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PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter.

A globalização da natureza e a natureza da


globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Parte II: Desenvolvimento,
tecnociência e poder. p.59-156.

José Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior1


josearnaldo@usp.br

COMENTÁRIOS CONTEXTUAIS

O geógrafo brasileiro Carlos Walter Porto-Gonçalves tem se destacado no cenário


nacional e latino-americano como um dos expoentes da ecologia política ao lado de nomes
como o epistemólogo mexicano Enrique Leff e o antropólogo colombiano Arturo Escobar.
Porto-Gonçalves é autor de obras que põem a questão ambiental no centro da discussão de
nossos tempos, como é o caso de O desafio ambiental; Os descaminhos do meio ambiente;
Amazônia, Amazônias; e A globalização da natureza e a natureza da globalização. Neste
último livro, Carlos Walter buscou desvendar a relação existente entre globalização e natureza
tomando como base teórica o pensamento pós-colonial2 que tem na figura do sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos3 um dos principais nomes. Utilizando diretamente o
léxico pós-colonial, Porto-Gonçalves ao longo do livro mostra como se construiu o sistema-
mundo moderno-colonial pautado num discurso de superioridade eurocêntrica que pauta a
racionalidade capitalista. A abordagem de Carlos Walter é notadamente imbricada de
relações entre a diversidade cultural e a geopolítica do poder que nos incita a re-significar
questões do capitalismo global agora sob uma ótica pós-moderna, por vezes não dialética, que
toma como categorias analíticas gênero, raça, sexo, etnia, identidade. Em verdade, é uma
busca discursiva de reapropriação social da natureza que por vezes romantiza o debate. Na
parte aqui analisada, “Desenvolvimento, tecnociência e poder”, nos restringiremos à busca de

1
Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Mestrando em
Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São
Paulo. Membro do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA) e do
Núcleo de Estudos e Pesquisa do Sindicalismo (NEPS). Integrante da Rede Justiça nos Trilhos.
2
Para uma aproximação ao pensamento pós-colonial recomenda-se a leitura de Lander (2005). O livro traz uma
série de artigos com pensadores pós-coloniais que se propõe a re-pensar as ciências sociais na América Latina
para além da perspectiva moderna-colonial do eurocentrismo.
3
É professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) e da Universidade
de Warwick (Inglaterra). É também diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Tem se
destacado como um dos maiores autores pós-modernos e pós-coloniais ao lado de pensadores como o sociólogo
peruano Aníbal Quijano. É autor de vastos artigos e livros nos quais aborda questões culturais, epistemologia,
direito, pós-modernidade, democracia, cidadania, globalização e direitos humanos.
um diálogo com o autor na perspectiva da crítica como aproximação apontando seus limites,
possibilidades e perspectivas.

1. Crítica à ideia de dominação da natureza

A ideia central da Parte II é dominação da natureza: “Afinal, a idéia de progresso e,


sua versão mais atual, desenvolvimento é, rigorosamente, sinônimo de dominação da
natureza” (2006, p.61). Por meio desta ideia, Porto-Gonçalves busca mostrar como se articula
discursivamente a revolução científica e tecnológica nas relações sociais e de poder
culminando na atual questão ambiental. Mas, o problema com a ideia da dominação da
natureza não seria justamente o fato dela naturalizar a dominação humana ao ver a natureza
como uma esfera passiva4? Penso isso porque ao falar em dominação é reforçada a
dissociação entre o homem e a natureza na medida em que ambos estão em mundos opostos.
A natureza como sendo algo ideal (filosoficamente, eticamente, politicamente) e a sociedade
como corrupção dos valores5 cria uma verdadeira dualidade entre homem e natureza, da
mesma forma que Marx e Engels (2007, p.66-67) apontaram na Ideologia Alemã a oposição
entre Natureza e História:

Até agora, toda a concepção histórica tem omitido completamente a base real da
história, pois a tem considerado como algo secundário, sem qualquer vinculação
com o curso da história. Resultam daí noções de que a história deva sempre ser
escrita de acordo com um critério localizado fora dela. A produção real da vida
aparece como se estivesse separada da vida comum, como alguma coisa extra e
supraterrenal. Por isso, as relações dos homens e natureza são excluídas da história,
o que faz surgir a oposição entre natureza e história.

É justamente o dualismo, a separação entre mundo natural e mundo social que abre a
possibilidade da discussão da dominação. Esta ideia é profundamente anti-dialética e
romântica, na medida em que não fornece uma base material que coloque no centro a relação
indissociável entre história humana e história natural, tal como os filósofos alemães
perceberam.
Então, como poderia ser resolvido este imbróglio que opõe natureza e sociedade?
A saída oferecida por Smith e O’Keefe (1980) para o imbróglio que envolve a
dualidade positivista da concepção da natureza tem como base o materialismo histórico e a
relação entre sociedade e natureza. E esta relação é o processo de produção pelo qual a
natureza é modificada pelo homem. Pelo processo produtivo do trabalho o conteúdo da

4
Ou seria melhor dizer passível de ser dominada?
5
Lembrei-me do filósofo Rousseau neste momento.
natureza tem sua forma alterada. A produção de valores de uso é, com o advento da produção
capitalista, transformada em produção de valores de troca. O capitalismo produz a natureza de
modo progressivo e revolucionário na medida em que se desenvolve internacionalmente na
busca de acumulação de capital. Além disso, Smith e O’Keefe (1980) salientam que:

Mas não apenas isso "segunda natureza" que é cada vez mais produzida como parte
do modo de produção capitalista. A "primeira natureza" é também produzida. De
fato a "segunda natureza" não é mais produzida a partir da primeira natureza, mas a
primeira é produzida pela e dentro dos limites da segunda (p.35).
Atrás da vaga e mecânica "dominação da natureza", encontramos, na realidade, a
produção da natureza (p.36).

