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Nº 546 | Ano XIX | 16/12/2019

Diálogo
Interconvicções A multiplicidade no pano da vida
Faustino Teixeira Carlos Drawin
Sergio Costa Marcelo Camurça
Rita Grassi Mauro Lopes

Leia também
■ Paulo Suess
■ João Ladeira
■ Eventos IHU2020
■ Retrospectiva 2019
EDITORIAL

Diálogo interconvicções.
A multiplicidade no pano da vida

F
iar a vida e juntar os pontos. Devagar, unin- Marcelo Camurça, antropólogo, professor
do as múltiplas cores e origens dos fios. colaborador do Departamento de Ciência da
Ajustar, alinhar e tecer. Eis a multiplicida- Religião na Universidade Federal de Juiz de
de do pano da vida, que tanto mais bela quanto Fora - UFJF, pensa as dimensões religiosas
mais plural for a hospitalidade à diferença. Não para além de uma perspectiva pessoal. “Passa-
se trata de impor ou aceitar a convicção alheia, mos então de uma estrutura de plausibilidade
mas de tecer a vida por um respeito e diálogo monista e açambarcadora da totalidade da pré-
com a diversidade política, filosófica e religiosa. modernidade religiosa a múltiplas estruturas
O Diálogo interconvicções, debate oriundo do de plausibilidade e experiências de religiosi-
campo acadêmico francês nos últimos anos, tem, dade em competição entre si, por ‘corações e
justamente, no contato com o Outro um campo mentes’”, frisa.
fértil de relação com o plano real da vida, com Mauro Lopes, jornalista e editor do site e
vistas à consciência humana sobre as próprias canal no YouTube Paz e Bem, pensa o caminho
convicções e a necessidade concreta de respeito e de busca da bondade, apesar de seus desafios.
convívio com o mundo contemporâneo, pleno de “Grande desafio foi o de – não sem custo para
desafios, contradições e possibilidades. mim – abdicar de uma visão de catolicismo que
Faustino Teixeira, professor e pesquisador estava impregnada pelos limites da institucio-
do Programa de Pós-Graduação em Ciência da nalidade”, pontua.
Religião da Universidade Federal de Juiz de
Também pode ser lida nesta edição a entrevista
2 Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF, discute as
de Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental,
teias da vida. “Não basta dizer ‘viva o múltiplo’,
“’Nova Teologia Política’ – Teologia Pública que se
é necessário desvendar as malhas desta viva re-
intromete nos conflitos concretos e que dá ao grito
lação que constitui a tessitura do real, em que
dos pobres uma memória”, publicada em Notícias
cada coisa, cada ser, está referenciado ao outro,
do Dia, na página eletrônica do IHU, por ocasião
entrelaçado como um dom”, sugere.
da morte de Johann Baptist Metz, um dos mais
Sergio Costa, professor de Sociologia na importantes teólogos do século XX.
Freie Universität Berlin (Universidade Livre de
O calendário de eventos do IHU para 2020,
Berlim, Alemanha), retoma o pensamento de
uma concisa retrospectiva da revista IHU On
Ivan Illich ao propor que “com a convivialidade
-Line em 2019 e o comentário de João Ladeira,
abre-se a possibilidade de incorporar essa mul-
sobre o filme O Irlandês, de Martin Scorsese
tiplicidade de formas sociais que queremos en-
tender e, com o perdão da redundância, convi- Desejamos a todas e a todos um Feliz Natal
ver em absoluta liberdade com essas diferentes e um Ano Novo repleto de esperança, saúde
formas sociais”. e paz!
Rita Macedo Grassi, mestre em Ciências da
Religião pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Religião da PUC-Minas, debate a
emergência do diálogo interconvicções e seu im-
pacto político. “Não se trata de um diálogo que
tenha como objetivo encontrar uma harmonia
ou a paz entre as convicções”, ressalta.
Carlos Roberto Drawin, doutor em Filo-
sofia e professor aposentado do Programa de
Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, discute
as formas da tolerância e intolerância nas socie-
dades contemporâneas. “Quando as pessoas se
reúnem não em nome de si mesmas e sim da ex- Imagem da capa:
periência comum do sagrado, elas podem trazer Diomira Colleen Bran-
para a vida concreta aquela posição terceira que nigan – reprodução
Cidades Invisiveis
possibilita reconhecer o outro em nós”, pontua.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Entrevista | Paulo Suess: A “Nova Teologia Política” – Teologia Pública que se intromete nos
conflitos concretos e que dá ao grito dos pobres uma memória
14 ■ Reportagem | Ricardo Machado: Homo Digitalis: a escalada da algoritmização da vida
17 ■ Reportagem | João Vitor Santos: Revolução 4.0 também inspirará ciclos de palestras e debates
no primeiro semestre de 2020
22 ■ Tema de capa | Faustino Teixeira: Florescer na complexidade
28 ■ Tema de capa | Sergio Costa: Convivialidade – caminhar em direção a outros conhecimentos,
outros mundos
33 ■ Tema de capa | Rita Macedo Grassi: Para além dos consensos, a possibilidade de uma vida
plural em comum
36 ■ Tema de capa | Carlos Roberto Drawin: No cultivo do chão comum brota a humanidade
41 ■ Tema de capa | Marcelo Camurça: A dialogia construtiva da interconvicção
46 ■ Tema de capa | Mauro Lopes: O difícil e rico encontro com o Outro
49 ■ Reportagem | Ricardo Machado: Retrospectiva Revista IHU Online 2019
53 ■ Cinema | João Martins Ladeira: A Babel de Scorsese
56 ■ Publicações | Róber Iturriet Avila e Mário Lúcio Pedrosa Gomes Martins: Tributação, políticas
públicas e propostas fiscais do novo governo
57 ■ Publicações | Aloir Pacini: As identidades Chiquitanas em perigo nas fronteiras 3
58 ■ Publicações | Pedro Gilberto Gomes: A Universidade em busca de um novo tempo
59 ■ Outras edições

Diretor de Redação Patrícia Fachin, Cristina Guerini,


Inácio Neutzling Evlyn Zilch, Luana Ely Quintana, Wag-
(inacio@unisinos.br) ner Fernandes de Azevedo, Amanda
Bier e Fred Wichrowski.
Coordenador de Comunicação - IHU
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Redação
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
(joaovs@unisinos.br)
ISSN 1981-8769 (impresso)
Patricia Fachin – MTB 13.062/RS
ISSN 1981-8793 (on-line) (prfachin@unisinos.br)
Wagner Fernandes de Azevedo
(wfazevedo@unisinos.br)
A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
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Editoração
A versão impressa circula às terças-fei- Gustavo Guedes Weber
ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Nestor Pilz
Inácio Neutzling, César Sanson, (nestor@unisinos.br)

EDIÇÃO 546
TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Paraisópolis: a dinâmica de uma favela que


pode inspirar metrópoles a serem mais cidades
“Os interstícios urbanos de favela têm conflitos e desafios para serem
discutidos e requalificados, mas, ao mesmo tempo, eles têm uma série de
potencialidades latentes”.
Eduardo Pizarro é doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP

Retomada econômica extremamente tímida -


o desemprego continua resistente
“Uma economia que não se recupera da recessão de uma maneira vigoro-
sa não gera uma demanda considerável por mão de obra”.
Walter Rodrigues é analista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE

4 Manifestações, ativismo e militância: novas


formas de compreender a democracia
“As manifestações de Junho, as Ocupações Secundaristas e os protestos
“verde e amarelo” são produto, e produtores, dessa intensa fase de conflito
social”.
A supremacia do fiscal sobre o social ignora princípios básicos

A supremacia do fiscal sobre o social ignora


princípios básicos
“É preciso articular a economia com os direitos, a teoria e a política
econômica, e fazê-la considerar e respeitar os princípios dos direitos hu-
manos”.
Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

A desidratação dos recursos para saúde e


seus efeitos catastróficos
“Deixar de priorizar a Estratégia de Saúde da Família representa aban-
donar ações cujos resultados foram exitosos em termos de atendimento às
necessidades de saúde da população”.
Francisco Funcia, mestre em Economia Política, consultor da Vignoli e Funcia Consultores.

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REVISTA IHU ON-LINE

Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Em busca da funda Papa Francisco Por que Tagle é


de Davi. Uma análise propõe um sistema o novo “herói papal”
estratégica da econômico mais justo do Oriente
conjuntura e sustentável

A luta dos explorados e Estruturada com o auxílio Espera-se que Tagle seja
oprimidos em todo o mundo, do americano Joseph Sti- capaz de reunir as habili-
principalmente nos países glitz, a iniciativa conta com dades necessárias para li-
periféricos, sempre foi a luta apoio do indiano Amartya dar com a brutal política da
dos fracos contra gigantes Sen, ambos vencedores do Cúria Romana. Reportagem
poderosos e bem armados. Nobel. A reportagem é de publicada em The Tablet e
A história registra vitórias e Carlos Drummond, publica- reproduzida no sítio do IHU.
derrotas, mas, no geral, en- da por CartaCapital e repro- Disponível em http://bit.ly/35iGIMP.
frentamos poderes que mui- duzida no sítio do IHU.
tos julgam invencíveis e cuja Disponível em http://bit.ly/2YH7Sum.
dominação é planetária.
Disponível em http://bit.ly/2RQI4KO

Vivemos uma ‘psicopatia A razão das ruas e o MP da regularização


difusa’ na política impasse na América fundiária anistia grilagem
brasileira, Latina de terras públicas
diz psicanalista até 2018

Dor de amor, dor de rejei- Onda de protestos remete O Governo Federal publicou
ção, dor de desânimo. Quei- aos de 20 anos atrás, mas nesta quarta-feira (11) um pa-
xas semelhantes podem ser dessa vez não parece haver cote de medidas para “simpli-
trazidas por diversas pesso- saídas partidárias ou popu- ficar e modernizar” o proces-
as, mas cada vivência será listas, com líderes que cen- so de regularização definitiva
diferente. Décadas de prá- tralizem a iniciativa política. das ocupações em terras da
tica no consultório não fize- O artigo é de Salvador Scha- União. Entre as normas pu-
ram com que o psicanalista, velzon, antropólogo, profes- blicadas está a Medida Pro-
ensaísta e escritor Contardo sor na Universidade Federal visória 910, que altera pontos
Calligaris deixasse de se sur- de São Paulo, publicado por importantes da legislação an-
preender com as falas dos El País e reproduzido no sítio terior sobre o assunto e está
pacientes. Calligaris comen- IHU. sendo considerada por espe-
ta o momento político-social Disponível em http://bit.ly/2qNiDP8. cialistas uma anistia geral da
do País, em entrevista publi- grilagem de terras públicas
cada por HuffPost e repro- em todo o país. Reportagem
duzida no sítio IHU. publicada por ((o))eco e re-
Disponível em http://bit.ly/2PKFrYn produzida no sítio IHU.
Disponível em http://bit.ly/2sk6Fgv.

EDIÇÃO 546
ENTREVISTA

A “Nova Teologia Política” – Teologia


Pública que se intromete nos conflitos
concretos e que dá ao grito dos pobres
uma memória
Paulo Suess analisa as contribuições de Johann Baptist Metz,
que faleceu no último dia 2 de dezembro, aos 91 anos
Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos

A
concepção de uma teologia ca- só uma doença degenerativa, mas para-
paz de se configurar como “um digmática da nossa civilização”, sintetiza.
meridiano entre dois polos, entre Compreender essa “Teologia Política”
o sofrimento humano e a afirmação da num paralelo como Teologia da Liber-
existência de Deus (Teodiceia)”. É assim tação, consiste em, segundo Suess, en-
que o doutor em Teologia Fundamental tender que “‘a nova Teologia Política’ de
Paulo Suess define o principal legado Metz, por seu carisma pessoal e por ser
de Johann Baptist Metz, que faleceu no o titular de uma cadeira acadêmica, era
último dia 2 de dezembro, aos 91 anos. mais personalizada que a Teologia da
Mundialmente reconhecido, Metz é fun- Libertação”. “Uma era mais acadêmi-
6 dador da chamada “Nova Teologia Polí- ca, outra mais narrativa, portanto mais
tica”. Professor emérito da Universidade
próxima à vida cotidiana dos leitores.
de Münster, foi considerado um dos mais
Entre ambas as teologias havia uma so-
importantes pensadores no período após
lidariedade fundamental e um encontro
o Concílio Vaticano II (1962-65). Aluno
crítico que se articulava na Revista In-
de Metz, Suess ainda observa que a “‘nova
ternacional Concilium”, acrescenta.
Teologia Política’ nunca será teologia
partidária no sentido estreito de aderir a Paulo Suess é doutor em Teologia
um ou outro partido, jamais mediadora Fundamental, fundador do curso de
entre partes conflitantes ou clericaliza- Pós-Graduação em Missiologia, na en-
ção da política”. Isso porque se configura tão Pontifícia Faculdade Nossa Senho-
como “uma teologia que procura resgatar ra da Assunção, em São Paulo, assessor
a teologia da privacidade burguesa, que teológico do Conselho Indigenista Mis-
separa a religião da sociedade, e da anis- sionário - Cimi e professor em várias
toricidade metafísica e universal, alheia à Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-
responsabilidade histórica”. Graduação em Missiologia. Participou
Na entrevista a seguir, concedida por do Sínodo dos Bispos sobre Amazônia,
e-mail à IHU On-Line, Suess ainda como perito. Entre suas últimas publi-
detalha: “a ‘nova Teologia Política’, uni- cações, destacamos Introdução à Teo-
versalmente contextualizada, é teologia logia da Missão (Petrópolis: Vozes, 4a
pública que se intromete nos conflitos ed., 2015); Dicionário de Aparecida.
concretos e que dá ao grito dos pobres 40 palavras-chave para uma leitura
uma memória e no abandono do crucifi- pastoral do Documento de Aparecida
cado e dos crucificados a perspectiva de (São Paulo: Paulus, 2007); Dicioná-
uma correção possível”. Para ele, é nesse rio da Evangelii gaudium (São Paulo:
grito que pode se encontrar a canção, a Paulus, 2015); Missão e misericórdia -
eucaristia em que se celebra não somen- A transformação missionária da Igre-
te a morte, mas a ressurreição. Ou seja, ja segundo a Evangelii gaudium (São
é manter a esperança de que o fim não é Paulo: Paulinas, 2017); e Dicionário
um ato consumado. “O Apocalipse não é da Laudato si’ – Sobriedade feliz (São
uma mensagem catastrófica definitiva. É Paulo: Paulus, 2017).
uma advertência. Alzheimer pode ser não Confira a entrevista.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

“O Apocalipse não é uma mensagem


catastrófica definitiva. É uma
advertência. Alzheimer pode ser não
só uma doença degenerativa, mas
paradigmática da nossa civilização”

IHU On-Line – Qual é o lega- resiste ao esquecimento imposto sível e, talvez, o início de uma inter-
do teológico de Johann Baptist (amnésia) por regimes autoritá- rupção, sem suspender a irritação
Metz? rios que obrigam a humanidade a da pergunta de Jó4: “Até quando?”
passar pelos meandros do rio Lete, Tempo não é passagem pela sala
Paulo Suess – O fio condutor da
o rio do esquecimento, como uma de espera da história, devidamen-
teologia de Johann Baptist Metz1, ao
manada de bois para o matadouro: te tranquilizado por uma esperan-
qual ele deu o nome “nova Teologia
escravidão, colonização, Auschwitz2, ça que aguarda o essencial depois.
Política”, é como um meridiano en-
Hiroshima3, killing fields de Cambo- No tempo do grito há canção e na
tre dois polos, entre o sofrimento
ja – esqueçam! O sofrimento exige eucaristia celebramos morte e res-
humano e a afirmação da existência surreição “enquanto esperamos a
opções, uma prática transformadora
de Deus (Teodiceia). Como articular vossa vinda”, enquanto celebramos
e a participação das vítimas nessas
estes dois polos: a bondade de um uma festa de espera que tenta an-
transformações. Numa aula, Metz
Deus amor e a existência do mal e tecipar a Sua vinda e radicaliza sua
definiu uma vez assim o papel da
do sofrimento? Como podemos ain-
fé em sua teologia: “Fé é práxis em encarnação, enquanto o sofrimento 7
da falar de uma história de salvação ainda não é consumado. Pode ser
história e sociedade. Essa práxis se
e de um Deus onipotente diante de que a destruição da natureza seja o
compreende como esperança solidá-
uma história abismal de sofrimen- prelúdio da destruição apocalípti-
ria (memória perigosa) no Deus dos
to? Entre esses dois polos, a “nova ca da humanidade. Contudo, ainda
vivos e mortos, que resiste à divisão
Teologia Política” nunca será teolo- não é consumado. O Apocalipse não
dos processos histórico-sociais no
gia partidária no sentido estreito de é uma mensagem catastrófica defi-
sentido de uma ‘história dos ven-
aderir a um ou outro partido, jamais nitiva. É uma advertência. Alzhei-
cedores’, de uma utopia de justiça
mediadora entre partes conflitantes mer pode ser não só uma doença
universal exclusivamente para as
ou clericalização da política, mas degenerativa, mas paradigmática
gerações vindouras, sem incluir os
uma teologia que procura resgatar da nossa civilização.
mortos”. Nesta postura apocalíptica
a teologia da privacidade burguesa,
e tensa, a fé encontra sua identidade
que separa a religião da socieda-
em contraste com esquemas evolu-
de, e da anistoricidade metafísica e IHU On-Line – Pode nos con-
cionistas ou idealistas.
universal, alheia à responsabilidade tar como foi sua relação pesso-
histórica. A “nova Teologia Política”, univer- al e profissional com Metz?
salmente contextualizada, é teologia
A “nova Teologia Política” contes- Paulo Suess – Depois de uma
pública que se intromete nos confli-
tou a afirmação da inocência políti- presença prolongada “com as me-
tos concretos e que dá ao grito dos
ca da Igreja (neutralidade, indife- pobres uma memória e no abando- 4 Jó: personagem do livro mais antigo da Bíblia, o Livro
rença). O sofrimento humano tem no do crucificado e dos crucificados de Jó do Antigo Testamento. De acordo com a tradição,
causas, vítimas e perpetradores be- a perspectiva de uma correção pos-
teria vivido na terra de Uz, local que até hoje não foi iden-
tificado ao certo pela ausência de evidências e pelo fato
neficiados. A “memoria passionis” de a narrativa bíblica do mesmo se apresentar mais como
uma poesia épica do que um relato factual. Sua existên-
2 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo de campos cia como pessoa histórica é motivos de muitos debates,
1 Johann Baptist Metz (1928-2019): teólogo católico ale- de concentração localizados no sul da Polônia, símbolos principalmente entre rabinos intérpretes da Torá (os cinco
mão, professor de Teologia Fundamental, professor emé- do Holocausto perpetrado pelo nazismo. A partir de 1940, primeiros livros da Bíblia hebraica) muito embora ele seja
rito na Universidade de Münster, Alemanha. Aluno de Karl o governo alemão comandado por Hitler construiu vários citado como pessoa histórica no livro de Ezequiel (capí-
Rahner, desfiliou-se da teologia transcedental de Rahner, campos de concentração e um campo de extermínio nesta tulo 14) e, mais tarde, mencionado na epístola de Tiago
em troca de uma teolofgia fundamentada na prática. Metz área, então na Polônia ocupada. Houve três campos princi- (5:11). O IHU, na seção Notícias do Dia, em seu sítio, pu-
está no centro de uma escola da teologia política que in- pais e 39 auxiliares. Como todos os outros campos de con- blicou inúmeros textos sobre Jó. Entre eles “Elogio de Jó,
fluenciou fortemente a Teologia da Libertação. É um dos centração, os campos de Auschwitz eram dirigidos pela SS herói moderno”, disponível em http://bit.ly/38LjBMO; “Ter
teólogos alemães mais influentes no pós Concílio Vaticano comandada por Heinrich Himmler. (Nota da IHU On-Line) a coragem de Jó”, disponível em http://bit.ly/35BJGfH;
II. Seus pensamentos giram ao redor de atenção funda- 3 Hiroshima: é a capital da província de Hiroshima, no Ja- “A esperança de Jó. Artigo de Roberto Mela”, disponível
mental ao sofrimento de outros. As chaves de sua teologia pão. Em 6 de agosto de 1945, foi a primeira cidade do mun- em http://bit.ly/35sLKX0; “Jó e Hécuba de Eurípedes: uma
é memória, solidariedade, e narrativa. Dele publicamos do arrasada pela bomba atômica de fissão denominada reflexão sobre a dor humana”, disponível em http://bit.
uma entrevista na 13ª edição, de 15-04-2002, disponível Little Boy, lançada pelo governo dos Estados Unidos, resul- ly/2YTXU91. Acesse mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/
em http://bit.ly/ihuon13. (Nota da IHU On-Line) tando em 250 000 mortos e feridos. (Nota da IHU On-Line) noticias. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 546
ENTREVISTA

lhores intenções”, porém no fundo, relevante entre pastoral, teologia e Marx7, [Ernst] Bloch8, Walter Benja-
despreparado, no baixo-Amazonas, realidade sociocultural. Nessa épo- min9 e [Theodor] Adorno10 para en-
senti cada vez mais o veto da reali- ca procurei Johann Baptist Metz, tender de que essas cabeças, verme-
dade contra a teologia aprendida. A por causa de um artigo sobre “Igre- lhas de ira santa, que saíram da sala
passagem de uma teologia de res- ja e Povo”, que ele tinha publicado do chefe, falaram. Através dessas
postas, como geralmente se recebe na revista Stimmen der Zeit (Dez. trovoadas e relâmpagos acadêmicos,
nas Faculdades de Teologia, para 1974). Nesse artigo Metz falou da a constelação estrelar movimentava-
uma Teologia de perguntas configu- ruptura entre a fé do povo e seu se permanentemente, sem se desfa-
ra um choque cultural. Aprendi que sofrimento e a doutrina oficial da zer. Acompanhava o mestre em for-
o paradigma “missão e desenvolvi- Igreja com respostas descontextu- mação ampliada e paralitúrgica para
mento” não rompe com a visão, nem alizadas para tudo. Como a Igreja a sala de aula.
com a prática colonial de 500 anos. pode tornar-se uma voz que não só
Aulas com Metz foram como es-
Era fácil conseguir para o “nosso” exige redistribuição dos bens e re-
treias no Teatro Municipal de São
desenvolvimento o aval do povo, conhecimento dos outros, mas um
Paulo. No início, uma casa superlo-
que encontrou os modelos de seu lugar onde as diferentes culturas
tada e suave nervosidade; durante a
progresso na cidade mais próxima, são reconhecidas e os bens redis-
apresentação, silêncio místico, devo-
em Santarém, Belém ou Manaus. tribuídos através de uma partici-
Éramos aplaudidos com as constru- pação e partilha plena dos pobres
ções que levantávamos sem cessar: e dos outros? 7 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, eco-
nomista, historiador e revolucionário alemão, um dos
ambulatório, escolas, capelas, casas, pensadores que exerceram maior influência sobre o
Essa Igreja não seria mais uma pensamento social e sobre os destinos da humanidade
quadras de esporte.
Igreja para o povo, mas uma Igreja no século 20. A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de
autoria de Leda Maria Paulani, tem como título A (anti)
Na euforia desenvolvimentista, do povo. Os canais de comunica- filosofia de Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173l-
FhO. Também sobre o autor, a edição número 278 da
as estruturas paroquiais torna- ção entre povo e Igreja, dizia Metz, revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada A fi-
ram-se cada vez mais pesadas e, estão entupidos através de uma nanceirização do mundo e sua crise. Uma leitura a partir
de Marx, disponível em https://goo.gl/7aYkWZ. A entre-
financeiramente, insustentáveis. teologia distanciada por causa de vista Marx: os homens não são o que pensam e desejam,
mas o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Fi-
Por causa das grandes distâncias, seus padrões científicos, geografi- gueira, foi publicada na edição 327 da IHU On-Line, de

