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A musicologia na era

do porquinho Babe

metaconto escrito numa explosão


de luz na noite do tempo por Vítor Rua
Sumário

1. O meta big bang


2. Jajouka
3. Acaso traremos connosco a memória do Universo?
4. Receita para fazer um rato
5. Todos os porquinhos são mentirosos
6. O manual do não músico
7. Estará o Universo a ficar sem gasolina?
8. Um rouxinol na ordem zero
9. Tacet
10. Impostura intelectual
11. Índice Geral

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1. O meta Big Bang

Tudo começou há 15.000 milhões de anos com uma explosão de luz na


noite do tempo.
O Universo era um puré homogéneo em expansão de electrões, fotões,
quarks, neutrinos e outras belas e exóticas partículas como os gravitões e os
gluões.
Umas dezenas de microssegundos após esta explosão o universo era já
um caldo primitivo de quarks e gluões e um quadragésimo de microssegundo
depois, quando a temperatura já tinha descido um bilião de graus, os quarks
uniram-se para gerarem os nucleões: protões e neutrões
Foi um pouco como um pudim que se mete no forno: à medida que incha,
as passas afastam-se umas das outras.

Poeiras interestelares iniciaram uma dança em volta de embriões de


estrelas, formando discos análogos aos anéis de Saturno, que pouco a pouco se
começaram a unir constituindo estruturas rochosas de dimensões sempre
crescentes, acabando por se aglomerarem em planetas.
Um desses planetas, ainda incandescente, escapando inexplicavelmente
às forças magnéticas que o sustinham num ponto exacto de uma galáxia, viu-se
engolido num fino tubo de espaço-tempo – também conhecido como buraco de
verme -, entrando num universo paralelo ligado ao nosso por um comprimento
de onda que nos permite viajar no tempo.

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A vida nesse planeta sem passado, presente ou futuro, não apareceu nos
oceanos, como durante muitos anos se acreditou, mas sim em lagoas e
pântanos – locais secos e quentes durante o dia, frios e húmidos de noite - nos
quais longas cadeias de moléculas ficaram cativas associando-se
espontaneamente em pequenas cadeias de ácidos nucleicos, formas
simplificadas do ADN, que viriam a ser o futuro/ presente/ passado suporte da
informação genética dos seres desse planeta.
Jajouka, assim se chamou/ chama/ chamaria esse planeta, nasceu da
argila e os seres que nela habitavam/ habitam/ habitaram, eram compostos de
poeira do meta big bang e continham neles toda a memória do universo.
É neste planeta que sempre existiu, existe, e nunca existirá, que foi
escrito este meta conto, que retracta a metamusicologia na era do porquinho
Babe.

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2. Jajouka

O nosso metaconto tem início há 300.000 mil anos no relógio


convencional do meta big bang, mas irá surgir-nos estruturado com alguns
saltos no tempo .
Todos os habitantes humanos de Jajouka eram/ são/ foram músicos.
A sua sociedade estava organizada em três categorias sociais,
hierarquizadas pela seguinte ordem de importância social:
1. Compositores
2. Improvisadores
3. Intérpretes
Estas três categorias sociais, davam origem a quatro outras, resultantes
de uma mesclagem entre elas, sem estrato social bem definido:
4. Compositores/ intérpretes
5. Compositores/ improvisadores
6. Improvisadores/ intérpretes
7. Compositores/ improvisadores/ intérpretes
Esta Polis não vivia numa democracia, pois essa palavra não fazia parte
do léxico gramatical desses habitantes e assim ninguém sentia falta desse
conceito pela simples razão deste não existir.

Durante muitos séculos1, habitaram/ habitariam/ habitam também nesse


planeta uns seres - que dominaram/ dominariam/ dominam e escravizaram/
escravizariam/ escravizam os outros humanos: os músicos -, e que eram
conhecidos como musicólogos.
Após uma metaeternidade temporal de revoltas e guerras sangrentas
entre os opressores – os musicólogos -, e os oprimidos – os músicos -, deu-se a
grande batalha de Hal-Jub-Arrota, também conhecida como Crystalnacht,
aonde os músicos aniquilaram os seus inimigos, usando frequências espectrais
de sons samplados de cristais a estilhaçarem e que eram projectados por um
vírus telepático-midi. Os músicos encontravam-se protegidos com uma vacina –
a g.r.m. tools , que filtrava o som em –10 db`s, o suficiente para tornar
inofensivo a acção desse vírus.

1
Pelo relógio convencional do meta big bang

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Toda a cultura musical, passou desde esse dia a ser vista pelos músicos
como um símbolo de escravidão, podridão, opressão reaccionária, e acima de
tudo, repugnante.
E assim decidiram, armazenar, depositar, incubar todo esse
conhecimento musicológico no ADN de uma raça de animais denominada de
porcus domesticus, popularmente conhecida por porcos.
Viviam em metapocilgas, isolados dos seres humanos, alimentados por
robots, com doses maciças de rações contaminadas de aftose suína,
reproduzindo-se e transmitindo de geração para geração, nos seus genomas, o
agora inócuo conhecimento musicológico, sem que este tivesse possibilidade de
evolução, devido a uma mutação cromossomática THX, introduzida
propositadamente pelos músicos no ADN2 suíno.
Apenas um porco tinha sido poupado a este procedimento punitivo-
genético.
Por razões que ainda hoje são desconhecidas e consideradas como top
secret, uma elite de músicos-cientistas, resolveu incubar num determinado
porco, uma dose de CMNR – conhecimento musicológico não reaccionário -, ou
como era conhecido nos dias da escravidão por CMR – conhecimento
musicológico revolucionário.
Esse CMR tinha a propriedade de evoluir através de uma técnica só
possível de realizar nesse planeta – Jajouka - pois baseia-se nos saltos
temporais: o porco dialoga com ele próprio em zonas diferentes do espaço-
tempo, evoluindo e aprendendo, através dessas meta-conversas, que se
realizam simultaneamente no passado, no presente e no futuro.
Vivia numa quinta, espécie de bunker, rodeado por uma redoma
holográfica3 de cristal sónico, guardado por músicos anciães, que o tratavam e
alimentavam e que lhe transmitiam músicas do passado, presente e futuro, para
que este as assimilasse no seu CMR.
A esse porco foi-lhe dado o nome de porquinho Babe.
O porquinho Babe (pB), era/ é/ será um privilegiado: além de não lhe ter
sido incubado o CMr – conhecimento musicológico reaccionário - de não ser
alimentado com rações contaminadas, de poder usufruir da audição da melhor
música composta ou improvisada, possuía ainda o dom, de fazer evoluir o seu
CMR, nos MD – meta diálogos: o porquinho Babe 1 (pB1) –que reside no
presente - pode estabelecer diálogo com, por exemplo, o porquinho Babe 2
(pB2), ou seja - com ele próprio no futuro - ou com o porquinho Babe –1 (pB-1)
– que existiu no passado.
Além dele próprio – e as suas respectivas projecções espaçotemporais -
conta ainda como ajuda na sua busca pelo CMV – conhecimento musicológico
verdadeiro - com alguns convidados que por vezes irrompem na conversa, como
o meta Eu (mE), alguns convidados especiais como os compositores Helmut

2
O ADN permite que uma variedade de estruturas vivas ao reproduzirem-se proliferem e
evoluam: o ADN inscreve-se assim, numa evolução química do universo.
3
Esta redoma holográfica permite recriar todo e qualquer ambiente virtual: um jardim, um pub,
um apartamento, um centro comercial, um campo de ténis, uma piscina, etc.

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Lachenmann (HL) ou Salvatore Sciarrino (SS) e mais personagens que por
agora irei deixar em segredo para criar algum suspense.
Os MD4 que a seguir relatamos, são assim fragmentos sem uma ordem
cronológica definida – uma vez que iremos andar a saltar no tempo, pois tudo se
passa num buraco de verme - e que irão abordar diversos temas – composição,
improvisação, interpretação, aspectos sociológico-musicais, imposturas
musicais, paradoxos notacionais, etc. - que nada mais são que, o input adquirido
num período infinito, de dados abstractos, a consciência e inteligência do nosso
meta herói suíno, que vai crescendo e evoluindo, com os seus neurónios
formando cabos, em obediência a um plano dado pelos genes, funcionando num
circuito espaçotemporal, que lhe é ditado pelo meio ambiente – a Música.

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meta diálogos

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3. Acaso traremos connosco a memória do Universo?

[O porquinho Babe 1 (pB1)5, encontra-se com o seu homónimo porquinho


Babe–1 (pB-1)6, para realizarem um jogo de ténis]

pB1: Bom dia, caro amigo.


pB-1: Igualmente.
pB1: Está um dia perfeito para a prática deste desporto, não acha?
pB-1: Para si que está no presente, está um belo dia solarengo, mas para mim
que vivo no passado, está um dia de chuva miudinha e você melhor que
ninguém, sabe como fico melancólico nestes dias.
pB1: Esqueço-me sempre das diferentes condições climatéricas, nos nossos
saltos no espaço-tempo…
pB-1: Não tem importância, meu caro.
pB1: Vamos então ao nosso joguinho?
pB-1: Tenho uma coisa terrível a confessar-lhe.
pB1: De que se trata?
pB-1: Tenho andado outra vez preocupado com aquele problemazito
musicológico que lhe falei no outro dia. Deve ser do clima…
pB1: Não me diga que voltou de novo ao velho problema da <autenticidade>,
que lhe andava a moer a cabeça?
pB-1: Infelizmente é verdade… não gostaria de estar na pele de um musicólogo
neste início de século.
pB1: Então porquê, estimado colega?
pB-1: Por variadíssimas razões. Em primeiro lugar tem que concordar comigo,
quando afirmo que todas as revoluções efectuadas na Música em termos
estético, tecnológico, teórico, durante todo o século XX, superaram em muito os
avanços efectuados depois de séculos de História da Música.
pB1: Absolutamente.
pB-1: Então concordará também comigo quando digo que até há bem pouco
tempo, a música desenvolvia-se sem sobressalto, cortes ou abruptas rupturas,
evoluindo naturalmente como um rio que percorre o seu caminho lentamente,
com este ou aquele pequeno desvio mas sem nunca sair do seu trilho. Assim,
era naturalmente que víamos um Hayden suceder a um Bach, Beethoven segue-
se a um Mozart, ou depois Berlioz, seguiam-se Wagner, Mahler.
pB1: Concordo em pleno com as suas afirmações. Aliás permita-me acrescentar
que com a chegada do século XX, é como se esse rio tivesse atingido um vasto
estuário e que deste nascessem dezenas e dezenas de ramificações, dando
origem a diversos afluentes.
pB-1: Tirou-me as palavras da boca… no entanto gostaria de realçar que com
isto não queremos dizer que não houvesse avanços e invenções musicais ou

5
porquinho Babe cuja existência se realiza no presente
6
porquinho Babe cuja existência se realiza no passado

7
diferenças estilísticas entre os compositores citados anteriormente, acontecia
que não eram é tão marcantes como posteriormente no século XX.