Porto-Gonçalves (2006, p.86) enxerga, pelo que foi analisado, em Francis Bacon o pai
da ideia de dominação da natureza. Em suas palavras:

Francis Bacon já havia afirmado que saber é poder, e deveríamos levar mais a sério
sua assertiva. Bacon, inclusive, usou a tortura como metáfora para assinalar como
deveríamos obter da natureza a verdade. A idéia de dominação da natureza, em torno
da qual gira o imaginário moderno-colonial, está impregnada dessa relação de poder
por meio do conhecimento científico.

Dessa forma, Porto-Gonçalves volta a introduzir a natureza como uma esfera passiva,
torturável pelo espírito científico baconiano. O sociólogo John Bellamy Foster (2010)
perscrutou por que Bacon é na Teoria Verde encarado como um verdadeiro inimigo. Em A
ecologia de Marx, Foster diz que “o próprio Bacon afirmou que a maestria da natureza estava
enraizada na compreensão e na obediência às suas leis” (2010, p.27). Não obstante,
promovendo uma defesa do materialismo marxiano e buscando fugir da demonização da
ciência por parte dos ecologistas que veem em Bacon o pai da dominação da natureza, Foster
(2010, p.26) sentencia:

Bacon é retratado como o principal proponente da “dominação da natureza” - tópico


normalmente desenvolvido pela citação de determinados aforismos, sem qualquer
consideração sistemática do pensamento dele. Daí a ideia da “dominação da
natureza” ser tratada como uma perspectiva simples, diretamente antropocêntrica,
característica do mecanicismo, à qual se pode opor uma visão romântica,
organicista, vitalista, pós-moderna.

Foster, portanto, argumenta que Bacon não era sistematicamente um torturador da


natureza, tampouco via como uma esfera passiva. A defesa de Bacon para que se estude no
“grande livro da natureza” é uma tentativa dele escapar à metafísica, bem como ao domínio
da filosofia aristotélica e da escolástica, com vistas a uma ciência experimental atacando a
superstição (POLITZER, 1986). Nunca é demais ressaltar que o filósofo de Estagira
naturalizava a inferiorização da mulher em relação ao homem. Além do mais, esse
pensamento foi racionalizado pelo maior expoente da escolástica: Tomás de Aquino. O
filósofo, teólogo, santo e doutor da Igreja Católica Apostólica Romana acreditava na
inferiorização natural da mulher, quer fosse pelo seu espírito ou pelo seu corpo.

2. O Estado de natureza não reforça uma evolução linear a uma sociedade civil?

“Por fazerem a crítica a essa idéia-chave de desenvolvimento, os ambientalistas, com


freqüência, se vêem acusados de querer voltar ao passado, ao estado de natureza, enfim, de
serem contra o progresso e o desenvolvimento” (2006, p.62).
Porto-Gonçalves faz uma crítica pertinente aos nossos interesses. De fato, é preciso
negar essa evolução linear do qual a humanidade sai de um estado de natureza e culmina
numa sociedade civil. Essa oposição entre civilização e barbárie, natureza e sociedade, não
nos serve como fulcro para um horizonte utópico de resolução das questões ecológicas. Mas o
autor opõe aos ambientalistas, os progressistas. Esta oposição reinsere o dualismo em outros
termos: de um lado os que defendem a natureza e de outro os que defendem o progresso social
(incluindo liberais e marxistas produtivistas). Assim, a dualidade se rigidifica.

3. Progresso

Conceitualmente, “A noção de progresso corresponde a um crescimento econômico


infinito e à prosperidade, através, entre outros, do uso ilimitado de recursos naturais”
(COSTA, 2008).
Indubitavelmente é importante fazer a crítica ao progresso6 econômico moldado
capitalisticamente. Mas fazer a crítica do progresso em si, apenas essencializa a questão, torna
imutável. Talvez devamos por a questão em outros termos, ou seja, questionar quem está se
beneficiando do progresso, como o progresso tem sido executado; Inegavelmente o progresso
econômico capitalista nos legou aspectos positivos como os avanços no campo da medicina,
telecomunicações e tecnologias; mas também esse mesmo modelo de progresso nos trouxe
guerras, tráfico, colonizações, misérias, favelas, privatizações, mazelas, violência,
6
De maneira diferente à definição supracitada, o filósofo húngaro György Lukács (1885-1971) assim conceituou
progresso: “Filosoficamente, o conceito de progresso pressupõe a descoberta de tendências que, na sociedade,
garantam um contínuo - embora não uniforme - acréscimo de valores humanos. Uma tal concepção filosófica
implica a aspiração a um estado ideal (donde um progresso infinito, como o concebeu Kant) ou o ingresso num
estágio qualitativamente diferente dos anteriores, que assegure o desenvolvimento das faculdades ‘naturais’ da
humanidade (o capitalismo na economia clássica, objetivos da Ilustração e da Revolução Francesa etc.); em
qualquer caso, trata-se sempre de um desenvolvimento mais alto que se opera na própria realidade” (LUKÁCS,
2009, p.35).
desigualdade, criminalizações, pobreza, cegueira social, farsas, repressões, desrespeito,
indignação, caos, fundamentalismos, corrupção, fuzilamentos, escórias e picaretagens.