8 nem as revoltas estudantis de Pa- camente distantes e historicamen- 3-5-2010, disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU
On-Line preparou uma edição especial sobre desigual-
ris e Rio de Janeiro, nem a ditadu- te cristalizados através de uma dade inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no
Século XXI, que retoma o argumento central de O Capi-
ra militar de Brasília nos incomo- hermenêutica do Norte. Eu tinha a tal, obra de Marx, disponível em http://www.ihuonline.
daram muito. Mesmo Medellín 5, impressão que aqui falava alguém unisinos.br/edicao/449. A revista IHU On-Line, edição
525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o ambiente
que em 1968 procurou inserir o que conhecia a Amazônia. Arrumei fabril e o mundo neural de redes e conexões, em cele-
Vaticano II na realidade latino-a- minha mala e aterrissei em Müns- bração aos 200 anos do nascimento do pensador, está
disponível em ihuonline.unisinos.br/edicao/525. (Nota
mericana através do paradigma ter, em maio de 1976, onde entre- da IHU On-Line)
8 Ernst Bloch (1885 —1977) foi um dos principais filóso-
da libertação e da opção pelos po- guei, em dezembro do mesmo ano, fos marxistas alemães do século XX. Escreveu durante sua
bres, para nós, na distante Amazô- minha tese de doutorado sobre o vida sobre os mais diversos assuntos, mas especialmente
sobre utopia, pelo qual hoje é conhecido. Exerceu uma
nia, aconteceu anos mais tarde. Na “Catolicismo popular no Brasil” influência difusa em diferentes ambientes intelectuais:
Theodor W. Adorno, Walter Benjamin, os teólogos Jürgen
época, vivíamos um certo atraso (Ed. Loyola, 1979). Moltmann, Johann Metz e Gustavo Gutiérrez (e com ele
de informação que se tornou um a Teologia da Libertação), o movimento ecologista na
Alemanha, Herbert Marcuse, Fredric Jameson, Hans Heinz
atraso pastoral. Senti que, com a Experiência em Münster Holz , dentre outros. (Nota da IHU On-Line)
9 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi
missão desenvolvimentista, entra- refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser cap-
ria cada vez mais num beco sem Nesses poucos meses em Münster, turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à

saída. Como articular Comunida- participei de uma constelação de co- Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente
inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt
des de Base com festas patronais laboradores em torno do mestre que Brecht, como pelo místico judaico Gershom Scholem.
Conhecedor profundo da língua e cultura francesas,
que instrumentalizaram a religio- não se ajoelharam diante dele. Perio- traduziu para o alemão importantes obras como Qua-

sidade popular como um pronto dicamente submeteram seus argu- dros parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca
do tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho,
socorro transcendental para pro- mentos a uma contestação recíproca combinando ideias aparentemente antagônicas do
idealismo alemão, do materialismo dialético e do mis-
blemas de saúde nas comunidades e contaram com o protesto bávaro de ticismo judaico, constitui um contributo original para
e financeiras da paróquia? Metz. Nós, os ouvintes na antessala, a teoria estética. Entre as suas obras mais conhecidas,
estão A obra de arte na era da sua reprodutibilidade
tivemos que juntar todo o nosso sa- técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940)
Em 1974, resolvi sair da região ber sobre Tomás de Aquino6, [Karl] e a monumental e inacabada Paris, capital do século
XIX, enquanto A tarefa do tradutor constitui referência
em busca de uma articulação mais incontornável dos estudos literários. Sobre Benjamin,
confira a entrevista Walter Benjamin e o império do ins-
tante, concedida pelo filósofo espanhol José Antonio
Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em http://
5 Documento de Medellín: Em 1968, na esteira do 6 Tomás de Aquino (1225-1274): padre dominicano, bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line)
Concílio Vaticano II e da encíclica Populorum Progres- teólogo, distinto expoente da escolástica, proclama- 10 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólo-
sio, realiza-se, na cidade de Medellín, Colômbia, a II do santo e cognominado Doctor Communis ou Doctor go, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do
Assembléia Geral do Episcopado Latino-Americano que Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou
dá origem ao importante documento que passou a ser síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mun- conhecido no mundo intelectual, em todos os países, em
chamado o Documento de Medellín. Nele se expressa do, introduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escri-
a clara opção pelos pobres da Igreja Latino-Americana. na Idade Média, na escolástica anterior. Sistematizou o to junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Insti-
A conferência foi aberta pessoalmente pelo papa Paulo conhecimento teológico e filosófico de sua época em tuto de Pesquisa Social, que deu origem ao movimento
VI. Era a primeira vez que um papa visitava a América suas duas Summae: Summa Theologiae e Summa Contra de idéias em filosofia e sociologia que conhecemos hoje
Latina. (Nota da IHU On-Line) Gentiles. (Nota da IHU On-Line) como Escola de Frankfurt (Nota da IHU On-Line)

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ção e reverência no ar; no final, bati- Neste contexto, quero lembrar o Aberta aos cardeais alemães, escre-
das acadêmicas nos bancos reprodu- “Memorando de teólogos alemães veram, que em 1978 partiram para a
ziram o consentimento emocional. ocidentais a respeito da Campanha eleição de João Paulo II? Na época,
Atrás da radicalidade das palavras, contra a Teologia da Libertação” Metz e Rahner profeticamente pos-
os ouvintes sentiram a fidelidade (21.11.1977). Metz era um dos auto- tularam: “O futuro papa da nossa
ao Evangelho e o horizonte de uma res do “Memorando”, que era uma Igreja deve ser um papa dos pobres
Igreja nova, católica e inculturada, declaração de solidariedade à Igreja e dos oprimidos do mundo: não um
pluricultural e multiétnica que Metz latino-americana e aos seus teólogos. papa burguês, cosmopolita e escla-
chamava de policêntrica. Estes, desde Medellín (1968) não só recido; nem um papa que conserva
foram perseguidos pelas ditaduras o status quo eclesiástico; tampouco
Todos esses anos que se seguiram
militares, mas também ideologica- um papa que serve como um palia-
ficamos em contato solto.
mente combatidos por publicações e tivo social. Sua opção pelos pobres e
Em 2006, Metz me enviou seu úl- congressos organizados com o apoio oprimidos significará seguimento de
timo livro “Memoria Passionis”11, financeiro de certos setores católicos Jesus [...]. Para nós se tornaria um
com uma dedicatória. Em 2008, a alemães. Os membros do “Círculo de ‘aborrecimento produtivo’, um líder
“constelação” em torno do mestre estudos Igreja e Libertação” reagi- daquela conversão [...], daquela re-
me convidou para fazer a palestra ram ao Memorando. “Metz”, escre- jeição da prosperidade, sem a qual
festiva por ocasião dos seus 80 anos. veram, “com sua ‘Teologia Política’, não pode haver comunhão de mesa
No ano passado, em 2018, já mar- está sentado, por um lado, entre as entre pobres e ricos”15.
cado pela idade avançada, quando cadeiras da mais radical ‘Teologia
celebrou seus 90 anos, consegui me da Libertação’, que lhe atesta uma Inculturação da Teologia
despedir dele. Dia 2 de dezembro de distância total da práxis, e, por ou- Política de Metz
2019, Johann Baptist Metz passou tro lado, da Doutrina Social, que ele
pela ponte que ele construiu na Me- acusa de uma falta de engajamento Os alunos de Metz, que retorna-
moria Passionis, para a eternidade. que emerge do centro e da radicali- ram à América Latina, incultura-
dade da fé cristã”13. ram a Teologia Política de Metz em
seus diferentes contextos e foram
IHU On-Line – Como você Faz dois anos que liguei para Bap- logo considerados teólogos da liber- 9
percebe a relação entre as re- tist Metz, agradecendo seu gesto tação. O que a academia, com suas
flexões teológicas de Metz e a solidário. Na época do Memorando, reflexões teóricas e, por vezes, sem
Teologia da Libertação? quem nos teria dito que 40 anos mais sujeito concreto, separou, a inserção
tarde poderíamos entoar a canção na vida cotidiana latino-america-
Paulo Suess – A “nova Teologia do velho Simeão, que poderíamos na uniu: a proximidade à pastoral
Política” de Metz, por seu carisma partir em paz porque nossos olhos e setores proféticos da hierarquia,
pessoal e por ser o titular de uma viram algo da luz de solidariedade e a militância junto ao povo pobre e a
cadeira acadêmica, era mais perso- do amor aos pobres na Igreja insti- descolonização do Outro em países
nalizada que a Teologia da Liber- tucional que tempos atrás olhou com outrora colonizados.
tação, que tinha características de ceticismo aos nossos escritos? Quem
uma escola militante que resistiu às teria na época pensado em Jorge A Igreja institucional discutiu com
ditaduras latino-americanas. Uma Mario Bergoglio, o então provincial ceticismo as teses de Metz. Em 1979,
era mais acadêmica, outra mais nar- dos Jesuítas na Argentina, que cor- o então cardeal de Munich, Joseph
rativa, portanto mais próxima à vida responderia exatamente ao perfil Ratzinger, impediu Metz, apesar de
cotidiana dos leitores. Entre ambas que Metz e Rahner14, numa Carta ser o primeiro na lista da Faculdade
as teologias havia uma solidariedade de Teologia, de assumir a cadeira
fundamental e um encontro crítico 13 Studienkreis Kirche und Befreiung, Angriff und Abwehr. de teologia de sua arquidiocese. No
que se articulava na Revista Interna- Berichte, Kommentare, Dokumente zum Streit um Adve- Katholikentag de Berlim, em junho
niat und die `Theologie der Befreiung´, Pattloch, Aschaf-
cional Concilium12. fenburg, 1978, p. 15. (Nota do entrevistado) de 1980, Metz, pela primeira vez,
14 Karl Rahner (1904-2004): importante teólogo católi-
co do século XX. Ingressou na Companhia de Jesus em não constava mais do programa ofi-
1922. Doutorou-se em Filosofia e em Teologia. Foi peri- cial do evento. Fez parte da pauta
11 Herder Verlag GmbH (2017). A obra é comentada em to do Concílio Vaticano II e professor na Universidade de
diversos texto nas páginas do IHU. Entre eles, “Metz: o Münster. A sua obra teológica compõe-se de mais de 4 mil alternativa da “Kirche von unten”
problema-Deus em versão política”, disponível em http:// títulos. Suas obras principias são: Geist in Welt (O Espírito
bit.ly/36PZgEH; e “Metz e Gutiérrez: duas teologias irmãs. no mundo), 1939, Hörer des Wortes (Ouvinte da Palavra),
(“Igreja de baixo”, “Igreja de base”),
90 anos de Johann Baptist Metz, pai da “Teologia Políti- 1941, Schrifften zur Theologie (Escritos de Teologia). Em em que acusou com a sagacidade e
ca””, disponível em http://bit.ly/2sAd4E5. (Nota da IHU 2004, celebramos seu centenário de nascimento e a Unisi-
On-Line) nos dedicou à sua memória o Simpósio Internacional O veemência, que lhe eram próprias,
12 Revista Internacional de Teologia Concilium: teve Lugar da Teologia na Universidade do século XXI. Veja
seu primeiro número publicado no dia 15 de janeiro de Karl Rahner. A busca de Deus a partir da contemporanei-
1965, antes do encerramento do Concílio Vaticano II, que dade, edição 446 da IHU On-Line, de 16-06-2014, nos- também o Cadernos Teologia Pública n° 5, Conceito e
ocorreu no dia 8 de dezembro de 1965. Na época, o pri- sa edição mais recente sobre o assunto. Dez anos atrás, Missão da Teologia em Karl Rahner, do Prof. Erico Hammes,
meiro número foi entregue a todos os padres conciliares. a edição número 102, da IHU On-Line, de 24-05-2004, disponível em http://bit.ly/18XbPcU. Em 2014 a IHU On-Li-
Entre os colaboradores daquela número, estava o teólogo dedicou a matéria de capa à memória de seu centenário, ne publicou a edição 446 intitulada Karl Rahner. A busca de
Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), autor do artigo em http://bit.ly/maOB5H. Neste meio tempo, a edição Deus a partir da contemporaneidade, disponível em http://
“As implicações pastorais da doutrina da colegialidade dos 297, de 15-06-2009, Karl Rahner e a ruptura do Vaticano II, bit.ly/112CjfG. (Nota da IHU On-Line)
bispos”. A Concilium passaria a ser qualificada como uma também retomou o tema e está disponível para download 15 Für einen Papst der Armen und Unterdrückten dieser
publicação “de ruptura” com a tradicional teologia católi- em http://bit.ly/o2e8cX. Além de diversos artigos sobre o Welt“, Süddeutsche Zeitung, Nr. 186 (16.08.1978), p. 8.
ca. (Nota da IHU On-Line) pensamento do teólogo ao longo do tempo, destacamos (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 546
ENTREVISTA

a arrogância da lógica desenvolvi- teológico se manifestou uma sensibi- retoma esse sentimento de estupe-
mentista europeia. Contra teologias lidade crescente face a qualquer teo- fação: “Toda cultura depois de Aus-
neoescolásticas e modelos liberais diceia. Quem fala do Deus de Jesus, chwitz, inclusive a sua crítica urgen-
aburguesados defendeu “Teologias tem que aceitar os questionamentos te, é lixo”18.
Políticas da Libertação” e o modelo de certezas religiosas pelo sofrimen-
Metz confessou que não foi a teolo-
correspondente da Igreja como ar- to dos outros. Desde o início se mos-
gia, mas a atmosfera dos anos 1960,
ticulação de Comunidades Eclesiais tram os vestígios do novo.
que o empurrou com sua teologia à
de Base.
confrontação com a história concre-
Metz aprendeu rápido, também ta de “Auschwitz”, o maior campo de
dos alunos, que o aproximaram da
América Latina. Tinha antenas sin-
“Tudo está in- concentração com mais de um mi-
lhão de pessoas assassinadas. Onde
tonizadas com a academia, sem ser terligado e estava Deus que permitiu isso? Em
escravo da ciência. Sabia que certos 1961, aconteceu o julgamento de
pensamentos só podem ser trans- questionado: Adolf Eichmann19, a partir de 1963

a história da
mitidos seguindo as sendas dos po- ocorreram os processos de Aus-
etas ou respirando o faro do povo. chwitz, em Frankfurt, e em 1968 os
Johann Baptist Metz se tornou cada
vez mais um dos nossos! paixão real da protestos mundiais da juventude. A
partir daí, a pergunta central não era

humanidade mais somente: “Onde estava Deus


naquela noite de Auschwitz?”; mas
e a paixão de
IHU On-Line – Como a experi- “Onde estavam as pessoas huma-
ência da Segunda Guerra Mun- nas, onde estava a humanidade?”.
dial impactou a produção teo-
lógica de Metz? Cristo, a res- O olhar às vítimas forjou o olhar aos
perpetradores e sua visão perversa
Paulo Suess – Com 16 anos ainda,
Metz ainda foi recrutado para parti-
ponsabilida- do ser humano. O que seria se um
dia a humanidade pudesse somente
10 cipar dos últimos meses da Segunda
Guerra Mundial. Entrincheirado na
de recíproca se defender contra as barbaridades
da história pela arma do esqueci-
fronteira de guerra, seu comandante e a relevân- mento? Existem feridas que o tempo
não cura. Numa cultura da amnésia
enviou o jovem soldado à retaguarda
com uma mensagem para o quartel- cia pública” e num parque do esquecimento –
onde fica a justiça maior? O que nos
general. Quando voltou à sua unida-
de, encontrou só mortos. Esse fundo pode defender contra a repetição da
biográfico, Metz contou aos seus catástrofe de Auschwitz, se não a
alunos em diferentes ocasiões, per- IHU On-Line – Como ele refle- confrontação e a memória “da noi-
manece até hoje como uma espécie tiu sobre a questão levantada te em que foi entregue” (1Cor 11,23)
de fundo musical de todos os seus te- após a Segunda Guerra: como com a noite histórica de Auschwitz e
mas teológicos desde o fracasso dos é possível, depois da catástro- de outras noites da conquista, de Hi-
sonhos de infância até a presença do fe humana de Auschwitz, um roshima, Vietnã e Camboja?
perigo e do tempo limitado, desde as discurso, uma teologia sobre Depois de Auschwitz, a teologia
metáforas apocalípticas de uma his- Deus? deve questionar as estruturas po-
tória da fé que pode fracassar até sua líticas e sociais que permitem o so-
Paulo Suess – No início da refle-
desconfiança de uma escatologia que frimento e a injustiça. Tudo está
xão sobre a catástrofe de Auschwitz
se reveste de uma neblina mítica e interligado e questionado: a história
estava Adorno, que já em seu texto
harmoniosa que idealiza o fracasso e da paixão real da humanidade e a
Crítica cultural e sociedade, de 1949,
o sofrimento que grita ao céu. paixão de Cristo, a responsabilidade
escreveu: “escrever um poema após
O perigo dessa “escatologia bem Auschwitz é um ato bárbaro, e isso
passada” é o esquecimento, o desa- corrói até mesmo o conhecimento concretizado. Inscrita na tradição da Teoria Crítica, a Dialé-
tica Negativa recupera a questão central dessa vertente: a
parecimento e a invisibilidade das de por que hoje se tornou impossí- emancipação do homem. (Nota da IHU On-Line)
vítimas. Falar do Deus das tradições vel escrever poemas”. Mais tarde, 18 ADORNO, Th.W. Dialética Negativa, Rio de Janeiro,
2009, p. 304. (Nota do entrevistado)
bíblicas, porém, significa “dar uma em sua Dialética Negativa17, Adorno 19 Otto Adolf Eichmann (1906 –1962): foi um SS-Obers-
turmbannführer (tenente-coronel) da nazi, e um dos
memória aos gritos e ao tempo sua principais organizadores do Holocausto. Eichmann foi
temporalidade, quer dizer, um pra- 17 Dialética negativa (em alemão, Negative Dialektik): designado pelo SS-Obergruppenführer (general/tenente-
livro do filósofo, musicólogo e sociólogo alemão Theodor general) Reinhard Heydrich para gerir a logística das de-
zo”16. No decorrer de seu trabalho W. Adorno (1903-1969), um dos expoentes da Escola de portações em massa dos judeus para os guetos e campos
Frankfurt. O livro foi lançado em 1966. Dialética Negativa de extermínio das zonas ocupadas pelos alemães na Euro-
é uma das obras fundamentais de Adorno e, dentre os pa de Leste durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1960,
seus trabalhos mais sistêmicos, é o mais bem acabado. Na foi capturado na Argentina pela Mossad, os serviços se-
16 METZ, J.B. Mit dem Gesicht zur Welt. Eine theologisch- origem, dever-se-ia constituir em um dos três pilares do cretos de Israel. No seguimento de um muito publicitado
biographische Auskunft, in: Jahrbuch Politische Theologie, pensamento do filósofo, juntamente com Teoria Estética e julgamento em Israel, foi considerado culpado por crimes
Bd. 5, 2008 , p. 3. (Nota do entrevistado) um projeto sobre filosofia moral, que nunca chegou a ser de guerra e enforcado em 1962. (Nota da IHU On-Line)

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recíproca e a relevância pública. Sua Era um tópico teológico discutido an- A escola dominicana, que no Va-
Teologia Fundamental ultrapassa a teriormente, sobretudo nos tratados ticano II, através de Chenu26 e
antiga Apologética. Sua Teodiceia e escatológicos por teólogos protestan- Congar27, forjou, ao menos parcial-
Escatologia não são chaves de ouro. tes como Albert Schweitzer22, Karl mente, a passagem de uma teologia
São refugiados na parábola apoca- Barth23, Erik Peterson24 e Ernst Kä- dedutiva a uma teologia indutiva
líptica do juízo final (Mt 25,31-46) semann25, para citar os mais conhe- (cf. Gaudium et spes), abriu cami-
que é um apelo à responsabilidade, cidos. Nesse contexto, Metz não cita nhos de salvação ao lado e além do
aqui e agora: “Não existe sofrimento nenhum deles. Ele situa seu agir po- monopólio salvífico. A metodologia
que não tem nada a ver conosco”20. lítico entre um realismo imediatista e do ver-julgar-agir, as opções pelos
um idealismo, que terceiriza os pro- pobres e os Outros, as teologias e
blemas de hoje para um futuro mítico pastorais que trabalham com sujei-
IHU On-Line – Quais foram de uma “terra sem males”. Ele cobra tos concretos (mulheres, migrantes,
as contribuições de Metz para da teologia uma reflexão sobre aquilo lavradores, afro-americanos, indíge-
superar as justificativas teoló- que ainda falta, sobretudo lembran- nas) são, com toda a sua diversidade
gicas de Carl Schmitt para o to- do o sofrimento dos injustiçados de e reelaboração dos seus pressupos-
talitarismo? Como sua teologia ontem e hoje e insistindo numa “me- tos filosóficos e culturais, inspiradas
política se contrapõe à teologia mória perigosa” alimentada por uma por essa “virada antropológica”. Ela
política de Schmitt? esperança histórica contra toda espe- inquietou a Igreja e até hoje convi-
Paulo Suess – A resposta de Metz rança. Um outro mundo é possível e vem setores que consideram a his-
a Carl Schmitt21 é a “reserva escato- é urgente. tória não como um lugar teológi-
lógica” e a esperança historicamente co, mas como sala de espera para a
situada. Carl Schmitt (1888-1985), eternidade, e setores para os quais a
IHU On-Line – Quais foram realidade e a encarnação nela é mais
um especialista em direito constitu-
os teólogos que influenciaram importante que a ideia sobre ela (cf.
cional e internacional, publicou em
a produção teológica de Metz? EG 231-233).
1922 um livro com o título “Teologia
Política – Quatro capítulos sobre a Paulo Suess – A biografia teoló- No decorrer do seu itinerário teoló-
doutrina da soberania”, reeditado gica de Metz, como ele nos conta, é gico, o pensamento bíblico de Metz,
em 1934. O livro inicia com a famo- sobretudo marcada por Karl Rahner 11
com sua razão anamnética, que dá
sa frase: “Soberano é quem decide e sua “virada antropológica”. A reve- ao sofrimento uma memória é bene-
sobre o estado de exceção”. Para lação bíblica de Deus não deve ser ficiado por essa “virada antropológi-
Schmitt, um ditador poderia repre- tratada como um mero tema eclesial, ca” em detrimento do pensamento
sentar a vontade popular melhor que mas como um diálogo inserido na grego, que aposta na passagem pelo
um parlamento e cada Constituição história voltada ao mundo e à huma- rio Lete. Sem descartar Atenas, é Je-
deveria ter previsões de soberania da nidade. A desprivatização da fé e do rusalém, é o pensamento bíblico que
ditadura. Embora considerado sus- seu linguajar, e a purificação da filo- sustenta todas as teses teológicas
tentáculo do autoritarismo jurídico sofia transcendental (Kant) de pres- de Metz28. Essa reflexão já tem seu
e ideológico de Hitler, teve dificulda- supostos epistemológicos abstratos início em 1962, com sua dissertação
des com o regime nazista. (aprioris), era um dos passos decisi- teológica (Christliche Anthropozen-
vos da Teologia Política voltada com trik) orientada por Karl Rahner.
Metz não tinha registrado essa “teo-
seu rosto para o mundo, a história,
logia política”, que na época, 20 anos
a sociedade e o sofrimento do outro.
após o final da segunda guerra mun-
Inspirada foi essa virada em Tomás IHU On-Line – Que diálogos
dial, não foi discutida nos seminários
de Aquino que capitaneou a virada Metz estabeleceu com a filoso-
da faculdade teológica. Metz não se
do idealismo teológico marcado por fia, em especial com teóricos
envolveu numa polêmica explícita
Platão e Agostinho para Aristóteles. marxistas e representantes da
com Schmitt, mas respondeu, impli-
Escola de Frankfurt?
citamente, com a figura teológica da
“reserva escatológica”, que é política 22 Albert Schweitzer (1875-1965): teólogo, músico, fi-
lósofo e médico alsaciano. Formou-se em Teologia e Fi- 26 Marie-Dominique Chenu (1895 - 1990): teólogo
no sentido de limitar o alcance do losofia na Universidade de Strasbourg, onde atuou como dominicano francês, foi professor de teologia medieval
docente. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1952. (Nota (1920-1942) e diretor (1932-1942) da Universidade de Le
agir político e eclesial e “reservar” da IHU On-Line) Saulchoir (Bélgica), cargo do qual foi destituído por de-
para Deus as intervenções decisivas 23 Karl Barth (1886-1968): teólogo cristão-protestante,
pastor da Igreja Reformada, e um dos líderes da teologia
cisão do Santo Oficio, que incluiu no Índice sua obra Le
Saulchoir, uma escola de teologia (1937). Em suas obras
na história para “um grande finale”. dialética e da neo-ortodoxia protestante. (Nota da IHU A fé na inteligência e O Evangelho na história (1964), de-
On-Line) fende a liberdade na investigação teológica e na ação
24 Erik Peterson Grandjean (1890-1960): teólogo católi- missionária da Igreja. Aplicou o método sociológico à
20 Cf. rodapé n. 3, p. 9. (Nota do entrevistado) co alemão. De formação protestante, converteu-se ao ca- análise eclesiástica (A doutrina social da Igreja como ide-
21 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e tolicismo em 1930, especializando-se em patrística. Ele era ologia, 1979). Seu pensamento influenciou no movimento
professor universitário alemão. É considerado um dos um opositor do nazismo e teve uma grande influência so- de reforma que culminou no Concilio Vaticano II, em cujas
mais significativos e controversos especialistas em direito bre muitos teólogos do século 20. (Nota da IHU On-Line) sessões participou como perito. (Nota do IHU On-Line)
constitucional e internacional da Alemanha do século 20. 25 Ernst Käsemann (1906-1998): Käsemann protestou con- 27 Yves-Marie-Joseph Congar (1904 —1995) foi um teó-
A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o tra o desprezo de Bultmann no que tange à base histórica logo dominicano e Cardeal francês. É considerado um dos
regime nacional-socialista. O seu pensamento era firme- da fé cristã, reexaminou a questão do mito e sofreu a influ- maiores eclesiólogos do século XX, que abriu a eclesiolo-
mente enraizado na teologia católica, tendo girado em ência da filosofia existencialista em alguns pontos do seu gia católica ao ecumenismo. (Nota da IHU On-Line)
torno das questões do poder, da violência, bem como da pensamento. É autor de O Crucificado e a Sua Igreja de Er- 28 Cf. Metz, J.B., Memoria Passionis, § 16. (Nota do en-
materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line) nst Kasemann (Porto Editora, 2001). (Nota da IHU On-Line) trevistado)

