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ABSTRACT: The present paper aims at discussing in what way does the succession of
States, understood as the substitution of a State by another in a certain territory, affect
the jurisdiction of the International Criminal Court, applying the discussion to its
ongoing procedure in Crimea. It addresses the international law applicable to the
succession of States and confronts it to the potential jurisdiction of the Court in Crimea,
as of its preliminary conclusions by the Prosecutor. It argues that the Prosecutor fails in
not addressing the potential Russian annexation, which would bar the exercise of
jurisdiction. It concludes that, indirectly, the legality thesis was applied, which is only
*
Graduando em Relações Internacionais pelo UNICURITIBA – Centro Universitário Curitiba. Curitiba,
Paraná, Brasil.
one of the multiple juridical possibilities and which is not consensually accepted as
applicable.
INTRODUÇÃO
O Tribunal Penal Internacional (“TPI”, “o Tribunal”), instituído pelo Estatuto de
Roma de 1998 (“o Estatuto”), é um tribunal internacional permanente que tem por
objetivo investigar, julgar e punir indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a
humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão. Sua jurisdição pode ser ativada pela
solicitação de um Estado, por iniciativa do Gabinete da Promotoria do Tribunal (“OTP”,
“a Promotoria”) ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (“CSNU”). Com a
exceção desse último, a jurisdição é regida pelo consentimento: ainda que a
investigação seja empreendida por iniciativa da Promotoria, respalda-se no
consentimento expresso pelos Estados no momento em que, por decisão soberana,
ratificam o Estatuto.
Desde 2013, quando o então presidente Viktor Yanukovych rejeitou um acordo
de aproximação com a União Europeia, a Ucrânia tem vivido ondas de distúrbio
político. A primeira fase desse contexto resultou na deposição do presidente, de claras
tendências pró-Rússia, por forças sociais pró-União Europeia. No momento seguinte, a
Crimeia, que possui profundos laços históricos com a Rússia, reagiu em direção oposta:
contra o novo governo ucraniano, declarou independência em busca da reaproximação
com a Rússia. Na esteira dos eventos, o novo governo ucraniano protocolou uma
declaração junto ao TPI conferindo-lhe jurisdição sobre seu território para possíveis
crimes de sua competência. Frente a isso, o OTP, no uso de suas atribuições, iniciou um
exame preliminar na Ucrânia, incluindo possíveis crimes ocorridos na Crimeia.
Em 2014, a Rússia anunciou a incorporação da Crimeia ao seu território, fato
reconhecido publicamente por seis Estados. Essa situação levanta questionamentos
sobre a aplicabilidade da jurisdição do TPI fundada em uma declaração emitida pela
Ucrânia, uma vez que a sucessão desta pela Rússia na soberania sobre a Crimeia
colocaria em cheque a competência ucraniana de delegar a jurisdição sobre a península.
Tendo isso em mente, o presente trabalho por objetivo discutir de que forma a sucessão
vez que é na alienação de algum desses que tem-se a extinção do Estado. Os autores
(Id.) entendem, ademais, que estes são intrinsecamente correlatos e,
contemporaneamente, devem ser entendidos sob a ótica democrática: a soberania seria
originária da vontade do povo, a partir do qual se exerceria a cidadania em determinado
limite físico.
Tendo-se a exceção de, por um lado, o elemento da finalidade apresentado por
Mazzuoli (2011), rejeitado por Fabriz e Ferreira (2001, p. 137), e, por outro, a
perspectiva normativo-democrática destes últimos, entende-se que os elementos centrais
são largamente correspondentes, considerando que os entendimentos de governo
independente e de soberania dizem respeito ao mesmo aspecto do Estado.
Corrobora para esta tese o entendimento de Bonavides (2014, p. 70), segundo o
qual o Estado é composto por três elementos: o político, o humano e o território. O
autor (Id., p. 71) rejeita as teses subjetivistas na análise do Estado enquanto entidade, o
que por certo incluiria a perspectiva da finalidade ou a ótica democrática, de forma que
sua tese nos parece a mais apropriada. Essas perspectivas, ainda assim, são insuficientes
para compreender a prática internacional em matéria de Estado, bastante diversa.
A Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados, de 1933,
é o documento de direito internacional positivado que mais diretamente aborda a
matéria, tendo sido consagrado e até hoje frequentemente referenciado (WORSTER,
2009). Segundo seu Art. 1, são os elementos constitutivos: população permanente;
território definido; governo; e capacidade de incorrer em relações internacionais.