4. Crítica ao desenvolvimento. Mas e aí? A roda da história não gira para trás

Porto-Gonçalves, em que pese os aspectos positivos, me parece ter se tornado vítima


do seu próprio pós-colonialismo e assim abraçou uma visão romantizada da natureza. Esta
visão pós-moderna de superação do desenvolvimento aparece no autor quando ele procura
deslocar a questão do desenvolvimento desigual (e combinado7) do capitalismo para a crítica
ao desenvolvimento. Dessa forma, ele acaba por essencializar o desenvolvimento da mesma
forma que seu companheiro pós-colonial Arturo Escobar (2005a).
O antropólogo colombiano Arturo Escobar tem proposto que abdiquemos da busca do
desenvolvimento. Isto porque, em sua visão o desenvolvimento em si é prejudicial uma vez
que ele é capitalcêntrico. O que significa isto? Significa dizer que o desenvolvimento está
ligado matricialmente ao crescimento do capitalismo, ou seja, do sistema que objetiva o lucro.
Lucro que se transforma prejuízo para outros. Nesse sentido é extremamente perigoso a
louvação do desenvolvimento posto que ele implicou historicamente e geograficamente em
destruição do outro.
Historicamente, o desenvolvimento do capitalismo se processou basicamente em três
aspectos: 1) a acumulação primitiva8; 2) A conquista do continente americano, o Novo
Mundo; e 3) A escravização dos africanos. Na Europa, mais especificamente na Inglaterra, os
camponeses foram expropriados e suas terras foram designadas à criação de ovelhas 9. Das

7
A noção de Desenvolvimento Desigual e Combinado do Capitalismo remonta aos pensadores marxistas Lênin,
Rosa Luxemburg e Leon Trotsky. Este último em História da revolução russa (2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977) clarificou as principais categorias da lei: A Desigualdade dos Continentes e Países; A Evolução
Desigual do Capitalismo; Causas Iguais, Efeitos Diferentes.
8
A acumulação primitiva é uma “acumulação que não decorre do modo capitalista de produção, mas é seu ponto
de partida” (MARX, 2011, p.827). Em O Capital, precisamente no Livro I Volume II Capítulo XXIV, o filósofo
e principal teórico do comunismo, Karl Marx, promoveu uma análise do referido processo enquanto gênese da
produção do capital e, consequentemente, do capitalismo. Marx aponta a violência como marca registrada de tal
processo que opôs proprietários de dinheiro e trabalhadores livres. A expropriação dos camponeses na Inglaterra,
o saque dos bens da Igreja Católica com a Reforma, a pauperização do povo, a usurpação das terras que
formaram a oligarquia, são todos momentos do movimento da acumulação primitiva. Além disso, Marx mostra
como a lei se tornou veículo do roubo e da destituição de direitos, a agricultura e a terra comunal foram
desconectadas, a transformação da propriedade feudal em propriedade privada moderna e a alienação
fraudulenta dos domínios do Estado figuram entre os métodos da acumulação primitiva. Somem-se a isso as
legislações contra os expropriados, as leis que rebaixavam salários, leis contra trabalhadores, o sistema colonial,
a participação do cristianismo e a dívida pública como alavanca da, assim chamada, acumulação primitiva.
9
Ao fazerem isso, os proprietários rurais ingleses acabaram expulsando inúmeras famílias camponesas que
iriam, futuramente, servir de mão-de-obra barata para trabalhar nas incipientes fábricas e manufaturas inglesas.
Um retrato deste processo pode ser encontrado em MORE (2000).
Américas o ouro, a prata, os metais preciosos, a força de trabalho indígena. Da África a força
de trabalho negra. Em ambos os casos camponeses, índios e negros foram vistos como
vagabundos, bárbaros, incivilizados. O resto da história a gente já conhece.
Altos níveis de industrialização e urbanização, tecnificação da agricultura e adoção
dos valores culturais e educacionais modernos (leia-se europeus), fazem parte do corpo do
desenvolvimento. A pergunta que se faz é a seguinte: é possível reorientar o
desenvolvimento? Se possível como, por que e para quê?
Vejamos: se o desenvolvimento é em si capitalista isso significa dizer que ele é
essencialmente capitalista. Ele é imutavelmente capitalista. Mas será que não estaríamos
incorrendo em um erro em afirmar que o desenvolvimento não pode mudar? Não estaríamos
sendo metafísicos e até mesmo duvidando da capacidade do homem que ele tem de mudar?
A palavra desenvolvimento é apenas um cognato. Quem a faz na materialidade são os
homens. E são os homens que detém a capacidade da mudança. Mas por que falar tanto de
mudança? Talvez por que é possível crer que o desenvolvimento em si não é capitalista. Mas
ele precisa de alguns reajustes estruturais.
A reorientação do desenvolvimento passa pela reorientação do sistema. Num sistema
civilizatório, como é o capitalismo, orientado pelo lucro, mais-valia e na exploração da
natureza e do trabalhador é preciso mudar a forma de ser do desenvolvimento. Isso para que
não romantizemos os subdesenvolvidos, uma vez que o subdesenvolvimento é uma forma de
ser do desenvolvimento; é seu co-constitutivo dialético; não é algo exterior, mas simultâneo.
Dessa forma todos nós somos simultaneamente/contemporaneamente
(sub)desenvolvidos. A industrialização desenfreada, a urbanização sem controle, o uso
intensivo de agroquímicos, a educação que deseduca, são todas elas formas de ser do
desenvolvimento capitalista. Como se supera esse cenário?
Agindo dentro dele. Sem cair no estruturalismo de achar que o capital determina a
tudo, a todos e que as alternativas apenas são subsumidas por ele; é preciso ter ciência de que:
sim, o capital é hegemônico, ou seja, detém o controle ideológico; mas isso não é igual a dizer
que o capital determina totalmente as sociabilidades do indivíduo.
É preciso, pois cada vez mais de política. Estou ciente de que este tipo de política feita
no mercado é uma das formas de ser da própria política do sistema capitalista que, como
disse, pode até ser hegemônica; todavia, ser uma não é o mesmo que ser a; assim temos que
focalizar a política não apenas como imposição de limites, mas também como luta pelo poder.
Poder este que não está assente apenas no Estado, mas em todos nós. Mais política, menos
polícia10.