EDIÇÃO 546
ENTREVISTA

Paulo Suess – Metz não copia Em busca de uma herme- vares36 e a mulher de Chicão, cacique
seus ancestrais ou contemporâ- nêutica do Sul do povo Xucuru.
neos teológicos; ele sempre cria a
No dia 31 de maio 2006, Metz me Galdino foi à Brasília para tratar
partir deles. Interdisciplinaridade
mandou a sua obra-síntese: “Me- a demarcação do território de seu
teológica e policentrismo pastoral
moria Passionis”. Eu a recebi dois povo, no sul da Bahia. Após as co-
se complementam. Junto com Karl
meses mais tarde, chegando da “Ro- memorações do Dia do Índio, en-
Rahner, a partir dos anos 60, pro-
maria dos Mártires”, na Prelazia de contrando a sua hospedaria fechada,
cura o diálogo com o marxismo e a
São Félix, de Pedro Casaldáliga32, abrigou-se em uma parada de ôni-
Escola de Frankfurt. Os escritos de
onde tínhamos celebrado a “historia bus. Um grupo de jovens o viu, foi
Walter Benjamin e Adorno, Ernst
passionis” latino-americana. Agra- comprar gasolina, a derramou sobre
Bloch e [Jürgen] Habermas29 foram
deci-lhe com um fragmento da nossa Galdino e o incendiou. Morreu no
nossos interlocutores nos colóquios.
“memoria passionis” sobre o assassi- dia 20 de abril de 1997.
Aos seus assistentes disse repetidas
vezes: “Me tragam o pensamento de- nato de João Bosco Burnier33 (1976), O padre Josimo Tavares foi assas-
les. Depois eu faço a teologia”. na delegacia de Ribeirão Bonito sinado na escada do prédio da Mi-
(MT), onde foi construído um Santu- tra Diocesana de Imperatriz (MA),
Com que fascínio estudávamos as ário dos Mártires, e sobre o assassi- no Dia das Mães, dia 10 de maio de
teses de Walter Benjamin “Sobre o nato de Rudolf Lunkenbein34 (1976), 1986. Josimo era coordenador re-
conceito de história”! Quando vol- que era um dos primeiros conselhei- gional da Pastoral da Terra - CPT, no
tei ao Brasil, em 1977, para lecionar ros do Cimi, assassinado em defesa Bico do Papagaio, marcado por con-
em Manaus, meu primeiro trabalho do território do povo Bororo, junto flitos agrários. Semanas antes do seu
foi traduzir as teses de Benjamin, com Simão Bororo35. Mais de 3 mil assassinato escapou de um atentado
no Brasil ainda desconhecidas e até pessoas participaram dessa romaria. quando teve seu carro perfurado. Na
hoje atuais. Por exemplo, a 6ª Tese: O que me impactou naqueles dias Assembleia Diocesana de Tocanti-
“O dom de atear ao passado a cente- foi a presença de três mulheres com nópolis, em 27 de abril, falou cons-
lha da esperança pertence somente uma relação muito próxima com es- ciente do perigo, livremente: “Agora
àquele historiador que está perpas- ses martírios que celebramos: a mãe estou empenhado na luta pela cau-
12 sado pela convicção de que também de Galdino, líder indígena do povo sa dos pobres lavradores indefesos,
os mortos não estarão seguros diante Pataxó, a mãe do padre Josimo Ta- povo oprimido nas garras dos lati-
do inimigo, se ele for vitorioso. E esse
fúndios. Se eu me calar, quem os de-
inimigo não tem cessado de vencer”30.
fenderá?”.
32 D. Pedro Casaldáliga: bispo prelado de São Félix,
De sua geração, disse Habermas Mato Grosso. É poeta e escritor de renome internacional. Chicão, cacique do povo Xucuru,
por ocasião da morte de seu amigo Quando assume a prelazia de São Felix, em pleno regime
militar, denuncia veementemente o latifúndio e defende a retornou depois de uma longa pe-
Metz, foi “provavelmente o teólo- reforma agrária e o direito indígena à terra. Foi duramen-
te perseguido pelo regime militar. Pe. João Bosco Penido regrinação pelo mundo urbano do
go que com mais paixão trabalhou Burnier, jesuíta, foi assassinado ao lado dele, no dia 12 de Brasil para sua terra, no município
a questão de que maneira se pode outubro de 1976. A edição 137 da IHU On-Line, de 18 de
abril de 2005, publicou uma entrevista com Casaldáliga: O de Pesqueira (PE), onde milagrosa-
ainda depois do holocausto falar de próximo pontificado será um tempo de transição significati-
vo. A edição 89, de 12 de janeiro de 2004, trouxe entrevista mente recuperou a sua saúde pela
Deus“. Adorno, em sua Dialética ne- com o religioso, falando sobre a homologação de terra santa local. Chicão era uma lideran-
gativa (p. 24), talvez acertou melhor contínua para índios. (Nota da IHU On-Line)
33 João Bosco Penido Burnier (1917-1976): sacerdote ça importante nas retomadas das
o que uniu a “nova Teologia Política”, jesuíta que, de 1959 a 1965, respondeu pelos cargos de
terras tradicionais Xucuru, então
de Metz, e a Escola de Frankfurt31: “A mestre de noviços e diretor espiritual dos juniores. Os anos
de sua vida madura foram dedicados à Missão de Diaman- em mãos de fazendeiros de gado.
necessidade de dar voz ao sofrimen- tino/MT, servindo junto aos índios beiços-de-pau e bacairis,
quando participou da coordenação regional do CIMI (Con- Os setores não indígenas da região,
to é a condição de toda a verdade”. selho Indigenista Missionário). Faleceu tragicamente, bale-
ado, enquanto com Dom Pedro Casaldáliga defendia duas
posseiros e fazendeiros, que se be-
mulheres torturadas.(Nota da IHU On-Line) neficiaram das terras indígenas e da
34 Rudolf Lunkenbein (1939 -1976) foi um salesiano
29 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal alemão Don Boscos e missionário no Brasil. Missionário mão de obra dos Xucuru se organi-
estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. salesiano entre os índios Bororo, na aldeia de Meruri, Pe. zaram contra o povo Xucuru. Seis
Herdando as discussões da Escola de Frankfurt, Habermas Rodolfo pôs nessa missão toda sua “jovialidade e amizade,
aponta a ação comunicativa como superação da razão sua serenidade e exatidão na prática religiosa e nos estu- meses antes de ser morto, Chicão
iluminista transformada num novo mito, o qual encobre dos; seu espírito de trabalho e sacrifício”. Sabia muito bem
a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o do risco que corria: “Também hoje o missionário, afirmou, começou a receber ameaças. No dia
logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e in- deve estar disposto a sacrificar sua vida”. “Não há nada 20 de maio de 1998, foi assassinado.
formações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o mais bonito do que morrer pela causa de Deus. Este seria
diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a meu sonho”. Mártir glorioso da nova pastoral indigenista Seu filho Marcos, também ameaçado
ética. (Nota da IHU On-Line) do CIMI, ele deu a vida pelas terras bororo e o índio boro-
30 Löwy, M. (org.). Walter Benjamin: aviso de incêndio. ro Simão, no mesmo martírio, deu a vida pelo missionário de morte, continua o trabalho do pai.
Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, Boi- Rodolfo. (Nota da IHU On-Line) Naquela peregrinação, Dom Pedro
tempo, São Paulo, 2005, p. 65. (Nota do entrevistado) 35 Simão Bororo (1937- 1976): filho legítimo de Teresa
31 Escola de Frankfurt: escola de pensamento formada Okogeboudo e Floriano Utoboga. Quando jovem foi tra- Casaldáliga chamou Marcos ao palco
por professores, em grande parte sociólogos marxistas balhar com garimpeiros brancos nos garimpos do Rio Gar-
alemães. Abordou criticamente aspectos contemporâneos ças. Voltando para Meruri foi convidado para formar parte
e o convidou para fazer a homilia.
das formas de comunicação e cultura humanas. Deve-se à de um grupo de bororo para acompanhar os missionários,
Escola de Frankfurt a criação de conceitos como indústria Padre Pedro Sbardellotto e Irmão Jorge Wörz, na primei-
cultural e cultura de massa. Entre os principais professo- ra residência missionária entre os xavante, na missão de 36 Josimo Morais Tavares (1953 –1986) foi um sacerdote
res e acadêmicos da Escola podemos destacar: Theodor Santa Terezinha, pelos anos 1957-1958. Padre Rodolfo e católico brasileiro, coordenador da Comissão Pastoral da
Adorno (1903-1969), Max Horkmeimer (1885-1973), Wal- Simão foram mortos em 1976. Simão o indígena, foi mor- Terra. Foi assassinado a mando de fazendeiros da micror-
ter Benjamin, Herbert Marcuse (1917-1979), Franz Neu- to ao defender a vida de seu amigo Pe. Rodolfo. (Nota da região do Bico do Papagaio (atual estado de Tocantins) por
mann, entre outros. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) sua defesa dos trabalhadores rurais. (Nota da IHU On-Line)

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De Ribeirão Bonito, onde se en- ria Passionis”) e nossa caminhada Sul. No início e no fim da vida não há
cerrou a “Romaria dos Mártires”, (“Romaria dos Mártires”) têm como um ombro, só chão para se segurar e
para São Paulo se leva mais horas convergência o sofrimento do outro. sentar. São peregrinações com tem-
de viagem do que de São Paulo para Podem ser pontes que permitem po limitado, novamente com pers-
Münster, onde, dia 2 de dezembro, idas e voltas, passar por riachos e pectivas desde o chão, passagens ao
terminou a peregrinação de Johann abismos, caminhos complementares desconhecido, que, no final, cada um
Baptist Metz. Seu livro (“Memo- em busca de uma hermenêutica do percorre só e do seu jeito.■

Leia mais
- Os ecos de Laudato Si’ e o discurso do Papa Francisco no Encontro dos Movimentos
Populares em Santa Cruz de la Sierra. Entrevista com Paulo Suess, publicada na revista
IHU On-Line número 469, de 3-8-2015, disponível em http://bit.ly/2qOHoup.
- Sínodo Pan-Amazônico. O Documento Preparatório e o Questionário - início de um di-
álogo para buscar novos caminhos. Entrevista especial com Paulo Suess, publicada nas
Notícias do Dia de 22-6-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em
http://bit.ly/31jTasJ.
- Por “uma Igreja com rosto amazônico e com rosto indígena”. O Sínodo Pan-Amazôni-
co e a busca de um novo paradigma de evangelização. Entrevista especial com Paulo
Suess, publicada nas Notícias do Dia de 11-5-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
- IHU, disponível em http://bit.ly/2VReu7Z.
- Sínodo Especial para a Amazônia: “Com a ameaça à Amazônia, a esperança do mundo 13
está ameaçada”. Entrevista especial com Paulo Suess, publicada nas Notícias do Dia de
26-7-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2rwDo25.
- Sínodo Pan-Amazônico: “Assim como na Encíclica Laudato Si’, é muito importante
perceber que a Igreja ouve a ciência”. Entrevistas especiais com Paulo Suess e Carlos
Nobre, publicada nas Notícias do Dia de 14-10-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos - IHU, disponível em http://bit.ly/2RNzpJ9.

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REPORTAGEM

Homo Digitalis: a escalada da


algoritmização da vida
Instituto Humanitas Unisinos - IHU realiza XIX Simpósio
Internacional reunindo nomes nacionais e internacionais
e uma série de outras atividades

Ricardo Machado

D
esafiar o futuro é, também, uma forma de frequentá-lo com cons-
ciência das inúmeras questões sobre a vida, em toda sua multipli-
cidade, e ter em conta o que significa ser humano em um mundo
cujo antropocentrismo tem nos levado ao colapso. Em torno deste debate o
Instituto Humanitas Unisinos - IHU realiza o XIX Simpósio Internacional
IHU Homo Digitalis: a escalada da algoritmização da vida, entre os dias 19
e 21 de outubro de 2020.
Com ampla programação, o evento contará com a participação de grandes no-
mes internacionais que estão discutindo temas como o futuro do trabalho, os
novos tipos de organização social dos trabalhadores, a colonialidade do saber, a
Inteligência Artificial e seus impactos na China, bem como as implicações éticas
14 e teológicas da vida humana. Além das conferências haverá, também, oficinas e
envios de trabalhos. Fique atento à página do IHU e não perca os prazos.
Dentre os conferencistas internacionais confirmados estão o Prof. Dr. Anto-
nio Casilli – Telecom Paris – França, Prof. Dr. Felix Stalder – Zurich University
– Suíça, Prof. Dr. Nick Couldry – London School of Economics and Political
Science, Prof. Dr. Jack Qiu – Chinese University of Hong Kong, Prof. Dr. Jamie
Woodcock – Inglaterra e Prof. Dr. Paolo Benanti – Pontifícia Universidade Gre-
goriana – Itália, entre outros.
As atividades ainda contam com a presença de grandes nomes nacionais, que
discutem desde a edição do genoma, passando pelos processos de discrimina-
ção racial realizado por algoritmos e sobre a nova ordem econômica digital,
até os impactos da algoritmização na sociedade civil. Dentre os nomes con-
firmados estão Prof. Dr. Marcelo de Araújo – Universidade do Estado do Rio
de Janeiro - UERJ, Prof. MS Tarcízio Silva – Universidade Federal do ABC
- UFABC, Prof. Dr. Rafael Zanatta – Universidade de São Paulo - USP e Profa.
Dra. Fernanda Bruno – Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, entre
outros.
Quatro pré-eventos serão realizados no primeiro semestre, em convergên-
cia para o Simpósio Internacional: 6º Ciclo Revolução 4.0. Impactos nos
modos de produzir e viver, Estéticas 4.0. Ética e Política para a Comunica-
ção na era dos algoritmos, Algoritmização do trabalho e do empreendedo-
rismo e Simpósio Brasileiro de trabalho digital. Saiba mais em ihu.unisinos.
br/eventos.

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REPORTAGEM

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Arte: Natalia Froner dos Santos

Revolução 4.0 também inspirará 17

ciclos de palestras e debates no


primeiro semestre de 2020
Eventos do Instituto Humanitas Unisinos - IHU do próximo
semestre iniciam-se em março
João Vitor Santos

C
om o objetivo de levantar discus- nopolíticas entre China, Europa e Estados
sões já como preparação para o Unidos”.
XIX Simpósio Internacional IHU Para Amadeu, toda essa tecnologia cria
Homo Digitalis – a escalada da algorit- novas formas de relações, e práticas a que
mização da vida, que ocorre em outubro estávamos habituados, como uma campa-
de 2020, o Instituto Humanitas Unisinos nha eleitoral, como as relações interpes-
- IHU promoverá, no primeiro semestre soais, passam a ser completamente trans-
do próximo ano, uma série de eventos que formadas. “A popularização dos aparelhos
têm como pano de fundo o debate sobre os móveis multimídia, a queda dos preços
avanços das tecnologias e a incidência so- para adquiri-los, a expansão de áreas com
bre a vida das pessoas. No dia 23 de março, wi-fi aberto, em comparação com os altos
começa o 6º Ciclo de Estudos Revolução custos da banda larga fixa, levaram ao cres-
4.0. Impactos nos modos de produzir e vi- cente uso da internet pelos aparelhos ce-
ver. A primeira palestra será com o Prof. lulares. Nas camadas mais pauperizadas,
Dr. Sérgio Amadeu, da Universidade Fe- por exemplo, 80% das pessoas conectadas
deral do ABC - UFABC, que abordará “In- do segmento D/E, em 2017, efetuavam o
teligência artificial, 5G e as disputas tec- acesso à internet exclusivamente por apa-

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REPORTAGEM

relhos móveis”, observa o professor, em data e a algoritmização da vida: dilemas


entrevista concedida à IHU On-Line em éticos e possibilidades”; entre outros. De-
dezembro de 20181. O exemplo mais claro talhes da programação e informações so-
foi a campanha presidencial de 2018 e a bre inscrições estão disponíveis na página
estratégia de uso do WhatsApp e de outras de eventos do IHU, http://www.ihu.unisi-
redes sociais. nos.br/eventos.

Lógica dos algoritmos e sua in-


cidência no mundo do trabalho
Entre os pesquisadores, há um consen-
so de que os mais variados campos da
vida estão sendo atravessados pela algo-
ritmização. Ou seja, tudo passa a ser or-
questrado a partir do que os algoritmos
nos ofertam. Eles, por sua vez, mapeiam
nossos passos, preferências e ações no
mundo digital e, a partir disso, nos con-
duzem numa espécie de cabresto virtual,
em que só vemos o que querem que veja-
mos. É a nova face do controle biopolíti-
co. Mas como essa lógica impacta o mun-
Assim, o professor defende um amplo
do do trabalho? E mais: que incidência
debate sobre as transformações advindas
há sobre os próprios trabalhadores? Es-
dessas novas tecnologias. Especialmente
sas e muitas outras questões nortearão
porque a partir delas é possível condicio-
os debates do Ciclo de estudos Algorit-
nar as pessoas por meio das lógicas de al-
mização do Trabalho e do Empreende-
18 goritmização. “Precisamos regulamentar
dorismo. Limites e Possibilidades, que
as plataformas on-line seguindo o princí-
ocorrerá também ao longo do primeiro
pio da transparência, da responsabilidade
semestre de 2020.
e da clareza necessária aos seus sistemas
algorítmicos”, aponta, nessa mesma en-
trevista. E as transformações e incidências
não param: a inteligência artificial avança,
a tecnologia 5G está aí e as disputas tec-
nopolíticas se apresentam. Assuntos que
estarão presentes na primeira palestra do
Ciclo. Amadeu fala no dia 23 de março, a
partir das 19h30min, na Sala Ignacio Ella-
curía e Companheiros - IHU, Campus Uni-
sinos São Leopoldo.
O 6º Ciclo de Estudos Revolução 4.0.
Impactos nos modos de produzir e viver
segue com conferências até o dia 03 de ju-
nho, quando a Profa. Dra. Dora Kaufman,
da Universidade de São Paulo - USP, abor-
dará “Ética e sentido(s) das tecnologias A primeira conferência será no dia 26
inteligentes. A heurística do medo além de março, às 19h30min, na Sala Ignacio
da precaução”. Entre março e junho ainda Ellacuría e Companheiros - IHU, Campus
ocorrem as palestras do Prof. Dr. Luiz Al- Unisinos São Leopoldo. Nela, o Prof. Dr.
berto Oliveira, da Universidade Federal do Rodrigo de Lacerda Carelli, da UFRJ e do
Rio de Janeiro - UFRJ, que abordará “Bio- Ministério Público do Trabalho - MPT,
tecnologia e machine learning. Dilemas abordará “A complexidade do trabalho
éticos, possibilidades e limites”; do Prof. nas plataformas e sua (des)regulamenta-
Dr. Paulo César Castro de Sousa, da UFRJ, ção”. Esse tema do trabalho via platafor-
que tratará da “Inteligência artificial, big
ma, os famosos aplicativos, foi também o
que inspirou a edição 503 da revista IHU
1 A íntegra da entrevista está disponível em http://bit.ly/2DdBKnX.
(Nota da IHU On-Line) On-Line, intitulada A ‘uberização’ e as

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encruzilhadas do mundo do trabalho2. Na sobre “O que significa Ética para uma so-
época, em 2017, os recém-popularizados ciedade em midiatização”.
aplicativos de transporte no Brasil escra-
chavam uma transformação nas relações
de trabalho que vinha ocorrendo há tem-
po: quando o funcionário deixa de ser em-
pregado e passa a ser “o próprio patrão”,
o empreendedor de si. Sob uma névoa de
liberdade, o mundo do trabalho vai se pre-
carizando, e direitos adquiridos, proteções
sociais previstas em lei, se tornam pesados
e, logo, descartados.
Não é à toa que a reforma trabalhista
avança na pauta nesse mesmo período
e o Brasil mergulha, sob o argumento da
emergência de gerar mais empregos, na
institucionalização da precarização do
mundo do trabalho. A análise, uma foto- O evento se estende até maio e a pales-
grafia desse cenário, está na edição 535 da tra de encerramento será no dia 19, às
revista IHU On-Line, No Brasil das re- 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e
formas, retrocessos no mundo do traba- Companheiros - IHU, no Campus Uni-
lho3. O cenário atual é consequência desses sinos São Leopoldo. O Prof. Dr. Rafael
processos, chegando ao que chamamos de Grohmann, da Unisinos, abordará “Eco-
trabalho por plataforma, de uma economia nomia de plataforma – Limites e possibi-
compartilhada. Esse é o tema da fala do lidades para uma sociedade 4.0”.
Prof. Dr. Mario de Conto, da Faculdade de
Veja a programação completa na página
Tecnologia do Cooperativismo - ESCOOP, 19
de eventos do IHU, http://www.ihu.unisi-
que ministrará a palestra “O trabalho nas
nos.br/eventos.
plataformas. Por uma economia do com-
partilhamento e da propriedade comum”,
em 4 de junho, encerrando as atividades
Ontologias Anarquistas terá 3º
do Ciclo de estudos Algoritmização do
Ciclo em 2020
Trabalho e do Empreendedorismo. Limi-
tes e Possibilidades. A agenda de todas as
conferências está disponível na página de
eventos do IHU, http://www.ihu.unisinos.
br/eventos.

Estéticas 4.0
E se o mundo do trabalho é um dos cam-
pos impactados pela Revolução 4.0, ima-
gine o campo da comunicação que, além
de ter uma estreita relação com as áreas
tecnológicas, ainda incide sobre diversos
aspectos da vida contemporânea. Para dis-
cutir essas incidências, o IHU promove,
também no primeiro semestre de 2020,
Com o objetivo de discutir questões con-
Estéticas 4.0: Ética e Políticas para a co-
temporâneas por meio da intersecção en-
municação na era dos algoritmos. A pri-
tre Arte, Filosofia e Antropologia, o Ciclo
meira conferência será no dia 1º de abril,
de Palestras Ontologias Anarquistas en-
às 19h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros - IHU, Campus Unisinos tra na sua terceira edição. As conferências
São Leopoldo. O Prof. Dr. Antonio Fausto iniciam-se em 30 de março, com a palestra
Neto, da Unisinos, proporá uma reflexão “É coisa de Preta: feminismo negro e lite-
ratura de mulheres negras”, proferida por
2 A edição completa está disponível em ihuonline.unisinos.br/edi- Fernanda Bastos, da Universidade Federal
cao/503. (Nota da IHU On-Line)
3 Acesse a edição completa em http://www.ihuonline.unisinos.br/
do Rio Grande do Sul - UFRGS, no Cam-
edicao/535. (Nota da IHU On-Line) pus Unisinos Porto Alegre.

EDIÇÃO 546
REPORTAGEM

As atividades seguem até 25 de maio, Papa Francisco e realizado em outubro


quando o tema será “Thoreau anarquista: de 2019, desde uma perspectiva teológi-
Por um dever ser desobediente”, em confe- ca-pastoral. Suess, que tem forte atuação
rência com o Prof. Dr. Eduardo Vicentini, junto aos povos amazônicos, participou
da Universidade Federal de Santa Maria dos debates, ocorridos em Roma. Em en-
- UFSM. Em agosto de 2017, o poeta, histo- trevista concedida à IHU On-Line, e pu-
riador e naturalista Henry David Thoreau foi blicada no sítio do IHU em 14-10-20195,
tema da revista IHU On-Line4. Na época, Suess considera fundamental que essas
Vicentini definiu o pensador como membro questões ambientais, e outras demandas
de “um grupo seleto de autores que forma- específicas de povos amazônicos, entrem
taram o Transcendentalismo Americano na na pauta da Igreja. Do contrário, segun-
passagem da primeira para a segunda me- do ele, estaria indo de encontro aos prin-
tade do século XIX. Partilharam não ape- cípios defendidos por Francisco já desde
nas uma localização geográfica e espiritual a sua Encíclica Laudato Si’ e do próprio
particular, como um ímpeto reformista que pontificado. “A partir de uma igreja com
deixou marcas no peculiar cristianismo li- rosto amazônico, vai ser missionária não
beral da Igreja Unitarista, nos experimentos alienante, não colonizadora, uma igreja
associativistas de Brook Farm e Fruitlands, mesmo segundo o espírito de Jesus que se
na luta antiescravista, na crítica ao ímpeto encarnou neste mundo”, observa.
expansionista anterior à Guerra Civil”.
Colóquio internacional discute
A programação completa do III Ciclo
abuso sexual
de Palestras Ontologias Anarquistas está
disponível na página de eventos do IHU, No segundo semestre de 2020, nos dias
http://www.ihu.unisinos.br/eventos. 14 e 15 de setembro, o Instituto Humanitas
Unisinos - IHU promoverá o X Colóquio
Páscoa IHU discute emergência Internacional IHU. Nessa edição, o evento
20 climática e ecologia integral abordará a questão dos abusos sexuais. Sob
o título “Abuso sexual: Vítimas, Contextos,
Neste ano, a Páscoa IHU terá como tema
Interfaces, Enfrentamentos”, o objetivo é
central o meio ambiente. Sob o título,
estudar transdisciplinarmente o fenôme-
“Emergência climática, ecologia integral
no do abuso sexual de pessoas em situação
e o cuidado da casa comum”, o ciclo de
de vulnerabilidade na contemporaneidade
palestras tem o objetivo de contribuir nos
em atenção aos seus contextos, interfaces e
debates a respeito da crise ambiental que
perspectivas para seu enfrentamento, ten-
estamos vivendo, em meio à qual está o
do em vista a proteção das vítimas e a cons-
aquecimento global e seus impactos sobre
trução de uma cultura de prevenção.
os ecossistemas. O conceito “emergência
climática” aponta para as implicações das
ações do ser humano como causa principal
da crise ambiental e das mutações que es-
tão ocorrendo na Terra. Nessa perspectiva,
falar de “crise ambiental” é apontar tam-
bém para suas implicações sociais e polí-
ticas, bem como para a responsabilidade
da sociedade como um todo na busca de
respostas e saídas para essa problemática.
Serão sete conferências, que ocorrem
entre 31 de março e 22 de abril de 2020,
nos campi da Unisinos em São Leopoldo
e Porto Alegre. A programação completa
está disponível no site de eventos do IHU.
Entre os palestrantes confirmados está o
Prof. Dr. Paulo Suess, do Conselho Indi-
O evento contará com três conferências
genista Missionário - Cimi, que abordará
do alemão Hans Zollner. Referência no
o Sínodo Pan-Amazônico, convocado pelo
tema, o jesuíta da Pontificia Universitá

4 Acesse a edição completa em ihuonline.unisinos.br/edicao/509. 5 A entrevista completa está disponível em http://bit.ly/2oE2PgJ.


(Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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Greogoriana, de Roma, ainda preside o as condições de segurança para as crian-


Centre For Child Protection, organismo ças, ampliar a rede de proteção e preven-
de proteção a crianças e jovens, e integra ção. Colocar sempre em primeiro lugar as
a Comissão do Vaticano contra a pedofilia. pessoas mais vulneráveis. E então, antes
Ele abordará desde a situação na Igreja e de tudo, ouvir as vítimas”, acrescenta.
no mundo em relação aos abusos e à pre-
Além das conferências de Zollner, o
venção, até atenção psicológica a vítimas e
evento ainda terá espaço para apresenta-
ações sistêmicas para prevenção de abu-
ção e discussão de trabalhos relacionados
sos. Em entrevista ao jornal italiano Cor-
a essa temática, bem como a palestra da
riere della Sera, reproduzida pelo IHU em
Profa. Dra. Luísa Fernanda Habigzang,
19-05-20186, Zollner aponta um caminho
doutora em Psicologia e pesquisadora da
para tratar do tema: “Educação, educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio
educação”. Ele ainda acrescenta que é pre-
Grande do Sul - PUCRS. As inscrições
ciso coragem e reconhecer de frente a gra-
para o evento e detalhes para a submissão
vidade desses crimes de abuso. “Melhorar
de trabalhos estarão, em breve, disponí-
6 A entrevista completa está disponível em http://bit.ly/2qMNLyb.
veis no site ihu.unisinos.br/evento/colo-
(Nota da IHU On-Line) quio-abuso-sexual.