Em que pesem tais elementos, a questão central que se destaca é que raramente
são eles objetos de apreciação nos debates relativos ao reconhecimento de sucessão de
Estados. Tem-se como resultado disso que, na prática internacional, é comum que haja o
reconhecimento de Estados em que tais elementos são, no mínimo, flexibilizados.
Mazzuoli (2011, p. 440) lembra, por exemplo, que Burundi e Ruanda foram
admitidos como membros da ONU sem que tivessem governos estabelecidos no sentido
que propõe a Teoria do Estado. Yamali (S/D, p. 9) atenta ao reconhecimento da Bósnia-
Herzegovina e da Croácia sem que seus governos exercessem controle efetivo de seus
territórios, no contexto da Guerra da Iugoslávia. Relativamente ao território, a autora
(Id., p. 3) destaca ainda o reconhecimento de Israel antes de ter suas fronteiras definidas.
Finalmente, para Worster (2009, p. 124), a constituição do Estado, na prática
internacional, pode ser entendida a partir de duas perspectivas. A primeira, que dá
origem à chamada teoria do reconhecimento constitutivo do Estado, entende o Estado
6) o ato alia visões políticas e bases legais, ao reconhecer que a existência os elementos
constitutivos do Estado e mostrar vontade de estabelecer relações com este.
Segundo a teoria declaratória, o reconhecimento do Estado pelos demais sujeitos
do direito internacional não têm qualquer efeito sobre a existência do Estado
reconhecido, uma vez que esta precede ao reconhecimento (WORSTER, 2009, p. 124).
Esse entendimento encontra respaldo em uma série de documentos internacionais.
O Art. 3 da Convenção de Montevidéu prevê expressamente que “a existência do
Estado é independente do reconhecimento por outros Estados”, e que, mesmo
anteriormente ao reconhecimento, este tem o “direito de defender sua integridade e
independência”. Tal dispositivo é reproduzido no Art. 16 da Carta da Organização dos
Estados Americanos, de 1948. Worster (2009, p. 129) leciona que essa prática surge
como “antídoto” ao potencial abuso de poder dos Estados já existentes, em um ambiente
internacional de poder desigual em que tende a prevalecer a opinião de certos países.
A teoria constitutiva, por sua vez, preconiza que não existe Estado anterior ao
seu reconhecimento pelos demais sujeitos de direito internacional (Id., p. 132), de forma
que é o reconhecimento que cria sua personalidade jurídica. A lógica por trás do
entendimento é a de que o exercício do status de Estado é funcional, fundado em
direitos e deveres para com uma determinada ordem estabelecida (Id., p. 136). Ainda
que tal entendimento não encontre suficiente respaldo em documentos de direito
internacional positivo, é bastante recorrente na prática internacional, sobretudo ante
intentos secessionistas.
Analisando os incontáveis precedentes no campo, Worster (Id., p. 145) entende
que a prática internacional em matéria de sucessão é bastante diversa e incoerente,
sendo impossível afirmar que exista um direito consuetudinário que estabeleça
definitivamente que o Estado precede ou não ao seu reconhecimento.
Conforme leciona Crawford (2006), tais entendimentos não se restringem apenas
à criação de um Estado, mas estendem-se às demais matérias relativas à transformação,
incluindo a anexação. Neste ponto em específico, resulta que a tese adotada – se é ou
não necessário o reconhecimento para a existência da sucessão e, se sim, se há ou não o
reconhecimento – determina a existência mesma da anexação, uma vez que uma leitura
a partir da tese constitutiva, ausente reconhecimento, determinaria a existência de mero
estado de ocupação ou beligerância, com todas suas implicações jurídicas.
Uma outra abordagem da literatura trata das condições de existência do Estado
(Id.). Essa leitura encontra espaço tanto na teoria constitutiva quanto declaratória: na
primeira, trata das condições que permitem o reconhecimento do Estado, sem as quais
este não teria validade; na segunda, das condições necessárias para que se verifique a
existência do Estado, independente do reconhecimento.
A doutrina mais clássica, decorrente da Teoria do Estado, entende que tais
condições devem ser, exclusivamente, a existência dos elementos esposados pela
Convenção de Montevidéu. Cada vez mais, no entanto, têm sido apresentadas condições
outras consideradas essenciais. Worster (2009, p. 154-155) indica, para além dos
critérios da Convenção, a autodeterminação, a democracia e o estabelecimento em
conformidade com obrigações jus cogens (“tese da legalidade”).