(o porquinho Babe 1, pousa a raquete e tirando umas moedas do bolso dos seus
calções, introduz algumas numa máquina automática de refrigerantes e tira uma
coca-cola)

pB-1: Posso dar um gole da sua cola?


pB1: Concerteza. Este sol seca-nos a língua.
pB-1: Ah, que refrescante…
pB1: Mas estava a dizer…
pB-1: Enfim, já não bastavam todos estes problemas, ainda tinha que existir
esta multiplicidade musical (jazz, rock, serialismo, electrónica, concreta,
acusmática, minimalismo, etc.) para complicar mais a vida já de si nada pacífica
dos musicólogos.

pB1: Uma maneira fácil de lidar com esta situação é fazer como o avestruz:
enfiar a cabeça na areia e renunciar a todas estas novas tipologias musicais,
ignorar as revoluções sóciomusicais, abstrair de toda e qualquer inovação
tecnológica, anunciando ao mundo que música há só uma - a música erudita

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ocidental e mais nenhuma. E mesmo dentro desta, selecciona-se a que menos
problemas levante: de preferência pouco experimentalismo e muito pouco ou
nada de electrónica.
pB-1: Outra forma se me permite é a de se dividir em duas plataformas a cultura
musical: uma alta e outra baixa, e em que teríamos como exemplo de alta
cultura um compositor como o Boulez e como exemplo de baixa cultura um
cançonetista como o Julio Iglésias.
pB1: Mas será que essa não é uma forma redutora e simplista de por as coisas,
tipo preto e branco? E o cinzento aonde é que o encaixamos?
pB-1: Isso levanta-nos uma outra questão: será que um mau compositor da dita
música erudita ocidental é melhor que um bom músico de rock, simplesmente
porque pertence a essa elite musical da qual a História da Música foi feita até
esta data? Não será esta visão das coisas uma espécie de apartheid musical?
pB1: Tem toda a razão. Por muito que nos custe afirmar, será que o maior
representante português da dita música erudita ocidental - o compositor
Emmanuel Nunes - irá ter uma importância histórico-musical maior do que, por
exemplo, um compositor de jazz como o Thelonious Monk?
pB-1: E, seguindo essa ordem de raciocínio, será que um compositor como o
Luis de Pablo, figura ímpar na música erudita espanhola, terá maior significado
histórico-musical que a dum guitarrista de rock como Jimi Hendrix?
pB1: Diríamos não poder por as coisas dessa forma: são tipologias diferentes e
como tal devem ser vistas e analisadas sob diferentes pontos de vista.
pB-1: No entanto como sabe caro amigo, isso raramente acontece: os livros da
dita História da Música não se debruçam sobre outras músicas, ou se o fazem é
num último capítulo, uma insignificância de páginas em relação à música séria e
a maior parte das vezes, trata-se essencialmente o desfiar dum rosário de
nomes, datas, e efemérides sem qualquer perspectiva estética e onde ficamos
com a impressão de que não percebem patavina do que estão a falar.
pB1: O mesmo podemos nós dizer em relação às músicas de outras
civilizações: as músicas chinesa, indiana, japonesa; o gamelão ou a música
africana, são introduzidas num primeiro capítulo, numa espécie de aquecimento
para a verdadeira música - a erudita ocidental.
pB-1: Mas, façamos uma pausa para reflectir: com Beethoven, uma das
importantes mudanças que se dá a nível sócio-estético-musical, é a da música
deixar de ser essencialmente uma música funcional para determinadas ocasiões
- uma missa, uma ocasião festiva (casamento, aniversário, baptizado) - ou
simplesmente para agradar a um determinado público. Esta passou a ter um
carácter de posteridade, independente dos gosto e estética do momento - a
chamada música pura - imbuída de personalidade, autonomia e originalidade.
pB1: Digo mais: sobre esse ponto de vista e voltando aos exemplos anteriores,
não será que a originalidade de um Monk, não terá mais autenticidade do que
uma composição do Emmanuel Nunes? Será que num blindfold test – e usemos
como exemplo um musicólogo polaco - reconhece facilmente se uma obra é do
compositor Nunes?

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pB-1: Mas um amador de jazz, mesmo sem conhecimentos musicológicos,
reconhece poucos segundos depois de ouvir um solo de piano, que se trata do
Monk.
pB1: Afirmativo. Sou da opinião que na sua aparente simplicidade melódica,
harmónica e rítmica, o compositor Thelonious Monk atingiu uma autenticidade
maior do que a do compositor Emmanuel Nunes na sua área e dessa forma,
logrou alcançar uma originalidade idiossincrática musical que o releva para uma
posição mais importante que a do compositor português.
pB-1: O mesmo se passará então em relação à música do Luis de Pablo: será
que esta é perceptível como idiossincrática ou poderá por vezes ser confundida
com a de um outro compositor que seja, digamos assim mais autentico? E se
assim for, não se poderá por o mesmo problema que levantamos com o exemplo
de Monk, aqui transposto para o guitarrista rock Jimi Hendrix – ou seja, o deste
possuir uma sintaxe musical – por mais insignificante que nos possa parecer -
mais autentica que a do compositor espanhol?
pB1: Receio meu amigo que mais uma vez se dirá por comodismo ou receio,
que não se podem por as coisas dessa forma. Que as diversas músicas têm
todas elas a sua importância na História. Devemos tratá-las cada uma no seu
lugar - uma espécie de comboio com várias carruagens e que por uma questão
de tradição, conveniência e bom senso, a carruagem da frente é a da música
erudita ocidental, depois poderão vir a das músicas etnográficas logo a seguir,
depois a música popular, termo onde, para os musicólogos académicos
reaccionários cabem todas as outras músicas como o jazz ou o rock.
pB-1: Felizmente que uma nova musicologia está a surgir. Uma musicologia
atenta às novas realidades: hoje podemos no conforto da nossa casa, através
de uma aparelhagem de som ligada a um computador, ouvir uma sinfonia de
Mozart, a música dos esquimós, um tema de jazz, uma canção rock, música
produzida pelas ondas cerebrais do compositor, uma valsa de Strauss ou um
gamelão de Java. Uma realidade tecnológica e mediática bem diferente daquela
em que para se ouvir essa Música de Arte, tinha de ser ao vivo e ser-se de
determinada classe social.
pB1: Pura verdade… Mas, deixemos estes problemas para outra ocasião, pois
já se faz tarde e em breve não teremos luz suficiente para o nosso jogo de ténis.
pB-1: Tem toda a razão meu caro amigo… vamos a isso.

(pB1 e pB-1 ficaram a jogar durante bastante tempo e como no quarto jogo
ainda se encontravam empatados e já não havia luz, decidiram adiar a partida
para outro dia)

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4. Receita para fazer um rato

[O pB1 e o seu companheiro pB2 encontram-se com o meta eu (mE) num


centro comercial para comprarem ambos, um telemóvel da quarta geração]

pB1: Li outro dia algures, que um médico célebre do século XVII concebeu uma
receita para fabricar ratos.
pB2: Interessante… e em que consistia essa receita?
pB1: Grãos de trigo, uma camisa suja bem impregnada de suor humano, colocar
tudo numa caixa e esperar vinte e um dias. Simples, não lhe parece?

pB2: Tremendamente simples... aliás duma simplicidade só igualável a esta


música ambiente que estamos a ouvir.
pB1: Isto não é Música, é Musak.
pB2: Musak? O que é isso de Muzak?
pB1: Bom, segundo o compositor John Cage – compositor do século XX - ele
dizia…
pB2: Sei muito bem quem é o Cage!
pB1: …que Musak era uma música tocada por milhões de auditores, um
fenómeno sinomórfico, que funcionava em relação com outros do conjunto.
Assim, dizia ele que cerca de trezentos milhões de pessoas, em cerca de 100
países, recebiam esta música difundida por linhas telefónicas especiais. Essa
música era usada em hotéis, ascensores, supermercados, bancos, escritórios,
hospitais…, enfim ele fazia uma irónica mas interessante analogia daquela
música com o ar condicionado.
pB2: Mas é música ou não?
pB1: Bom, uma boa definição de Musak, é a que nos dá o músico e musicólogo
Jorge Lima Barreto7: a música de Musak é para ouvir sem escutar.
pB2: É bem verdade. Se repararmos nestas pessoas todas que aqui estão,
podemos afirmar que só uma mínima percentagem deve dar conta sequer que
está a dar música…
pB1: Musak!

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Em “Música & Mass Media”

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pB2: Ou isso, Musak…mas então se isto não é música, como podemos definir o
que é realmente Música?
pB1: Música, é a não-não-Música.
pB2: Que raio de resposta é essa? Parece uma coisa Zen…
pB1: Não, não é Zen, mas por acaso até parece. Foi um logicista Indiano
chamado Dignaga, que em 400 anos a.C., concebeu um conceito que chamou
de Apoha – que significava diferenciação - e que afirmava que o sentido de uma
palavra consistia no seu repúdio, ou seja, naquilo que ela não era. Assim, por
exemplo, uma vaca era uma não-não-vaca.

pB2: Curiosa maneira de ver as coisas a desse Dignaga, mas eu estava à


espera de uma definição de Música mais… convencional, chamemos-lhe assim.
pB1: Estou a ver. Nesse caso, diria que Música era para os antigos gregos a
arte das Musas e estes consideravam-na uma nobre actividade que promovia o
desenvolvimento da mente e da alma.
pB2: Mas houve alturas em que a Música foi usada como suporte pelas classes
dominantes.
pB1: É uma facto. Também esteve ligada a rituais sagrados e religiosos, ou era
simplesmente concebida como uma forma de arte popular.…
pB2: Peço desculpa por o interromper, mas esta é a loja que procuramos.

[pB1 e pB2 entram na loja e põem-se à procura dum telemóvel; primeiro


passam pela secção de CDs, onde se viam letreiros alusivos a diferentes
tipologias musicais – jazz, clássica, etno, rock, contemporânea, ambiental, etc.]

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pB2: Com toda esta multiplicidade de formas musicais e de diferentes
civilizações e culturas, de que maneira acha que um músico pode desenvolver o
seu trabalho? Ou então ponho a questão doutra maneira: hoje, no vasto labirinto
em que se cruzaram as múltiplas tendências da vida cultural musical, estamos
rodeados de música de diferentes géneros e estilos, até mesmo Musak. Acha
isto uma vantagem ou uma desvantagem para o músico contemporâneo?

[Neste instante surge inesperadamente um conhecido dos nossos queridos


personagens]

mE: Posso interromper?


pB1: Claro, como está caro amigo e como vai o seu metaconto?
mE: Vai indo, obrigado.
pB2: O que o traz aqui - se é que nos é permitido saber?
mE: Vim dar uma conferência sobre Música, ali mesmo naquela sala.
pB1: Incrível, nós vínhamos justamente a falar de Música.
pB2: E de Musak…
mE: Porque não vêm assistir? Vai começar mesmo agora…
pB1 e pB2: Com muito prazer.

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[Entram os três na sala e o mE dirige-se para um pequeno estrado,
atravessando um corredor rodeado de cadeiras, onde já se encontravam
sentadas algumas pessoas para assistirem à palestra]

mE: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a vossa presença e sem mais


demora, vou dar início ao meu discurso, que vai ser improvisado porque não tive
tempo de preparar um, pois ando muito ocupado a compor.

[Neste momento o mE fez uma pausa, deitou um pouco de água mineral num
copo que se encontrava à sua frente e deu um gole]

mE: A minha experiência como musico tem-se caracterizado ao longo destes 20


anos, por uma sistemática abordagem a diversas tipologias musicais, como o
rock-art , o minimalismo, a música repetitiva, a música electrónica, concreta, o
jazz ou a música improvisada.
Tenho colaborado regularmente com performers, poetas, cineastas,
pintores, videastas, encenadores, bailarinos, criando obras de carácter
improvisacional, interactivo, com acções estruturadas em tempo-real e grande
parte das vezes, situadas espacialmente em simples ou complexas instalações e
recorrendo a diferentes tecnologias.
Esta multiplicidade de acções têm vindo a ser registadas em discos/ cds/
vídeos/ tapes/ dats, outras ficam apenas gravadas na memória dos executantes/
público, como se de um input neuro/ sensorial se tratasse.
Centenas de musicografías, notações musicais, simples grafismos,
sobrevivem hoje como eco-flashs dessas diferentes fases musicais.

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Recentemente, em especial nos últimos 10 anos, a minha relação com a
prática musical, tem incluído simultaneamente com o meu enorme entusiasmo
pela composição, uma atracção fatal pela improvisação.
Cada concerto, ensaio, gravação, tenta ser conceptualmente diferente da
anterior, quer a nível técnico, performativo ou das metodologias utilizadas.
Factores que determinam essas diferenças, podem ser:
• local onde se realizam essas acções
• espaço cénico
• condições tecnológicas
• estados psicofisiológicos
Estudar, trabalhar e controlar a improvisação, é um paradoxo: como controlar
o que deve ser um desenvolvimento livre de ideias musicais, espontaneamente
sugeridas pela imaginação?
E de que improvisação me estou a referir?
A improvisação como um sistema de sinais?
A improvisação total, aonde nenhum parâmetro/ notação/ gesto/ acção/
ideia, é previamente definido?
A improvisação estruturada - aonde apenas um mínimo de informação
serve de estrutura à acção musical?
A improvisação jazzística - na qual após a exposição de um tema
predeterminado, o improvisador tem a liberdade de agir numa tonalidade, escala
ou modo definido?

De todas estas formas de improvisação, a que mais me fascina, apaixona, a


que verdadeiramente me eleva a graus de prazer excepcionalmente misteriosos
e extraordinários, é a improvisação total.

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Uma vez que a essência da improvisação é a espontaneidade, a intuição
musical, é tanto maior, quanto maior for o input informacional do improvisador.
Nesse sentido, dirigi o meu trabalho, ao estudo e recolha sobre diferentes
aspectos ligados ao acto improvisatório:
• o aleatório
• a indeterminação
• o acaso
• a música intuitiva
• o caos
A introdução de jogos, sistemas aleatórios, levam o improvisador a
momentos improvisacionais de excepção, se tivermos em conta, que o que está
em causa, implicitamente, nessas situações musicais são: a surpresa, o risco, o
espantar constante, imediato e em tempo-real - o improvisador terá de ser um
pouco como o Lucky Lucke: mais rápido que a própria sombra....
A indeterminação, é uma situação musical, mais comummente associada à
noção compositor/ intérprete ou ao próprio método escolhido pelo compositor no
acto criativo, tentando introduzir através do acaso, paisagens musicais não
determinadas, muitas vezes mutantes em cada processo criativo.
Com o caos, representado por irregularidades e alterações repentinas de
sobrepostas acções musicais, invertemos a inclinação da música dirigida para
um reducionismo - a análise dos sistemas musicais em termos das suas partes
constituintes: escalas, ritmos, melodias, leva-nos a contemplar o todo musical.
Diferenças mínimas no input musical - efeitos de phasing, distorções,
delays - podem tornar-se em diferenças enormes no output musical. Uma
espécie de efeito borboleta musical. O micro interfere com o macro!
Ultimamente vivo obcecadamente tentando incluir aquele que considero ser
o maior, verdadeiro e mais puro acto improvisatório: o erro!