21

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

Florescer na complexidade
Faustino Teixeira reflete sobre o tempo presente e nos convoca a tecer
a teia da vida de forma plural com outros seres e com o próprio planeta
Ricardo Machado

T
ransformar um fio em malha e Tudo isso nos leva a repensar as linhas
a vida em tessitura do real exi- que compõem uma perspectiva inter-reli-
ge entrelaçar seus múltiplos fios, giosa, integrando e envolvendo espirituali-
uni-los para compor o pano do tempo. dades diversas, inclusive as não religiosas.
Tanto mais belo, quanto mais colorido. “Nesse tempo da laicidade, há que pensar
Ser capaz de perceber nessa composição caminhos concretos de diálogo e mesmo
as singularidades das existências, sem confrontação entre pessoas de convicções
abrir mão da relação entre todas elas, distintas, seja na percepção filosófica, me-
transforma-se em um gesto de reciproci- tafísica ou religiosa do mundo. Um debate
dade ética. “Não basta dizer ‘viva o múl- que seja justo e que respeite com dignida-
tiplo’, é necessário desvendar as malhas de as convicções diferentes, para além de
desta viva relação que constitui a tessi- uma mera tolerância”, argumenta. “Ha-
tura do real, em que cada coisa, cada ser, bitar espiritualmente a Terra é deixar-se
está referenciado ao outro, entrelaçado maravilhar por uma ‘espiritualidade eco-
como um dom. Os místicos nos adver- lógica’, para usar a expressão de Francis-
22 tem que o modo de ser hoje é outro, é co. O ritmo dessa nova espiritualidade é
inter-ser, num campo complexo onde marcado pelo cuidado, generosidade, cor-
não existem pontos de chegada, mas tesia e hospitalidade”, complementa.
sempre travessia”, descreve o professor
e pesquisador Faustino Teixeira, em en- Faustino Teixeira é professor e pes-
trevista por e-mail à IHU On-Line. quisador do Programa de Pós-Graduação
em Ciência da Religião da Universidade
“O convite essencial que emerge neste
Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais -
tempo do Antropoceno é o do despo-
PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em
jamento, do desarme dos corações, de
Teologia pela Pontifícia Universidade
quebra das exclusividades. O mais im-
Gregoriana, de Roma. É autor de Cami-
portante de tudo, neste momento, é to-
nhos da mística (São Paulo: Paulinas,
marmos consciência de que não somos
2018), Em que Creio Eu (São Paulo: Ter-
excepcionais, mas parte dos viventes,
ceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mís-
companheiros”, convida Teixeira ao
tica e Literatura Moderna (Rio de Janei-
pensar sobre a necessidade de a espécie
ro: Mauad, 2014). Também organizou,
humana superar um modo de estar no
entre outros, Nas teias da delicadeza
mundo radicalmente fundado na crença
(São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões
antropocêntrica. “Há que ‘aprender a
florescer na complexidade’, buscar ‘re- no Brasil: continuidades e rupturas (Pe-
generar’ o caminho cooperativo e não trópolis: Vozes, 2006), este em parceria
simplesmente afirmativo. Trata-se de com Renata Menezes, e As orações da
compreender o presente de forma mais humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018),
sutil e densa, deixando-se habitar por em parceria com Volney Berkenbrock.
sua complexidade”, propõe. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o mun- Faustino Teixeira – Vivemos papa Francisco1 em sua carta encí-
do atual nos convida a pensar tempos sombrios, não há dúvida.
uma relação ética profunda Tempos marcados pelo “excesso an- 1 Papa Francisco (1936): argentino filho de imigrantes
italianos, Jorge Mario Bergoglio é o atual chefe de estado
com o Outro? tropocêntrico”, como assinalou o do Vaticano e Papa da Igreja Católica, sucedendo o Papa

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REVISTA IHU ON-LINE

“O encontro profundo com o


outro envolve essa consciência
de relação, de interligação,
de reciprocidade”

clica Laudato si’, sobre o cuidado da O ponto de escape para uma pers- perdem sua valência: “De onde você
casa comum (LS, 116). As previsões pectiva distinta está em deixar-se vem? Aonde quer chegar? São ques-
não são muito favoráveis, como já habitar pelo mundo da alteridade, tões inúteis. Fazer tábula rasa, partir
dizia o historiador inglês Eric Hobs- rompendo com esse “desgaste da ou repartir do zero, buscar um co-
bawm2. O século XX não terminou compaixão” que nos circunda. É ne- meço, ou um fundamento, implicam
bem, e o século XXI vai na mesma cessário mudar de postura, sintoni- uma falsa concepção da viagem e do
direção, sinalizada pelo “crepúsculo zando os sentidos com a melodia da movimento” (Deleuze/Guattari).
e obscuridade”. As previsões “catas- simpatia, da cortesia e da delicadeza.
tróficas” estão aí diante de nós, como Como aponta Tim Ingold3, com perti-
lembrou o mesmo papa, não deixan- nência, é essencial “prestar atenção às IHU On-Line – De que forma as
do espaço para maiores otimismos coisas – observar os seus movimen- questões relacionadas à espiri-
(LS, 161). Diante de tal horizonte, há tos e escutar os seus sons”. Uma aten- tualidade nos oferecem possibi-
que organizar as forças de esperança ção que não se volta exclusivamente lidades de construir novos cami-
para minimizar esse cenário difícil aos humanos, mas a todas as criatu- nhos em torno da hospitalidade?
que vai se concretizando no tempo do ras, com seus direitos característicos. Faustino Teixeira – Sigo aqui
Antropoceno. É possível cavar a espe- E assim conseguimos “flagrar o mun- uma pista essencial apontada por 23
rança no trabalho pessoal e comum, do em ação”, atendendo ao grito da Rainer Maria Rilke6, na sétima Elegia
diuturno, buscando “frestas” de luz, Terra. O encontro profundo com o de Duíno (Rio de Janeiro: Biblioteca
visando captar uma outra textura de outro envolve essa consciência de re- Azul / Globo Livros, 2013), quando
tempo, cintilante. Isso depende tam- lação, de interligação, de reciprocida- diz que em parte alguma “o mundo
bém do empenho de interiorização, de. Não basta dizer “viva o múltiplo”, existirá, senão interiormente”. O ca-
que transforma o sentimento para como sinalizam Deleuze4 e Guattari5, minho do mundo interior, processa-
ver uma paisagem distinta. Como diz é necessário desvendar as malhas do com calma e serenidade, é essen-
o jagunço Tatarana, no Grande Ser- desta viva relação que constitui a cial para criar o “clima” propício para
tão: Veredas (São Paulo: Companhia tessitura do real, em que cada coisa, a dinâmica existencial, envolvendo aí
das Letras, 2019), “o espírito da gente cada ser, está referenciado ao outro, a capacidade de acolhida e hospitali-
é cavalo que escolhe estrada: quando entrelaçado como um dom. Os místi- dade. Temos que criar as condições
ruma para tristeza e morte, vai não cos nos advertem que o modo de ser interiores para a pacificação de si,
vendo o que é bonito e bom”. hoje é outro, é inter-ser, num campo para o equilíbrio indispensável, que
complexo onde não existem pontos nos disponibiliza para o encontro
Bento XVI. É o primeiro papa nascido no continente ame-
de chegada, mas sempre travessia. O tranquilo com o outro, o diferente.
ricano, o primeiro não europeu no papado em mais de caminhar se processa nessa dinâmica Esse é o caminho da espiritualidade.
1200 anos e o primeiro jesuíta a assumir o cargo. Em maio
de 2018 a revista IHU On-Line nº 522 publicou a edição viva em que as perguntas tradicionais O mestre Thich Nhat Hanh7, em sua
A virada profética de Francisco – Uma “Igreja em saída” e
os desafios do mundo contemporâneo, em que uma série
de entrevistados internacionais debateram os cinco anos
do pontificado de Bergoglio. Uma série de entrevistas e 3 Timothy Ingold (1948): antropólogo britânico e presi- 6 Rainer Maria Rilke por vezes também Rainer Maria von
conferências foram realizadas durante o XVIII Simpósio dente da Antropologia Social da Universidade de Aberde- Rilke (1875-1926): foi um poeta de língua alemã do século
Internacional IHU. A virada profética de Francisco, e po- en. Seus interesses são amplos e sua abordagem acadê- XX. Escreveu também poemas em francês. Rilke fez seus
dem ser acessadas no link http://bit.ly/2MqSsne. A edição mica é individualista. Eles incluem percepção ambiental, estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em
465 da revista IHU On-Line analisou os dois primeiros linguagem, tecnologia e prática qualificada, arte e arqui- 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção de versos
anos de pontificado de Francisco. Confira em http://bit. tetura, criatividade, teorias da evolução na antropologia, de amor, intitulados Vida e canções (Leben und Lieder).
ly/1Xw2tgu. Leia, ainda, a edição Amoris Laetitia e a ‘éti- relações homem-animal e abordagens ecológicas na an- Não exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, sempre, à
ca do possível’. Limites e possibilidades de um documento tropologia. (Nota da IHU On-Line) custa de amigas nobres. (Nota da IHU On-Line)
sobre ‘a família’, hoje, disponível em http://bit.ly/1SseNSc, 4 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim 7 Thích Nhất Hạnh (1926): é um monge budista, pacifis-
e a edição O ECOmenismo de Laudato Si’, disponível em como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem ta, escritor e poeta vietnamita. Nguyễn Xuân Bảo, um dos
http://bit.ly/1S6Luik. (Nota da IHU On-Line) em Bergson, Nietzsche e Espinosa poderosas interseções. mestres do zen-budismo mais conhecidos e respeitados
2 Eric Hobsbawm: historiador marxista do século XX. Au- Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleu- no mundo de hoje, poeta e ativista da paz e dos direitos
tor de inúmeros livros, entre os quais A Era dos Extremos ze atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e humanos. Nascido na região central do Vietnã, ele se jun-
(São Paulo: Companhia das Letras, 1995), A Era do Capital singularidades. (Nota da IHU On-Line) tou aos monges na idade de dezesseis anos. Por ocasião
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A Era das Revoluções 5 Félix Guattari (1930-1992): psicanalista francês, pen- da Guerra do Vietnã, os mosteiros se defrontaram com a
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A Era dos Impérios (Rio sador, militante, admirado por movimentos de esquerda questão de aderir ou não, exclusivamente, à vida contem-
de Janeiro: Paz e Terra, 1988), Bandidos (Rio de Janeiro: alternativos, autor de um dos livros mais discutidos entre plativa e continuar a meditar nos mosteiros, ou ajudar a
Forense Universitária, 1976) e sua autobiografia, Tempos os anos 70/80, O Anti-Édipo, escrito em parceria com o população que sofria sob bombardeios e outras devasta-
Interessantes: uma vida no século XX (São Paulo: Compa- filósofo francês Gilles Deleuze. Guattari visitou várias vezes ções da guerra. Nhat Hanh foi um dos que optaram por
nhia das Letras, 2002). (Nota da IHU On-Line) o Brasil. (Nota da IHU On-Line) fazer as duas coisas, ajudando a fundar o movimento do

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

obra Paz a cada passo (Rio de Janei- sempre ocorrem imediatamente. uma expressão de Bruno Latour11. O
ro: Rocco, 1993), assinala que todos Eles chegam de mansinho, aos pou- mais problemático nisso tudo é que os
nós somos portadores de “nós” ou cos. Daí a importância essencial da humanos permanecem “indiferentes”
“grilhões” interiores, processados ao paciência, essa palavra chave da mís- aos rumos que eles mesmos impuse-
longo da vida, que acabam se firman- tica. Há que criar as condições para ram ao ritmo do tempo. Os terranos,
do de forma rígida e impedidora. Ele o afeiçoamento às grandes questões, os povos de Gaia, buscam resistir
chama isto de “formações internas”, de modo que elas possam ser vividas como podem, com suas artimanhas e
problemáticas. com clareza e intensidade. Tudo tem parcos recursos. Na visão de Latour,
seu tempo. E os resultados chegam, infelizmente, essa “estranha guerra”
O caminho da espiritualidade é tam-
sem pressa, irradiando um modo de já está praticamente definida, com o
bém um caminho de desatar esses
ser distinto no mundo, longe daque- horizonte vitorioso e tenebroso dos
“nós”, e o importante é que saibamos
la hybris que nos desvia da honradez humanos, dos modernos. Mas resis-
trabalhar isso logo no início, na medi-
e da nobreza da alma. tências bonitas estão em curso, como
da do possível, caso contrário eles vão
verificamos na ação iluminada de
ficando cada vez “mais fortes e aperta-
jovens como Greta Thunberg12, que
dos”, dificultando qualquer cerimônia IHU On-Line – De que manei- denunciam com coragem e ousadia a
de abertura ou de convivência harmo- ra o Antropoceno nos convida chama que ameaça a Terra. Incrível,
niosa com o diferente. O passo espiri- a uma postura menos antropo- mas os que mais resistem são também
tual pressupõe também a atenção ao cêntrica? O que isso significa os portadores de cosmologias antigas:
canto das coisas: estar presente, estar em termos de hospitalidade à os quilombolas, os povos originários,
atento ao campo do real, como indica diferença? especialistas de “fim de mundo”. Te-
Thomas Merton8. Ele dizia que a vida
Faustino Teixeira – O Antropo- mos o exemplo de Ailton Krenak13
contemplativa era algo muito simples:
ceno é expressão de um novo momen- e suas Ideias para adiar o fim do
viver simplesmente. O respirar era a
to na trajetória humana, uma “nova mundo (São Paulo: Companhia das
sua oração. Em página de seu diário,
época” marcada por muita instabili- Letras, 2019), título de seu recente li-
em maio de 1965, sublinhava que ali
dade. Curiosamente, foi algo já pre- vro. Sinaliza que o tempo é curto para
em cima das montanhas podia ver e
visto por Hans Jonas9 em seu livro O poder revirar as coisas e “diminuir a
24 sentir de forma palpável o Novo Tes-
princípio responsabilidade (Rio de falta de reverência” para com as “es-
tamento no vento por entre as árvores.
Janeiro: Contraponto Editora, 2006 pécies companheiras” que participam
É quando você se permite viver em
[1979]), lembrado por Oswaldo Gia- conosco dessa “viagem cósmica”. Diz
“baixa definição”, para além da pressa
coia Junior10, em entrevista no IHU Krenak: “Tem quinhentos anos que os
do nosso tempo. Na calma da floresta,
(setembro de 2019). Um cenário que índios estão resistindo, eu estou pre-
no cuidado interior, Merton era capaz
foi “filosoficamente antecipado” por ocupado é com os brancos, como que
de captar o “ponto virgem” essencial,
ele, marcado por “traço ilusório ou de- vão fazer para escapar dessa”. O que
o “centro do nosso nada”, que era “a
lirante” que animou a lógica do “mo- se vê, por todo canto, é previsões ca-
pura glória” do Mistério Maior. A
derno processo de desenvolvimento tastróficas, num circuito necrófilo que
atenção ao mundo interior vem perce-
científico e tecnológico”. Isto levou a nos faz a cada momento “despencar,
bida como um dom que potencializa o
uma “perda de controle” que trouxe e cair, cair, cair”.
sujeito a “despertar à infinita Realida-
de que existe dentro de tudo o que é traz consequências dramáticas, como O convite essencial que emerge neste
real”. No segredo da solidão, diz Rilke, a “incapacidade de proteger a nature- tempo do Antropoceno é o do despo-
somos capazes de captar a melodia za e a humanidade dos elementos des-
das coisas e dar-nos conta da miste- trutivos de sua própria obra, uma inu-
riosa conexão que tudo interliga. sitada impotência lá onde parecia que 11 Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos funda-
dores dos chamados Estudos Sociais da Ciência e Tecnolo-
tínhamos atingido o apogeu da auto- gia (ESCT). É reconhecido, entre outros trabalhos, por sua
As respostas decisivas que acom- determinação”. É quando então a Ter- contribuição teórica - ao lado de outros autores como Mi-
chel Callon e John Law - no desenvolvimento da ANT - Ac-
panham esse trabalho interior nem ra sofre o tranco da ação predadora do tor Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar a ati-
vidade científica, considera tanto os atores humanos como
humano, e começa a reagir de forma os não humanos, estes últimos devido à sua vinculação ao
budismo engajado. Desde então, tem dedicado sua vida surpreendente e muitas vezes violen- princípio de simetria generalizada. (Nota da IHU On-Line)
ao trabalho de transformação interior para o benefício dos 12 Greta Ernman Thunberg (2003): ativista do clima sueca.
indivíduos e da sociedade. (Nota da IHU On-Line) ta, mostrando sua face de intrusa. Ela é conhecida por protestar em frente ao prédio do parla-
8 Thomas Merton (1915-1968): monge católico cister- mento sueco para divulgar as alterações climáticas (Fridays
ciense trapista, pioneiro no ecumenismo no diálogo com
o budismo e tradições do Oriente. O livro Merton na inti-
Nesse tempo sombrio, humanos e For Future). O IHU publicou inúmeros textos sobre as ações
de Greta. Entre eles “Com Greta Thunberg para o futuro do
midade - Sua Vida em Seus Diários (Rio de Janeiro: Fisus, terranos entram em tensão, para usar planeta”, disponível em http://bit.ly/2J8IyIE; ‘’Vocês não agi-
2001), é uma seleção extraída dos vários volumes do diário ram a tempo’’: o discurso de Greta Thunberg ao Parlamento
de Thomas Merton, autor de livros famosos como A Mon- britânico”, disponível em http://bit.ly/2vKXkwH; e “O mun-
tanha dos Sete Patamares (São Paulo: Itatiaia, 1998) e Novas 9 Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado do pertence a Greta e às suas irmãs”, disponível em http://
sementes de contemplação (Rio de Janeiro: Fisus, 1999). O norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir bit.ly/2Jx2ch3. (Nota da IHU On-Line)
livro foi editado por Patrick Hart, também monge e colabo- sobre as novas abordagens éticas do progresso tecnocien- 13 Ailton Alves Lacerda Krenak, mais conhecido como
rador de Merton. Na matéria de capa da edição 133 da IHU tífico. A sua obra principal intitula-se O princípio responsabi- Ailton Krenak (Minas Gerais, 1953): é um líder indígena,
On-Line, de 21-3-2005, publicamos um artigo de Ernesto lidade (Rio de Janeiro: Contraponto, 2006). Confira a edição ambientalista e escritor brasileiro. É considerado uma das
Cardenal, discípulo de Merton, que fala sobre sua relação 371 da Revista IHU On-Line, de 29-8-2011, intitulada Tudo maiores lideranças do movimento indígena brasileiro,
com o monge. A edição 460 da revista IHU On-Line, sob é possível? Uma ética para a civilização tecnológica, disponí- possuindo reconhecimento internacional. Pertence à tribo
o título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, vel em http://bit.ly/ihuon371. (Nota da IHU On-Line) indígena crenaque. É autor de vários livros, sendo o mais
dois centenários, analisa o legado de Merton. Confira em 10 A entrevista em questão pode ser lida em http://bit. recente intitulado Ideias para adiar o fim do mundo (São
http://bit.ly/1hbCXyo (Nota da IHU On-Line) ly/2OmqxIs. (Nota da IHU On-Line) Paulo: Companhia das Letras, 2019). (Nota da IHU On-Line)

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

jamento, do desarme dos corações, a aranha interaja com a mosca”. Gilles exclusiva. O desafio que se abre para
de quebra das exclusividades. O mais Deleuze e Félix Guattari, num ensaio nós é diverso, no sentido de alargar
importante de tudo, neste momento, presente na obra Mil Platôs (volume as malhas e ampliar o olhar. Ou como
é tomarmos consciência de que não 1 – 2011), falam em rizoma, onde cada fala o profeta Isaías (Is 54,2), alargar o
somos excepcionais, mas parte dos linha remete a outra, onde um ponto espaço de nossas tendas, sem prejuízo
viventes, companheiros. Trata-se da determinado conecta-se com qualquer ao nosso empenho comunitário.
consciência de um para além do hu- outro ponto, mediante “hastes e fluxos
Gosto das pistas lançadas por Donna
mano, que nos provoca a despertar subterrâneos”. Não há ponto final, mas
Haraway, que vem sendo também di-
para uma nova ecologia, que envolve sempre “direções movediças” e “linhas
vulgada aqui no IHU. Ela reage contra
uma gama diversificada de compa- de fuga”. Tim Ingold prefere utilizar a
o insulamento de caminhos, contra as
nhias: tornar-nos com os outros, como imagem do micélio fúngico para de-
mônadas estanques, impermeáveis,
diz Donna Haraway14. Um caminho marcar esse espaço fluido. Com base
que acabam levando a solilóquios pro-
que também vem sendo percebido nessa inspiração, e também na encí-
blemáticos e às vezes mortíferos. Seu
pelo papa Francisco ao constatar que clica Laudato Si’, do papa Francisco,
convite é no sentido de um olhar am-
a diversidade é bela. Estamos aqui, é que adaptei a reflexão para o diálogo
pliado, animado por lucidez e largueza.
todos juntos, numa constelação das interconvicções. Estamos todos juntos
Como mostra Haraway, determinados
diferenças, em sua riqueza singular, nesta empreitada, numa “viagem fra-
núcleos identitários, na ânsia de firma-
irredutível e irrevogável. terna” em que cada segmento, grupo
rem sua cidadania, acabam excluindo
ou tradição, se remete ao diferente,
os outros, deixando o ambiente quase
num aprendizado cotidiano e revela-
IHU On-Line – Em um artigo sem ar. Há que abrir outros caminhos,
dor, como numa sinfonia.
intitulado “Malhas da hospita- diz ela, que defendam mais afinidades
lidade”, o senhor defende o ter- e não só identidades. Esse é o cami-
mo “malha” como aquele que IHU On-Line – Em chave de nho aberto para “gerar comunidade
melhor define nossa atual situ- leitura mística, como pensar com outras espécies”. Buscar afinida-
ação. Poderia explicar como os as dimensões da hospitalidade de, retoma Haraway, “é resultado da
fios das diferentes vidas e for- e do diálogo para além de uma alteridade, diferença e especificidade”.
mas de vida compõem o pano visão de mundo centrada na es- Há que “aprender a florescer na com- 25
do tempo presente? pécie humana? plexidade”, buscar “regenerar” o cami-
nho cooperativo e não simplesmente
Faustino Teixeira – Utilizei o Faustino Teixeira – Retornando afirmativo. Trata-se de compreender
termo com base na reflexão de Tim aqui à reflexão de Deleuze e Guattari, o presente de forma mais sutil e densa,
Ingold. Veja em particular o seu sin- quando falamos em rizoma, não pode- deixando-se habitar por sua comple-
gular livro, Estar vivo: ensaios sobre mos pensar em teleologia unificadora. xidade. Em linda crônica, publicada
movimento, conhecimento e descrição O rizoma nos convida a pensar a vida em 1966 no Correio da manhã, Carlos
(Petrópolis: Vozes, 2015). Ele usa o de forma plural, sem excepcionalida- Drummond de Andrade17 elogiava a
termo malha (meshwork) recorrendo des. Aliás, como já mostrou com per- canção de Chico Buarque18, A Banda,
ao pensamento de Henri Lefebvre15. tinência Lévi-Strauss16, a excepcio- e na sua reflexão fazia um convite para
A seu ver, nossa vida acontece em tri- nalidade vem sempre acompanhada que todos pudessem “correr à rua no
lhas compostas de linhas. O tecido de pela exclusão e violência. Há que rastro da meninada”, como o velho fra-
trilhas reunidas compõe “a textura do pensar formas alternativas de viver a co que se “esqueceu do cansaço e pen-
mundo da vida”. Todos nós habitamos experiência da comunhão. O que mais sou que ainda era moço para sair no
num cenário de linhas que se interco- ameaça o nosso tempo são as “bolhas” terraço e dançou”.
nectam e interagem numa bonita dan- identitárias, que estão presentes em
ça de reverberações. É como ocorre todos os campos, em todas discussões.
com a aranha, que capta imediatamen- Uma tendência problemática de ler IHU On-Line – Como o senhor
te, por reverberação, a presença de al- o mundo a partir de uma localidade vê a construção do “diálogo in-
guma mosca em sua teia. Como diz In- terconvicções”? Que desafios
gold, “as linhas-fio da teia estabelecem
16 Claude Lévi-Strauss (1908-2009): antropólogo belga
as condições de possibilidade para que que dedicou sua vida à elaboração de modelos baseados 17 Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): poeta
na linguística estrutural, na teoria da informação e na brasileiro, nascido em Minas Gerais. Além de poesia, produ-
cibernética para interpretar as culturas, que considerava ziu livros infantis, contos e crônicas. (Nota da IHU On-Line)
14 Donna Haraway (1944): bióloga, filósofa, escritora e como sistemas de comunicação, dando contribuições 18 Chico Buarque [Francisco Buarque de Hollanda]
professora nascida nos Estados Unidos. Escreveu diversos fundamentais para a antropologia social. Sua obra teve (1944): músico, compositor, teatrólogo e escritor carioca.
livros e artigos sobre ciência e feminismo. Entre seus tex- grande repercussão e transformou, de maneira radical, o Um dos mais famosos nomes da música popular brasileira
tos mais destacados está o ensaio Manifesto ciborgue. Ci- estudo das ciências sociais, mesmo provocando reações (MPB), cuja discografia tem aproximadamente 80 títulos.
ência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século exacerbadas nos setores ligados principalmente às tradi- Ganhou fama por sua música, que comenta o estado so-
XX, publicado originalmente no periódico Socialist Review, ções humanista, evolucionista e marxista. Ganhou renome cial, econômico e cultural do Brasil. Começou a ter desta-
em 1985. (Nota da IHU On-Line) internacional com o livro As estruturas elementares do pa- que a partir de 1966, quando lançou seu primeiro álbum,
15 Henri Lefebvre (1901-1991): foi um filósofo marxista rentesco (1949). Em 1935, Lévi-Strauss veio ao Brasil para Chico Buarque de Hollanda, e venceu o Festival de Música
e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de lecionar Sociologia na USP. Interessado em etnologia, rea- Popular Brasileira com a música A banda. Autoexilou-se
Paris, onde se graduou em 1920. Cunhou o termo “Direito lizou pesquisas em aldeias indígenas do Mato Grosso. As na Itália em 1969, devido ao aumento da repressão da di-
à cidade” com o qual defendeu que a população deveria experiências foram sistematizadas no livro Tristes Trópicos tadura instalada em 1964. Venceu três Prêmios Jabuti de
ter acesso à vida urbana e que foi desenvolvido no livro de (São Paulo: Companhia das Letras), publicado original- literatura: o de melhor romance em 1992, com Estorvo, e o
mesmo nome publicado em 1968 em francês: “Le droit à mente em 1955 e considerado uma das mais importantes de Livro do Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Leite
la ville”. (Nota da IHU On-Line) obras do século 20. (Nota da IHU On-Line) Derramado, em 2010. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

