A disciplina só tem olhos para o indivíduo. Ele não fala mais de
sociedade ou de economia, mas de microrrealidades locais. Ela termina, entretanto, por
descobrir o papel que desempenham os contextos coletivos da existência, mas apreendendo-
os de outras formas, a partir de um esforço original de reconstrução: as reações individuais
são modeladas pelo meio ambiente social onde elas acontecem, como o demonstram os
trabalhos dedicados às representações e aos discursos” (p. 374);
 “ […] a sociedade ou a economia não existem enquanto realidades globais; elas são feitas da
coexistência, da imbricação e da integração de células locais. A diversidade geográfica é um
dado primordial. As realidades globais resultam de uma ação frequentemente lenta e sempre
de difícil organização, e não da assinatura de um contrato social imaginário que apagaria de
uma vez o espaço geográfico […] Não existem saberes sobre a sociedade, a economia, a
vida política ou a cultura que se constituam em um universo aespacial, e que os geógrafos
não tenham que aplicar diferentemente de acordo com os lugares . As sociedades são
fenômenos espaciais. As ciências que permitem compreender sua natureza e seu
funcionamento devem levar em consideração os meios e as distâncias: elas precisam da
geografia” (p. 375);
 A reflexão geográfica chama a atenção para as noções-chave de todas as disciplinas do
homem e da sociedade: em um primeiro registro, condicionantes naturais, riscos, catástrofes,
recursos; em um segundo, empreendimentos fundiários, transportes e comunicação; em
outras perspectivas, cidades e campos, rede urbana, sentimento de identidade, território,
globalização, etc.” (p. 375);
 “Um lapso se aprofunda em certos momentos entre os dispositivos da ciência e as
expectativas da sociedade; usualmente, ele é rapidamente preenchido: esse é um dos
interesses dos trabalhos sobre epistemologia das ciências, destacar como a vontade de
melhorar os procedimentos científicos e o desejo de responder às expectativas do público se
combinam e se conjugam no desenvolvimento da pesquisa” (p. 376);
 “A geografia moderna não se assemelha à imagem envelhecida que o grande público ainda
mantém. Seu objetivo não é enumerar os lugares e situá-los com um mapa – já faz muito
tempo que essas questões não se configuram mais como problemas. Sua ambição é
compreender o mundo tal qual os homens o vivem: ela fala da sensibilidade de uns e de
outros, das paisagens que eles modelaram, dos patrimônios aos quais estão vinculados, dos
enraizamentos sentidos; ela descreve ao mesmo tempo, a mobilidade crescente dos
indivíduos, a confrontação das culturas, as reações de contorno que ela provoca,
regionalismos, nacionalismos ou fundamentalismos, mas destaca também a exploração dos
multiculturalismos e a fecundidade dos contatos renovados” (p. 376-7).

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