[Aqui, pB1 e pB2 olharam um para o outro, incrédulos com esta última
afirmação de mE, que continuava a sua palestra]

mE: Não será o erro, o momento musical mais próximo do surpreender-nos a


nós próprios?
Comecei inicialmente, por distinguir diferentes tipos de erros:
Erro ocasional - provocado por diversos factores: distracção momentânea,
amnésia, fadiga, dislexia, etc.
Erro virtuosistico - que advém de o improvisador levar ao limite máximo,
determinada situação musical complexa: a nível rítmico, a velocidade, a
performance gestual, e tentar levá-la a uma overdose técnica tal, que a
determinada altura, o erro acontece.
Mas como provocar o erro?
O erro provocado intencionalmente não é erro!
O erro quer-se aqui, num estado puro erráticamente natural não intencional.
Thelonious Monk, simulando lamentar com uma improvisação que acabava
de executar, saiu-se com esta extraordinária observação: I have made the wrong
mistakes!

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Se ordem no caos é um aforismo, também o é provocar o erro certo.
O erro que eu pretendia tinha que ser instável, desordenado em todas as
escalas, movimento tornado aleatório, pequenos remoinhos dentro de
remoinhos, enfim, Turbulência.
O erro, como possibilidade musical, tinha que ser concebido como um
sistema simbólico formal capaz de trazer novas possibilidades à improvisação:
caos com feedback.

Da mesma forma que a simplicidade gera a complexidade, o erro tem que


gerar o erro.
Encarar o erro como uma realidade musical, é como uma espécie de
alegoria da caverna em que as sombras são a realidade .
Se a Música é uma criatividade governada por regras, poderá o erro ser
uma criatividade governada por regras?
Para lidar com o erro, tinha que desaprender o que era certo: tinha que
estar fora do sistema.
Para Douglas Hofstadter, sair fora de um sistema, era o que distinguia o
homem da máquina, e dava como exemplo: se pegarmos numa calculadora e
somarmos ao número 1, o número 1 e depois +1 e +1 e depois +1 e +1 e +1 e
+1 e repetirmos isto durante várias horas, a máquina nunca aprenderá a
antecipar-nos, enquanto que qualquer pessoa encontraria imediatamente um
padrão repetitivo.
Com isto, Hofstadter conclui que é possível para uma máquina agir sem
observar, é impossível ao homem agir sem observar.
Como sair então fora do sistema?
Se eu estiver a ler um livro ou a escrever um texto e me sentir cansado,
posso sempre parar de ler ou escrever e retomar mais logo: isto é sair do
sistema.
Se o sistema normal de um músico é o de não errar como inverter o jogo
e direccionar o seu acto musical para o erro sem o provocar intencionalmente?

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Através de um modo mecânico, que nos leve a trabalhar dentro do
sistema e esperando obter o erro ocasional?
Através de um modo inteligente, isto é, nada nos diz que estando
sempre dentro do sistema nos vai trazer o erro e assim está-se fora do sistema,
tentando modificar constantemente as regras deste, trabalhando às avessas?
Ou através de uma espécie de não modo, uma maneira Zen de esperar
que o erro apareça por si?
Reflectindo sobre estes 3 modos de proceder para provocar naturalmente
o erro, recordei-me que quando me aparece uma coisa que não entendo no
computador e passo horas e horas a tentar resolver o problema – o erro - muitas
vezes não o descubro: isto é o modo mecânico; Depois desisto, vou-me deitar -
saio do sistema - e de manhã, acordo, ligo o computador e descubro
imediatamente a solução: isto é o modo inteligente; ou então, sem qualquer
razão aparente, o problema resolve-se por ele próprio:o não modo.
Passei então a considerar o erro, como um sistema formal, uma espécie
de puzzle: como produzir erro?
Para resolver este Puzzle é necessário estabelecer uma regra: não se
pode errar propositadamente.
Deve-se errar naturalmente, sem consciência que se vai errar.
A solução do puzzle é a de que esse erro assim obtido, deixa de ser erro,
porque é o que se pretende obter: a sombra torna-se realidade, chegando-se
assim a um paradoxo, ou melhor, aquilo que Hofstadter chamou de volta
estranha:
A FRASE SEGUINTE É FALSA
A FRASE ANTERIOR É VERDADEIRA
O erro que não é erro, é uma volta estranha, difícil de alcançarmos e pelo
qual um improvisador deve lutar!

[Com esta frase, mE termina a sua conferência; na sala já só restam os nossos


dois amigos porquinhos e um turista japonês]

pB1 e pB2: Bravo! … Fantástico! … Sublime!


mE: Obrigado meus caros amigos. É uma gentileza grande a vossa, mas na
realidade sinto que me correu bem esta minha improvisação.
pB1: cometeu os erros certos!

[Riem-se todos muito e saem da sala conversando sobre vários temas


levantados na conferência de mE, de forma tão apaixonada, que os nossos dois
compinchas pB1 e pB2, se esqueceram de comprar os famosos telemóveis da
quarta geração]

18
5. Todos os porquinhos são mentirosos

(O nosso porquinho Babe 2, resolve fazer uma visita ao apartamento do nosso


porquinho Babe 1)

pB1: Olá, seja bem vindo… que traz aí consigo?


pB2: Olá, trago uma partitura do compositor Helmut Lachenmann.
pB1: Impressa ou manuscrito?
pB2: Manuscrito.
pB1: Ah! Excelente… eu adoro manuscritos. Tenho uma satisfação enorme em
observar partituras, com um prazer acrescentado se se tratar de um manuscrito
do compositor. Aprende-se imenso com um manuscrito: tipo de papel utilizado; o
tipo de caneta (tinta, feltro, esferográfica) ou lápis/ lapiseira; apagadores
(borracha, tinta); uso ou não de régua; o que foi riscado/ cortado/ apagado/
emendado/ acrescentado; a velocidade da escrita.
pB2: É também a melhor maneira de observar as idiossincrasias de cada
compositor.
pB1: Na realidade assim é, e foi durante inúmeras observações de diferentes
partituras de diversos compositores, que encontrei aquele que me parece ser o
erro mais cometido simultaneamente por um número significativo de
compositores: o não alinhamento vertical das pausas em compassos que não
sejam totalmente silêncio. Numa troca de correspondência, preciosa para o
nosso companheiro mE, o compositor Helmut Lachenmann respondeu da
seguinte maneira a algumas questões técnicas notacionais que este lhe tinha
posto:
I admire your sense of correctness but I'm not so much concerned with this
matter. I normally follow my sense of praxis, and my optic instinct as a logic
mind. I doubt if all can have logical reason: I am not logic! What is important, is
that it works. I think all your given alternatives may make sense. Vertical
alignment of rests: I never wrote, but this may be logic if thought so by the
composer .
pB2: E qual foi o teor das perguntas para o levar a proferir esta sentença?
pB1: A primeira era a de que se ele não achava que todas as pausas deviam
estar alinhadas verticalmente (i.e., ritmicamente) com as notas ou pausas em
cima ou em baixo?
pB2: E o que é que ele respondeu?
pB1: Respondeu que sim, que achava ser esse o melhor método, ou seja, no
exemplo seguinte o primeiro compasso é o que estaria certo.

correcto incorrecto

19
pB1: E que lhe perguntou mais o nosso querido amigo mE?
pB2: Fez-lhe ver que, uma vez que Lachenmann, usava pausas que
representavam o valor actual do compasso, em vez da tradicional pausa de
semibreve, perguntou-lhe se nesse caso concordava com o alinhamento vertical
das pausas, tratando-as
(como às notas) de uma maneira democrática?
pB1: E que respondeu Lachenmann?
pB2: Simplesmente isto: Está bem se a música for num estilo-dança tipo
Schoenberg ou mesmo Webern, mas nunca na música de Nono.
pB1: Estranho… o que será que ele quis dizer com isso?
pB2: Bizarro, não é? É um paradoxo… mesmo que se considere como correcta
a afirmação de Lachenmann, o que é um facto é que quando as partituras são
impressas – sejam estas do Nono, Schoenberg ou Lachenmann - elas são
impressas com o alinhamento vertical rítmico, ou seja:

pB1: Como explica este procedimento paradoxal, por parte não só de


Lachenmann, como de vários outros compositores?
pB2: Bem, eu creio que a razão será a de que, no passado, a música era
ritmicamente muito mais simples que a da música contemporânea e isso levava
os compositores a situarem as pausas como o faziam quando o compasso
estava vazio, ou seja, centradas em oposição a alinhadas à esquerda. Assim,
creio que a tradição, a transmissão de professor para aluno, a prática no ensino,
explica em parte este caso, mas não explica a razão, da ausência de uma
tentativa de correcção deste paradoxo da notação.
pB1: Concordo absolutamente consigo… especialmente no caso de obras como
a de alguns compositores, que exigem uma tremenda complexidade rítmica.
pB2: Como as de Lachenmann…
pB1: Exacto… mas tem que concordar comigo, que isto dos paradoxos é uma
coisa fascinante, não acha?
pB2: Adoro paradoxos, em especial o paradoxo de Babe, do nosso querido
Mestre porquinho babe -1, que diz: todos os porquinhos são mentirosos.
pB1: Esse já conhecia, claro: é fantástico! Mas acredite quando lhe digo que
conheço um muito peculiar, que acho que lhe vai interessar.
pB2: Já me deixou curioso… qual é então esse misterioso paradoxo de que me
quer falar?
pB1: Começo por dizer - para lhe abrir o apetite - que se o obtém, através de um
expediente da escrita tradicional musical, e com o qual se consegue introduzir

20
sons num compasso totalmente preenchido de silêncio, ou seja, constituído por
pausas.
pB2: Como é isso possível?
pB1: Este estranho paradoxo, surgiu pela primeira vez ao nosso camarada mE,
quando este componha a sua magnífica peça para piano solo intitulada Spin.
Estava a trabalhar com apogiaturas com um diferente número de notas e
valores, quando começou na fase final da sua peça a abrir buracos, ou seja, a
substituir com pausas os tempos fortes do compasso, progressivamente, até
fazer com que todas as notas do compasso se extinguissem, com a excepção
da inclusão de apogiaturas, até eventualmente chegarmos à situação de o
compasso estar totalmente preenchido com pausas e no entanto - um paradoxo
da escrita musical ocidental - conter som.

pB2: É, na realidade, muito curioso esse paradoxo…


pB1: Além da mera curiosidade, repare que se podem obter várias situações
musicais interessantes, em composições que envolvam dois ou mais intérpretes
e se queira obter efeitos rítmicos complexos, similares aos que são gerados por
sistemas aleatórios. Imagine caro colega, o caso extremo de uma composição
para orquestra, que use somente esta técnica de escrita durante toda a duração
da obra, ou seja, preenchida na sua totalidade de silêncio – pausas - mas com
som - apogiaturas.
pB2: Gostava de ouvir uma composição assim criada. Sabe o que me faz
lembrar isto tudo? Os buracos negros! O físico Stephen Hawking diz-nos que os
buracos negros são regiões do espaço-tempo donde nada, nem mesmo a luz,
pode escapar, porque a gravidade é muito intensa. No entanto, como é possível
que um buraco negro emita partículas quando sabemos que nada consegue
escapar do seu horizonte? A resposta é a de que segundo a teoria quântica, as
partículas não vêm de dentro do buraco negro, mas sim do espaço vazio
contíguo ao horizonte de acontecimentos. Assim, e fazendo uma analogia com o
que me estava a dizer, o seu paradoxal compasso repleto de pausas (aonde em
princípio nenhum som deveria existir), emite na realidade sons (através do
expediente da notação tradicional que são as apogiaturas).
pB1: Bravo! Uma brilhante metáfora.
pB2: Sabe que mais: Lachenmann diz que ele não é lógico. Ora, com todos
estes belos paradoxos existentes na escrita musical, podemos concluir também
que a notação não é lógica.
pB1: É bem verdade o que diz.

21
pB2: Bom, já se faz tarde e tenho que me ir embora. Pode, meu caro amigo,
ceder-me um pacote de leite para eu levar, pois esqueci-me de comprar quando
passei na mercearia?
pB1: Por quem é, meu caro colega.

[pB1 dirigiu-se ao frigorífico e retirou de lá um pacote de leite biológico, que


entregou ao seu companheiro pB2]

pB2: Então, muito boa noite e obrigado.


pB1: Boa noite e até amanhã.