éticos, humanos e religiosos ele está em incluir no debate a “dinâmi- IHU On-Line – Como habitar
enfrenta? ca inerente a toda convicção”. Nesse espiritualmente a Terra?
tempo da laicidade, há que pensar
Faustino Teixeira – A nova re- Faustino Teixeira – Trabalhei
caminhos concretos de diálogo e
flexão trazida da França vem ga- essa questão num artigo sobre as ma-
mesmo confrontação entre pesso-
nhando importância no debate so- lhas da hospitalidade, publicado na
as de convicções distintas, seja na
bre a laicidade e a questão religiosa. Revista Horizonte da PUC-MG (jan./
percepção filosófica, metafísica ou
Vejo esta noção como fundamental, mar. 2017). Dizia que a percepção de
religiosa do mundo. Um debate que
pois amplia profundamente o cam- que tudo está interligado provoca, ne-
seja justo e que respeite com digni-
po do debate, para além da ideia de cessariamente, um novo ritmo para
dade as convicções diferentes, para
diálogo inter-religioso. No meu caso, se pensar a espiritualidade. O papa
já vinha refletindo nos últimos anos além de uma mera tolerância. Reco-
Francisco desenvolveu com pertinên-
sobre a necessidade de ampliar as nhecer o valor da laicidade no tempo
cia essa questão na sua carta encíclica
malhas da reflexão inter-religiosa, presente é defender também uma
Laudato Si’, sobre o cuidado da casa
de forma a poder envolver igual- laicidade dialogal, que supere uma
comum (2015). Somos parte deste
mente outras espiritualidades, in- laicidade de combate, excludente.
universo, “somos terra” (LS 2). Todo o
cluindo as não religiosas; mas tam- Trata-se de uma laicidade receptiva,
universo vem envolvido pelo sopro mi-
bém os interlocutores não crentes, capaz de poder também acolher a sericordioso do Mistério, que se revela
que firmam sua caminhada num “contribuição democrática das dife- em todo lugar: na folha, na vereda, no
projeto ético honrado, de exercício rentes famílias espirituais” (Danièle orvalho e no rosto dos pequenos (LS
de nobreza da alma. Trata-se de uma Hervieu-Léger22). Uma laicidade que 233). Habitar espiritualmente a Terra
provocação que nasceu para mim seja “mediadora”, no sentido de po- é deixar-se maravilhar por uma “es-
no rico debate entre o cardeal Mar- der, com as diversas contribuições, piritualidade ecológica”, para usar a
tini19 e Umberto Eco20 ainda na dé- contribuir para mediar com sabedo- expressão de Francisco. O ritmo dessa
cada de 1990. Falava-se na ocasião ria os inúmeros conflitos presentes nova espiritualidade é marcado pelo
de um “húmus profundo” que pode nesse conturbado tempo das afirma- cuidado, generosidade, cortesia e hos-
irmanar crentes e não crentes na ções identitárias. pitalidade. É algo que se processa nos
26 busca comum em favor de uma reta mais simples gestos do cotidiano, na
convivência humana, mesmo que concretude da vida real, nas veredas
IHU On-Line – Qual a novida-
ela não venha nomeada da mesma da história. É uma espiritualidade que
de do “diálogo interconvicções”
forma. Mais recentemente emerge vem contagiada pelo cuidado e a pre-
em relação a outros projetos
na França o conceito de um diálogo servação terna com todo o criado, com
éticos semelhantes?
de interconvicções, destacado pelo todas as “espécies companheiras”, no
Núcleo Internacional, Intercultural Faustino Teixeira – A novida- reconhecimento de seus direitos carac-
e Interconviccional (G3i), criado por de está justamente nesta ampliação terísticos. Essa espiritualidade reserva
François Becker. Entre os defen- das malhas dialogais, possibilitando um lugar especial para a “paz interior”,
sores da nova proposta, poderia se uma nova cidadania dialogal, capaz suscitando um estilo de vida diferen-
incluir também o filósofo e teólogo de acolher no debate interlocutores ciado, para além da “pressão do desem-
Bernard Quelquejeu21. A novidade de convicções distintas, resguardan- penho”, tão presente em nosso tempo.
do o essencial respeito mútuo. Tra-
Há que resgatar, como sublinhou
19 Carlo Maria Martini (1927-2012): teólogo jesuíta, ta-se de um diálogo que destaca o
profundo conhecedor da Bíblia, cardeal italiano e arcebis- Byung-Chul Han23, o “primado da
po emérito de Milão falecido dia 31 de agosto de 2012. espaço singular e único da alterida-
Confira a última entrevista que concedeu, disponível em vida contemplativa”, da paciência e
http://bit.ly/R8SdaX, sob o título ‘’A Igreja retrocedeu 200 de. É um caminho que se abre para
o descanso, em função de uma aten-
anos. Por que temos medo?’’. Confira, ainda, a cobertura contrastar com o risco fundamen-
dada pelo IHU à morte de Martini: Morreu Martini, o bispo ção mais profunda às nervuras do
do diálogo, em http://bit.ly/TIgXZR; Martini, um homem de talista em curso, em que o rotineiro
Deus. Artigo de Vito Mancuso, em http://bit.ly/NKt6uv; ‘’A real. Um “olhar demorado e lento”,
abertura de Martini aos não crentes foi um ato de respon- é o mote da exclusão, muitas vezes
sabilidade’’. Entrevista com Massimo Cacciari, em http://bit. desperto e acolhedor. Dizia no meu
acompanhada pela violência. Uma
ly/UkM4Np; A ‘’dura viela’’ da morte, segundo Martini, em artigo que a espiritualidade é essa
http://bit.ly/TIhSJS. (Nota da IHU On-Line) sociedade que se pretenda pluralista
20 Umberto Eco (1932-2016): escritor, filósofo, semiólo- capacidade de celebrar a vida em
go, linguista e bibliófilo italiano de fama internacional. Foi de direito requer esse respeito essen-
titular da cadeira de Semiótica e diretor da Escola Superior cial ao diferente, incluindo o direito
de Ciências Humanas na Universidade de Bolonha. Ensi- 23 Byung-Chul Han (1959): pensador sul-coreano, teórico
nou temporariamente em Yale, na Universidade Columbia, de cidadania das convicções. cultural e professor da Universidade de Artes de Berlim. É
em Harvard, Collège de France e Universidade de Toronto. o autor de 16 livros, dos quais os mais recentes são tra-
Colaborador em diversos periódicos acadêmicos, dentre tados sobre o que ele chama de “sociedade do cansaço”
eles como colunista da revista semanal italiana L’Espres- (Müdigkeitsgesellschaft), uma “sociedade da transparên-
so, na qual escreveu sobre uma infinidade de temas. Eco cia” (Transparenzgesellschaft) e seu conceito neologista de
foi, ainda, notório escritor de romances, entre os quais shanzhai, que procura identificar modos de desconstrução
O nome da rosa e O pêndulo de Foucault. Junto com o em 1957, passou a estudar filosofia com os dominicanos. nas práticas contemporâneas do capitalismo chinês. O tra-
escritor e roteirista Jean-Claude Carrière, lançou em 2010 Quelquejeu produziu inúmeras publicações em filosofia balho atual de Han se concentra na transparência como
N’Espérez pas vous Débarrasser des Livres (“Não Espere se moral e política, especialmente voltadas ao tema da não uma norma cultural criada pelas forças do mercado neo-
Livrar dos Livros”, publicado em Portugal com o título “A violência. Ele participa do grupo Non-Violence XXI. (Nota liberal, que ele entende como o impulso insaciável para a
Obsessão do Fogo” e no Brasil como “Não contem com o da IHU On-Line) divulgação voluntária que beira o pornográfico. Segundo
fim do livro”). (Nota da IHU On-Line) 22 Danièle Hervieu-Léger (1947): é uma socióloga fran- Han, os ditames da transparência impõem um sistema
21 Bernard Quelquejeu (1932): frade dominicano, fran- cesa especializada em sociologia da religião. (Nota da totalitário de abertura à custa de outros valores sociais,
cês. Realizou seus estudos na Escola Politécnica e depois, IHU On-Line) como vergonha, sigilo e confiança. (Nota da IHU On-Line)

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

profundidade. Ela aciona qualida- lançada pelo filósofo Byung-Chul Em outra obra, Loa a la Tierra
des essenciais e potencialidades de Han, em favor de um novo ritmo (Barcelona: Herder, 2019), Byung
abertura que procedem do mundo contemplativo. Em sua obra, Socie- lança o desafio de uma nova cons-
interior e do espírito. É dela, desse dade do cansaço (Petrópolis: Vozes, ciência planetária, pontuada por
fundo maravilhoso, que se irradiam, 2015), sublinha que o que marca o singular sensibilidade para com a
com uma fragrância única, os toques século XXI é a ideia de desempenho. Terra, que exige um cuidado par-
singulares do amor desinteressado, Somos todos convocados a entrar no ticular. Aí está, diz ele, o caminho
da gratuidade, da atenção, cortesia compasso da produção. Isso pode de “salvação”, em sua acepção
e hospitalidade. A espiritualidade provocar a sensação de “poder”, mais verdadeira, que implica res-
aciona o movimento desses valores mas vai produzindo cada vez mais gate e preservação. A salvação diz
fundamentais que são irradiados sujeitos deprimidos: esgotados pelo respeito a uma aspiração univer-
como perfume por todo canto. O esforço de evitar o fracasso, de não sal dos seres humanos: “conduzir
grande desafio do século XXI é o da corresponder à produtividade exi- alguém a realizar o sentido de sua
“nova reverência face à vida”, em fa- gida. O que causa a depressão, diz existência” e encontrar o seu des-
vor de um outro mundo possível. Byung, é a “pressão do desempe- tino. A salvação não se traduz ex-
nho”. Daí a sede contemplativa que clusivamente por resgatar alguém
essa mesma sociedade adoentada de um perigo, mas de possibilitar
IHU On-Line – Deseja acres-
pelo desempenho suscita: de uma o caminho de uma “vida bem-su-
centar algo?
atenção mais profunda e paciente ao cedida”, calibrada pela liberdade
Faustino Teixeira – Quero ape- real, de ampliação serena da capaci- de fazer valer o seu traço mais ín-
nas assinalar aqui essa pista bonita dade de ver. timo e singular. ■

Leia mais
- Grande sertão: veredas, uma epopeia metafísica. Entrevista especial com Faustino Tei- 27
xeira, publicada nas Notícias do dia de 5-8-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
- IHU, disponível em http://bit.ly/2DdJg2j.
- Etty Hillesum canta a alegria contra o ódio. Entrevista especial com Faustino Teixeira,
publicada nas Notícias do dia de 15-4-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU,
disponível em http://bit.ly/2KRAzyY.
- A feminilidade da mística em Teresa d’Ávila. Entrevista especial com Faustino Teixeira,
publicada nas Notícias do dia de 10-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU,
disponível em http://bit.ly/2rn1hFu.
- Fora da Misericórdia não há salvação. Entrevista especial com Faustino Teixeira, publica-
da nas Notícias do dia de 26-7-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível
em http://bit.ly/2SypofX.
- O desafio de acessar a dimensão de profundidade do cristianismo. Entrevista com Faus-
tino Teixeira, publicada na revista IHU On-Line número 209, de 18-12-2006, disponível em
http://bit.ly/2L2XiXJ.
- John Hick, teologia cristã e pluralismo religioso: o arco-íris das religiões. Entrevista com
Faustino Teixeira, publicada na revista IHU On-Line número 162, de 31-10-2005, disponível
em http://bit.ly/2L4yOxg.
- Mística comparada: semelhanças na diferença. Entrevista com Faustino Teixeira, publi-
cada na revista IHU On-Line número 133, de 21-3-2005, disponível em http://bit.ly/2BW30Yz.
- O budismo e o “silêncio sobre Deus”. Entrevista com Faustino Teixeira, publicada na re-
vista IHU On-Line número 308, de 17-7-2009, disponível em http://bit.ly/2zMohT3.
- “Muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”: o Catolicismo Plural. Entrevista
especial com Faustino Teixeira e Renata Menezes, publicada nas Notícias do dia de 13-1-
2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2G2O5Qs.
- Encontro de Assis: uma “viagem fraterna” rumo a um horizonte maior. Entrevista espe-
cial com Faustino Teixeira, publicada nas Notícias do dia de 27-10-2011, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/2RETz51.

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

Convivialidade – caminhar em direção a


outros conhecimentos, outros mundos
Para Sergio Costa, não há possibilidade de pensar as questões ambientais
e a desigualdade social em separado e enfrentar tais desafios exige ir
além dos conhecimentos hegemonizados
Ricardo Machado

P
ensar o mundo contemporâneo é aquecimento global e a desigualdade,
atravessar as fronteiras do conhe- complexificando ainda mais o enfrenta-
cimento acadêmico em direção a mento destes desafios. “Ao colocar em
outras experiências de vida e de formas de paralelo e como co-constitutivos a ideia de
vida. “Se não juntarmos nossas pesquisas convivialidade junto à desigualdade, pre-
aos conhecimentos de ativistas, movimen- tendemos dizer que vivemos em socieda-
tos sociais, movimentos e conhecimentos des desiguais e em relações desiguais com
indígenas — chamados de conhecimen- a natureza”, descreve Costa. “Portanto, ao
tos tradicionais —, nós não vamos conse- pensar um programa de transformação
guir entender o mundo contemporâneo”, da sociedade é preciso pensar como, no
propõe Sergio Costa, em entrevista por mesmo movimento, atingir os dois objeti-
e-mail à IHU On-Line. “Uma forma em vos: 1) construir formas mais igualitárias
que a sociedade não fosse orientada pela e adequadas de convivência; 2) combater
28 racionalidade instrumental em que cada toda a violência e as formas de opressão
um siga só seus interesses próprios, mas, vinculadas à desigualdade”, conclui.
sobretudo, uma sociedade baseada na so- Sergio Costa é professor de Sociologia
lidariedade”, complementa. na Freie Universität Berlin (Universidade
A partir da perspectiva da convivialida- Livre de Berlim, Alemanha). Ao lado de
de, proposta desenvolvida por Ivan Illich, Marcos Nobre, é diretor do Mecila – Ma-
busca-se superar as dicotomias clássicas ria Sibylla Merian International Centre
– natureza e cultura – que organizaram for Advanced Studies in the Humanities
as formas de pensar as sociedades desde and Social Sciences Conviviality-Inequa-
a modernidade. “Com a convivialidade lity in Latin America –, centro que estuda
abre-se a possibilidade de incorporar essa formas passadas e presentes de convívio
multiplicidade de formas sociais que que- social, político e cultural na América La-
remos entender e, com o perdão da redun- tina e no Caribe. O termo convivialida-
dância, conviver em absoluta liberdade de (conviviality) é empregado no centro
com essas diferentes formas sociais”, ana- como um conceito analítico para des-
lisa. “Todos aqueles que acreditam na ci- crever formas de convívio em contextos
ência contemporânea sabem que não po- específicos caracterizados por profunda
demos seguir da maneira como estamos diversidade e desigualdade. Também é
vivendo e como vivemos até agora. É pre- editor da série Global Entangled Inequa-
ciso, de fato, uma inflexão radical nas for- lities: Exploring Global Asymmetries,
mas de vida consideradas modernas. Isso pela editora Routledge. Realizou seu dou-
não implica uma volta ao passado, mas torado em Sociologia na Freie Universität
um salto para o futuro. Esse salto é neces- Berlin, onde também obteve o título de
sariamente um movimento de superação Livre Docente em 2005, com a pesquisa
do antropocentrismo, de restabelecimen- Do Atlântico Norte ao Atlântico Negro:
to de outras formas de convivência com a Teoria Social, Antirracismo e Cosmopo-
natureza, de que sejamos capazes de nos litismo (2007, em alemão). Suas áreas de
percebermos como parte do planeta, não interesse são a teoria social, sociologias
como seus colonizadores”, defende. pós-coloniais, pesquisas sobre desigual-
O contexto no qual estamos inseridos dade, convivialidade e diferença.
tornou incontornável a relação entre o Confira a entrevista.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Ao colocar em paralelo e como co-


constitutivos a ideia de convivialidade
junto à desigualdade, pretendemos dizer
que vivemos em sociedades desiguais e
em relações desiguais com a natureza”

IHU On-Line – De que forma IHU On-Line – Qual a impor- Sergio Costa — Ivan Illich1 foi
a convivência entre diferentes tância de se defender esta plu- um pioneiro como filósofo, teólogo
tradições teóricas, antropoló- ralidade de visões de mundo e educador austríaco, mas que viveu
gicas e sociológicas se tornou em um contexto cuja escalada em diferentes partes do mundo. Ele
uma questão fundamental atu- da direita radical visa justa- realizou um trabalho importante na
almente? mente interditar esse debate? cidade de Cuernavaca, no México,
onde existia um centro intercultural
Sergio Costa — É preciso dizer Sergio Costa — O momento
de documentação em que se reuniam
que as tradições de pesquisa até ago- contemporâneo tornou ainda mais versões e movimentos intelectuais
ra têm se mostrado insuficientes para urgente superar as fronteiras en- progressistas de diversas partes do
responder a desafios e questões em- tre disciplinas, entre conhecimento mundo no final dos anos 1960 e co-
píricas que são muito complexas e acadêmico e não acadêmico, no sen- meço dos anos 1970. Então foi, na-
atravessam fronteiras entre discipli- tido de integrar movimentos sociais quele momento, um centro em que
nas. Portanto, a interdisciplinaridade e ativismo político como formas le- se juntava o que havia de mais pro- 29
deixou de ser uma opção e tornou-se gítimas, autênticas e originais de gressista e interessante acontecendo
uma necessidade primordial. Isso sig- produção de conhecimento. Isto é, na Europa com o que havia de mais
nifica que precisamos buscar superar considerar isso no momento con- interessante e progressista ocorren-
alguns pontos cegos das ciências so- temporâneo, não só no Brasil, mas do na América Latina e nas Américas
ciais e humanas, como, por exemplo, em diferentes partes do mundo, em naquela ocasião. No livro publicado
a separação entre seres humanos e que parece que estamos vivendo um em 1973 chamado Tools for Convi-
natureza, a separação entre corpo e momento de caça às bruxas, de tudo viality (Fontana/Collins: 1973), que
cultura, entre outras distinções. o que foi construído como avanço foi traduzido para diversas línguas,
em termos de maior igualdade entre Ivan Illich propõe a superação de
Se não superarmos isso, efetiva- pessoas de diferentes preferências, uma forma unidimensional de lidar
mente não vamos entender questões desde sexualidade até grupos étnicos com a sociedade e com o meio am-
que dizem respeito não só a relações e formas de vida. Ou seja, apesar de biente. Isto é, entendendo que era
entre humanos, mas também a rela- tudo o que foi feito no esforço de tor- preciso criar o que ele chamava de
ções entre humanos e não humanos, nar o mundo mais igual, parece que, um intercurso, ou seja, uma forma
como animais, plantas, artefatos e neste momento, estamos vivendo mais adequada de lidar com as pes-
espíritos. Para isso é necessário até um retrocesso muito arriscado e pe- soas na sociedade e suas relações
mesmo mais que a interdisciplinari- rigoso. De fato, é muito preocupante com o meio ambiente. Que forma
dade, eu diria que é necessária uma voltarmos à situação de maior desi- era essa? Uma forma em que a socie-
transdisciplinaridade para que pos- gualdade, antes que tenhamos che- dade não fosse orientada pela racio-
samos superar não só as fronteiras gado a uma igualdade mais ampla e nalidade instrumental em que cada
das disciplinas existentes, mas uma substantiva. Há o risco — e está ha- um siga só seus interesses próprios,
fronteira fundamental que é a fron- vendo efetivamente — de retrocesso mas, sobretudo, uma sociedade ba-
teira entre o conhecimento científico a uma situação de desigualdade que seada na solidariedade. Nas rela-
e não científico. Ou seja, se não jun- tínhamos antes dos avanços dos últi-
tarmos nossas pesquisas aos conhe- mos anos e décadas. 1 Ivan Illich (1926-2002): pensador e polímata austríaco.
Foi autor de uma série de críticas às instituições da cultura
cimentos de ativistas, movimentos moderna. Escreveu sobre educação, medicina, trabalho,
sociais, movimentos e conhecimen- energia, ecologia e gênero. Pensador da ecologia política,
foi uma figura importante da crítica da sociedade indus-
tos indígenas – chamados de co- IHU On-Line – Como Ivan Illi- trial. Confira a edição 46 da IHU On-Line, de 9-12-2002,
intitulada Ivan Illich, pensador radical e inovador, dispo-
nhecimentos tradicionais –, nós não ch e seu conceito de conviviali- nível em http://bit.ly/2cBYktN. E, confira ainda o artigo,
vamos conseguir entender o mundo dade se inserem nesse contexto “Será o decrescimento a boa nova de Ivan Illich?”, de Serge
Latouche, publicado nos Caderno IHU Ideias, disponível
contemporâneo. e nesse debate? em http://bit.ly/2cYefVS. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

ções com a natureza propunha uma Sergio Costa — Essa ideia já está tornando-o, cada vez mais, menos
relação de respeitabilidade, muito no debate há algum tempo. Se tomar- habitável para os seres humanos.
além do que se discute hoje sobre o mos, por exemplo, a antropologia da
Voltar-se para si mesmo e somen-
paradigma da sustentabilidade, com Amazônia, alguns autores afirmam
te para si mesmo, que é o gesto do
respeito aos seres não humanos que que a ideia de sociedade – sobretu-
antropocentrismo, nos levou a uma
povoam a natureza. do a construída pelas ciências so-
rua sem saída. Descontados os terra-
ciais em que se assume e estabelece
Qual é a importância disso hoje? planistas, os que não acreditam nos
como precondição a separação entre
Ela é múltipla. Esse debate teve des- avanços da ciência, todos aqueles
atores e estruturas sociais, as es-
dobramentos. No campo da cultura que acreditam na ciência contem-
feras da ação e das instituições – é
ele se tornou uma forma muito inte- porânea sabem que não podemos
insuficiente. O que se observa nas
ressante de crítica, tanto ao naciona- seguir da maneira como estamos vi-
sociedades amazônicas é um espaço
lismo quanto ao multiculturalismo, vendo e como vivemos até agora. É
de convivência em que não há sepa-
na medida em que a convivialidade preciso, de fato, uma inflexão radi-
ração entre uma esfera de produção
implica o respeito absoluto das dife- cal nas formas de vida consideradas
das normas e outra da produção da
renças nas relações, mas cujo vetor modernas. Isso não implica uma vol-
vida, ou seja, é a vida social que per-
de interação, respeitando tais dife- ta ao passado, mas um salto para o
passa todas essas dimensões sem as
renças, está na possibilidade do co- futuro. Esse salto é necessariamente
distinções assumidas pelas teorias
mum. Esse é um debate muito pre- um movimento de superação do an-
sociológicas e sociais tradicionais –
sente nos estudos sobre migração tropocentrismo, de restabelecimen-
distinções como público e privado,
na Europa, mas também em outras to de outras formas de convivência
moral e leis. Portanto, o conceito de
partes do mundo, na medida em que com a natureza, de que sejamos
sociedade das ciências sociais mo-
há uma ameaça de assimilação dos capazes de nos percebermos como
dernas tem um conjunto de pressu-
imigrantes em que têm que prevale- parte do planeta, não como seus co-
postos que tornam a ideia de socie-
cer as identidades nacionais. lonizadores.
dade somente aplicável a um grupo
Esse paradigma mostra que efeti- muito restrito. A ideia de convivia- O sociocentrismo é um retorno às
vamente formas de convivência com lidade amplia o espectro ao não se formas tradicionais de definição da
30 respeito à diferença já existem no fixar nessas divisões e se interessar sociedade, em oposição, por exem-
cotidiano das sociedades e é preci- pelas relações sociais efetivamen- plo, à comunidade, na conhecida
so investir nessas formas. Esse é um te existentes, o que não implica em fórmula de Ferdinand Tönnies2, “Ge-
campo fundamental. Outro campo interações somente entre humanos, sellschaft und Gemeinschaft”. Nessa
fundamental em que as ideias de Illi- mas entre humanos e não humanos. perspectiva, ou se tem sociedade ou
ch tem se desenvolvido é na supera- se tem comunidade e isso não nos
É por isso que nas comunidades
ção da dicotomia entre sociedade e permite compreender uma parcela
amazônicas os espíritos de antepas-
natureza, mostrando que não só as importante da vida social contem-
sados têm uma presença importan-
formas de vida humanas precisam porânea, também vivida em peque-
tíssima nessas sociedades. Então,
considerar os seres não humanos, nos grupos, e uma vida cuja base da
como conceito, com a convivialidade
mas entendendo que as próprias tec- sociedade (retomando a definição
abre-se a possibilidade de incorpo-
nologias não têm que ser baseadas de Durkheim sobre a diferença da
rar essa multiplicidade de formas so-
sempre numa competição e numa su- solidariedade mecânica e orgânica,
ciais que queremos entender e, com
peração da natureza. Para que sejam, em que esta última é propriamente
o perdão da redundância, conviver
efetivamente, tecnologias de longa a solidariedade moderna) depende,
em absoluta liberdade com essas di-
duração, é preciso que elas interajam sim, de formas primárias da sociabi-
ferentes formas sociais.
com a natureza. Por exemplo, em vez lidade, assentada muito fortemente
de usar pesticida, pode-se usar outros na vida comunitária. Portanto essas
agentes biológicos capazes de neutra- IHU On-Line – Qual a impor- distinções que foram feitas pelas ci-
lizar as ervas daninhas sem que se tância de superar uma visão de- ências sociais tradicionais não são
destrua a vida naquele espaço em que masiadamente antropocêntri- mais sustentáveis, se é que algum
se quer ter uma determinada cultura. ca e sociocêntrica do mundo? dia foram. Para que possamos enten-
Esse é um campo em que a ideia da der a multiplicidade das sociedades
convivialidade tem se manifestado Sergio Costa — O antropocen- contemporâneas, é preciso superar
com muita força e é um campo muito trismo nos levará à absoluta impos- esse conceito eurocêntrico fundado
profícuo de pesquisa que vem se ex- sibilidade de vida no planeta se se-
pandindo nos últimos anos. guirmos os mesmos parâmetros que
estamos seguindo até agora. Ao cen- 2 Ferdinand Tönnies (1855-1936): sociólogo alemão. Fez
contribuições importantes para a teoria sociológica e em
trarmos de fato na criação de condi- estudos de campo, além de ser responsável por trazer de
IHU On-Line – Em que senti- ções de vida para os humanos sem novo Thomas Hobbes ao primeiro plano, através da publi-
cação dos seus manuscritos. A distinção, tornada clássica,
do o conceito de convivialidade levar em consideração os demais se- entre dois tipos básicos de organização social, a comunida-
de (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellschaft), é a contri-
substitui o de sociedade? res vivos neste planeta, nós estamos buição mais conhecida de Tönnies. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