5. Desenvolvimento: de opção à imposição

Uma das melhores críticas que Porto-Gonçalves produz é acerca da imposição do


desenvolvimento. Como já advoguei anteriormente, deslocaria a crítica do desenvolvimento
para a crítica do modelo. O desenvolvimento progressivo do capitalismo, cujas obras/projetos
(hidrelétricas, monoculturas, portos, estradas de rodagem, ferrovias) são sua materialização,
expressam o caráter fascista da economia. Um fascismo anti-social: o deslocamento relativo
da economia em relação à vida sociopolítica. Mas esse deslocamento implicou num outro
lócus da vida: o mercado. No fascismo econômico, é o mercado quem busca controlar em sua
totalidade a vida, o cotidiano, a sociedade e o território. As empresas capitalistas e os
banqueiros lançam mão da violência econômica para exercer seu poder cujo intuito é subjugar
as mais diversas populações aos seus ditames.

6. Limites do crescimento ou do desenvolvimento?

Então, os limites seriam do desenvolvimento ou do crescimento? Parece-me aqui que


Porto-Gonçalves sinonimiza ambos. Não vê distinção entre crescimento e desenvolvimento. É
importante pontuar essa distinção porque ela possui implicações políticas que requerem um
entendimento sofisticado de seus mecanismos internos. O crescimento está associado
diretamente ao ganho monetário, produção de riquezas. Já o desenvolvimento está relacionado
muito mais a realização das potencialidades humanas individuais e coletivas.

7. Técnicas jurídicas e militares de expulsão dos povos de suas terras

Porto-Gonçalves, neste aspecto, faz lembrar o famoso capítulo da acumulação


originária de Marx, no qual o filósofo alemão demonstra, além da expropriação dos
camponeses, as técnicas jurídicas (as leis sanguinárias contra os expropriados) e militares (o

10
Isso me recordou a observação que Marx (1983, p.77, grifos meus) pontua em sua Crítica da Filosofia do
Direito de Hegel: “Com estes representantes não é suprimida a oposição; esta é antes transformada em oposição
legal, rígida. O Estado, na medida em que é estranho e exterior ao ser da Sociedade Civil, é defendido pelos
representantes deste ser contra a sociedade civil. A polícia, os tribunais, a administração, não são representantes
da própria sociedade civil, vigiando em si mesmos e através de si mesmos o seu próprio interesse comum, mas
sim representantes do Estado encarregados de o administrar contra a sociedade civil”.
uso da força) necessárias ao nascimento do capitalismo. Harvey (2010), por outro lado, tem
apontado que a acumulação originária descrita por Marx continua em voga. Harvey chamou
de acumulação por espoliação uma gama de processos: a mercadificação, privatização das
terras e da força de trabalho, expulsão de populações camponesas, processos
(neo)coloniais/imperiais, monetização da troca, comércio de escravos, o uso da força pelo
estado e seu monopólio da violência, ênfase em direitos de propriedade intelectual,
patenteamento e licenciamento de material genético, biopirataria e privatização.

8. Crítica às intenções

Importante aspecto salientado por Porto-Gonçalves é a crítica às intenções como


forma de não - neutralizar as técnicas. Sem problematizarmos as intenções das técnicas
acabamos por naturalizá-las e possivelmente, legitimando o movimento em curso de um
iluminismo tecnocrático que busca substituir a política.

9. Demócrito

Na página 79, Porto-Gonçalves se vale de Demócrito para registrar que na natureza


tudo é acaso ou necessidade. Novamente, creio que sem perceber11, Porto-Gonçalves reitera o
seu dualismo determinista. Talvez fosse melhor buscar uma saída em outro filósofo: Epicuro.
Porque como diz Foster (2010, p. 58): “Epicuro opunha-se a toda teleologia e a todo
determinismo absoluto no tratamento da natureza”. Não é a toa que, para Marx, Epicuro foi o
maior nome do Iluminismo Grego.

10. Natureza e cultura separadas = dominação

Idéias gêmeas (2006, p.83). É assim que Porto-Gonçalves aborda a questão da separação
natureza-cultura identificando com a dominação da natureza. O geógrafo Neil Smith (2009,
p.9) opôs essa visão com a tese da produção da natureza:

Dois esclarecimentos são importantes aqui. Primeiro, muitos marxistas e críticos tem
argumentado que as sociedades humanas em geral, e capitalismo em particular,
tentam uma certa dominação da natureza. Para a Escola de Frankfurt de um lado do
espectro político, esta sempre foi concebida como uma condição inevitável do

11
Ou seria intencional?
metabolismo humano com a natureza 12. Por outro lado, ecologistas profundos,
hipótese de Gaia, e outros essencialistas ecológicos reconhecem uma tentativa
paralela de dominação, mas rejeitam-na não como inevitável mas como uma escolha
destrutiva social. Não há dúvida de que a intenção ampla da ciência em uma
sociedade capitalista é explicitamente destinado a dominação da natureza, mas que o
projeto incorpora uma externalização agressiva da natureza, como vimos, e de
diferentes maneiras de externalização da natureza também é incorporada, seja qual
for o grau de lamentação, na tese de dominação da natureza. A tese da produção da
natureza, pelo contrário, não só assume nenhuma dominação abrangente, mas deixa
aberta inicialmente as formas pelas quais a produção social pode criar acidental,
involutária, mesmo resultados contra-eficazes vis-a-vis a natureza. Em termos
políticos, a tese da dominação da natureza é um beco-sem-saída: se tal dominação é
um aspecto inevitável da vida social, as únicas alternativas são uma política anti-
social (literalmente) da natureza ou renuncia a outra dominação suave.