Crawford (2006), por exemplo, realiza extensa análise do uso da legalidade e da
autodeterminação enquanto condições para a existência do Estado ou seu
reconhecimento. Segundo o autor (Id., p. 97), a teoria clássica da constituição do Estado
baseou-se, tradicionalmente, na chamada tese da efetividade, segundo a qual é Estado,
quer ontologicamente, quer em razão de reconhecimento válido, a entidade que reúne
efetivamente os critérios esboçados pela Convenção de Montevidéu. Worster (2009, p.
156) sintetiza tal perspectiva como o “critério do controle efetivo”, segundo o qual o
direito deve responder a uma realidade concreta, a existência do Estado, observada
desde perspectivas materiais de efetividade de sua operação.
Ao longo da segunda metade do século passado, no entanto, emergiu como
alternativa a tese da legalidade. Para Crawford (2006, p. 107), assim, uma tentativa de
transformação de Estado decorrente de uma violação de norma peremptória (jus cogens)
não configuraria sucessão, posto que ex injuria jus non oritur (“da ilegalidade não surge
direito”). Esse entendimento decorreria do Art. 53 da Convenção de Viena sobre o
Direito dos Tratados de 1969, segundo o qual é invalido tratado que viole norma de jus
cogens. O próprio autor (Id., Ibid), no entanto, reconhece que tal dispositivo não foi
instituído tendo em vistas a sucessão de Estado, sendo o seu entendimento decorrente de
uma leitura um tanto extensiva mas, para ele, já consagrada na prática internacional.
É fundamentado nessa doutrina que o autor entende que, via de regra, uma
entidade que clame ser Estado, ou uma anexação, mas que tenham origem no uso ilegal
da força (como entendido pela Carta da ONU), presume-se inválida erga omnes (Id., p,
148). O autor, mais, defende a tese de que em tais casos há uma obrigação substantiva
de não-reconhecimento pela comunidade internacional (Id., p. 158). Não obstante,
Worster (2009, p. 156) é bastante convincente ao demonstrar que a tese da legalidade de
novembro de 2013 e abril de 2014 (TPI, 2015a, p. 19). Face a isso, o Gabinete da
Promotoria iniciou um exame preliminar no país, dedicando-se sobretudo aos possíveis
crimes ocorridos em Kiev, no contexto dos protestos contra Yakunovych (Id., Ibid.)
Em setembro de 2015, a Ucrânia protocolou uma segunda declaração,
igualmente aceita pela Promotoria, estendendo a jurisdição do Tribunal para todos os
eventos ocorridos depois de fevereiro de 2014, sem restrições (TPI, 2016, p. 34). Com
base nisso, o OTP passou a investigar possíveis crimes de jurisdição do Tribunal, para
além dos eventos de Kiev, também na Crimeia. Nesta, as alegações materiais foram:
assédio da população tatar; assassinato e abdução; maus-tratos; detenção e ausência de
julgamento justo; e serviço militar compulsório (Id., p. 39-40).
Em conformidade com a processualística do TPI, segundo o Art. 15 do Estatuto,
o OTP deve realizar um exame preliminar no caso, o que inclui todos os aspectos
jurisdicionais, para determinar se há “bases razoáveis” para proceder com uma
investigação formal. Depois de extensa análise, o OTP apresenta seus argumentos à
câmara pré-julgamento, que deve autorizar a abertura de uma investigação e, se
necessário, expedir mandatos de prisão aos suspeitos, momento a partir do qual o
processo passa a correr em câmara de julgamento. Assim, as conclusões da Promotoria
(acusação) não indicam, por si, que o julgamento será efetuado, devendo ser autorizado
por uma câmara (juízes); porém, espera-se do OTP o total domínio do direito aplicável,
de forma que todos os exames até hoje que foram arquivados (Coreia do Sul, Comores e
Honduras), não resultando em investigações formais, o foram feitos por decisão do
próprio OTP.
2014). Ainda que seja verdade, nos parece bastante difícil extrair da prática
internacional a tese de que o reconhecimento por alguns Estados criaria mais efeitos
jurídicos do que o feito por outros. Mais fácil seria afirmar, a partir do princípio
máximo da Carta da ONU, contido em seu Art. 2.1 (igualdade soberana entre Estados),
a igualdade dos efeitos.