em experiências empíricas muito no Brasil não são transportáveis para vimento, atingir os dois objetivos: 1)
limitadas. Ou seja, partiu-se de um a sociedade mundial porque nós ex- construir formas mais igualitárias e
conjunto muito limitado de socieda- plodiríamos o planeta com esse nível adequadas de convivência; 2) com-
des e criou-se uma teoria social com de consumo. Quem quer continuar bater toda a violência e as formas de
aspiração de validade universal. Mas consumindo nesse patamar tem que opressão vinculadas à desigualdade.
se queremos construir, mesmo para admitir que se trata de um consumo
ciências sociais globais, é precisar para uma elite específica e que não
superar os males de origem das ciên- pode ser generalizado. Aliás, a vida IHU On-Line – De que forma
cias sociais modernas. na Europa ocidental dos anos 1970 as questões da desigualdade e
era uma vida absolutamente aceitá- das emergências climáticas se
vel e confortável, ou seja, ninguém tornaram dois grandes debates
IHU On-Line – Como a con- precisa mais do que isso para ser fe- e desafios contemporâneos?
vivialidade converge para liz, pois a felicidade pode ser buscada Sergio Costa — Eu diria que es-
perspectivas econômicas não nos prazeres espirituais, na explora- ses debates vinham caminhando
hegemônicas e ligadas às pers- ção das possibilidades do corpo, na separadamente, e eles têm uma lon-
pectivas “slow” – slow food, slow exploração das sexualidades. Mesmo ga tradição. Isso porque a desigual-
fashion, decroissence – e propõe para quem tem uma visão hedonista dade é estudada não somente na
uma crítica ao utilitarismo? da vida, há um conjunto de possibi- América Latina, mas é tratada em
Sergio Costa — Esse ponto é fun- lidades que não implicam necessa- todo o mundo desde os pais funda-
damental porque nos coloca diante riamente mais consumo, mas, sim, dores (e de fato eram “pais” porque
de uma distinção entre convivialis- a exploração das possibilidades que havia poucas mães fundadoras das
mo e convivialidade. O primeiro é o convívio social proporciona. Essa é ciências sociais como uma marca
mais tributário da tradição francesa, uma mensagem fortíssima e central negativa de sua origem por conta
e no Brasil há muitas pessoas traba- do convivialismo. da opressão masculina); tanto em
lhando nessa chave. Para citar dois Nós insistimos um pouco na ideia Weber5 quanto em Marx6 a desigual-
nomes, entre muitos outros, estão de convivialidade não para fazer dade sempre foi uma questão funda-
Frédéric Vandenberghe3, da Uni- oposição ao convivialismo, mas para mental. O tema da desigualdade foi
versidade Federal do Rio de Janeiro deixado de lado na América Latina 31
marcar o caráter analítico do nosso
- UFRJ, e Paulo Henrique Martins4, programa de pesquisa. Não é neces- nos anos 1980 e 1990, dada a con-
da Universidade Federal de Pernam- sariamente uma leitura normativa centração nos programas de reajuste
buco - UFPE. O convivialismo é um do mundo, mas uma maneira de estrutural com uma perda de ênfase
movimento teórico de crítica ao utili- analisar as sociedades e as relações nas políticas sociais, e, quando havia
tarismo e um movimento político de entre humanos e não humanos que, políticas sociais, elas eram focadas
crítica à razão instrumental, a uma a nosso ver, está inscrita na ideia de na pobreza, e não orientadas para
leitura unilateral e unidimensional convivialidade. Um aspecto impor- promover mais igualdade. Obvia-
da vida social. Para esses autores, o tante a destacar é que desde o nome mente, combatendo a pobreza se
que é sustentável em termos de lon- do centro que estamos criando em
go prazo no mundo contemporâneo São Paulo, o termo convivialidade 5 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considera-
do um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o
é somente um nível de consumo que aparece sempre junto com a palavra espírito do capitalismo (São Paulo: Companhia das Letras)
não passe dos níveis da Europa oci- desigualdade. Isso exatamente para é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. A
IHU On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5-2004,
dental dos anos 1970. Tudo que ul- evitar a romantização de que supe- intitulada Max Weber. A ética protestante e o espírito do
trapassar isso não é universalizável ramos conflitos ou divisões, porque
capitalismo 100 anos depois, disponível em http://bit.ly/
ihuon101. Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos
para o conjunto do mundo. Os pa- quando falamos de convivialidade IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max Weber
– o espírito do capitalismo disponível em http://bit.ly/
drões de consumo que temos hoje na estamos tratando de interações real- ihuem03. (Nota da IHU On-Line)
Europa, nos Estados Unidos ou o de mente existentes, sejam elas de com-
6 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo-
mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa-
algumas classes elitizadas que temos petição, de cooperação, sejam até dores que exerceram maior influência sobre o pensamen-
to social e sobre os destinos da humanidade no século 20.
mesmo de relações violentas. Nada A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda
Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl
3 Frédéric Vandenberghe: possui graduação em Ciências disso está excluído e nem pode estar Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre
Sociais e Políticas – Rijksuniversiteit Gent (1988), Bélgica,
mestrado em Sociologia – Ecole des Hautes Etudes en
excluído, obviamente, de um pro- o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line,
de 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo
Sciences Sociales, Paris (1989) e doutorado em Sociolo- grama de pesquisa. Então ao colocar e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em
gia – Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Pa- https://goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não
ris (1994). Ensinou em várias Universidades estrangeiras em paralelo e como co-constitutivos são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida
(UCLA, Manchester University, European University Insti- a ideia de convivialidade junto à de- por Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição
tute, Brunel University London, Yale University e Université 327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://
Catholique de Louvain-la-Neuve) e brasileiras (UNB, UFPE, sigualdade, pretendemos dizer que bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição es-
UFRJ, IUPERJ). Atualmente é professor do Instituto de Filo- pecial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas
sofia e de Ciências Sociais na Universidade Federal de Rio
vivemos em sociedades desiguais e Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento
de Janeiro (IFCS-UFRJ). (Nota da IHU On-Line) em relações desiguais com a nature- central de O Capital, obra de Marx, disponível em http://
4 Paulo Henrique Novaes Martins de Albuquerque: www.ihuonline.unisinos.br/edicao/449. A revista IHU On
possui mestrado em Sociologia - Universidade de Paris I; za. Portanto, ao pensar um progra- -Line, edição 525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o
doutorado de Terceiro Ciclo em Sociologia - Université de ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões, em
Paris I. É professor Titular de Sociologia da Universidade
ma de transformação da sociedade é celebração aos 200 anos do nascimento do pensador, está
Federal de Pernambuco - UFPE desde 2007. (Nota da IHU preciso pensar como, no mesmo mo- disponível em ihuonline.unisinos.br/edicao/525. (Nota da
On-Line) IHU On-Line)

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

pode reduzir a desigualdade, mas as mudança climática sem pensar a de- duzido em Harvard ou se estamos
políticas de redução das desigualda- sigualdade social. tratando de uma prática de conheci-
des são diferentes das políticas de mento de uma comunidade indígena
combate à pobreza, elas implicam do Xingu, temos que tomar essas for-
uma estrutura tributária progressi- “Não dá mas de conhecimento e seus desdo-
va, que distribua renda, e tudo isso bramentos naquilo que são capazes
foi deixado de lado. O recente traba- para pensar de contribuir para o debate, e não

a mudança
lho do Piketty7, que não é único, mas por seu lugar de origem. Sabemos
é um marco, mostrou que houve, de há muito tempo que o conhecimen-
fato, uma inflexão na questão da de-
sigualdade que se tornou um debate climática to é situado, mas é preciso que num
centro como esse, o lugar situado do
central para a economia, a sociologia
e a política. sem pensar a conhecimento não se transforme em
nenhum tipo de hierarquia prévia
Por outro lado, desde os anos 1970 desigualdade em termos de valoração do conheci-
mento produzido e circulado.
já havia relatórios, como o Relatório
Brundtland8, que mostravam como social” IHU On-Line – Qual tem sido
a preocupação ambiental estava pre- o papel e o propósito do centro
sente. A questão climática aparece Mecila?
mais tarde e, inicialmente, separada IHU On-Line – Nesse sentido,
Sergio Costa — O centro Mecila
da questão social. Contudo, essas como fazer convergir a pers-
foi criado a partir de um consórcio
duas linhas de debate se cruzaram e pectiva da convivialidade para
de sete instituições, três alemãs e
se interseccionam de uma maneira perspectivas teóricas do sul
quatro latino-americanas. Esse cen-
inseparável no debate contemporâ- global, especialmente com as
tro está sendo criado no escopo de
neo, de tal modo que, se falamos de cosmologias e epistemologias
uma linha de fomento aberta pelo
mudança climática, necessariamen- da América Latina?
Ministério Alemão de Educação e
te estamos falando de quais são os
Sergio Costa — A origem do de- Ciência para criação de centros em
32 grupos que são mais afetados, quais
bate sobre convivialidade surgiu de distintas regiões do mundo. São cin-
são os grupos que podem se prote-
um diálogo internacional muito ex- co centros: um em Guadalajara, ou-
ger mais ou menos da mudança cli-
pressivo e intenso em Cuernavaca, tro em São Paulo, que compõem os
mática. Portanto há, mais que uma no México, nos anos 1960 e 1970, da América Latina; um em Acra, em
interseção, uma interdependência quando as forças progressistas da Gana, na África; outro na Índia, em
não somente entre os dois campos América Latina e da Europa se jun- Nova Déli; e um na Tunísia, que ain-
de debate, mas justamente entre as taram ali para discutir o futuro co- da está sendo criado.
questões substantivas que tais cam- mum da humanidade. Já em sua ori-
pos nomeiam. Não dá para pensar a A premissa da criação desses centros
gem é um debate que busca superar
de pesquisa é que algumas questões
assimetrias na valoração dos distin-
7 Thomas Piketty (1971): economista francês, concentra podem ser muito mais bem estuda-
seus estudos no acúmulo e desigualdade de renda. É di- tos conhecimentos.
retor de pesquisas da École des hautes études en sciences das de forma descentralizada do que
sociales (EHESS) e professor da Escola de Economia de Pa-
ris. Seu livro best-seller, O Capital no Século XXI (São Pau-
Seria impossível construir um cen- se estivessem sendo estudadas em
lo: Intrínseca, 2014), enfatiza as questões do acúmulo de tro fundamentado no paradigma da um Centro nos Estados Unidos ou
renda nos últimos 250 anos e argumenta que o acúmulo
de capital cresce mais rápido que a economia, o que gera convivialidade e da desigualdade na Europa. Nas regiões é muito mais
desigualdade. A edição 449 da IHU On-Line, intitulada A sem ter em conta que os conheci-
desigualdade no século XXI. A desconstrução do mito da
plausível, factível e estimulante estu-
meritocracia, inspira-se na obra O Capital no Século XXI mentos produzidos contemporanea- dar essas questões. Por isso também
e circulou meses antes de a obra ser publicada no Bra-
sil. A edição está disponível em https://bit.ly/2LRSlQv. O mente têm espaços e hierarquias de escolhemos essa temática da convivia-
IHU realizou no segundo semestre de 2016 o “Ciclo de validação. Conhecimentos produ-
Estudos do Livro “O Capital no Século XXI” - A Estrutura
lidade, da desigualdade, que são temá-
da Desigualdade”. Detalhes em http://bit.ly/2c3JDyh. Re- zidos a partir de uma certa posição ticas privilegiadas para se estudar na
centemente, Piketty publicou “Capital et idéologie” (Seuil,
2019). A obra, embora ainda não traduzida para portu- na chamada geopolítica global de co- América Latina, dada toda a tradição
guês, já foi abordada em textos publicados pelo IHU, na nhecimento são, por definição, me- que temos de produção de conheci-
seção Notícias do Dia de seu site. Entre eles “O novo livro
de Piketty devolve a economia política às suas origens. Ar- nos valorizados. O papel de um cen- mento, mas também de experiências
tigo de Branko Milanović”, disponível em http://bit.ly/2rIu-
PBo; “Piketty: a ‘reforma agrária’ do século XXI”, disponível tro como o que estamos construindo, históricas, de lidar com essa tensão
em http://bit.ly/34pGB0A; Thomas Piketty: 10 recomenda-
ções para acabar com a desigualdade econômica, disponí-
que busca efetivamente superar este e co-constituição entre desigualdade
vel em http://bit.ly/2sAvxjS. (Nota da IHU On-Line) tipo de assimetria na produção do e convivialidade. Da época colonial
8 Relatório Brundtland ou Nosso Futuro Comum: pu-
blicado em 1987, concebe o desenvolvimento sustentável conhecimento e na valorização e até hoje há diferentes experimentos
como “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades
presentes, sem comprometer a capacidade das gerações
circulação do conhecimento, tem e reflexões muito elaboradas sobre o
futuras de suprir suas próprias necessidades”. No início da que, necessariamente, considerar os que é conviver com a diferença, a de-
década de 1980, a ONU retomou o debate das questões
ambientais. Indicada pela entidade, a primeira-ministra conhecimentos por aquilo que eles sigualdade, questão que se torna mais
da Noruega, Gro Harlem Brundtland, chefiou a Comissão
Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, para
contribuem para o debate e não pelo acentuada no nosso momento político
estudar o assunto. (Nota da IHU On-Line) lugar de origem. Se um texto é pro- particularmente urgente. ■

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Para além dos consensos, a possibilidade


de uma vida plural em comum
Rita Grassi debate a emergência do diálogo interconvicções
e seu impacto político na possibilidade de garantir uma
vivência plural e a transformação da sociedade
Ricardo Machado

P
ode parecer estranho, mas atu- Bélgica, há cerca de uma década, como
almente lidamos melhor com um reconhecimento de que o proclama-
as diferenças do que, talvez, em do ‘fim da religião’ não se concretizou
toda a história da humanidade. Isso e de que era preciso, sim, unir as vozes
porque, em geral, não toleramos a ideia dissonantes, religiosas ou não, com o
de assassinar ou de violentar uma pes- foco principal de garantir a laicidade
soa por ela ter convicções diferentes do Estado e de que essas vozes fossem
das nossas. Contudo, vivemos também todas ouvidas no âmbito do Parlamen-
uma experiência de encurtamento dos to Europeu e dos governos nacionais”,
espaços, em que o convívio com a dife- descreve Rita Grassi.
rença é muito mais próximo do que su-
“Entendo que o diálogo de intercon-
pomos e gostaríamos. “E se, em outros
vicções traga como ponto principal a
tempos, as diferenças e divergências
discussão de gerar um impacto social e 33
eram resolvidas na base da guerra, da
político por meio de sua atuação. Não se
violência, agora não é bem assim. Essas
trata de um diálogo que tenha como ob-
mudanças forçam os seres humanos a
jetivo encontrar uma harmonia ou a paz
buscarem formas de relacionar-se com
entre as convicções”, ressalta a entrevis-
quem é diferente e que estejam mais
tada. “O seu principal objetivo é, através
alinhadas com os valores atuais das so-
destas vozes, dos encontros e confrontos
ciedades democráticas, ainda que haja
entre elas, construir um espaço para rei-
exceções e que a democracia possa es-
vindicar uma transformação da socieda-
tar em xeque em diversos países”, pon-
de que atenda a essa pluralidade e, ao
dera Rita Grassi, mestra em Ciências
mesmo tempo, que garanta a laicidade
da Religião, em entrevista por e-mail à
dos estados europeus e da comunidade
IHU On-Line.
europeia”, complementa.
Diante desta miríade de visões sobre
o mundo, o pluralismo religioso assu- Rita Macedo Grassi realizou mes-
me também um papel de consciência da trado em Ciências da Religião pelo Pro-
diversidade que constitui a experiência grama de Pós-Graduação em Ciências
humana na terra, mas também é reflexo da Religião da PUC-Minas. Possui ba-
justamente disso. “O diálogo intercon- charelado em Relações Internacionais
vicções não por acaso nasce na Europa, pela Universidade Estácio de Sá - RJ.
mais especificamente na França e na Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que manei- Rita Grassi – Creio que diver- ta e de longa distância, bem como da
ra o mundo atual se converteu sos fatores contribuíram para isso: sua acessibilidade; e, talvez, o prin-
em um espaço intenso de con- os avanços tecnológicos e o encur- cipal deles em se tratando da Euro-
vívio – nem sempre amigável – tamento das distâncias, sobretudo pa, um processo migratório cada vez
entre os mais diferentes grupos através das redes sociais; o aumento mais crescente. No caso do Brasil,
culturais, sociais e religiosos? de vias e meios de transporte de cur- acredito que esse convívio sempre

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

existiu, mas agora as identidades fi- ser humano é uma religião”, ou seja, Muitas vezes, é a partir do confronto
caram mais bem demarcadas, sobre- de que cada um de nós interpreta e que o encontro acontece. Trata-se de
tudo diante do processo de polariza- experimenta a sua espiritualidade, uma dinâmica natural, diria até or-
ção política ao qual estamos sendo institucional ou não, de forma indi- gânica. O problema acontece quan-
submetidos e, de certa forma, fomos vidual e subjetiva, e de que a própria do o confronto passa a se tornar uma
manipulados a vivenciar. Mas, de realidade é plural. Desta forma, o forma desrespeitosa de anular ou
um ponto de vista global, é fato que pluralismo religioso, ao meu ver, é a extinguir a pluralidade contextual
a crise migratória tem acentuado de consciência e, também, mais um re- em que vivemos, quando o indivíduo
forma exponencial este convívio. flexo dessa diversidade. Sem esque- escolhe ignorá-la ou até mesmo des-
cer, é claro, da importância do con- truí-la.
vívio em comunidade, em coletivos,
IHU On-Line – Que implica- para que haja uma dinâmica entre
ções éticas essas mudanças o que se experimenta em grupo e o IHU On-Line – De que manei-
produzem? que se experimenta interiormente. É ra o diálogo se apresenta como
Rita Grassi – De forma mais no âmago do ser que a religiosidade, uma faculdade necessária a es-
abrangente, podemos dizer que nos em toda a sua complexidade, de fato sas novas interações?
obrigam a conviver com o outro di- pode estar apoiada. Rita Grassi – O diálogo surge
ferente e a estarmos mergulhados como algo inevitável e primordial
na diversidade, ainda que queiramos para essas interações. Panikkar fala
permanecer em nossos “guetos” ou
“bolhas”, para utilizar um termo bem
“Podemos de um diálogo “intrarreligioso”, que
não somente precede, mas acom-
atual. Não é mais possível evitar essa
convivência. E se, em outros tempos,
dizer que nos panha o diálogo inter-religioso ou
intercultural. Trata-se de uma dinâ-
as diferenças e divergências eram
resolvidas na base da guerra, da vio-
obrigam a mica em que, a partir do encontro
com o outro, construo um diálogo
lência, agora não é bem assim. Essas
mudanças forçam os seres humanos
conviver com o dentro de mim mesma e vou conhe-
cendo e, até mesmo, transformando
34 a buscarem formas de relacionar-se
com quem é diferente e que estejam
outro diferente a minha própria forma de pensar e

mais alinhadas com os valores atuais e a estarmos de agir no mundo. Seria como uma
dança dialogal em que os encontros
das sociedades democráticas, ainda
que haja exceções e que a democra- mergulhados e, por que não, os confrontos, cons-
troem belos movimentos internos

na diversidade,
cia possa estar em xeque em diver- naqueles que se colocam na arena,
sos países. Segundo esses valores, no palco, do diálogo. Sendo que
simplesmente eliminar quem pensa
ou age diferente não é uma opção ainda que essa arena e esse palco são a própria
vida cotidiana.
sensata e, portanto, ética. Além dis-
so, tais mudanças pressupõem um queiramos
questionamento fundamental: até
que ponto o que o outro apresenta permanecer em IHU On-Line – Como a senho-
ra vê a construção do “diálogo
como diferente, seja através de seus
costumes, seu modo de se vestir, sua
nossos ‘guetos’ interconvicções”? Que desafios
éticos, humanos e religiosos ele
sexualidade, seu idioma ou sua prá-
tica religiosa, fere ou agride meus
ou ‘bolhas’” enfrenta?
Rita Grassi – O diálogo intercon-
próprios princípios?
vicções não por acaso nasce na Euro-
IHU On-Line – Como o fenô- pa, mais especificamente na França e
IHU On-Line – Até que ponto meno engendra encontros e na Bélgica, há cerca de uma década,
o pluralismo religioso é efeito confrontos entre as diferentes como um reconhecimento de que o
de um processo de atomização convicções? proclamado “fim da religião” não se
da religião? concretizou e de que era preciso, sim,
Rita Grassi – Acredito que os
unir as vozes dissonantes, religiosas
Rita Grassi – Parto do princípio confrontos existam, também, nos
ou não, com o foco principal de ga-
de Panikkar1 de que, no fundo, “cada encontros, são complementares.
rantir a laicidade do Estado e de que
1 Raimon Panikkar (1918-2010): padre e teólogo espa- amplo material no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
essas vozes fossem todas ouvidas no
nhol. Durante sua carreira acadêmica, teve a oportunidade – IHU dos quais destacamos: Superar a cristologia tribal, âmbito do Parlamento Europeu e
de abordar diferentes tradições culturais. Publicou mais o desafio proposto por Raimon Panikkar, disponível em
de 40 livros e 300 artigos de filosofia, ciência, metafísica, http://bit.ly/1lMqMEm; Raimon Panikkar: diálogo e inter- dos governos nacionais. O principal
religião e hinduísmo. Foi membro do Instituto Internacio-
nal de Filologia (Paris, França) e presidente do Vivarium
culturalidade, disponível em http://bit.ly/1lMqTjp; Raimon
Panikkar, teólogo da dissidência, disponível em http://bit.
desafio, ao meu ver, encontra-se na
- Centro de Estudos Interculturais da Catalunha. Há um ly/1rQV2DS. (Nota da IHU On-Line) real ocupação desse espaço público,

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REVISTA IHU ON-LINE

que ainda, segundo Barnett2 e Quel- dade religiosa e as expressões dessas entre as convicções. O seu principal
quejeu3 (fundadores do movimento), múltiplas convicções, combatendo a objetivo é, através destas vozes, dos
está destinado apenas aos líderes intolerância, sem no entanto fazer encontros e confrontos entre elas,
religiosos. Insistem na ampliação com que tais convicções interfiram construir um espaço para reivindi-
desse espaço para as vozes dos e das nas decisões de leis que atendem car uma transformação da sociedade
sem religião, dos ateus e ateias, dos a sociedade como um todo, inde- que atenda a essa pluralidade e, ao
filósofos e filósofas, dos e das huma- pendente de suas convicções e/ou mesmo tempo, que garanta a laicida-
nistas, agnósticos e agnósticas; para crenças. A proibição do véu utilizado de dos estados europeus e da comu-
fortalecer o movimento da sociedade pelas mulheres islâmicas fere, por nidade europeia.
civil na esfera governamental. exemplo, este princípio de liberdade
religiosa que deveria ser protegido
IHU On-Line – Deseja acres-
pelo Estado francês.
IHU On-Line – De que ordem centar algo?
são os desafios de arranjar di-
Rita Grassi – O diálogo de in-
ferentes formas de compre-
ender a si próprio e ao mundo
de tantas diferentes maneiras?
“O pluralismo terconvicções é um movimento que
merece ser mais estudado e obser-
Qual o papel e a importância do religioso, ao vado por nós pesquisadoras e pes-
quisadores brasileiros e pela socie-
Estado laico na mediação desse
diálogo? meu ver, é a dade como um todo, para que, sem
querer mais uma vez importar algo
Rita Grassi – Compreender a si
próprio e ao mundo está na essência
consciência da matriz europeia, possamos refle-
tir e criar o nosso próprio movimen-
do ser humano. A busca por decifrar
este mistério que é a própria vida, a
e, também, to, dentro do contexto brasileiro e,
quem sabe, latino-americano, de
existência como um todo, é um de-
safio constante para todas e todos
mais um inclusão das diversas vozes. Faz-
se urgente uma ação com relação à
nós. E as religiões, ou melhor, as reflexo dessa laicidade do Estado, à garantia da
liberdade religiosa e, também, da
35
convicções têm um papel fundamen-
tal como linguagem e como caminho diversidade” liberdade de não crer e de não per-
escolhido para essa compreensão. tencer a uma religião. Essa discus-
Portanto, o Estado laico tem o de- são é atual e extremamente neces-
ver, segundo a historiadora francesa sária nos momentos sombrios que
Valentine Zuber4, de garantir a liber- IHU On-Line – Qual a novi- vivemos. Movimentos como esse
dade do “diálogo interconvic- trazem uma luz e apontam um ca-
2 James Barnett: foi representante do Arcebispo de
ções” em relação a outros pro- minho em direção a algo que possa
Canterbury junto às instituições europeias e capelão em
Estrasburgo 1995-2001. Editor do relatório da jornada jetos éticos? ser construído com o nosso idioma
de estudos do Conselho da Europa Consciência não-de-
nominacional da religião: qual a contribuição para a cida-
e com a nossa bagagem e linguagem
dania democrática?”, em 2005. Foi presidente do Grupo Rita Grassi – Entendo que o di- cultural, de matriz cristã, ocidental,
de Trabalho INGO sobre a Dimensão Religiosa do Diálogo
Intercultural (Conselho da Europa) e representante da Co-
álogo de interconvicções traga como mas também, africana, indígena,
missão Inter-Europeia de Igreja e Escola no Conselho da ponto principal a discussão de ge- oriental. Um diálogo que inclua os
Europa desde 1999. (Nota da IHU On-Line)
3 Bernard Quelquejeu (1932): é um francês dominica- rar um impacto social e político por menos favorecidos, os negros e ne-
no. Realizou seus estudos na Escola Politécnica e depois,
em 1957, passou a estudar filosofia com os dominicanos. meio de sua atuação. Não se trata de gras, as mulheres, os povos indíge-
Quelquejeu produziu inúmeras publicações em filosofia um diálogo que tenha como objetivo nas, xs LGBTQI+, que fale sobre os
moral e política, especialmente voltadas ao tema da não-
violência. Ele participa do grupo Non-Violence XXI. (Nota encontrar uma harmonia ou a paz valores humanos e não sobre dou-
da IHU On-Line)
4 Valentine Zuber (1965): historiadora francesa e diretora trinas e dogmas; como diria Pani-
de estudos da École Pratique des Hautes Etudes. Especia-
lista em história da liberdade religiosa na Europa Ociden-
história dos direitos humanos e das relações entre igre-
jas e estados nos tempos modernos e contemporâneos.
kkar, diálogo entre pessoas e não
tal e secularismo na França, sua pesquisa se concentra na (Nota da IHU On-Line) somente entre líderes religiosos. ■

Leia mais
- O Diálogo de Interconvicções. Artigo de Rita Macedo Grassi publicado nas Notícias do
Dia, de 16-8-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.
ly/2LdzuBV.