22
6. O manual do não-músico

(Algures numa piscina privada, pB-1 e pB2 flutuam em dois colchões bebendo
um delicioso cocktail e escutando boa música reggae)

pB-1: Ah… isto é que é uma rica vida, não acha?


pB2: Por muito que me custe afirmar a mim, um velho Marxista, tenho que
admitir que são simpáticos estes momentos de total preguiça e abstracção do
que se passa na vida real.
pB-1: Não o imaginava Marxista…
pB2: Aposto que também não me imaginava músico?
pB-1: Você, músico? Desconhecia essa sua faceta.
pB2: Na realidade não sou músico, mas esse é um sonho que tenho desde
pequenino e que acho nunca verei concretizado.
pB-1: E porque não?
pB2: Bem, para começar não sei tocar qualquer instrumento.
pB-1: Isso não representa qualquer problema. Eu criei um manual, intitulado
manual do não-músico, que é exactamente concebido para pessoas que querem
ser músicos mas não sabem tocar.
pB2: Mas isso é absolutamente fantástico! E em que consiste esse seu manual?
pB-1: É constituído por cinco regras fundamentais.
pB2: Que são?

23
pB-1: Vejamos, a primeira é relativa à escolha do instrumento e diz o seguinte: a
escolha do instrumento é de extrema importância para o não-músico e nesse
sentido creio que a guitarra eléctrica é uma boa solução: é barata, fácil de
transportar, e permite intensidades sonoras elevadas. Alguns conselhos úteis: se
as cordas se forem partindo, não se deve substituí-las, pois por um lado poupa-
se no dinheiro, por outro cria um mistério e uma imagem de músico experimental
q.b.!
Roube nos restaurantes (de preferência chineses), palitos e pauzinhos chineses,
e use os palitos para meter entre as cordas da guitarra e os pauzinhos para
percutir as cordas. Chame a essa ementa, (a guitarra & pauzinhos & palitos),
guitarra preparada " à la Cage ".
Use sempre bastante pedais: quantos mais melhor; mesmo que estejam
estragados e não funcionem, disponha-os a seus pés, e mexa nos botões, pois
dá um certo ar je-ne-sait-quoi-bué-de inteligente; imprescindível é o pedal de
distorção, pois quando não souber o que fazer mais num concerto, poderá
sempre ligá-lo no máximo e manter esse ruído até ao final.

pB2: E qual é a segunda regra?


pB-1: É a que aborda a temática da escolha de um nome artístico.
pB2: Interessante… e que diz essa sua segunda regra?
pB-1: Afirma que se for um projecto a solo, use sempre o seu nome seguido de
uma coisa qualquer que pareça inteligente e actual, tipo: Berto Caos, Luís Noise,
João Flash, Antero Buraco-Negro; se for do sexo feminino: Minimal Luísa, Hi-
Tech Maria, Rita Anthrax, ou Felizberta Loop.
Se for um projecto de grupo, dependerá um bocado do tipo de música: no caso
New Age Ambiental, servirá qualquer palavra, seguida imediatamente da sílaba
um, que dará um toque de latim. Assim, Sonorum, Impromptum, Caravelum, ou
mesmo coisas do dia a dia, Sardinhum, Manteigum, ou simplesmente Atum.
No caso Rock Noise Experimental, convirá sublinhar a palavra NOISE sobre
todas as variantes mais populares: os Ruidosos, os Barulhentos, os Distorcidos;
ou então com um carácter mais blazé: os Halle-Bopp, Madame Curie, os
Multibancos, os Hertzianos. No caso de uma música erudita, não hesite, use
qualquer coisa seguido de Ensemble: Broa Ensemble, Fiambre Ensemble; ou o
seu nome mais Ensemble: Armando Ensemble, Vanessa Ensemble.

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pB2: Isto é emocionante… agora já temos um nome artístico e já sabemos qual
é o nosso instrumento. Que mais precisamos?
pB-1: De um estilo musical. E quanto a isso, diz a terceira regra: Improvisação -
é o que está a dar! Apresentar-se como improvisador traz todas as vantagens:
além de ser "fácil", é "avant-garde" e está na moda. Acrescente-se a isso o facto
de por muito má que seja a sua "prestação musical", poderá sempre atribuir a
culpa ao facto de " hoje não estou nos meus melhores dias...". Deverá sempre
acompanhar a sua improvisação com um texto (no caso de um CD), ou de uma
introdução verbal (no caso de um concerto). Essencial no conteúdo desse texto
ou dissertação verbal, é a citação de um ou mais nomes da Filosofia actual
(exp.: Deleuze ou Foucault); a introdução ao acaso (uma vez que é só para
armar), de palavras como: tempo-real, improvisação estruturada, textura-
harmónica, rizoma, aleatório; evite usar clichés do passado, tipo: contratempos,
polirritmía, harmonias... Termine com uma frase ou qualquer citação em francês:
Je n´aime pas les Monty Python...

pB2: Excelente! Estou curioso de saber qual será a quarta regra…


pB-1: É a que diz respeito ao concerto: em primeiro lugar, deverá ter em conta o
sítio aonde irá apresentar a sua fraude, perdão, o seu concerto. No caso de
pequenos clubes (aonde normalmente se apresentam grupos de rock), faça
muito chiqueiro, mesmo muito chiqueiro, não interessa o quê; ligue tudo no
máximo, muito feedback, muita distorção, mas mantenha sempre uma pose
calma, racional e se possível inteligente, como se você tivesse tudo sobre
controle. No caso de bares/ pubs ou galerias de arte, aonde as pessoas vão
para falar, beber uns copos ou somente para o engate, aconselha-se o género
Ambiental ou melhor, Paisagens Sonoras, que é a mesma coisa mas muito mais
chique...; use Drones graves, sons contínuos e misture sons da natureza:
riachos, pássaros, vento, ondas do mar e mais passarinhos e esteja sempre
sentado (poderá de tempos a tempos confeccionar um cigarro com uma
mortalha e tabaco de enrolar, criando o mistério de que poderá estar a fumar um
charro...).
No caso de ter a sorte (ou de alguém da sua família ser influente numa
Instituição) de ir tocar a uma Fundação ou uma sala de concerto prestigiada,
terá que dar o máximo, ou seja, faça o mínimo possível! Isto porque poderá dar-

25
se o caso de alguns músicos (os verdadeiros é claro), estarem a assistir. Assim,
quanto menos fizer, melhores hipóteses tem de não ser " topado ". Nestes
casos, é aconselhável o já clássico Concerto Conceptual..., e em que consiste
então este concerto conceptual, ou em inglês o, conceptual concert ? Irei dar 2
exemplos:
1. Ligue uma ventoinha; à sua frente ponha vários wind chimes; ligue uma luz
strawb por detrás da ventoinha e amplifique o som dos wind chimes; você estará
sentado na obscuridade (talvez um candelabro) e muito espaçadamente dá um
harmónico na guitarra com muito reverb.
2. Várias folhas de pauta presas por molas em corda da roupa; ponha vários
microfones ligados a efeitos diversos: delays, reverbs, distorções; apareça
vestido com uma camisola preta de gola alta, calças de ganga preta e botas Doc
Martens; rasgue as folhas de pauta lentamente e por vezes com violência; use
um jogo de luz que oscile suavemente do azul ao violeta e ao roxo.
pB2: E assim chegamos à última regra, que é?
pB-1: Esta é sem dúvida a mais importante de todas as regras, pois diz respeito
à sobrevivência de um músico – o cachet - e sobre isso a lei é: peça sempre
muito dinheiro! Quando interrogado do porquê tal quantia, argumente que está a
trabalhar num work-in-progress há quase 2 anos e meio e que envolveu estudos
efectuados em diversas sociedades musicais extra-europeias... Se obrigado a
isso, dê o nome de ilhas que ninguém conhece (porque simplesmente não
existem): Ilhas Gricland, Northern Bay, ou Kora-Kora.
pB2: É realmente fabuloso e muito humorado esse seu manual do não-músico.
Pode ceder-me uma cópia?
pB-1: Com todo o prazer.

26
7. Estará o Universo a ficar sem gasolina?

[pB1 e pB2 partem numa viagem de avião que os irá levar a assistir à novíssima
ópera do compositor italiano Salvatore Sciarrino]

pB1: Fico sempre um pouco nervoso, todas as vezes que viajo de avião.
pB2: Mas olhe que, estatisticamente, está provado ser mais perigoso viajar de
carro do que de avião.
pB1: Seja, mas isso não sei porquê, não me reconforta…
pB2: Não seja assim medroso, caro amigo! Descontraia-se e goze a viagem.

[A hospedeira a bordo inicia a demonstração dos procedimentos de segurança a


efectuar em caso de acidente]

pB1: Isto ainda me deixa mais nervoso. Não existe nada disto quando se viaja
de carro ou comboio.
pB2: Não ligue. Olhe, porque não escuta esta cassete DAT que trouxe comigo,
e na qual está gravado o diálogo que o nosso estimado colega VR8 teve com o
compositor Sciarrino. Vai ver que o descontrai…
pB1: Muito boa ideia! Acho que vou seguir o seu conselho.
pB2: Deixe-me só, antes de lhe por a gravação, pô-lo a par das circunstâncias
em que se estabeleceu este diálogo.
pB1: Sou todo ouvidos.
pB2: Eram 10 horas da manhã do dia 17 de Dezembro, quando deu início na
Universidade de Aveiro9 no Departamento de Comunicação e Arte, uma master
class com o compositor italiano Salvatore Sciarrino; após uma breve introdução
dada pelo compositor explicando que: "não esperem que este dia vos vá mudar
as vossas vidas como compositores", pediu a cada um dos participantes que
escrevessem numa folha de papel, o nome e se tinham alguma partitura para lhe
mostrar, e ou um CD com música para ouvir; posteriormente ordenou por ordem
de entrada os participantes e chamando o nome do primeiro dessa mesma lista
deu início ao encontro; no geral, este interrogatório partia de algumas perguntas
de âmbito geral: a idade, como começou a actividade como compositor, quais os
compositores preferidos, há quanto tempo exercia a sua actividade como
compositor, quantas peças tinha escrito; depois, (no caso do compositor em
questão ter apresentado alguma partitura ou CD para audição, analisava a
partitura ou ouvia a peça em questão, umas vezes seguindo a partitura outras
vezes não; fazia alguns comentários relativos a técnicas de notação, corrigindo
ou aconselhando alterações à mesma; na maior parte das situações abstinha-se
de comentar a obra apresentada, preferindo introduzir assuntos, histórias,
alheios (aparentemente) à composição apresentada, mas sempre de grande
qualidade e de um interesse enorme do ponto de vista prático ou teórico; no final
agradecia ao compositor e entregava-lhe a partitura e passava a outro

8
Vítor Rua: Compositor. Vítor Rua é o meta Eu da vida real .
9
Planeta Terra: Portugal

27
participante; a sessão decorreu entre as 10 horas e as 13 horas e das 15 horas
às 18 horas; durante toda a lição, o compositor fazia por vezes perguntas ou
levantava questões às quais outros participantes, que não aquele que estava a
ser interrogado, podiam intervir, do género: conhece a obra de Lachenmann
para duas guitarras, que é muito interessante do ponto de vista notacional e
musical e que não me recordo agora o nome… perguntas para as quais, tenho a
certeza meu caro amigo, que ele sabia a resposta, mas desejava por à prova,
através das mesmas, o tipo de conhecimento musical dos participantes
presentes; assim, mesmo antes de chegado o momento do diálogo entre o VR e
Sciarrino, o nosso colega interveio em alguns desses casos, dando respostas a
algumas dessas perguntas; o diálogo com o compositor decorreu na segunda
sessão da master class, por volta das 17 horas.
PB1: OK! Obrigado pela sua introdução. Creio estar então preparado agora,
para escutar essa conversação.
PB2:Aqui vai…

[pB2 introduz a cassete no gravador e põe os auscultadores nas orelhas de pB1


e carrega no play; pB1, inclina a cadeira para trás, senta-se confortavelmente e
inicia a audição da gravação]