De fato, o capitalismo jamais conseguiu dominar a natureza, do contrário não


sofreríamos com o efeito estufa, por exemplo. A tese da dominação da natureza implica,
acertadamente como reconheceu Smith, numa externalização da sociedade. A crítica de Smith
é caracteristicamente anti-determinista abrindo espaço para inflexões e possibilidades.

11. Observação sobre a Teoria das quatro causas aristotélicas e Francis Bacon:
Antiguidade e Modernidade.

Para entendermos a importância de Aristóteles (384a.C - 322a.C) vejamos o que


Marilena Chauí (2008, p.10) tem a nos dizer acerca do pensamento do referido filósofo:

O filósofo Aristóteles afirmou que só há conhecimento da realidade (portanto, da


permanência e do movimento dos seres) quando há conhecimento da causa -
“conhecer é conhecer pela causa”. Para tornar possível o conhecimento elaborou
uma teoria da causalidade que ficou conhecida como teoria das quatro causas. [...]
haveria assim a causa material (responsável pela matéria de alguma coisa), a causa
formal (responsável pela essência ou natureza da coisa), a causa motriz ou eficiente
(responsável pela presença de uma forma em uma matéria) e a causa final
(responsável pelo motivo e pelo sentido da existência da coisa).

Se Platão apontou que os objetos reais são apenas uma representação da ideia, o
filósofo de Estagira hierarquizou as causas acima referidas. As causas menos importantes
seriam a material e a motriz, e as mais valiosas seriam a formal e a final.

Por isso, a causa material e a eficiente são ditas causas externas, enquanto a formal e
a final são ditas causas internas. Percebe-se que são mais importantes as causas da
permanência e menos importantes as causas da mudança ou do movimento (Chauí
2008, p.11).

A “preferência” de Aristóteles pela permanência e não pelo movimento é algo que não
foi exclusivo deste filósofo. Enquanto Heráclito de Éfeso (540-480 a.C) pregava a existência
12
Alfred Schmidt, The Concept of Nature in Marx, London: New Left Books, 1971;
William Leiss, The Domination of Nature, Boston: Beacon Press, 1974.
constante da mudança, Parmênides professava que a essência do ser era imutável e que o
movimento era um fenômeno de superfície. A “escolha” pela metafísica de Parmênides em
detrimento da concepção de Heráclito é explicada por Konder (2008, p.8) dizendo que:

Havia certa perplexidade em relação ao problema do movimento, da mudança. O


que é que explicava que os seres se transformassem, que eles deixassem de ser
aquilo que eram e passassem a ser algo que antes não eram? Heráclito respondia a
essa pergunta de maneira muito perturbadora, negando a existência de qualquer
estabilidade no ser.

Retomando a concepção aristotélica das quatro causas analisa-se que a causa material
(aquilo que alguma coisa é feita) está ligada à causa motriz ou eficiente (o agente que faz o
objeto). Em contrapartida a causa formal está ligada à final, pois os seres são criados com
uma finalidade. Assim, é a finalidade que determina a essência ou natureza da coisa.

Se examinarmos as ações humanas, veremos que a teoria das quatro causas leva a
uma distinção entre dois tipos de atividades: a atividade técnica (ou o que os gregos
chamavam de poiésis) e a atividade ética e política (ou o que os gregos chamam de
práxis) a primeira é considerada uma rotina mecânica, em que um trabalhador é uma
causa eficiente que introduz uma forma numa matéria e fabrica um objeto para
alguém. Esse alguém é o usuário e a causa final da fabricação. A práxis, porém, é a
atividade própria dos homens livres, dotados de razão e de vontade de deliberar e
escolher uma ação. Na práxis, o agente, a ação e a finalidade são idênticos e
dependem apenas da força interior ou mental daquele que age. Por isso, a práxis
(ética e política) é superior à poiésis (o trabalho) (CHAUÍ, 2008, p.11).

A dicotomia entre ideia e materia presente em Platão é reforçada com a metafísica


aristotélica que agora racionaliza a separação entre a técnica e a ética/política, hierarquizando,
tal como fez com as causas. Como o trabalhador, o homem não-livre é aquele que faz
tecnicamente um objeto, e não aquele que pensa racionalmente deliberando a sua escolha, o
homem livre. Logo, aqueles são inferiores a estes em virtude da atividade que desempenham:
uma prática/técnica e a outra teórica/intelectual. Sacramenta-se então a oposição entre o
trabalho braçal e mental.

A história e a filosofia medieval, nas figuras de [Santo] Agostinho e [São] Tomás de


Aquino irão solidificar o idealismo platônico e a herança aristotélica na porção
ocidental do mundo. Eles farão uma leitura (judaico) cristã da filosofia platônica-
aristotélica. A oposição entre ideia e materia, corpo e alma, sujeito e objeto vão
ganhar “tons” racionais, lógicos.
A assimilação aristotélico-platônica que o cristianismo fará em toda a Idade Media
levará a cristalização da separação entre espírito e matéria. Se Platão falava que só a
ideia era perfeita, em oposição à realidade mundana, o cristianismo operará sua
própria leitura, opondo a perfeição de Deus à imperfeição do mundo material. Essa
leitura de Aristóteles e Platão efetuada pela Igreja na Idade Media se faz evitando-se
outras leituras através da censura, como muito bem o demonstrou Umberto Eco em
O Nome da Rosa. Enfim, com o cristianismo, os deuses já não habitam mais esse
mundo, como na concepção dos pré-socráticos. E, apesar da acusação de
obscurantismo que mais tarde os pensadores modernos lançarão aos tempos
medievais, a dívida que a Ciência e a Filosofia modernas têm para com a Idade
Media é maior do que se admite. Foi na Idade Media, por exemplo, que teve início a
prática de dissecação de cadáveres no ocidente europeu. Esse fato é de uma
importância muito grande e se constituiu numa decorrência lógica de uma Filosofia
que separa corpo e alma. Se a alma não habita mais o corpo depois de morto, este,
como objeto pode ser dissecado anatomicamente. Afinal, aquilo que o anima (do
grego ânima, alma) não está mais presente. O corpo, matéria, objeto pode então ser
dissecado, esquartejado, dividido. O sujeito, o que faz viver, foi para os céus ou para
os infernos e o corpo pode então virar objeto... O método experimental já estava em
prática nos monastérios e universidades católicas muito antes de Galileu (PORTO-
GONÇALVES, 2006a, p. 32-33).