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

No cultivo do chão comum


brota a humanidade
Carlos Drawin discute as formas que a tolerância e a intolerância
assumiram nas sociedades contemporâneas
Ricardo Machado

A
razão humana é pródiga em trução de um chão comum, converte-se
produzir artefatos e artifícios em um sistema de opressão às minorias
deslumbrantes. Quando não se políticas. “Terrível desigualdade social
orienta, porém, em direção à justiça e ao só pode ser mantida por meio de uma
bem, funciona como um adubo estéril. duríssima política de segurança públi-
“A razão na pureza de seus imperativos ca e de repressão dos pobres e excluí-
seria capaz de sustentar a humanidade dos. Aqui se faz necessária a tolerância
do homem sem o lastro afetivo e efetivo zero, mesmo por parte daqueles que
do chão comum?”, questiona o professor adotam um discurso tolerante acerca
e pesquisador Carlos Drawin, em entre- de aspectos comportamentais”, des-
vista por e-mail à IHU On-Line. Ao creve Drawin. “Quando as pessoas se
pensar as questões relacionadas à tole- reúnem não em nome de si mesmas e
rância e às identidades, Drawin discute sim da experiência comum do sagrado,
36 como nossas sociedades fundamentam elas podem trazer para a vida concreta
aquilo que é tolerado baseadas no que aquela posição terceira que possibilita
é de serventia para o capitalismo. “Esse reconhecer o outro em nós. Ora, o sa-
processo coincide com a emergência do grado se dá em todas as religiões e o seu
sistema capitalista global, com a afirma- acolhimento nos possibilita vislumbrar
ção da universalidade efetiva da econo- o ‘nós’ no outro”, complementa.
mia e a integração dos mercados. Nesse
contexto a ideia de tolerância é reitera- Carlos Roberto Drawin possui
damente proclamada, porque tornou- graduação em Psicologia e bacharelado
se um valor essencial para o funciona- em Filosofia pela Universidade Federal
mento do sistema. As diferenças em si de Minas Gerais - UFMG, e mestrado e
mesmas não têm importância desde que doutorado em Filosofia pela UFMG. Até
todos possam confluir na equivalência 2010, quando se aposentou, foi profes-
universal representada pelo capital e sor do Programa de Pós-Graduação em
pelo mercado”, pontua. Filosofia da UFMG e membro titular do
Mais do que isso, a tolerância quando colegiado do mesmo programa.
assume uma forma descolada da cons- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a noção pois, como mostra Hannah Arendt1, “a política baseia-se na pluralidade
de intolerância está vinculada dos homens... e trata da convivência
à noção de identidade? De que 1 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã,
forma se dá essa relação? de origem judaica. Foi influenciada por Husserl, Heidegger
e Karl Jaspers. Em consequência das perseguições nazis-
438 da IHU On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014,
disponível em https://goo.gl/QqtQjz, abordou o trabalho
tas, em 1941, partiu para os Estados Unidos, onde escre- da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda as edições 168 da
Carlos Drawin – Desde suas veu grande parte das suas obras. Lecionou nas principais IHU On-Line, de 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt,
universidades desse país. Sua filosofia assenta em uma Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o
origens gregas, a ideia de tolerân- crítica à sociedade de massas e à sua tendência para ato- século XX, disponível em http://bit.ly/ihuon168, e 206, de
cia é elemento fundamental para a mizar os indivíduos. Preconiza um regresso a uma concep- 27-11-2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem
ção política separada da esfera econômica, tendo como política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em https://
constituição da sociedade política, modelo de inspiração a antiga cidade grega. A edição goo.gl/uNWy8u. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

“Se o espírito é vida,


habitar espiritualmente a
Terra é preservar a vida
que dela brota, para nela
entregar-se ao cuidado”

entre os diferentes”. Se as diferenças da tradição – da herança religiosa, A referência feita anteriormente a


chegarem a um ponto incontrolá- mítica e sapiencial – no espaço dis- Hegel não é fortuita. Com o fim do
vel de exacerbação e ruptura, então cursivo da filosofia, numa ordem das mundo feudal, as sangrentas guer-
a vida em comum, objeto maior da razões capaz de se elevar acima dos ras entre as religiões cristãs e o ad-
arte política, torna-se inviável. A interesses e paixões dos indivíduos vento da modernidade, a identidade
tolerância, como valor e atitude, e dos grupos. Não obstante, a razão constituída por séculos de educação
não pode ser abandonada senão ao que argumenta e convence não pos- cristã se perde e a tolerância ressur-
preço da destruição do caráter pro- sui força para mover a ação em di- ge com renovado significado e força
priamente humano da vida e sua reção da justiça e do bem se não for como princípio ético e político a ser
redução à crueza de sua realidade alimentada pela seiva proveniente inscrito no aparato constitucional
meramente biológica como luta sem do chão comum. Aí nos deparamos das instituições democráticas. A ra-
tréguas pela sobrevivência. Todavia, com o caráter aporético da inter-re- cionalidade emergente das novas ci-
como a vida em comum pode ser lação entre a tolerância e a identida- ências da natureza e explicitada pela
construída? A interrogação socráti- de ou, num linguajar hegeliano2, que reflexão filosófica poderia ser toma- 37
ca animou a investigação platônica a tolerância, a aceitação da diferença da como guardiã da tolerância. Es-
acerca da justiça e ainda reverbera só pode ser efetivamente exercida na taríamos no melhor dos mundos se
no transcorrer dos séculos, porque identidade, assim como esta somen- a vida concreta dos homens pudesse
a história é fecunda em nos oferecer te floresce e cria na aceitação da di- ser guiada apenas pela razão em sua
exemplos de conflitos insanáveis, ferença. Como caracterizar de modo validade universal e abstrata. Mal-
desagregação das comunidades e to- bem simples a noção de identidade? grado tantos esforços, a aporia da
dos os tipos de violência. Assim, se O termo identidade, em primeiro lu- inter-relação entre tolerância e iden-
a tolerância se apresenta como uma gar, remete a um princípio lógico e tidade não se deixa dissolver tão fa-
exigência incontornável e eviden- ontológico (A=A), em segundo lugar cilmente. A razão na pureza de seus
te para a manutenção de uma vida ao fenômeno psicológico da identi- imperativos seria capaz de susten-
verdadeiramente humana, então a ficação consigo mesmo e à perma- tar a humanidade do homem sem
condenação da intolerância tam- nência do Eu no tempo. Aqui, em o lastro afetivo e efetivo do chão
bém seria um requisito igualmente perspectiva cultural, o seu significa- comum? Hegel viu o imenso e trá-
incontornável e evidente. Todavia, do consiste na identificação estável gico desafio representado pelo su-
uma e outra, a exaltação da tolerân- e quase imediata dos membros de jeito moderno dotado de consciên-
cia e a condenação da intolerância, um grupo ou de uma tradição em cia moral, mas desprovido de vida
não são obviedades, realidades que contraposição com outros grupos e ética concreta. Quando eu coloco
se realizam por si mesmas. Por quê? tradições e sua permanência no tem- nestes termos a relação entre tole-
Porque o bem comum, referência po de modo a estabelecer referências rância e identidade, as respostas às
maior para o estabelecimento de re- valorativas e normativas transmiti- outras questões formuladas já estão
lações justas, pressupõe a existência das por sucessivas gerações. antecipadas. Estou questionando a
de um solo de pertinência social e ideia nebulosamente difundida da
compartilhamento vivido no qual o 2 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): filóso- incompatibilidade entre identidade
fo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de
reconhecimento recíproco possa se Aquino, desenvolveu um sistema filosófico no qual esti- e tolerância, como se esta última so-
vessem integradas todas as contribuições de seus princi-
enraizar. pais predecessores. Sobre Hegel, confira a edição 217 da
mente fosse possível na ausência de
IHU On-Line, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/ convicções profundas e socialmente
Quando o chão comum é erodido m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de (1807-
2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento compartilhadas.
pela passagem do tempo, tal como dessa obra. Veja ainda a edição 261, de 9-6-2008, Carlos
Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, dis-
ocorreu quando do surgimento da ponível em https://goo.gl/D94swr; Hegel. A tradução da
pólis, da cidade democrática, o gran- história pela razão, edição 430, disponível em https://goo.
gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição 482, dis-
IHU On-Line – De que forma
de desafio consistirá na transcrição ponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da IHU On-Line) se estabelece o paradoxo con-

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

temporâneo em que ao mesmo funcional, enquanto convém para de é um fenômeno transepocal, exis-
tempo se exige maior tolerân- o bom funcionamento sistêmico, se tem diversas modernidades. Quando
cia em um mundo marcado por não for o caso, pode-se conviver bem a cultura de uma época entra em cri-
radicais intolerâncias? com a intolerância; e, em segundo se e mergulha num processo de frag-
lugar, porque a tolerância deve se mentação e sendo a religião uma força
Carlos Drawin – Se o argumento
restringir aos aspectos comporta- simbólica fundamental de unificação
anterior gozar de alguma razoabili-
mentais, aos estilos de vida e jamais da cultura, então se espalha o medo e
dade, então o “paradoxo contempo-
alcançar ali onde se encontra o nú- este é o afeto básico da intolerância.
râneo” acima mencionado se desfaz.
cleo duro do poder, se tal ocorrer de- No século XVI, no contexto da divisão
O filósofo francês Jean-François
ve-se exercer com a maior firmeza a da cristandade, constatamos terríveis
Lyotard3 anunciou, logo no início
intolerância. explosões de intolerância e violência
dos anos oitenta do século passa-
entre católicos e protestantes. Basta-
do, o fim das “metanarrativas”. O Dois exemplos brasileiros. O atual
ria relembrar a tenebrosa “Noite de
que significa isso? Que não possu- governo difunde o discurso da into-
São Bartolomeu”6. Se considerarmos
ímos mais as condições culturais e lerância e, ao mesmo tempo, promo-
aquele século pré-moderno, nele en-
epistêmicas para construção de um ve a pauta econômica considerada
contraremos o horror pré-moder-
projeto comum de futuro para a como adequada e necessária pelo
no da intolerância. Por outro lado,
humanidade. Mergulhamos na era grupo hegemônico. Não há proble-
quando a modernidade radicaliza o
da fragmentação e da proliferação ma: a “modernização capitalista” e
processo de destruição das comuni-
infinita dos “jogos de linguagem”. a intolerância convivem bem, a não
dades e as desenraiza de sua tradição
Usando as expressões do historiador ser quando esta última começa a
cultural, o medo e a humilhação sus-
alemão Reinhart Koselleck4, pode-se produzir “ruídos” excessivos e ame-
citam a intolerância fundamentalista.
dizer: a ruptura com a tradição re- aça a boa condução da pauta econô-
Nesse caso, somos confrontados pela
duziu drasticamente nosso “espaço mica. Um segundo exemplo: a terrí-
intolerância religiosa pós-moderna.
de experiência” e o fim das meta- vel desigualdade social só pode ser
narrativas, o esgotamento das uto- mantida por meio de uma duríssima
pias reduziu drasticamente o nosso política de segurança pública e de re- IHU On-Line – Como pensar a
38 “horizonte de expectativas”. Ou seja, pressão dos pobres e excluídos. Aqui tolerância em um contexto de in-
o tempo histórico se contraiu no pre- se faz necessária a tolerância zero, tensificação do individualismo?
sente e o espaço social se pulverizou mesmo por parte daqueles que ado-
nos pequenos grupos e tribos. Esse tam um discurso tolerante acerca de Carlos Drawin – À luz das con-
processo coincide com a emergência aspectos comportamentais. siderações anteriores, a resposta
do sistema capitalista global, com a à pergunta é imediata. As grandes
afirmação da universalidade efeti- identidades, aquelas propiciadas pe-
va da economia e a integração dos IHU On-Line – Até que ponto
mercados. Nesse contexto a ideia de a intolerância religiosa é um 9-5-2005, um artigo em que comenta a obra de Teilhard
de Chardin, disponível em http://bit.ly/ihuon140. A edição
tolerância é reiteradamente procla- retorno à pré-modernidade e 142, de 23-5-2005, publicou a editoria Memória em home-
mada, porque tornou-se um valor até que ponto é, ao contrário, a nagem à Lima Vaz, disponível para download em http://
bit.ly/ihuon142. Confira ainda a entrevista Vaz: intérprete
essencial para o funcionamento do radicalização da modernidade? de uma civilização arreligiosa, com Marcelo Fernandes
de Aquino, na edição 186, de 26-6-2006, disponível em
sistema. As diferenças em si mesmas Carlos Drawin – A aporia da inter http://bit.ly/ihuon186; Vaz e a filosofia da natureza, com
Armando Lopes de Oliveira, na edição 187, de 3-7-2006,
não têm importância desde que to- -relação entre tolerância e identidade disponível em http://bit.ly/ihuon187. Veja também os ar-
dos possam confluir na equivalência mostra a fronteira fluida entre uma e tigos intitulados O comunitarismo cristão e a refundação
de uma ética transcendental, na edição 185, de 19-6-2006,
universal representada pelo capital e outra. A identidade capaz de acolher disponível em http://bit.ly/ihuon185, e Um diálogo cris-
tão com o marxismo crítico. A contribuição de Henrique
pelo mercado. Mas, por que, então, a diferença expande as esferas de de Lima Vaz, na edição 189, de 31-7-2006, disponível em
a intolerância? Por dois motivos: em reconhecimento, a que exclui a dife- http://bit.ly/ihuon189, ambos de autoria do Prof. Dr. Juarez
Guimarães. Inspirada no pensamento de Lima Vaz, a IHU
primeiro lugar, porque a tolerância rença e se enclausura em seu medo On-Line 197, de 25-9-2006, trouxe como tema de capa
interessa apenas por seu aspecto A política em tempos de niilismo ético, disponível para
com relação a toda alteridade acaba download em http://bit.ly/ihuon197a. Padre Vaz e o diálo-
por levar à intolerância e à violência. go com a modernidade foi o tema abordado por Marcelo
Perine em uma conferência em 22-5-2007, no Simpósio
A distinção entre modernidade e pré- Internacional O futuro da Autonomia. Uma sociedade de
3 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, indivíduos? Leia, também, a edição 374 da IHU On-Li-
autor de uma filosofia do desejo e significado represen- modernidade precisaria ser aprofun- ne sobre o legado filosófico vaziano, de 26-9-2011, em
tante do pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A feno-
menologia (Lisboa: Edições 70, 1954), O inumano: conside-
dada; se é verdade, como mostrou o http://bit.ly/ihuon374. Cadernos IHU em sua 42ª edição
também teve um tema dedicado ao pensador, intitulado
rações sobre o tempo (Lisboa: Estampa, 1990), Heidegger Pe. Henrique Vaz5, que a modernida- Ética e Intersubjetividade: a filosofia do agir humano segun-
e ‘os judeus’ (Lisboa: Instituto Piaget, 1999) e A condição do Lima Vaz, de autoria de Antonio Marcos Alves da Silva.
pós-moderna (8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004). Acesse pelo link http://bit.ly/cadihu42. A revista IHU On
(Nota da IHU On-Line) 5 Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-2002): filósofo e -Line publicou recentemente a edição A memória do Ser
4 Reinhart Koselleck (1923-2006): um dos mais impor- padre jesuíta, autor de importante obra filosófica. A revista em plena civilização científico-tecnológica. ‘Antropologia
tantes historiadores alemães do pós-guerra, destacan- Síntese. n. 102, jan.-ab. 2005, p. 5-24, publica o artigo Um Filosófica’ de H.C. de Lima Vaz, 25 anos depois, disponível
do-se como um dos fundadores e o principal teórico da Depoimento sobre o Padre Vaz, de Paulo Eduardo Aran- em http://bit.ly/2efu2M7. (Nota da IHU On-Line)
História dos Conceitos. As suas investigações, ensaios e tes, professor do Departamento de Filosofia da USP, que 6 Massacre da noite de São Bartolomeu ou Noite de
monografias cobrem um vasto campo temático. No geral, merece ser lido e consultado com atenção. A IHU On-Li- São Bartolomeu: foi um episódio sangrento na repressão
pode-se dizer que a obra de Koselleck gira em torno da ne número 19, de 27-5-2002, disponível em http://bit.ly/ aos protestantes na França pelos reis franceses, que eram
história intelectual da Europa ocidental do século 18 aos ihuon19, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra de católicos. Esses assassinatos aconteceram em 23 e 24 de
dias atuais. Também é notável o seu interesse pela Teoria Lima Vaz, com o título Sábio, humanista e cristão. Sobre ele agosto de 1572, em Paris, no dia de São Bartolomeu. (Nota
da História. (Nota da IHU On-Line) também pode ser consultado na IHU On-Line nº 140, de da IHU On-Line)

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las “metanarrativas” às vezes susci- sariamente fonte de alienação. Antes suspeitamos da isenção dos filósofos,
taram muita violência. A história do pode ser motivo de luta, de resis- cientistas, enfim, de todas as pessoas
chamado “socialismo real” não deixa tência e de esperança ativa. Mas as que professam convicções religiosas
dúvidas a respeito. Mas a intensifica- religiões são muitas. Vivemos num e seriam, portanto, parciais. Have-
ção do individualismo parece ser um mundo plural. A psicanálise nos ria, no entanto, algum espaço cultu-
índice inequívoco da despolitização ensina que só pode haver um “nós” ral vazio de convicções? Um vácuo
da sociedade no sentido da busca quando o “eu” e os “tu” se encontram de crenças? Alguém poderia viver e
do bem comum. Ora, as identidades referidos a um “ele” posto num outro falar no éter da pura racionalidade,
fragilizadas não apenas produzem plano ou numa posição terceira em do conceito puro? A denegação das
intolerância com relação à diversida- relação ao “eu” e ao “tu”. Quando as convicções não seria pior do que sua
de dos grupos e estilos de vida, mas pessoas se reúnem não em nome de clara assunção? Não seria uma for-
tornam-se incapazes de resistir ao si mesmas e sim da experiência co- ma de imunização epistemológica?
avanço da lógica sistêmica e, portan- mum do sagrado, elas podem trazer “Acredito” – e a palavra já contém a
to, acabam por contribuir para com para a vida concreta aquela posição afirmação que vem a seguir – acredi-
a intolerância silenciosa e talvez ain- terceira que possibilita reconhecer o to que explicitar as próprias crenças,
da mais violenta; aquela que incide, outro em nós. Ora, o sagrado se dá religiosas ou não, é o melhor cami-
como já foi dito, na vida dos pobres, em todas as religiões e o seu acolhi- nho para a crítica e para o diálogo
dos migrantes, dos excluídos. mento nos possibilita vislumbrar o entre as convicções.
“nós” no outro.

IHU On-Line – Qual a poten- IHU On-Line – Como habitar


cialidade de as religiões se com- IHU On-Line – Como o senhor espiritualmente a Terra?
portarem como guarda-chuvas vê a construção do “diálogo in-
Carlos Drawin – Um dos signifi-
comuns na relação entre as terconvicções”? Que desafios
cados originários de “espírito” – nos
diferentes pessoas? Como isso éticos, humanos e religiosos ele
ensina o Pe. Henrique Vaz em sua
opera quando se trata de pesso- enfrenta?
magistral Antropologia Filosófica
as de diferentes religiões?
Carlos Drawin – A resposta à (São Paulo: Edições Loyola, 1988) – é
Carlos Drawin – Não sou um pergunta anterior já responde a esta, justamente o de “sopro ou respiração” 39
estudioso das religiões. De modo pois defende o diálogo entre as reli- (pneûma, spiritus), de dinamismo e
intuitivo e simples, eu diria que as giões. Acolhimento da diferença na força vital. Viver espiritualmente a
religiões, por suas crenças e rituais, identidade que nada tem a ver com Terra nada tem a ver com a fuga para
convidam as pessoas a se reunirem ecletismo ou algum espiritualismo o etéreo, para algo vagamente celes-
e assim fazendo mitigam a sua con- vago e a gosto das platitudes pós- tial onde estaríamos livres dos en-
dição de desamparo existencial. Por- modernas. Duas observações podem traves da carne. Se o espírito é vida,
que o convite não é feito em nome de ser acrescentadas. A primeira diz habitar espiritualmente a Terra é
ninguém em particular e sim de uma respeito aos desafios, aos obstácu- preservar a vida que dela brota, para
experiência do sagrado, do que esca- los. Todos nós possuímos uma es- nela entregar-se ao cuidado. Na fábu-
pa às pequenas tramas do quotidia- trutura psíquica narcísica que tende la de Hyginus, citada por Heidegger8
no. Quando o fio simbólico que une a se defender das ameaças externas, em Ser e tempo (Petrópolis: Vozes,
os indivíduos e grupos torna-se mui- por isso a abertura ao diálogo é mui- 2014), lemos a decisão do deus sobre
to esgarçado, a depressão, o tédio, a to difícil. Talvez o encontro com o qual nome atribuir ao homem: “Tu,
desvalia, o pânico e a desesperança outro seja viável não tanto por meio Júpiter, porque deste o espírito, de-
tendem a tomar conta. Se a religião de frios argumentos, mas da partilha ves recebê-lo na sua morte; tu Terra,
é um bálsamo, o refúgio da criatura das narrativas. Do mesmo modo que porque o presenteaste com o corpo,
atormentada – como disse o jovem quando lemos um romance ou um deves receber o corpo. Mas porque
Marx7 –, o seu consolo não é neces- poema saltamos sobre nós mesmos
e nos encontramos com o inusita- 8 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua
7 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo- do, com o “fora de nós” e o trazemos obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática
mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa- heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929),
dores que exerceram maior influência sobre o pensamen- como um elemento de reconfigura- Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafí-
to social e sobre os destinos da humanidade no século 20. sica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de
A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda
ção de nossa vida. 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível
Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada
Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre A segunda observação diz respei- Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponível em
o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU em
de 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo to à palavra “convicção” frequente- formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da me-
e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em mente associada à “religião”. Numa tafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12,
https://goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
são o que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida sociedade fortemente secularizada, revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em https://
por Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical de Nietzs-
327 da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http:// che não pode ser minimizado, na qual discute ideias de
bit.ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição es- -Line, edição 525, intitulada Karl Marx, 200 anos - Entre o sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de
pecial sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas ambiente fabril e o mundo neural de redes e conexões, em Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do
Piketty O Capital no Século XXI, que retoma o argumento celebração aos 200 anos do nascimento do pensador, está ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI
central de O Capital, obra de Marx, disponível em http:// disponível em ihuonline.unisinos.br/edicao/525. (Nota da Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da
www.ihuonline.unisinos.br/edicao/449. A revista IHU On IHU On-Line) vida humana. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

“cuidado” (Sorge) foi quem primei- humus (terra)”. O espírito feito carne Carlos Drawin – Há sempre
ro o formou, que ela então o possua sendo “homo”, é “humus” porque ha- muito a acrescentar. Mas já abusei
enquanto ele viver. Mas porque per- bita a terra e o faz no cuidado da vida. da paciência de algum possível leitor
siste a controvérsia sobre o nome, ele IHU On-Line – Deseja acres- e, afinal, o não dito é sempre o mais
pode se chamar homo, pois é feito de centar algo? fundamental. ■

Leia mais
- Intersecção entre metafísica e ética em Lima Vaz. Entrevista especial com Carlos Ro-
berto Drawin, publicada na revista IHU On-Line nº 188, de 4-7-2016, disponível em http://bit.
ly/2KMSgQf.
- A mística “sopra onde quer”. Entrevista especial com Carlos Roberto Drawin, publicada
na revista IHU On-Line, nº435, de 16-12-2013, disponível em http://bit.ly/1RT3ADo.
- Um mestre. Entrevista especial com Carlos Roberto Drawin, publicada na revista IHU On-Line
nº 394, de 28-5-2012, disponível em http://bit.ly/1TZzfHL.