Outro argumento (MARXSEN, 2014) é o da autoridade do não-reconhecimento
pela AGNU. É pacífico na doutrina, no entanto, que resoluções da AGNU, diferente das
emitidas pelo CSNU, não criam direito (SCHWEBEL, 1979, p. 301). Ademais, cabe
lembrar que se trata de um órgão eminentemente político, de representação dos Estados
em interesse próprio; diferente do Tribunal, que deve se pautar tão-somente por critérios
jurídicos estritos e abster-se de considerações de caráter político (TPI, 2014).
Em qualquer caso, reitera-se que não há consenso quanto à validade da teoria
constitutiva ou declaratória, ainda que esta última tenha em seu favor a Convenção de
Montevidéu. Certo é que adotar esta última seria reconhecer que a jurisdição soberana
russa sobre a Crimeia independe de sua aceitação pela comunidade internacional. O
outro debate a se colocar em causa é o dos princípios da efetividade e da legalidade.
Este merece maior destaque, tendo sido o fundamento da Promotoria a suposta
ilegalidade da intervenção que resultou em estado de ocupação.
Marxsen (2014), partidário da tese da legalidade, é quem melhor aplica-a à
situação da Crimeia, posição que foi adotada pela Promotoria, embora implicitamente.
Segundo o autor (Id., p. 390, tradução e grifo nossos), “sob a perspectiva do direito
internacional a Crimeia ainda é parte da Ucrânia, independente do que a situação de
facto possa parecer”. Tal passagem bem ilustra a negação da tese da efetividade. A
razão para tanto seria a de que, juridicamente, a declaração de independência da
Crimeia teria sido inválida, e, não havendo se tornado Estado capaz de incorrer em
relações com a Rússia, a intervenção desta constituiria afronta ao direito internacional.
Por surgir de atos supostamente ilegais, a transformação da Crimeia careceria de efeitos
jurídicos.
Sem negar a potencial validade da teoria da legalidade, no que toca a
independência, cabe lembrar o Kosovo, em que a Corte expressamente conclui que a
declaração unilateral de independência, isto é, sem autorização da Sérvia, não é afronta
ao direito internacional. Crawford (2006) lembra que a autodeterminação é, por
definição, a superação da exclusividade do direito doméstico vigente, de forma que não
há que se dizer que a independência da Crimeia careça de efeitos por ir contra o direito
ucraniano.
Antitética à tese da legalidade é a da efetividade, segundo a qual, em matéria de
Estado, cabe ao direito internacional responder a uma realidade fatual, não cabendo o
juízo sobre suas origens enquanto negação da situação resultante. Curiosamente, essa
tese encontra respaldo em um precedente do próprio OTP, de 2014, já sob chefia de
Fatou Bensouda, igualmente protagonista na situação da Ucrânia. Em dezembro de
2013, a Promotoria recebeu uma declaração sob o Art. 12(3) em nome de Mohammed
Morsi, que foi presidente do Egito até julho de 2013, quando deposto por um golpe
militar encabeçado por Fatah Al-Sisi. Na ocasião, o OTP rejeitou a declaração,
argumentando que Morsi já não podia representar a soberania egípcia (TPI, 2014).
Em sua exposição, a Promotoria argumentou que “a entidade que exercita de
fato controle sobre o território de um Estado, conta com a obediência habitual do grosso
da população, e tem expectativa razoável de permanência” é aquela que é “reconhecida
como o governo daquele Estado sob o direito internacional” (Id., tradução nossa). Não
há dúvidas de que se tratam de situações substancialmente diferentes, posto que esta
trata do reconhecimento de governo; mas é plausível argumentar que, na ocasião, o OTP
optou pela tese da efetividade em detrimento da legalidade, garantindo a autoridade à
entidade que controlava o território, independente de como chegou ao poder.
Se estendida tal abordagem à transformação de Estados, parece impossível
afirmar que a entidade que controla o território, goza de obediência da população e tem
expectativa de permanência na Crimeia seja a Ucrânia, e não a Rússia. Se, por um lado,
a decisão do OTP de maneira alguma cria jurisprudência de aplicação compulsória, por
outro deixa clara a diversidade de abordagens na matéria. Certo é que, se aplicada à
Crimeia, a tese da efetividade concluiria que a Ucrânia já não possui soberania sobre a
península, de forma que também a jurisdição do Tribunal restaria extinta.