Como se percebe a influência do platonismo, aristotelismo e do (judaico-) cristianismo


é muito forte. A separação entre ideia e materia desembocou numa oposição entre perfeição e
imperfeição. Para os filósofos pré-socráticos existiam deuses que faziam parte desse mundo
material, terreno, da natureza (physys). Com os ensinamentos platônico-aristotélicos os deuses
sobem aos céus, ao mundo das ideias. A leitura do judaico-cristianismo irá solidificar essa
visão para afirmar a superioridade do monismo teológico e do Homem.
Deus não habita mais esse mundo material, terreno vicioso: ele está em outro plano, no
mundo das ideias, controlando a tudo e a todos; em outras palavras, o mundo material,
terreno, físico (physys) está sem alma. Se a Natureza está sem alma o Homem, enquanto
imagem e semelhança de Deus pode dissecá-la, esquartejá-la. No mundo moderno, a
separação entre ideia/materia, corpo/alma, sujeito/objeto representará consequentemente a
separação entre Deus/Homem e Natureza. Vejamos então o que se passa com o mundo
moderno.

Com os trabalhos de Galileu, Francis Bacon13 e Descartes (entre outros), o


pensamento moderno reduziu as quatro causas apenas a duas, a eficiente e a final,
passando a dar à palavra “causa” o sentido que hoje lhe damos, isto é, de operação
ou ação que produz necessariamente um efeito determinado. [...] A causa não
“responde” simplesmente pelo efeito, mas o produz. A física moderna considera que
a Natureza age de modo inteiramente mecânico, isto é, como um sistema necessário
de relações de causa e efeito, tomando a causa sempre e exclusivamente no sentido
de causa motriz ou eficiente. Ou seja, não há causas finais na Natureza. No plano da
metafísica, porém, além da causa eficiente, é conservada a causa final, pois esta
refere-se a toda ação voluntária e livre, ou seja, refere-se à ação de Deus e à dos
homens. A vontade (divina e humana) é livre e age tendo em vista fins ou objetivos
a serem alcançados. Assim, a Natureza distingue-se de Deus e dos homens
(enquanto espíritos); é que ela obedece a leis necessárias e impessoais - a causa
eficiente define o reino da Natureza como reino da necessidade racional -, enquanto
Deus e os homens agem por vontade livre, Deus e os homens constituem o reino da
finalidade e da liberdade. (CHAUÍ, 2008, p.14-15).

13
“Mas de maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade da mente na descoberta das causas: pois,
como os princípios universais da natureza, tais como são encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma
causa. Mas, mesmo assim, o intelecto humano, que se não pode deter, busca algo. Então, acontece que buscando
o que está mais além acaba por retroceder ao que está mais próximo, seja, as causas finais, que claramente
derivam da natureza do homem e não do universo” (BACON, 2002, p.17). Está clarividente que Francis Bacon
não admite causa final na Natureza.
A causa eficiente, de certa forma, engloba a causa material, ao passo que a causa final
recobre a causa formal, permitindo assim que haja uma relação dicotômica entre o agente,
aquele que faz o objeto e atualiza a potencialidade da matéria permitindo que a causa material
receba a causa formal. Causa e efeito estão intimamente ligados, logicamente e racionalmente
produzidos. Então se a Natureza age mecanicamente, como um sistema de causa e efeito, se
ela é apenas o agente da mudança, não existem causas finais na Natureza, não há finalidade,
motivo da existência de algo. Isso para o mundo físico (physis, natureza), pois no plano
metafísico (que vai além da física, da physis, da natureza) há a causa final, que é voluntária e
livre: Deus e os homens. Temos então cristalizada a oposição Deus/Homem - Natureza. A
Natureza não é voluntária, não é livre, pois não tem fins, nem objetivos a serem alcançados. A
Natureza está presa às vontades necessárias, impessoais e livres, aos interesses dos espíritos
(tanto de Deus, como dos homens). O auge dessa dicotomia Homem-Natureza é visível em
Descartes (2008) quando este advoga que o homem torne-se senhor e possuidor da natureza14.
O racionalismo cartesiano mentor embrionário de uma epistemologia positivista que
esquarteja a Natureza, bem como a ciência com seu método, nos mostra como a Natureza é
vista como utilitária, um agregado mecânico de seres e indivíduos. O materialismo
mecanicista de Descartes que trata a Natureza como um corpo movido pela causa eficiente,
governada por leis mecânicas, faz com que o Homem sinta-se separado dela.

12. Biotecnologia

Há um aspecto positivo da crítica de Porto-Gonçalves (p.105) em relação à


biotecnologia. Ele ressalta que:

A revolução nas relações de poder por meio da biotecnologia, em vez de estar a


serviço da melhoria das variedades que melhor se adaptem aos ambientes históricos
das diferentes culturas e de seus povos, dando prosseguimento, assim, aos
aperfeiçoamentos que ao longo da história da humanidade diversos povos
desenvolveram, contribuem para concentrar poder e, consequentemente, aumentar a
desigualdade social e os riscos ambientais (2006, p.105).