28
SS10- Quantos anos tem?
VR11- 39.
SS- Como começou a sua actividade musical?
VR- Iniciei-me como guitarrista nos anos 70 como músico de rock; depois nos
anos 80 conheci um músico e musicólogo – Jorge Lima Barreto – com quem
formei um duo de música improvisada, que me deu a conhecer outras músicas –
jazz, electrónica, etnográfica, concreta, etc. Através desta minha experiência
como improvisador tive a sorte de conhecer, tocar, gravar e tornar-me amigo de
improvisadores que revelam um conhecimento e controle instrumental enorme
no que refere a novas técnicas, métodos e respectiva nova notação –
contrastando com o que acontece com intérpretes que saem ao fim de 9, 10
anos dos conservatórios e escolas de música, sem qualquer noção desta nova
realidade/ sensibilidade interpretativa - e que são simultaneamente virtuosos
intérpretes, como é o caso do saxofonista Daniel Kientzy, não sei se conhece?
SS- Sim, conheço.
VR- Outro músico foi o Giancarlo Schiaffini com quem toquei este ano.
SS- Ele é meu amigo.
VR- Depois tive também o privilégio de trabalhar com o pianista John Tilbury…
SS- E foi ele que gravou a peça que nos vai mostrar?
VR- Sim. Ele gravou 5 composições minhas para piano solo e esta é uma delas.
SS- Pode falar um pouco sobre esta sua peça?
VR- Creio que mais importante do que falar da estrutura da minha composição,
será falar de como me surgiu esta ideia: a de compor uma peça para piano e
assobio. Estava um dia a escrever uma peça para flauta e voz – 1998 – sentado
ao piano, dando duas notas agudas separadas por meio-tom, e para ter uma
ideia clara na minha cabeça do ataque e desaparecimento do som da flauta,
mimetizava a flauta com o meu assobio; nesse momento tocaram à campainha;
era um músico meu amigo que vinha visitar-me; pedi-lhe se não se importava de
esperar um pouco, pois eu estava a terminar uma coisa, o que ele fez, ficando
na sala ao lado, olhando creio, para a televisão sem som; assim, o que ele ouviu
durante algum tempo foi: duas notas agudas separadas por meio-tom sustidas
pelo pedal, serem tocadas num ritmo irregular lento e com muitos espaços de
ressonância, e o meu assobio mimetizando e às vezes ampliando a ressonância
das cordas do piano – os harmónicos - mas sem nunca ter uma preponderância
solística – pelo contrário - escondendo-se subliminalmente nessa mesma
ressonância harmónica. Ao fim de aproximadamente 10 minutos, esse meu
amigo levantou-se e disse-me; “que bela composição e que bem resulta essa
combinação do piano com o assobio”. A partir desse momento, tornou-se claro
para mim, que a composição que ele julgou que eu estava a compor, era de
facto a composição que eu tinha imediatamente de começar a escrever, o que
fiz, interrompendo momentaneamente a peça que tinha em ideia. Comecei
imediatamente a aprofundar, estudar e escutar o “aproveitamento” desse “efeito
tímbrico”; inicialmente com uma só nota aguda martelada no piano e a
respectiva “ampliação” da frequência resultante da vibração das cordas do

10
Salvatore Sciarrino
11
Vítor Rua

29
piano, pelo uso do fade in e fade out do assobio; posteriormente usei diferentes
intervalos no piano, o que causava uma onda provocada pela oscilação
resultante das duas frequências desse mesmo intervalo; outras vezes usava
uma técnica simples, mas que provoca um efeito curioso, de o piano dar uma
nota e o assobio dar a outra meio-tom abaixo.
SS- Podemos então ouvir agora essa sua composição?
VR- Claro!

(…Whistle Piano12…)

SS- Muito interessante esta composição… no papel esta partitura revela uma
escrita de uma “aparente” simplicidade, mas que interpretada, transmite-nos
uma experiência auditiva muito bela e original…
SS- As sua peças são todas como esta ou escolheu esta como um exemplo
peculiar na sua obra como compositor?
VR- Esta é uma peça peculiar, muito importante para mim; mas tenho outras
composições, que revelam outras preocupações composicionais.
SS- Ainda referindo-me à peça e observando esta parte da partitura, reparo que
você aqui escreveu um dó mas creio que se deve tratar de um ré, ou não?
VR- Sim, devia ser um ré…; trata-se de um erro.
SS- Isso é normal, porque nota-se que você escreve rapidamente…, mas
curiosamente o intérprete tocou-a como um ré…
VR- Sim, creio que ele intuitivamente compreendeu o que eu pretendia.
SS- Podemos ouvir outra composição sua?
VR- Claro, com todo o prazer.

12
Para piano e assobio: interpretada por John Tilbury (pianista Inglês)

30
( …Tocata II13…)

SS- É muito interessante…; mesmo muito interessante…; você usa técnicas e


materiais (acordes, intervalos, melodias) que não são novos, mas de alguma
forma consegue criar um efeito de contemporaneidade deveras original. Você
conhece Kurtag?
VR- Sim, tenho algumas partituras e discos e assisti a algumas interpretações
de peças dele.
SS- É que ele, tal como você, consegue fazer isso muito bem, ou seja, a
utilização de “materiais musicais” “não novos”, e de alguma forma através de
uma forma inteligente de escrita, transforma-as em algo de muito novo e
original…; posso ficar com estas partituras para as estudar melhor?
VR- Claro, com muito prazer e orgulho.

(estas foram as duas únicas partituras que o compositor pediu para ficar, de
todos os participantes presentes)

VR- Aprendi bastante com este ciclo de 3 composições, da qual faz parte esta
peça que acabamos de ouvir, em especial o facto de “escrever para voz”, pois
era a primeira vez que o fazia e creio ter aprendido mais a escrever para voz
(em aspectos de dinâmica, acentuações, articulações), do que quando escrevi
para qualquer instrumento…; não sei bem explicar porquê, mas é um facto.
SS- Tem mais composições para voz?
13
Para piano e soprano: interpretada por José de Sousa e Ana Ester Neves. Poema de Mário Cesariny.

31
VR- Sim, tenho mais duas peças para flauta e soprano, uma para piano e
barítono, e estou a acabar uma para soprano e orquestra de cordas.
SS- Para si é importante trabalhar com texto?
VR- É mesmo muito importante para mim trabalhar com texto, e na realidade é
como se o texto me servisse de “guião” para eu criar “imagens sonoras” que são
concretizadas no ou nos instrumentos utilizados. Tenho mesmo a ideia de vir a
compor para um instrumento solista ou ensembles diversos, usando um texto e
escrevendo também como se existisse uma linha vocal, e no fim, retirar essa
parte vocal, deixando unicamente a parte instrumental.
SS- Isso nota-se claramente nesta sua composição: vê-se que o texto serve de
“fio condutor” de toda a acção pianistica…; isso é muito interessante…
VR- Gostaria de aproveitar para dizer que eu tinha mais ou menos dois milhões
e quinhentas mil perguntas para lhe fazer, mas para poupar o incómodo a todos
os participantes, reduzi-as a duas. Uma era sobre a matéria com que você
iniciou esta sessão, ou seja, sobre a diferença que encontro quando você
escreve para instrumentos (dou como exemplo as suas peças para flauta solo
interpretadas pelo Fabricciani), onde noto a exploração do instrumento através
do uso de novas técnicas (jet whistles, whistles tones, sons de chaves, slaps),
dando-nos a ouvir quase como um novo instrumento; o mesmo quando escreve
para cordas, em que usando, por exemplo, um artificio da notação tradicional
como o “molto sul ponticelo”, nos dá a ouvir novas e originais sonoridades. No
entanto quando escreve para voz, parece-me que não vejo da sua parte um
interesse aparente em usar essas “novas técnicas”, como faz por exemplo um
compositor como o Schnebel ou o Berio na sua "Sequenza II"I, onde nos é dado
a ouvir uma “colecção impressionante de efeitos vocais; mas sinto isso sim,
como se você sentisse todo um peso de uma tradição vocal (lírica e melódica)
italiana e a leve a um extremo de evolução. Quando ouço a voz na obra
“Vanitas”, é como se ouvisse um Bellini do séc. XXI – peço desculpa se esta
comparação o incomoda…
SS- Não de modo algum, creio que tem toda a razão.
(agradece-me, elogiando com sinceridade o meu trabalho e inicia diálogo com
outro participante; no final da sessão dirige-se de novo a todos os participantes)
SS- Agora que terminamos a nossa conversa, podíamos pedir a este compositor
para nos dar a ouvir outra sua peça…; um “Finale” para acabarmos com
música…
VR- Com imenso prazer. Escolho uma peça acusmática escrita para o Daniel
Kientzy (7 saxofones) e electrónica e que irá ser publicada num CD em
homenagem ao compositor português Jorge Peixinho…, não sei se conhece?
SS- Sim, já ouvi falar.
(ponho a música; no final pergunta-me se lhe posso oferecer os CDs com a
minha música o que faço imediatamente e com a satisfação de um miúdo;
finalmente dirige-se para mim e na sua enorme generosidade cumprimenta-me e
elogia de novo o meu trabalho; nesse momento vira-se para uma pessoa que o
acompanha (provavelmente um seu assistente) e diz em italiano: “este
compositor é duma grande originalidade; tem uma escrita aparentemente

32
simples e “não nova”, mas consegue recriar ambientes surpreendentemente
contemporâneos; faz uma música muito bela”)
SS- Como é ser-se compositor em Portugal, ou posto doutra maneira, como é
que se integra como compositor no panorama musical do seu país?
VR- É muito difícil, em especial para quem, como eu, vem de um “background”
diferente como o rock ou a música improvisada, o que torna mais difícil (para
não dizer mais), a integração neste “mundo” fechado e muitas das vezes
académico e reaccionário.
SS- compreendo perfeitamente…, infelizmente há pessoas que parecem apenas
estar interessados numa espécie de mediania ou “mainstream” se desejar, por
receio, ignorância, ou simplesmente por comodidade…; mudando de assunto,
reparei que as suas peças estão muito bem gravadas – o som do piano é muito
bom. Como foi captado o piano?
VR- Foram usados 4 microfones: 2 microfones direccionais nas extremidades do
piano (grave e aguda), de forma a realçar o “martelar” dos dedos nas teclas do
piano, um microfone no centro um pouco mais elevado do que os outros em
relação às cordas do piano e um outro na extremidade do vértice do piano para
captar a ambiência da sala (que era um espaço rectangular grande, forrado com
paredes de vidro, pois era utilizado para aulas de ballet).
SC- Havia assim uma reflexão do som?
VR- Sim.
SS- Posso dar-lhe um conselho?
VR- Claro, por favor.
SS- Experimente pôr um microfone por baixo do piano, perto da tampa de
madeira e vai reparar que é lá que se concentram importantes ressonâncias.
VR- Tenho a certeza que sim…; é uma excelente ideia que irei concerteza usar
no futuro e que teria resultado em pleno nalgumas das minhas composições…;
posso fazer-lhe uma pergunta?
SS- Claro.
VR- Uma coisa que me ocorre quando ouço obras suas é que me dou conta de
de uma espécie de “novo virtuosismo” por parte dos intérpretes que executam as
suas obras, ou seja, existiu um tipo de virtuosismo no Bel Canto ou nos
românticos como Lizt ou em Rachmaninov; um outro tipo de virtuosismo nasceu
com o “serialismo” – com os saltos interválicos “inesperados” e grandes, bem
como a recorrência de diferentes dinâmicas para todas as notas da série;
encontro também um novo tipo de virtuosismo em certas obras minimalistas e
dou como exemplo um flautista que passa 15, 20 minutos usando “respiração
circular”, repetindo módulos de pequenas notas; parece-me a mim que isso se
deve ao facto da sua música exigir uma nova escuta e uma nova maneira de
encarar o acto interpretativo.
SS- Eu não lhe chamaria tanto um “novo virtuosismo”, mas sim uma “nova
expressão”.
VR- Tem razão, essa é a terminologia mais correcta para caracterizar essa nova
interpretação, que exige uma grande concentração e entendimento perfeito do
sentimento da obra. Gostaria de lhe pôr outra questão se não se importasse…
SS- Concerteza.