Por fim, a despeito da decisão da Promotoria de aceitar a jurisdição sobre a
Crimeia sem qualquer discussão, que consideramos equivocada, cabe lembrar que, finda
a análise do OTP na questão, sobretudo material, o mesmo deverá solicitar a abertura de
uma investigação formal, a ser autorizada pela câmara pré-julgamento, antes que
indivíduos possam ser acusados. Espera-se que, na ocasião, seja levantada ante os juízes
a questão da aplicabilidade da jurisdição conferida por uma declaração ucraniana sobre
a Crimeia, no atual estado de coisas. Sendo o caso, supõe-se também que haja intenso
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O questionamento quanto à aplicabilidade da jurisdição do TPI na Crimeia
motivou um estudo que teve por objetivo discutir de que forma a sucessão de Estados
pode interferir na jurisdição do Tribunal, e aplicar tal discussão ao caso da Crimeia, à
luz das conclusões preliminares da Promotoria no caso. Para tanto, discutiu-se a
jurisdição do Tribunal, com base em seu Estatuto, o corpo relevante do direito
internacional aplicável à sucessão de Estados, o contexto que levou a Crimeia ao atual
estado de coisas e, finalmente, confrontou-se os achados às conclusões da Promotoria.
O Estatuto de Roma compele o Tribunal a justificar sua jurisdição sob base de
consentimento, expresso na adesão ao tratado ou em declaração ad hoc. Isso representa
um problema em se tratando de territórios disputados, uma vez que o direito
internacional determina a não continuidade automática das obrigações contraídas pelo
Estado sucedido.
Quanto ao estabelecimento da sucessão, porém, o direito internacional é extenso,
podendo ser dividido sobretudo entre as teorias constitutiva e declaratória e entre as
teses da legalidade e da efetividade. No primeiro debate, um lado preconiza que o
Estado só se institui ante seu reconhecimento, enquanto o outro afirma que este é
irrelevante. No segundo, a primeira tese prevê que são nulas transformações que
originem de afrontas ao direito internacional, enquanto a segunda determina que a única
importância reside na situação material efetiva. Com práticas internacionais
conflitantes, é impossível afirmar a existência de um direito consuetudinário que resolva
definitivamente essas questões.
A Crimeia possui laços históricos profundos com a Rússia, situação que reflete
em sua composição étnica e cultura política. Em um turbulento contexto que levou à
deposição de um governo ucraniano de tendências pró-Rússia, a península presenciou
um movimento que preconizava a “reunificação” da Crimeia à Rússia. Tal movimento
tomou corpo com a tomada de poder por rebeldes, a declaração de independência, a
convocação de um referendo e, finalmente, um suposto tratado de acessão à Rússia,
situação reconhecida por seis países e rejeitada pela maioria da AGNU.
A Ucrânia, em exercício ad hoc, conferiu jurisdição ao Tribunal sobre seu
território e nacionais. Com base nisso, a Promotoria passou a atuar sobre possíveis
crimes cometidos na Crimeia. Seu único argumento para tanto foi o de que a situação
constituiria conflito internacional e ocupação, situações em que a soberania ucraniana
restaria intacta.
Entendemos que a Promotoria errou ao não discutir a possibilidade de
transferência da soberania ucraniana sobre a Crimeia à Rússia, fato que impediria o
exercício jurisdicional do Tribunal. Se a teoria declaratória é adotada, como preconiza a
Convenção de Montevidéu, tem-se que a potencial soberania russa sobre a Crimeia
independeria de qualquer reconhecimento. E mesmo que a teoria constitutiva seja
adotada, o reconhecimento da sucessão por seis Estados surge como problema.
As exposições da Promotoria deixam a entender que, na situação, a tese da
legalidade foi aplicada, mas em momento algum explica os fundamentos para tal
adoção. Tivesse a tese da efetividade sido adotada, como fez o OTP na situação do
Egito, a jurisdição do Tribunal restaria extinta, uma vez que não é mais o governo
ucraniano, que conferiu jurisdição ao Tribunal, quem exerce controle efetivo sobre a
península.
Finalmente, espera-se que a questão da validade da declaração ucraniana como
fundamento para exercício jurisdicional sobre território reclamado pela Rússia seja
levantada e propriamente debatida na câmara pré-julgamento, à luz do extenso corpo de
direito internacional na matéria e seus conflitantes precedentes. Do contrário, supõe-se
que a atuação do Tribunal na Crimeia legitime ainda mais as críticas periféricas de que
o Tribunal seja instrumentalizado politicamente pelo Ocidente.
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