É oportuno perceber umas coisas. Desenvolvimento, neste parágrafo, não é tomado


com algo negativo como o autor faz em outros momentos. Pelo contrário, é encarado como

14
“é possível chegar a conhecimentos muito úteis para a vida e de achar, em substituição à filosofia especulativa
ensinada nas escolas, uma prática pela qual, conhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos astros, do
céu e de todos os demais corpos que nos cercam, tão distintamente quanto conhecemos os diversos misteres dos
nossos artífices, poderíamos empregá-los igualmente a todos os usos para os quais são próprios, e desse modo
nos tornar como que senhores e possuidores da natureza” (DESCARTES, 2008, p. 60, os grifos são meus).
um importante aspecto de melhoria da vida dos povos e culturas. Mas o dualismo persiste em
seu pensamento em relação à biotecnologia: Porto-Gonçalves talvez não veja que com a
utilização da biotecnologia abriu-se a possibilidade real de produção da natureza. Não uma
natureza exterior, exógena, externa, formalmente subsumida e que precisa ser dominada; mas
uma natureza em sua totalidade, sem separações ou dicotomias, uma natureza
simultaneamente humana que, infelizmente, se tornou uma engrenagem da mecânica de
acumulação capitalista.

13. Crítica de Porto-Gonçalves à noção de externalidade é positiva

“O que não interessa à empresa é considerado externalidade. Só não se sabe ao certo


externalidade em relação a quê, na medida em que o meio ambiente é a totalidade concreta de
natureza e cultura” (2006, p.117).
Porto-Gonçalves, creio, foi bastante dialético neste aspecto. Introduziu o debate sobre
externalidade questionando-a: não procurou uma dialética interna ao objeto externalidade,
mas sim a relação na totalidade concreta natureza-cultura, unificando assim o que jamais
deveria ter separado.
Cabe destacar que outros autores também têm questionado a noção de externalidades.
Cito dois exemplos: Elmar Altvater15 e Joan Martínez-Alier16. Segundo Altvater (2006), faz-
se necessário rejeitar a noção de que a natureza funciona como um meio de intercâmbio de
externalidades que levam esse nome de externas porque não podem ser reguladas pelo
mecanismo de mercado.
Já para Martínez Alier (2007) a noção de externalidade desenvolvida na ciência
econômica exclui do cálculo econômico de qualquer investimento produtivo suas
consequências aparentemente relacionadas ao produto desejado. Esta noção, ao ser utilizada,
camufla o fato de que o investidor se apropria privadamente de todos os benefícios
(econômicos e simbólicos) gerados pelo processo produtivo e socializa os prejuízos, na
medida em que os grupos sociais e organizações governamentais de seu entorno terão que
arcar com seus resultados nefastos (poluição, comprometimento do ambiente etc.).

15
É cientista político e professor da Universidade Livre de Berlim.
16
É um economista catalão catedrático de Economia e História Econômica da Universidade Autônoma de
Barcelona.
14. Diálogo com Adam Smith: preço justo, preço natural, natureza e justiça17

Porto-Gonçalves ao abordar a questão dos limites do mercado, retorna ao pai do


liberalismo econômico, para repor o debate ambiental no campo da ética e da moral. Em que
pese a moralização do debate há algo de importante a ser creditado a Porto-Gonçalves (2006):
o recuo à Adam Smith (1723 - 1790) e a associação entre Natureza e Justiça. Comecemos
com Smith.

O liberalismo, em sua forma econômica clássica (Smith, Ricardo, os Fisiocratas),


tem como principio doutrinário o individualismo. Adam Smith (1999, p. 274) em
sua Teoria dos Sentimentos Morais (publicado pela primeira vez em 1759), de certa
maneira, apresenta esse principio da seguinte forma: “Como costumavam dizer os
Estoicos, todo homem e primeiro e principalmente recomendado a seu próprio
cuidado: e todo homem e certamente, em todos os aspectos, mais adequado e capaz
de cuidar de si mesmo do que qualquer outra pessoa.” Querendo opor-se as
imposições morais e mercadológicas do Estado absolutista mercantilista, Smith
completa seu sistema erigindo um verdadeiro hino ao mercado e ao capitalismo
auto-regulado pela concorrência, a Riqueza das Nações (publicado pela primeira vez
em 1776): transfiguração mater do principio do individualismo por meio da crença
de que a luta pelos interesses (de consumo) individuais por parte de cada um traria
benefícios a todos. Estava em vigência, ai, na tese smithiana, a expressão teórica da
luta da nascente burguesia contra as restrições econômicas imposta pelo Estado
absolutista, e em favor da livre-iniciativa e do livre-mercado. Surgia, dai, a figura do
individuo econômico que, ordenado pela metáfora da mão invisível (o mercado),
direcionava o desenrolar da riqueza (e da pobreza) da sociedade liberal. Ou nos
próprios termos de A. Smith (1998, p. 31): “Cada homem e rico ou pobre, segundo o
grau em que pode adquirir as necessidades, conveniências e diversões da vida
humana. Mas depois que a divisão do trabalho foi bem implantada, e a uma bem
pequena parte destas que o trabalho do homem proporciona. A maioria delas, ele
deve derivar do trabalho de outras pessoas, e será rico ou pobre, de acordo com a
quantidade daquele trabalho que pode comandar, ou que ele pode adquirir.”. (Cf.
SMITH, Adam. Uma Investigação Sobre a Natureza e Causas da Riqueza das
Nações. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.). Portanto, uma vida direcionada a
troca permanente de bens, onde a riqueza ou pobreza estão na capacidade de cada
homem (em sua singularidade) trocar bens e quanto mais especializado for, melhor
lugar conquista no processo produtivo.