33
VR- Que importância tem para si o humor na sua obra? E digo isto porque se é
mais ou menos óbvio (pelo menos para mim), a existência de um “humor” num
arranjo de uma música como “Brasil”, onde você explora através de uma
obsessiva repetição das notas e do uso da técnica da “klangfabernmelodie”,
presenteando-nos com um magnifico e divertido arranjo de uma música popular
brasileira, já noutros casos….
SS- Você conhece essa canção? Fui contactado para uma colecção cujo tema
era a “folk music” e como não me ocorria nenhuma música, essa foi a única que
me veio à ideia…; é curioso também, que sendo uma composição popular
escrita por um compositor brasileiro, foi no entanto composta em Nova Iorque…;
e de facto diverti-me bastante no acto de transformação e alteração a nível
estrutural dessa canção tão popular.
VR- Mas o problema é que eu “encontro” humor em peças suas que
aparentemente nada têm que sugira a existência de qualquer tipo de humor e
dou como exemplo a "piano sonata IV" ou mesmo, e isto se calhar ainda lhe
deve a si parecer mais estranho, consigo mesmo “descobrir” humor nos seus
arranjos do Gesualdo…
SS- Isso é porque você tem um grande sentido de humor…

[A cassete chega ao fim e o nosso amigo pB1 tira os auscultadores]

pB1: É engraçado ficar-se a conhecer uma pessoa, pelo ponto de vista de uma
outra. E como neste caso particular – essa pessoa – é nada mais nada menos
que o compositor Salvatore Sciarrino, ainda mais entusiasmante.
pB2: Na realidade…

[A voz da hospedeira interrompe-lhes a conversa pedindo que apertem o cinto]

pB1: Olhe, já estamos a chegar e nem dei por nada. Você tinha razão, foi
óptimo ouvir este diálogo. Muito obrigado.
pB2: O prazer é todo meu caro amigo. Ainda falta muito para o universo ficar
sem gasolina.
pB1: Que quer dizer com isso?
pB2: Bom, referia-me ao facto de…

(Senhores passageiros acabamos de aterrar. Esperamos que a viagem vos tenha


agradado e a tripulação deseja-vos uma boa estadia)

34
8. Um rouxinol na ordem zero

[O porquinho Babe 1 encontra-se no apartamento do porquinho Babe 2 e ambos


esperam ansiosamente pela visita do mútuo amigo, o porquinho Babe –1. Os
dois porquinhos conversavam calorosamente sobre o tempo na música, quando
foram interrompidos pelo som da campainha da porta]

pb2: Fá sustenido!
pB1: O quê?
pB2: Fá sustenido, a sua campainha emite um tom cujo pitch é um fá sustenido.
pB1: Como é que você sabe isso? Não me diga que tem ouvido absoluto?
pB2: É verdade… tenho até uma história muitíssimo peculiar sobre isto, mas vá
abrir a porta ao nosso colega que já falamos mais deste assunto, se é que o
interessa…
pB1: Claro que sim e estou curioso de ouvir essa sua história…

[Toca de novo a campainha desta vez com maior insistência…]

pB1: …mas agora vou abrir a porta para não fazermos esperar mais o nosso
querido porquinho Babe –1…

[pB1 abre a porta ao seu colega pB-1]

pB1: Seja bem vindo.


pB-1: Olá, peço desculpa pelo meu atraso…

35
[pB1 põe um semblante pesado - quase zangado]

pB1: Sabe que estávamos justamente a falar sobre a importância do tempo na


música e o simples facto de você chegar atrasado mostra um grande
desinteresse da sua parte e daí pensarmos que você já não tem moral para nos
dizer seja o que for, daí…

[pB-1 mostrando-se surpreso e ao mesmo tempo estupefacto por esta pouco


amigável afirmação]

pB-1: Se acharem melhor eu vou-me embora…


pB1: Ah, ah, ah, estava só a brincar consigo, usando uma alusão a uma famosa
conversa entre os compositores John Cage e Arnold Schoenberg. Conta-se que
um dia, John Cage - que era nessa altura aluno de Schoenberg - terá chegado
atrasado a uma aula e ao tentar entrar, Schoenberg lhe terá dito: a aula de hoje
já terminou para si, pois era sobre a importância do tempo na música… Como
vê, eu estava simplesmente a meter-me consigo.
pB-1: Ah, fico mais descansado… você foi muito bom actor… por momentos
acreditei em si e cheguei a ficar preocupado… mas agora que já me recompus,
deixe-me felicitá-lo pelo seu inteligentíssimo humor, simultaneamente
pedagógico e intelectual…Posso agora finalmente entrar?
pB1: Concerteza caro amigo, com muito prazer. Pouse aí o seu sobretudo e
siga-me. O nosso querido colega pB2 já se encontra na sala e ia justamente
contar-me uma história curiosa relativa ao facto de ele possuir ouvido absoluto.
Você conhecia-lhe esse dom?
pB-1: Não, mas não me admira… ele sempre foi bom a reconhecer intervalos e
estranhos acordes.

[pB1 e pB-1 entram na sala onde os esperava o pB2]

36
pB2: Como vai estimado camarada?
pB-1: Bem e você?
pB2: Vai-se andando.
pB1: Sente-se e ponha-se à vontade.
pB-1: Obrigado. Então ouvi dizer que tem ouvido absoluto e que ia contar uma
história qualquer…
pB2: É verdade. Creio ser uma história bastante engraçada que se passou
comigo há já algum tempo e que acho vos irá surpreender.
pB-1: Já me está a deixar cheio de curiosidade…
pB1: Não nos deixe mais neste suspense… conte-nos lá a sua história.
pB2: Bom, tudo começou um dia quando me dirigia para o meu estúdio no meu
velho carocha14 e fui mandado parar pela polícia.
pB1: Mas que aborrecimento… e que lhe queriam eles?
pB2: Acusaram-me de excesso de velocidade. Disseram-me que o radar
registou a velocidade de 110 quilómetros por hora e passaram-me uma multa.
pB-1: E que fez você?
pB2: Recusei pagar e fui a tribunal para ser julgado.
pB1: Mas que grande chatice… mas porque recusou pagar e assim ter que se
submeter a um julgamento?
pB2: Porque sabia que tudo se tratava de um erro, pois eu ia apenas a 90
quilómetros por hora e não a 110 como eles afirmavam.
pB-1: Como podia estar assim tão certo? Por vezes a velocidade indicada no
mostrador não é a correcta, quero dizer, existem pequenas discrepâncias entre
a velocidade real e a indicada no conta-quilómetros.
pB2: Mas eu nem sequer ia a olhar para o conta-quilómetros.
pB1: Então como é que sabe que não ia em excesso de velocidade?
pB2: Pelo som do motor do meu carro.
pB-1: Pelo som do motor do seu carro?
pB1: Que quer dizer com isso?
pB2: Bem, como sabem o meu carocha é muito antigo e só tem quatro
velocidades. Com o tempo apercebi-me – através do meu ouvido absoluto – que
o motor do carro imitia diferentes notas, consoante a velocidade a que me
deslocava. Assim, observei que o pitch subia uma oitava, quando mudava da
primeira para a segunda velocidade e outra oitava quando metia a terceira.
Reparei também que descia um intervalo de quinta perfeita quando reduzia de
terceira para a segunda velocidade ou um intervalo de quarta perfeita, quando
reduzia de quarta para a terceira. Desta forma, habituei-me a saber a que
velocidade ia apenas pelo ouvido e naquele dia, naquele preciso momento, eu ia
na quarta velocidade – aquilo a que eu costumava na brincadeira chamar de
velocidade de cruzeiro – ou seja, a nota emitida pelo motor era a de um si
bemol, que eu sabia corresponder à velocidade de 90 quilómetros por hora.
pB-1: Isso é tudo fantástico, mas como conseguiu provar em tribunal que eram
eles que estavam errados e não você?
pB1: Sim, porque é bom não esquecer que eles tinham a prova do radar que
indicava que você circulava à velocidade de 110 quilómetros por hora.
14
Volkswagen

37
pB2: Bom, foi assim: eu pedi a presença no tribunal de um piano afinado a lá 1 a
440 hertzs, e o mesmo radar que tinha indicado o alegado excesso de
velocidade. Posteriormente expliquei ao Juiz o que era ouvido absoluto e disse-
lhe que eu possuía esse dom chamemo-lhe assim e que podia provar isso em
tribunal.
pB-1: O juiz deve ter achado muito estranho todo esse procedimento da sua
parte…
pB2: De facto assim foi, mas talvez por curiosidade, deixou que eu continuasse
com a demonstração.
pB1: E que aconteceu a seguir?
pB2: Bom, depois pedi a um assistente do tribunal para se sentar no piano e
tocar algumas notas à sua escolha e eu, que me encontrava de costas para ele,
ia dizendo os nomes das notas.
pB-1: E assim, você provou que tinha ouvido absoluto…
pB2: De facto acertei o nome de todas as notas tocadas, não deixando dúvidas
ao Juiz que eu tinha ouvido absoluto.
pB1: Faltava agora provar que você ia realmente a ouvir um si bemol, ou seja,
que circulava a 90 quilómetros por hora. Como é que conseguiu isso?
pB2: Muito simples: pedi que efectuassem um teste ao radar que estava
presente em tribunal e que tinha registado o meu alegado excesso de
velocidade, o que fizeram de seguida usando um outro aparelho que simula
virtualmente o deslocamento de um veículo a determinada velocidade, e esse
movimento foi registado no referido radar.
pB1: E que aconteceu?
pB2: Provou-se que eu tinha razão: notou-se uma discrepância entre a
velocidade do veículo virtual e a registada no radar.
pB-1: Aposto que essa discrepância era de 20 quilómetros por hora.
pB2: Acertou, caro amigo. O radar encontrava-se desafinado e acrescentava
mais 20 quilómetros à velocidade real.
pB1: Foi então ilibado?
pB2: Exactamente, e foi-me apresentado um pedido formal de desculpas por
parte da polícia, que eu aceitei.
pB-1: Parabéns! Foi uma brilhante vitória.
pB1: E uma magnífica história também.
pB2: Oh, obrigado… mas não foi nada de mais. Mas, esqueçamos agora esta
minha aventura e concentremo-nos no assunto que nos trouxe aqui: a
importância do tempo na música.
pB1: Talvez fosse importante definirmos então que, o tempo na música é um
tempo virtual e que opostamente, a sequência de actuais e concretos
acontecimentos, é um tempo absoluto.
pB2: Estou completamente de acordo consigo. Aliás creio que o tempo é o
componente essencial para a compreensão de uma qualquer composição ou
improvisação, e o veículo pelo qual a música faz um contacto profundo com o
espírito humano.
pB-1: Partindo da vossa definição de tempo musical, gostaria de propor o
seguinte exercício mental: imaginemos uma música que não tenha início –

38
apenas comece – e não tenha fim – somente pare; sem clímax ou qualquer
intenção de atingir um fim; uma música que não crie expectativas - sem frases
ou articulação; sem movimento ou direcção definidos; uma música onde os
eventos sonoros existam por eles mesmos em vez de participarem em qualquer
progressão ou desejo de cadência.
pB2: Estamos então na presença – creio que ambos concordarão comigo - de
uma música não linear.
pB1: O que é isso de música não linear?
pB2: A ideia conceptual de música não linear, surge decisivamente no ocidente
no século XX muito devido à influência determinante de músicas não ocidentais.
A verticalidade, a stasis, a atemporalidade e a consistência, seriam assim
atributos de uma música não linear. Com o surgimento e impacto de novas
tecnologias como o gravador de fitas, o sampler, o computador, e o facto de
podermos usar um módulo sonoro musical e depois cortá-lo, trocá-lo, invertê-lo,
ou alterar-lhe a sua ordem, levou-nos indubitavelmente a uma prática musical
linear, determinada por idiossincrasias como a surpresa, a horizontalidade, o
movimento ou a progressão.
pB-1: Quando tais características de uma música não linear se tornam
evidentes, necessitamos então de descobrir novas maneiras de escutar essa
mesma música, não acham?
pB2: Absolutamente meu caro. Numa música não linear, é visível a ausência de
contraste, de qualquer aparente progressão ou movimento e pede do ouvinte - e
aos próprios músicos que a interpretam - uma audição criativa, numa procura
minuciosa de mínimas e subliminais alterações. Pode-se afirmar sem receio que
uma tal música é uma música que não pretende comunicar, mas sim tornar-se
perceptível, numa experiência auditiva diferente.
pB-1: Tragédia dell`ascoltatore15…
pB2: Numa tal música, não encontramos nem passado nem futuro: só presente.
pB-1: Por outro lado, o facto de se retirar à música um comportamento ritualista
que caracterizava e ainda caracteriza o ambiente nas salas de concerto -
característica essa distorcida no século XX pelo aparecimento do gravador, gira-
discos, CD, mini-disk, walkman, que nos possibilita ouvirmos música em
qualquer ambiente -, veio alterar decisivamente a maneira descontínua de ouvir
música: o estilo zapping com que no conforto das nossas casas podemos por
um CD, começar a ouvi-lo, acelerá-lo para trás ou para a frente, passar-mos
para outra faixa, repetirmos uma parte, ou simplesmente mudarmos de CD, é
um pertinente exemplo de audição musical linear.
pB2: Exactamente. Aliás seria interessante relacionar esse tipo de nova audição
musical linear com um tipo de prática musical linear, constituída por eventos
sonoros auto-suficientes e independentes uns dos outros.
pB1: Podia explicar melhor o que pretende dizer com eventos sonoros auto-
suficientes e independentes uns dos outros?
pB2: Com todo o prazer. Dou-lhe alguns exemplos: não é necessário estarmos
horas consecutivas a ouvir um rouxinol a cantar, para nos encantarmos com a
beleza do seu canto - um chilrear isolado é suficiente. Da mesma forma, uns
15
Luigi Nono: Compositor italiano

39
segundos a escutar o som das cigarras é o bastante para nos deleitarmos com
tão requintada textura. Também alguns instantes ouvindo as ondas do mar são
relaxantes. Um acorde de piano pode seduzir-nos mesmo isolado de outros
eventos sonoros, tal como um arpejo de harpa per se, pode impressionar os
nossos sentidos. Existe beleza numa nota grave flatterzunge produzida por um
contrafagote. Assim o tempo, torna-se o componente essencial para a
compreensão da peça e o veículo pelo qual a música faz um contacto profundo
com o espírito humano. Por conseguinte, os eventos sonoros que formassem
uma tal música, tornar-se-iam num fluxo e não no tempo e essa música
transformar-se-ia num encadeado de eventos sonoros que contêm em si não só
o tempo como o modelam progressivamente: abstracções sonoras, movendo-se,
criando tempo – tornando audível o tempo! Esta composição, assim concebida,
seria entendida como uma sucessão de momentos sem direcção ou movimento
definidos.
pB1: Mas será que realmente podemos falar de movimento em música? Não
será isso apenas uma metáfora? Quanto a mim, a única coisa que realmente se
move é a vibração dos próprios instrumentos e as moléculas de ar que chegam
até aos nossos ouvidos.
pB2: Brilhantemente dito, caro colega. Bravo!
pB1: Toda a música linear é apreendida inicialmente, como uma sucessão de
momentos…
pB-1: Peço desculpa de interromper uma tão efusiva conversação, mas gostaria
de vos alertar que vai começar no canal 37 a série de humor "Mister Ed"…
pB2: Óptima ideia. Adoro essa série: é uma das minhas favoritas juntamente
com o "viver no campo"…
pB-1: …"Viver no campo" que conta com o desempenho magnifico do nosso
proto-compatriota Arnold.
pB1: Atenção amigos, que vai começar…

[pB2 liga o volume da televisão e sentando-se juntamente com os seus dois


amigos, ficam divertidamente a ver a série "Mister Ed"]

40
9. Tacet

[pB1 e pB2 encontram-se em casa do primeiro jogando uma partida de xadrez]

pB1: Hum, você hoje está a jogar excelentemente meu caro.


pB2: É verdade. Sinto-me bastante concentrado. Deve ser deste agradável
silêncio.