Adam Smith estava buscando entender a “natureza” da economia capitalista. Visando


o âmago do capitalismo, ele acreditava que as sucessivas inovações tecnológicas causariam o
barateamento da produção e consequentemente promoveria condições de mercado para vencer
os competidores. A força do seu pensamento deu embasamento moral e teórico para que a
burguesia pudesse se expandir. Pinheiro (1995, p. 67) alega que:

Nos séculos XVIII e XIX, sob a influência das idéias liberais de Adam Smith, cada
país procurava seu espaço no comércio internacional com base na especialização na
produção de mercadorias para as quais tivesse maiores vantagens competitivas,
determinadas por fatores naturais, culturais, sociais e históricos. Desta forma, do
Chile exportavam o salitre; do Brasil, o café, o açúcar e os metais preciosos; da
América Central, as bananas; da região andina do Peru e Bolívia, os metais

17
Parte desta discussão foi realizada em Ribeiro Junior; Oliveira; Sant‘Ana Júnior (2009)
preciosos; da Argentina e Uruguai, a carne. O liberalismo econômico fazia parte da
estratégia política internacional inglesa, que o empregava com o intuito de conseguir
acesso direto aos fornecedores de matérias-primas e aos mercados consumidores
mundiais, rompendo com a ordem mercantilista. É interessante ressaltar que, no
mesmo período, EUA e Alemanha adotavam políticas protecionistas.

Especialização, vantagem, fatores naturais, liberalismo econômico, todas estas


palavras possuem um amplo significado e consequência. A especialização na produção
agravou a divisão do trabalho; a vantagem implica no lucro, no privilégio, na superioridade;
os fatores naturais são aqui entendidos com fatores fisiográficos, tal como a localização de um
determinado recurso natural; o liberalismo econômico foi tomado como sinônimo de
liberdade burguesa. Dialeticamente, a liberdade de uns tornou-se a prisão de outros. Contudo,
uma das informações mais interessantes da doutrina de Smith, e que nos interessa
majoritariamente em nossa discussão, é tentar entender o que ele estipulava como “preço
natural”:

O preço natural é como se fosse o preço central, em torno do qual os preços de todas
as mercadorias estão continuamente gravitando. Acidentes diversos, por vezes,
podem mantê-los suspensos muito acima deles, e por vezes os forçam um tanto
abaixo. Mas quaisquer que sejam os obstáculos que os impedem de se estabelecer
neste centro de repouso e continuidade, estão sempre tendendo para ele (SMITH
apud KOCHER, 2005, p.96, nota de rodapé).

Mas o que Smith entendia como sendo natural? Uma possível resposta é entender que
Smith interpreta como natural aquilo que é justo, portanto, se é justo é aceitável. Como nos
fala Porto-Gonçalves (2006a, p. 51):

Natureza e justiça se tornam quase sinônimos a partir de finais do século XVIII.


Adam Smith procura o preço natural, o preço justo, enfim, o real valor das
mercadorias. A natureza passa a ser uma espécie de modelo para a sociedade: tal
ordem é justa porque está de acordo com a natureza. A natureza, ao contrário dos
homens não tem subjetividade, dizem. Portanto, pode ser estudada objetivamente e a
compreensão das suas leis, dos seus processos, da ordem que a governa deve servir
de ponto de referência para uma sociedade racional, livre das paixões, das ideologias
e da subjetividade típica dos homens.

Logo, entendeu Smith, o capitalismo está justificado/absolvido, porque a concentração


de riqueza está de acordo com a natureza-natural e a natureza do sistema, o que o torna dessa
forma um modelo econômico progressista. É preciso então superar o mercantilismo, pois com
os ganhos oriundos da produtividade poderia se oferecer uma melhor qualidade de vida para a
população em geral, além de se acabar com a pobreza. Portanto, esse seria o caminho natural,
diagamos, do sistema capitalista. Mas porque o capitalismo tomou então outros rumos? Uma
das possíveis respostas é que o homem com o seu self-interest desvirtuou o caminho natural.
Adam Smith acreditava que o liberalismo era a saída para a melhoria do mundo, mas não
atentou que a própria competição18, por ele glorificada por levar os preços das mercadorias à
queda, seria também responsável pelo acirramento das disputas por mercado.

15. Expert

Da mesma forma que Boaventura de Sousa Santos e Arturo Escobar, Porto-Gonçalves


critica o domínio do conhecimento por parte unicamente dos experts. Para Boaventura, o
expert nasce justamente da dicotomia, da separação, que é um fundamento moderno do
projeto positivista de ciência. O exclusivismo epistemológico que promoveu verdadeiro
apartheid entre o conhecimento técnico/especializado (expert) e o conhecimento não-
técnico/não-especializado (leigo), promoveu a autonomia dos cientistas na mesma ordem que
retirou do leigo qualquer possibilidade de tomada de decisões ou até mesmo de debates
(SANTOS; MENESES; NUNES, 2005).
Já o antropólogo colombiano Arturo Escobar (2005b, p.31): procura relacionar o
conhecimento especializado (expert) com a governamentalidade de Michel Foucault:

Governamentalidade é um fenômeno essencialmente moderno através do qual vastos


domínios da vida cotidiana são apropriados, processados e transformados por
conhecimento de experts e o aparato administrativo do estado. Este processo atingiu
a ordem natural do manejo florestal científico e a agricultura plantations ao
gerencialismo do desenvolvimento sustentável

Uma pergunta paira no ar: o conceito de governamentalidade pode ser aplicável,


mesmo que de maneira incipiente, à natureza? Ou isso repõe o debate dual? Existe ou não um
conjunto de práticas que buscam disciplinar a natureza, conduzir a sua gestão através de
instituições que, no jogo político, gozam de diferentes níveis de poder e de relações de poder?

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da Natureza. Trad. José Aluysio Reis de ANDRADE. 2002. Versão eletrônica disponível
em: www.dominiopublico.gov.br.

18
Há de se destacar, e é preciso ter isso em mente, que competição é uma noção biológica e implica uma relação
desarmônica, ou seja, uma relação na qual pelo menos uma das espécies é lesada.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2ªed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
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