[pB1 levanta-se]

pB1: Peço desculpa por interromper, vou á porta pois tocou a campainha.
pB2: Campainha? Não ouvi nenhuma campainha…

[pB1 não ouve este último comentário, pois encontra-se já abrindo a porta da
entrada de sua casa]

pB1: Mas que agradável surpresa: o nosso querido Meta Eu.


mE: Resolvi fazer uma pausa no meu metaconto e fazer uma visita á casa de
um amigo onde sempre tenho enriquecedores diálogos e estimulantes ideias,
isto claro para não falar da sua exótica e opípara gastronomia.
pB1: Oh, é pura amabilidade sua… mas entre meu caro que está frio aí fora,
entre e pendure aí o seu sobretudo.

[caminham os dois para a sala onde se encontra pB2]

mE: Mas isto é fantástico…como está meu estimado colega?


pB2: Bem obrigado. E o meu amigo, como vai o seu metaconto?

41
mE: Estou quase a terminar o último capítulo, mas resolvi fazer uma pausa para
visitar o nosso anfitrião, o que é sempre bastante refrescante devo acrescentar.
pB2: Absolutamente de acordo.
pB1: Deseja beber alguma coisa? Um vinho tinto clarete talvez? Fiz uns
maravilhosos pastéis de massa tenra que ainda devem estar quentinhos e que
estão uma delícia.
mE: Hum, parece-me tudo excelente. Aceito o vinho e os pastéis.

[pB1 sai e dirigi-se para a cozinha]

mE: Parece-me que vim interromper o vosso jogo.


pB2: Para felicidade e alívio do nosso camarada pB1, pois estava em grandes
dificuldades. Mais umas jogadas e dava-lhe o xeque-mate.
mE: Oh diabo, peço-lhe imensa desculpa. Logo hoje que estava em vantagem.
pB2: Tolice. Acabamos o jogo mais tarde. É sempre um prazer estar consigo e
isso é mais importante do que um mero jogo.

[pB1 regressa da cozinha com uma jarra de vinho num tabuleiro, azeitonas
temperadas, broa de milho e os pastelinhos]

mE: Bravo… mas que belo aroma…


pB2: … e a forma… e a textura…
pB1: Parem mas é de falar e comam agora enquanto estão quentinhos.
pB2: Ah é verdade, já me estava a esquecer de uma coisa que me intrigou, meu
caro pB1. Quando há pouco minutos você interrompeu o nosso jogo dizendo
que a campainha tinha tocado, eu não ouvi nada…
pB1: Isso é porque comprei uma nova campainha esta semana - uma
campainha silenciosa.
pB2: Uma campainha silenciosa?
mE: Já tinha ouvido falar. Parece que é o último grito em campainhas digitais.
pB2: Uma campainha silenciosa? Mas se é silenciosa, como é que a ouvimos?
pB1: Bom, em primeiro lugar existem diferentes silêncios.
pB2: Diferentes silêncios? Eu pensava que só existia um tipo de silêncio: a
ausência de som.
pB1: É uma questão de estarmos atentos e de ouvidos abertos. Ainda há pouco
você disse que se sentia hoje particularmente concentrado devido ao silêncio.
Aquilo a que você chamou de silêncio, era na realidade um silêncio relativo pois
podíamos ouvir o crepitar da lenha da lareira, o vento lá fora, as nossas
respirações…
mE: É como na música - também existem variegados tipos de silêncio.
pB2: Na música também? Eu sabia da importância do silêncio na música, em
especial na contemporânea, mas não sabia que existiam diferentes silêncios.
mE: Mas é uma realidade, meu caro. Veja o caso do silêncio do compositor
John Cage. Creio que já está familiarizado com a composição 4´33´´ de Cage?
pB2: Claro. Tenho até a partitura.

42
mE: Pois nessa peça, como sabe, os intérpretes deverão não tocar durante um
período de 4´33´´. Dessa forma, a experiência auditiva dos espectadores, era
um pouco semelhante á vossa durante o vosso jogo de xadrez: vocês eram
intérpretes de uma música silenciosa, mas ouviam as vossas respirações, o
crepitar da lareira, o vento. Assim, esta composição é sempre diferente,
consoante o sitio aonde é executada (sala de concerto, ao ar livre) e das
pessoas que assistem ao evento. O que ouvimos, ao escutar o não tocar dos
intérpretes, é tudo o resto.
pB2: Creio que já entendi esse tipo de silêncio.
mE: Mas há outros silêncios.
pB2: Quais?
mE: O silêncio - por exemplo - de um outro magnífico compositor americano:
Morton Feldman.
pB2: E como é esse silêncio?
mE: Bem, no caso de Feldman, os seus silêncios são constituídos por
infindáveis reverberações, como lhes chamou John Tilbury - que como ambos
sabem é um expert da música de Feldman.
pB2: Ou seja: embora não haja acção instrumental durante curtos ou longos
espaços temporais, o silêncio é constituído por reverberações de acções
instrumentais passadas.
mE: Exactamente. Mas há mais: os silêncios de Sciarrino e Nono.
pB1: Ah, que belos silêncios esses…
pB2: Estão a deixar-me curioso. Como são esses silêncios?
mE: São silêncios de certa maneira idênticos. Aliás crê-se que Nono terá tido
um primeiro contacto com esse tipo de silêncio numa obra de Sciarrino.
pB2: Sim, mas como os definir?
mE: São silêncios criados a partir de pianíssimos instrumentais, ou seja, o
silêncio de Sciarrino e Nono é constituído de sons instrumentais subliminais - por
vezes quase parasitas, no sentido de que são sons que surgem por serem
tocados a tão baixas dinâmicas.
pB2: Creio então poder definir esse silêncio como sendo um silêncio sonoro
subliminal, não lhes parece?
pB1: Talvez… mas tem que se ter muito cuidado com definições absolutistas e
por vezes redutoras, pois sintetizam apenas uma pequena essência de algo
muito mais complexo. Veja o exemplo da minha nova campainha: ela reflecte
outro tipo de silêncio que existe também em certa música mais recente - o
silêncio digital. Certos compositores contemporâneos, incluem o silêncio digital -
criado artificialmente nas suas peças. Assim, ao contrário do que acontecia por
exemplo nos discos de vinil, onde o silêncio era constituído pelo ruído
amplificado da agulha sulcando o vinil, agora com a tecnologia digital,
conseguiu-se criar o silêncio total. Mas como o distinguimos do silêncio do
compositor John Cage? Muito simplesmente porque se em Cage o silêncio é
alibi para se ouvir tudo o resto, neste caso, no silêncio digital, o que se pretende
é a audição desse mesmo silêncio.
mE: Bravo. Muito bem dito.

43
pB2: Parabéns. De facto começo agora a aperceber-me das subtilezas e
idiossincrasias dos diferentes silêncios mencionados. Mas continuo sem
perceber como é que se ouve uma campainha silenciosa…
pB1: Muito facilmente, caro amigo: o som da campainha silenciosa é silencioso.
mE: Ah, Ah, Ah.
pB1: Vá meu caro, deixe lá isso, anime-se e beba mais um copo de clarete.

[Os três amigos continuaram em animada cavaqueira ouvindo - em loop - a


peça4´33´´ de John Cage]

44
10. Impostura intelectual

[O porquinho Babe 1 encontra-se na sua casa, relaxado na sua cadeira de


embalar, a ouvir uma composição escrita pelo seu amigo pB-1, para o virtuoso
trombonista italiano Giancarlo Schiaffini, intitulada A Síndroma de Babel,
quando subitamente é interrompido por alguém que batia à sua porta forte e
insistentemente; pB1 apressa-se a abri-la]

pB1: Passa-se alguma coisa consigo, meu caro? Parece-me demasiadamente


excitado…

[O porquinho Babe -1, arfando - como se tivesse vindo a correr - agitava


nervosamente um jornal na cara do porquinho Babe 1]

pB-1: Excitado é o termo correcto. Já leu o suplemento musical do jornal Diário


de hoje?
pB1: Não… estava a ouvir música… mas entre meu caro, entre e explique-me a
razão de toda esta excitação.

[Os dois porquinhos entram para a sala; pB1 põe a música mais baixo; ambos
se sentam]

45
pB1: Então conte lá…
pB-1: Bom, hoje de manhã, como faço todos os dias, depois de vestir o roupão,
abri a porta da entrada para levantar o jornal Diário. Fechei a porta e sentei-me
na cozinha lendo o jornal enquanto tomava um café. Eis que quando cheguei ao
suplemento musical, me deparo com este extraordinário artigo, que relata a
descoberta efectuada por um famoso musicólogo russo, que quanto a mim é
uma das mais importantes no campo da Música nos últimos tempos. Mas veja
por si próprio: leia isto…

(pB-1 passa o jornal a pB1 e fica ansiosamente olhando para o seu colega; pB1
começa a ler em voz alta o respectivo artigo que tinha o seguinte titulo: As
profecias de Giovanni Freschi)

pB1: Em 17 de Janeiro de 1997, o musicólogo Robert Nestrovski, é convidado a


estudar e analisar certas partituras, pertença de Duque Vincenzo, alto dignatário
na Corte de Gonzaga em Mântua, nobre Renascentista, arrogante, déspota,
imensamente rico e ostentador, mas com um interesse muito grande por Arte e
Música ( teve como figuras da sua corte o pintor Peter Paul Rubens e como
maestro di cappella, o compositor Cláudio Monteverdi ).
Este típico Príncipe da Renascença tinha às suas ordens uma orquestra
de 36 excelentes músicos, para os quais compositores como Benedetto
Pallavicino, Lodovico Grossi da Viadana, Salamone Rossi e o próprio Monteverdi
compunham.
Foi na biblioteca deste Príncipe de Mântua, que Nestrovski fez uma
descoberta que iria surpreender a comunidade musicológica do mundo inteiro,
bem como compositores e estudiosos da História da Música: uma série de
partituras de um compositor desconhecido até então, mas que cedo iria revelar-
se uma espécie de Miguel Ângelo da Música Renascentista, pela verdadeira
originalidade e surpreendente revolução nas técnicas empregues nas suas
composições, bem como em extraordinários ensaios sobre notação (onde
constam invenções de novos símbolos e técnicas que só muito recentemente
viriam a ser utilizadas por compositores do pós-guerra).
Nestrovski estava a catalogar alguns Madrigais de Monteverdi,
descobertos recentemente pelos descendentes de Vincenzo, quando deparou
com algumas composições assinadas por um Giovanni Freschi 1653 - 1739
( Nestrovski viria mais tarde a saber por intermédio de cartas escritas por este à
sua amante, que o seu Mestre teria sido o compositor renascentista Marco
Antonio Cesti ( um dos primeiros compositores a compor uma ópera para o
famoso Teatro Cassiano em Veneza,1637 ).
A quase centena de composições assinadas por este compositor,
oscilavam entre peças de grande envergadura instrumental, a pequenos
ensembles, duos e solos.
Imediatamente Nestrovski ficou surpreendido pelo exotismo instrumental
de algumas das composições, tendo em conta a altura em que estas foram
compostas ( entre 1676- 1737 ): Le nozze,1696, foi escrito para 23
percussionistas ( antecipando em quase 300 anos a famosa obra de Varèse,

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Ionization ); Selva Spirituale de 1683 foi composta para o instrumento de cordas
Turco Zarib, 8 violinos, 12 trompas, e aplausi (6 músicos que usavam as mãos
como instrumento de percussão); em La Proserpina, contava com um coro de 10
crianças, 10 percussionistas, e solo de rabãb, instrumento de cordas Persa).
Mas a mais extraordinária descoberta, foi uma série de composições
escritas para um dos instrumentos criados por Bartolomeu Cristofori ( o piano
forte ) e intituladas Extravaganzas sonnoras per clavicembalo col piano forte,
datadas de 1730- 1735, aonde Freschi dispunha ao lado da partitura uma
extensa lista de utensílios de cozinha ( garfos, facas, colheres, pratos de
cerâmica, copos, tachos de metal, etc. ) dispostos em esquemas gráficos, que
mostravam a sua disposição ao longo do interior do piano e com indicações
precisas ao pormenor da sua utilização; o intérprete, segundo Freschi utilizaria 2
baquetas de timpani para percutir as cordas do instrumento, utilizando o pé
direito para pressionar o pedal de sustem do clavicembalo, produzindo sons
extravagantes e harmoniosos…
Estas partituras continham ainda, ritmos irregulares e alternados ( figuras
de 3, 5 e 7 notas dispostas em compassos que alternavam de métrica com uma
frequência espantosa ), bem como escalas octatónicas e séries que viriam mais
tarde a ser utilizadas por Messiaen ou Bartók, mas desconhecidas na altura.
Nestrovski imediatamente se deu conta da importância de tão bizarra
descoberta ( o prenúncio do piano preparado de Cage…) e imediatamente
redigiu um ensaio que viria a publicar no Journal Perpectives of New Music em
Setembro de 1997 surpreendendo compositores e musicólogos pelo genial
visionário que se lhes apresentava ser Giovanni Freschi.
As suas composições além de revolucionárias eram escritas
meticulosamente, utilizando expedientes da notação tradicional mescladas com
símbolos de sua invenção, sempre acompanhados de longas notas explicativas,
bem como esquemas gráficos de uma imponente beleza e exactidão.
Esteticamente as suas peças eram de uma beleza só comparada à das
obras de Mestres como Orlando di Lasso, Gesualdo ou Gabrieli, tendo uma
facilidade inusitada em criar belíssimas melodias aliadas a exóticos ritmos e
extravagantes timbres alcançados pela utilização de invulgar instrumentação ou
pelo recurso anormal de novas técnicas por ele criadas.
Durante 1998, vários foram os intérpretes, interessados em estudar e
interpretar as suas obras, entre eles contam-se Irvini Arditti, Pierre Ives Artaud,
as Percussões de Estrasburgo, ou René Clemencic, dando origem a gravações
agora publicadas em CD pela editora Col Legno.
A verdadeira importância deste compositor para a História da Música, só
o tempo o dirá, mas o seu lugar como revolucionário e visionário compositor,
esse parece já enraizado na memória de todos os que se deixaram já contagiar
por tão poderosa sensibilidade, beleza, lirismo, rigor científico, humor e acima de
tudo, uma antecipação Verneana do que de melhor se viria a produzir no final do
nosso século.

[O artigo finalizava com a seguinte NOTA: este é o primeiro de uma série de


dois artigos, sobre a vida e obra de Giovanni Freschi. Vamos no segundo, tentar

47
dar um retracto do panorama sociocultural onde se desenrolou a obra deste
compositor, bem como, uma amostragem psico-analítica do seu caractér como
homem; pB1 pousou o jornal em cima da mesa, acendeu o cachimbo dando
uma demorada passa e levantando-se, virou-se para o seu convidado - que o
olhava impacientemente, esperando uma reacção ao que tinha sido lido]

pB1: Creio meu caro colega - e receando desapontá-lo - que estamos perante
um caso típico de uma impostura intelectual.
pB-1: Impostura intelectual? Que quer dizer com isso?
pB1: Bem, na Primavera de 1996, uma revista americana muito respeitada
publicou um artigo com um estranho texto. Se bem me recordo o nome era
qualquer coisa como: Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica
transformativa da gravitação quântica. O autor - cujo nome não me recordo
agora - apoiava as suas teorias com citações de intelectuais célebres.
pB-1: Mas o que é que tudo isso tem a ver com este artigo?
pB1: Um pouco de calma meu amigo, deixe-me continuar…
pB-1: Peço desculpa… continue por favor…
pB1: Pouco tempo depois da publicação deste seu artigo ter sido editado,
revelou que se tudo se tratava de uma paródia.
pB-1: E que pretendia ele obter com essa estranha forma de agir?
pB1: Segundo ele o objectivo era o de atacar, pela sátira, o uso inadequado de
certa terminologia científica e determinadas extrapolações abusivas das ciências
exactas para as ciências humanas.
pB-1: Ainda não sei se compreendi bem o sentido de toda essa complexa teia
filosófica…
pB1: De um modo mais geral, ele pretendia denunciar o desgastado relativismo
pós-moderno, segundo o qual a objectividade é uma mera convenção social.
pB-1: Então, penso poder concluir que - tal como no artigo que acabou de
referir -, você põe em dúvida a veracidade deste texto que lhe trouxe?
pB1: Absolutamente meu caro. Não tenho a menor das dúvidas. Isto é
demasiado extraordinário e inverosímil para ser minimamente credível.
pB-1: Mas porquê, caro colega? O que o leva a pensar assim dessa forma tão
categórica, que tudo isto não passa de uma fraude?
pB1: Bom, creio que este artigo, aproveita-se numa atitude necrófaga, do
aparente estado moribundo pós-modernista - onde se perderam todos os valores
musicais -, para nos impor sem regras nem critério, um cenário de cocktail
musical pseudo intelectual, desprovido de qualquer contextualização
históricomusicológica. Com isto, o autor deste artigo, deve pretender denunciar
o erro que se comete, quando se troca a importância histórica do conhecimento,
em favor de uma mensagem fútil, massificada e filtrada, de um pseudo
conhecimento musical, que em nada ajuda a situar - antes pelo contrário -,
certas ideias e teorias, incluídas num saudável contexto históricomusical.
pB-1: Concordo consigo na análise que faz a uma certa degeneração de certa
propaganda pseudo pós-modernista, e creio ver agora - após a sua ponderada e
perspicaz visão crítica deste texto -, que tudo não deve passar de uma
estratégia muito bem planeada, para nos alertar dos perigos dessas

48
desconsiderações históricas, chamemo-lhe assim. Penso que era de tal forma
sedutora e fascinante a história apresentada, que eu quis obcecadamente
acreditar nela.
pB1: Teremos a total certeza, na próxima edição do suplemento musical: ou me
engano muito ou o autor irá - no anunciado segundo artigo -, afirmar que tudo
não passou de uma impostura intelectual… Mas não fique assim triste caro
amigo… Parece que ficou com cara de quando nos apercebemos que não existe
o Pai Natal… Pense positivamente: veja-o como um texto magnífico de ficção!
pB-1: Tem razão. Começo até a ver o humor de tudo isto. Caí que nem um
patinho… Fui demasiado ingénuo…
pB1: Sente-se mas é aí nesse sofá e ouça comigo a nova peça de trombone do
nosso querido mE.

[pb-1 e pb1 ficam ambos calmamente a ouvir música; na cara de pB-1 podia-se
ver agora um ar descontraído e um leve sorriso nos lábios; pB1 fechou os olhos
e acabou por adormecer]

49
11. Índice Geral
Duque Vincenzo, 55
4
E
4´33´´, 51
4´33´´., 51 efeito borboleta, 19
electrónica, 9, 10, 16, 35, 39
A Emmanuel Nunes, 10, 11
encenadores, 16
A Síndroma de Babel, 54 erro, 19, 20, 21, 22, 23, 36, 44; Erro ocasional,
acaso, 14, 19, 30 20; Erro virtuosistico, 20
acusmática, 9, 39 espaço-tempo, 4
ADN, 4, 6 Experimental, 29
aleatório, 19, 20, 30
Ana Ester neves, 37 F
Anton Webern: Webern, 24
apogiaturas, 25, 26 Fabricciani, 38
Arnold Schoenberg: Schoenberg, 24, 43 feedback, 20, 30
atemporalidade, 46 Foucault, 30

B G
Bach, 8 g.r.m. tools, 5
bailarinos, 16 Gabrieli, 56
Bartók, 56 gamelão, 10, 11
Beethoven, 8, 10 Gesualdo, 40, 56
Bellini, 38 Giancarlo Schiaffini, 35
Benedetto Pallavicino, 55 Giovani Freschi: Freschi, 56
Berio, 38 Giovanni Freschi, 55, 56, 57; Freschi, 56
Berlioz, 8 guitarra eléctrica, 29
Boulez, 10
Brasil, 40 H
bunker, 6
buraco de verme, 4, 7 Haendel, 8
buraco negro, 26 Helmut Lachenmann, 7, 23; Lachenmann, 24, 25,
26, 34
C
I
caos, 19, 20
CD, 30, 33, 47 Impostura intelectual, 54, 57
cientistas, 6 improvisação, 7, 18, 19, 20, 22, 30, 46;
cineastas, 16 improvisação estruturada, 18; improvisação
Cláudio Monteverdi, 55; Monteverdi, 55 jazzística, 18; improvisação total, 18;
Col Legno, 57 improvisador, 18, 19, 20, 22, 30, 35
composição, 7, 11, 18, 25, 26, 33, 35, 36, 37, 38, improvisação total, 18
40, 46, 47, 51 indeterminação, 19
computador, 11, 21, 46 interpretação, 7, 40
concreta, 9, 16, 35 Irvini Arditti, 57
consistência, 46
cordas do piano, 35, 39 J
Crystalnacht, 5
Jajouka, 2, 4, 5, 6
jazz, 9, 10, 11, 14, 16, 35
D jet whistles, 38
Daniel Kientzy, 35, 39 Jimi Hendrix, 10, 11
Deleuze, 30 John Cage: Cage, 13, 29, 43, 51, 52
democracia, 5 John Tilbury, 35, 36, 51
Dignaga, 14 Jorge Lima Barreto, 13, 35
Doc Martens, 31 Jorge Peixinho, 39
Douglas Hofstadter, 21; Hofstadter, 21 José de Sousa, 37
Drones, 30 Julio Iglésias, 10

50
K porquinho Babe, 0, 4, 6, 8, 9, 23, 42
klangfabernmelodie, 40
Kurtag, 37 R
Rachmaninov, 40
L reducionismo, 19
René Clemencic, 57
Lizt, 40 ressonância, 35
Lodovico Grossi da Viadana, 55 Richard Strauss: Strauss, 11
Lucky Lucke, 19 Robert: Nestrovski, 55, 56
Luis de Pablo, 10, 11 Robert Nestrovski, 55
rock, 9, 10, 11, 14, 16, 29, 30, 35, 39
M
Mahler, 8 S
mainstream, 39 Salamone Rossi, 55
Marco Antonio Cesti, 55 Salvatore Sciarrino, 7, 33, 35, 40; Brasil, 40
Mário Cesariny, 37 sampler, 46
Marxista, 28 Schnebel, 38
Messiaen, 56 Sequenza III, 38
Miguel Ângelo, 55 serialismo, 9, 40
mini-disk, 47 silêncio, 23, 25, 49, 50, 51
minimalismo, 9, 16 slaps, 38
Mister Ed, 48 stasis, 46
Monty Python, 30 Stephen Hawking, 26
Morton Feldman, 51
Mozart, 8, 11
Musak, 13, 14, 15 T
música contemporânea: contemporânea, 15, 24, telemóvel, 13, 14
50 tempo, 1, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 12, 16, 19, 26, 30, 33,
música intuitiva, 19 35, 42, 43, 44, 45, 46, 47; tempo absoluto, 46;
música não linear, 46 tempo virtual, 46
músicaambiental: ambiental, 15 tempo-real, 16
musical linear, 46, 47 Thelonious Monk, 10, 11, 20; Monk, 11
músicas etnográficas, 11 Tocata II, 37
musicologia, 0, 4, 11 Turbulência, 20
musicólogos, 5, 9, 11
músicos, 5, 6, 28, 31, 46 U

N Universo, 2, 3, 8, 33; electrões, 3; fotões, 3;


gluões, 3; gravitões, 3; moléculas, 4;
New Age, 29 neutrinos, 3; neutrões, 3; nucleões, 3; protões,
Noise, 29 3; quark, 3

O V
Orlando di Lasso, 56 Vanitas, 38
ouvido absoluto, 42, 43, 44, 45 Varèse, 56
videastas, 16
P Volkswagen: carocha, 44, 45
paradoxo, 18, 21, 24, 25
peça4´33´´, 52 W
Percussões de Estrasburgo, 57 Wagner, 8
performers, 16 walkman, 47
Peter Paul Rubens, 55 Whistle Piano, 36
Pierre Ives Artaud, 57 whistles tones, 38
pintores, 16
planeta, 4; Saturno, 3 Z
poetas, 16
porquinho: porquinho Babe 1, 6, 23; porquinho zapping, 47
Babe –1, 7, 42; porquinho Babe 2, 6, 42 Zen, 14, 21

51

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