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A dialogia construtiva da interconvicção


Marcelo Camurça parte do diálogo inter-religioso para pensar as possibilidades
abertas por uma relação com as alteridades que sejam capazes de construir
e repensar convicções para além de uma perspectiva pessoal
Ricardo Machado

A
pesar dos sucessivos e recentes etc.”, ressalta Camurça. “Duas ideias
ataques à Carta Magna, o Brasil positivas chamam atenção nesta arti-
ainda está sob a égide da Cons- culação: uma primeira, de a escolha ser
tituição de 1988, na qual há a ampla pelo ‘inter’ e não pelo ‘pluri’ convicções,
defesa dos direitos sobre as práticas pois significa não apenas constatar a
religiosas mais diversas, com abertura, pluralidade, mas colocar em movimen-
inclusive, à defesa de questões ambien- to, em ações o resultado desta interlo-
tais, étnicas e de gênero. Por outro lado, cução”, pontua. “E uma segunda, a de
há uma contraofensiva de setores mais que, embora o diálogo pressuponha
conservadores, tanto na Igreja Católi- interlocutores que possuem convicções
ca quanto em igrejas pentecostais, que e pertenças, ele implica que essa intera-
tornam a possibilidade do debate inter ção dialógica produza transformações e
-religioso, em sentido restrito, e políti- reconfigurações nas convicções de cada
co, em sentido amplo, mais complexo parte dialogante, pois convicção não 41
e difícil. “Há sempre um ‘outro’ que se exclui a possibilidade de uma retomada
recusa a aderir a essa visão de mundo e modificação dos seus pressupostos”,
e que não pode ser mais proscrito da complementa.
sociedade por interferência religiosa. Marcelo Camurça é antropólogo e
Passamos então de uma estrutura de se dedica há mais de 25 anos ao estudo
plausibilidade monista e açambarca- do fenômeno religioso no Brasil. Apo-
dora da totalidade da pré-modernida- sentou-se como professor titular no De-
de religiosa a múltiplas estruturas de partamento de Ciência da Religião na
plausibilidade e experiências de religio- Universidade Federal de Juiz de Fora
sidade em competição entre si, por ‘co- - UFJF e hoje segue atuando como pro-
rações e mentes’”, pontua o professor e fessor colaborador nessa instituição. É
pesquisador Marcelo Camurça, em bolsista produtividade do CNPQ. Atu-
entrevista por e-mail à IHU On-Line. almente está como pesquisador visitan-
O diálogo interconvicções, que ultra- te no PPG em História Social da Uni-
passa as dimensões religiosas, vai ao versidade Estadual do Rio de Janeiro
encontro do alargamento das relações - UERJ. É autor de várias publicações
entre diferentes formas de ver, pen- nos temas de “Campo Religioso Bra-
sar e conceber a vida. “Considero que sileiro” e “Religião e Espaço Público”,
esta formulação visa alargar os gru- dentre os quais podemos destacar Es-
pos interlocutores neste diálogo: das piritismo e Nova Era: interpelações ao
cosmovisões propriamente religiosas Cristianismo Histórico (Editora Santu-
para a inclusão de outras formas de ário, 2014).
convicções: laicas, ecológicas, estéticas Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que significa Marcelo Camurça – “Laico” vem do clero, ou seja, leigos. No século
a laicidade nos tempos atuais? do grego “laikós”, que significa povo. XIX passou a designar um espaço
Por que o fenômeno tem sido No léxico da Igreja Católica, diz res- que saía do controle eclesiástico. A
descrito no plural, “laicidades”? peito àqueles que não são membros noção de laicidade, mais especifica-

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

damente, diz respeito à regulação civil” preside as grandes cerimônias dê de forma assimétrica privilegian-
normativa, jurídico/institucional do Estado. do as majoritárias, cristãs.
da relação entre Estado e Igreja
Por fim no caso do Brasil, apesar da
em sociedades modernas e plurais.
separação Igreja/Estado firmada na
“A escolha dos
Portanto, a configuração do Estado
Constituição de 1891, a religião nunca
laico que se estende do século XIX
deixou de ter influência no Estado, na
aos tempos atuais implica na eman-
cipação deste Estado dos poderes
esfera pública e na política. Primeira-
mente com a Igreja Católica, que dis-
indivíduos
eclesiásticos, na sua neutralidade
em matéria religiosa, assim como na
seminou sua influência e valores de
forma naturalizada nas instituições
agora não é só
concessão por este, de tratamento
igualitário a todas as religiões (majo-
públicas e, mais recentemente, atra-
vés dos evangélicos com uma ação os-
racional, mas
ritárias e minoritárias) e na garantia
da tolerância e da liberdade religio-
tensiva nos espaços públicos do Esta- uma experi-
do e da política. O Catolicismo foi por
sa como expressão da liberdade de
consciência, incluindo a liberdade
longo tempo considerado a religião mentação
emocional e
da “nação” a quem o Estado outorga-
de não possuir religião. va a hegemonia cultural na socieda-
Considero bem acertado utilizar o
termo no plural, “laicidades”, para
de. Isto através da concessão à Igreja
Católica da organização dos ritos cí- afetiva por
indicar que não existe um proces-
so único de separação do Estado e
vicos da nação e da sagração das ins-
tituições do Estado: missas campais, entre uma
da igreja. Na Europa, as diferenças
são marcantes. Há casos de separa-
crucifixos e cruzeiros nos lugares
públicos; influência nas políticas na pluralidade de
ção rígida, como o da França, onde
as religiões não possuem status pú-
esfera da família, da escola e da saú-
de pública. A partir dos anos 1980,
possibilidades”
blico, não podendo ser financiadas contudo, assistimos ao crescimento
42 pelo Estado, embora gozem de toda do segmento evangélico-pentecostal
liberdade de expressão. Outros de quebrando a hegemonia católica na IHU On-Line – Como as dinâ-
separação flexível, como a Alema- sociedade e desejando converter essa micas da religiosidade têm se
nha e Holanda, onde as religiões representatividade social/simbólica organizado no atual contexto
são reconhecidas de direito público angariada na população em presença de multiplicação do convívio
pelo Estado e chamadas a cooperar e reconhecimento na esfera pública. entre diferentes confissões?
em políticas públicas de educação, A partir da Constituinte de 1988, os
Marcelo Camurça – A moderni-
assistência, recebendo subvenções. evangélicos traçam um projeto de po-
dade da globalização implica que as
Ou ainda na Inglaterra e países nór- der e de ocupação do espaço público.
zonas de separação entre indivíduos
dicos, regimes monárquicos confes- Com isso, o alto escalão da eli- e culturas desapareceram. Hoje todo
sionais que funcionam como identi- te política brasileira se acostumou mundo interage com todo mundo,
dade coletiva da nação, mas que não com a presença destas igrejas em presencialmente ou virtualmente,
constituem obstáculos à emancipa- seu seio, com suas “bancadas”, exor- das mais diferentes formas e numa
ção política do Estado de modelo tações, bênçãos com imposição de velocidade cada vez maior. Como
parlamentarista, cumprindo mais mãos, “ungindo” candidatos a pre- resposta a esta situação de supe-
um papel simbólico. No caso dos feito, governador e presidente, com rexposição e contato, o mundo mo-
EUA, onde capitalismo e moderni- performances de cultos, leitura de derno, assim como sua faceta pós-
dade não se incompatibilizaram com versículos da Bíblia e sua aposição moderna, tem produzido dinâmicas
religião, a 1ª emenda constitucional nos plenários das casas legislativas socioculturais e simbólicas comple-
garantiu a separação do Estado e e do Congresso Nacional. Toda uma xas e paradoxais. De um lado ruptu-
Igreja como uma via de duas mãos: imagética e ritualística funcionando ras com a tradição e, de outro, con-
proteção do livre exercício religioso como forma de apoiar seus projetos tinuidades, revanches e até revivals.
da interferência estatal e proteção para a aprovação de leis, sobretudo A experiência religiosa termina por
do Estado de interferência religiosa. de conteúdo moral (sexual). Por- acompanhar estes processos contra-
E no modelo de “religião civil” elabo- tanto, devido ao papel histórico de ditórios. Peter Beyer2, num esclare-
rado por Bellah1, se constitui numa uma matriz cristã, hoje dividida en-
“meta-religião” acima das religiões tre católicos e evangélicos, podemos 2 Peter Beyer: pesquisador que concentrou sua
existentes nesse país. Partindo do afirmar que, mesmo sem a presença pesquisa principalmente na teoria sociológica da
religião e em temas da história religiosa canaden-
lema “In God we trust”, esta “religião de um Estado confessional explícito, se, fazendo sua dissertação de doutorado sobre
Louis Riel e estudos de pós-doutorado sobre o
consolida-se na “laicidade à brasilei- catolicismo romano canadense francês dos sécu-
1 Robert N. Bellah (1927-2013): foi professor de ra” um reconhecimento da dimensão los 19 e 20. Desde meados da década de 1980,
Sociologia Emérito na Universidade da Califórnia no entanto, seus principais interesses de pesquisa
em Berkeley. (Nota da IHU On-Line) pública da religião. Ainda que isso se estão centrados no entendimento sociológico das

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cedor ensaio, fala de duas reações a sico O Dossel Sagrado (São Paulo: e enquanto modo de vida para cente-
esta situação de convívio inevitável: Editora Paulus, 1985), o poderio de nas de milhares de brasileiros. Com
a conservadora e a liberal. plausibilidade da religião na mo- isto, a chamada tese da privatização
dernidade não recobre mais a so- e perda de influência das religiões na
Na minha leitura do autor, a opção
ciedade como um todo. Há sempre sociedade não explica em nada nossa
liberal estenderia a vivência da re-
um “outro” que se recusa a aderir a situação. Mas também falar em reli-
ligiosidade à dimensão ecumênica,
essa visão de mundo e que não pode giões de forma geral termina por não
no reconhecimento da alteridade e
ser mais proscrito da sociedade por captar as repartições que se estabele-
da tolerância. E consideraria como
interferência religiosa. Passamos cem entre elas. Estou falando aqui de
uma distorção do que seja a reli-
então de uma estrutura de plausi- maioria (cristã: católica e evangélica)
giosidade, a intolerância, o obscu-
bilidade monista e açambarcadora e minoria (mediúnicas, afro-brasilei-
rantismo (recusa a compreender as
da totalidade da pré-modernidade ras, orientais, alternativas) e das im-
mediações sociais, culturais, cientí-
religiosa a múltiplas estruturas de plicações disto para a ideia de plura-
ficas do meio laico e moderno) e o
plausibilidade e experiências de lismo. Sobretudo, do que falei antes
fechamento a uma atuação social
religiosidade em competição en- sobre as visões religiosas: conserva-
para viver sua “mística”.
tre si, por “corações e mentes”. É dora ou libertária. Desta forma, mais
Já a opção conservadora enfatiza, quando Berger diz “a religião não que nunca, no Brasil assistimos de
enrijece a pertença a uma confissão legitima mais o mundo”, mas serve forma aberta e amplificada esta cliva-
em detrimento da aceitação da alte- para “manter mundos parciais con- gem entre duas formas de conceber e
ridade religiosa e até mais, em opo- correntes”. O mundo pós-moderno, praticar a religião. É claro, como disse
sição e confrontação a esta, no estilo da religião do self, da reflexividade, Berger, lembrado por mim acima, en-
“minha religião é verdadeira, a sua do trânsito religioso do indivíduo tre estes dois polos, existindo vários
é heresia demoníaca”. Embora seja por entre experiências estáticas e níveis intermediários de conciliação.
produto da globalização e do conta- emocionais, só fez radicalizar esse
to que esta produz, se coloca contra processo. A escolha dos indivíduos Se por um lado, pós-Constituição
a modernidade, contra a autonomia agora não é só racional, mas uma de 1988, foi se gestando uma rela-
das esferas seculares, defendendo experimentação emocional e afetiva ção entre correntes religiosas com
uma expansão das regras religio- por entre uma pluralidade de pos- abertura para as questões raciais, 43
sas para a legislação, sociedade e sibilidades. Contudo, semelhante à de gênero, do meio ambiente, dos
cultura, buscando estabelecer um referência que fiz a Beyer na pergun- direitos humanos e reprodutivos,
território social próprio, de formato ta anterior, Peter Berger afirma que resultando em ações visando à
religioso. Beyer fala que o objetivo a situação pluralista engendra duas constituição de movimentos so-
conservador é estabelecer uma “des- respostas a sua dinâmica: aquela li- ciais, redes, ONGs e o fortalecimen-
diferenciação” entre religião e políti- beral e de concorrência, em que os to da sociedade civil, por outro foi
ca, família, educação e ciência. grupos religiosos disputam entre si se formando uma poderosa reação
a preferência dos indivíduos, e a que conservadora a esse processo. Bran-
Acho que vivemos uma grande ten- dindo uma moral conservadora
são no mundo entre esses dois gran- se mantém fechada e entrincheira-
da nas suas estruturas dogmáticas de valores tradicionais, a corrente
des projetos, que adquire segundo majoritária das igrejas evangélico
o lugar e suas condições, configu- condenando toda e qualquer outra
forma de vida religiosa concorrente. -pentecostais e em setores consi-
rações mais ou menos particulares, deráveis da Igreja Católica: leigo/
mas que atravessam dentro desta Entre essas duas, Berger fala de vá-
rias possibilidades intermediárias as, clero e do episcopado em torno
polaridade vários países e regiões. A da Renovação Carismática, Canção
resultante é ainda difícil de prever. de acomodação e intransigência.
Nova, Opus Dei, se contrapuseram
com êxito a iniciativas no sentido
IHU On-Line – Até que ponto IHU On-Line – Diante do Bra- da descriminalização do aborto, cri-
o pluralismo religioso é efeito sil atual, como o senhor vê o fu- minalização da homofobia, políticas
de um processo de atomização turo das religiões? afirmativas de gênero regidas por
da religião? critérios acadêmicos, pedagógicos
Marcelo Camurça – As religiões
e sanitários, enfim laicos. Lideram
Marcelo Camurça – Como em geral no Brasil souberam acom-
panhar e se imbricar com as transfor- uma ofensiva agora de cunho mais
constatou Peter Berger3 no seu clás- propositivo (do que de resistência)
mações tecnológicas, midiáticas, se
aproximar dos campos do esporte, la- em termos de leis: Estatuto do Nas-
relações entre religião e globalização. Sua pes-
quisa atual se concentra na diversidade religiosa zer, consumo, da juventude etc., para cituro, Estatuto da Família, luta
e multiculturalismo no Canadá, especialmente contra o que definem como “ideolo-
no que diz respeito aos imigrantes recentes e à continuar a fazer sentido existencial
segunda geração desses imigrantes. Ele é autor gia de gênero” etc. Tudo isto com o
de Religião e Globalização, Religiões na Sociedade
Global e coeditor (com Lori Beaman) de Religião, ricano, professor de Sociologia na Universidade objetivo de moldar a sociedade aos
Globalização e Cultura (Estudos Internacionais em de Boston. Entre outros, escreveu O dossel sa- desejos do que chamam uma “maio-
Religião e Sociedade). (Nota da IHU On-Line) grado (São Paulo: Paulinas, 1985). (Nota da IHU
3 Peter Berger: sociólogo da religião norte-ame- On-Line) ria moral religiosa”.

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Como o senhor implica que essa interação dialógica da saúde, sexualidade, direitos hu-
observa o fenômeno do diálogo produza transformações e reconfigu- manos e reprodutivos, infância e
interconvicções? rações nas convicções de cada parte adolescência, meio ambiente e edu-
dialogante, pois convicção não exclui cação. Vejo que os agentes arrolados
Marcelo Camurça – Conheci
a possibilidade de uma retomada e por Quelquejeu e outras lideranças
essa noção do “diálogo interconvic-
modificação dos seus pressupostos. do G3i na Europa se equivalem aos
ções” por meio de meu colega e ami-
Enfim, que sua convicção se for- do Brasil: ONGs, grupos religiosos,
go, o teólogo católico leigo Faustino
ja na interface com a convicção do organizações de direitos civis etc.
Teixeira. Ele que é muito “antenado”
na temática do “diálogo inter-reli- outro. Uma terceira ideia pode ser Como exemplo, me ocorre dizer
gioso” e com o meio laico. Considero acrescentada; embora este seja um uma experiência que se passou co-
que esta formulação visa alargar os diálogo entre atores que exercem migo recentemente. Por iniciativa da
grupos interlocutores neste diálo- posições no meio político/social/ atual presidente da Associação Bra-
go: das cosmovisões propriamente público, ele não é um diálogo movi- sileira de Antropologia - ABA, Maria
religiosas para a inclusão de outras do apenas pela “pura razão”, estão Filomena Gregori6, está sendo cons-
formas de convicções: laicas, ecoló- envolvidos nele afetos, boa vontade tituída uma Comissão coordenada
gicas, estéticas etc. e “apetite do Bem”. Portanto, pode pelo antropólogo Ronaldo de Almei-
ser incluída nele a dita dimensão das da7, da Unicamp, reunindo antropó-
Pelo que tomei conhecimento, este “espiritualidades”.
é um movimento que surgiu origi- logos/as que pesquisam o papel das
nalmente na França, mas que se religiões no espaço público no Brasil,
dentre os/as quais eu estou partici-
“A escolha do
estendeu para a Europa e que visa
responder à dinâmica do estabele- pando. A ideia é que esta comissão,
a exemplo de outras já clássicas na
cimento das regras democráticas
que regem a Comunidade Europeia. nome da Associação, como a de assuntos indí-

Comissão ao
Pelo que dizem os expoentes desse genas ou de laudos periciais, venha
movimento Bernard Quelquejeu4 e subsidiar a ABA para se posicionar

44
François Becker5, o movimento se
encontra estruturado no Groupe de
evitar o nome diante de questões candentes que
envolvem posicionamentos e ações
Travail International, Interculturel
e Interconvictionnel (G3i) – uma
‘religião’, de religiões majoritárias redundan-
do em intolerância religiosa, atenta-
tríade de “is”. E, como disse antes,
visa expandir as fronteiras do diá-
parece estar dos contra o caráter laico do Estado,
contra a liberdade de expressão e
logo de uma restrição a grupos reli-
giosos para grupos culturais, políti-
em sintonia artística, do qual a interferência do
prefeito/bispo da Igreja Universal
cos, identitários etc. Pois, para eles,
a dimensão da convicção engloba
com o espírito no Rio de Janeiro, querendo proibir
publicações na Feira do livro, é um
várias posturas de adesão, sejam do ‘movimen- exemplo eloquente.
elas políticas, culturais, religiosas e
espirituais. to interconvic- Pois bem, na hora de decidir o
nome da Comissão, resolveu-se não
Duas ideias positivas chamam aten-
ção nesta articulação: uma primeira,
ções’, encontrar colocar nela a palavra religião. Ficou
sendo Comissão de Laicidade e Di-
da escolha ser pelo “inter” e não pelo
“pluri” convicções, pois significa não
conceitos mais reitos Humanos da ABA. Pretende-
se que ela seja um espaço no qual, à
apenas constatar a pluralidade, mas
colocar em movimento, em ações o
abrangentes” 6 Maria Filomena Gregori: professora Livre-Do-
cente do Departamento de Antropologia da Uni-
resultado desta interlocução. E uma camp, possui graduação em Ciências Sociais pela
mesma instituição, mestrado em Ciência Política e
segunda, a de que embora o diálo- doutorado em Antropologia Social pela Universi-
go pressuponha interlocutores que IHU On-Line – De que manei- dade de São Paulo - USP, estudos de pós-douto-
ra, levando em conta o Brasil rado no Departament of Anthropology (UNIVER-
possuem convicções e pertenças, ele SITY OF CALIFORNIA, Berkeley, 2001) e programa
atual, o diálogo interconvic- de visiting scholar na Columbia University (Nova
Iorque, 2016). (Nota da IHU On-Line)
4 Bernard Quelquejeu (1932): é um francês do- ções pode ser uma ferramenta 7 Ronaldo de Almeida: graduado em Ciências
minicano. Realizou seus estudos na Escola Politéc- importante de convivialidade? Sociais e mestre em Antropologia Social pela Uni-
nica e depois, em 1957, passou a estudar filosofia camp e doutor em Antropologia Social pela USP.
com os dominicanos. Quelquejeu produziu inú- Concluiu recentemente Pós-doutorado na École
meras publicações em filosofia moral e política, Marcelo Camurça – No Brasil des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris.
especialmente voltadas ao tema da não violência. já assistimos a experimentos desse Atualmente é professor adjunto no Departamento
Ele participa do grupo Non-Violence XXI. (Nota da de Antropologia da Unicamp e coordenador do
IHU On-Line) diálogo interconvicções nas articu- PGAS-Unicamp, além de pesquisador do Centro
5 François Becker: secretário-geral, representante Brasileiro de Análise e Planejamento. Tem experi-
da Rede Europeia de Igrejas e Liberdade no Con- lações promovidas na sociedade ci- ência na área de Antropologia da Religião e An-
selho da Europa e Presidente do G3i, Grupo de vil para influir nas políticas públicas tropologia Urbana, atuando principalmente nos
Trabalho Internacional, Intercultural e Interconvic- seguintes temas: religião, pentecostalismo, cidade
cional. (Nota da IHU On-Line) do Estado voltadas para os campos e pobreza. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

maneira das “interconvicções”, mo- Marcelo Camurça – Nos tempos laciona três indicadores desta crise
bilizaremos especialistas, estudiosos atuais, em que se explicita a intole- global: a velocidade da globaliza-
e lideranças religiosas para um deba- rância, o preconceito e a violência, ção, a exclusão social e a agressão
te e ações acerca do Estado laico, da muitas vezes chancelada em nome ao meio ambiente.
democracia, se contrapondo a ma- da religião, desvelaram-se urgên-
Então, todos nós seres humanos
nifestações de intolerância, de con- cias em relação ao esgotamento dos
estamos atingidos e implicados nes-
fessionalização do espaço público e nossos recursos naturais e à devas-
ta crise global e por isso, a espiritu-
de expansão de fundamentalismos tação do planeta. A espiritualidade
alidade, se se quer expressão mais
por sobre espaços plurais da socie- enquanto fonte última de sentido
profunda e significativa de cada um
dade brasileira. A escolha do nome humano em direção à ultrapassagem
da Comissão ao evitar o nome “reli- dos humanos, deve expressar uma
do que aprisiona, pode se transfor-
gião”, parece estar em sintonia com ética com desdobramentos públicos.
mar em reserva de mobilização para
o espírito do “movimento intercon- Se a espiritualidade, nestes tempos
a resistência a esta profanação de
vicções”, encontrar conceitos mais de urgência atuais, não estimular a
nosso habitat.
abrangentes, no caso a laicidade, compaixão dos indivíduos para com
que contenha segmentos religiosos Em recente ensaio intitulado Où seus semelhantes, a integração com
e não-religiosos, o pluralismo cultu- atterir? (Paris: La Découverte, o meio ambiente e a conectividade
ral e de convicções numa postura de 2019), o filósofo Bruno Latour8 re- com todos os seres deste planeta, as-
defesa da sociedade civil, do Estado sim como a gratuidade e intensidade
8 Bruno Latour (1947): filósofo francês, é um dos cotidiana na sua vivência, ela não
laico e da democracia no Brasil. fundadores dos chamados Estudos Sociais da Ci-
ência e Tecnologia (ESCT). É reconhecido, entre será digna deste nome. ■
outros trabalhos, por sua contribuição teórica -
ao lado de outros autores como Michel Callon e
IHU On-Line – Como habitar John Law - no desenvolvimento da ANT - Actor humanos como os não humanos, estes últimos
Network Theory (Teoria ator-rede) que, ao analisar devido à sua vinculação ao princípio de simetria
espiritualmente a Terra? a atividade científica, considera tanto os atores generalizada. (Nota da IHU On-Line)

45
Leia mais
- O espiritismo. Um “neocristianismo”? Entrevista especial com Marcelo Ayres Camurça
publicada nas Notícias do Dia, de 30-10-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU,
disponível em http://bit.ly/34rkUOC.

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

O difícil e rico encontro com o Outro


Mauro Lopes pensa o diálogo inter-religioso como uma forma
necessária, apesar de difícil, para encontrar um caminho
de bondade e generosidade
Ricardo Machado

D
ialogar. Mais do que um verbo, Lopes ainda ressalta que é importan-
tomar o termo “dialogar” como te se emocionar com a poesia de uma
um imperativo é um gesto éti- humanidade profunda, que, no fundo,
co que se abre à alteridade. Eviden- torna-se mais relevante que nossa pró-
temente isso não se dá de uma forma pria religiosidade. “Quem deseja um
absolutamente tranquila, mas é im- caminho de profundidade amorosa, de
portante encarar a empreitada. “Gran- paz, em algum momento questionará
de desafio foi o de – não sem custo aqueles e aquelas que a cercam num
para mim – abdicar de uma visão de ambiente de superficialidade, rancor e
catolicismo que estava impregnada pe- ódio”, avalia. Mas ser capaz de ouvir o
los limites da institucionalidade. Abrir outro requer alguns passos fundamen-
as portas do coração para acolher os tais. “A primeira demanda do diálogo é
outros sem preconceito foi um passo paciência. Esperar que cada qual faça
46 difícil no começo, mas fundamental”, seu caminho. A segunda – e fico com
pontua Mauro Lopes, jornalista e essas duas – é, como diz o Papa Fran-
editor do site Paz e Bem, em entrevista cisco, a do diálogo pelo exemplo”, pon-
por e-mail à IHU On-Line. “Sinto- dera. “É na cultura do encontro que se
me bem no meu caminho. Sinto-me planta humanidade. Mas é preciso cui-
bem em outros, admiro-me deles, em dado e respeito. É preciso, repito, paci-
alguns sinto mais dificuldade, estra- ência, para esperar o tempo propício do
nhamento. Creio que o primeiro passo outro-outra”, conclui.
é a abertura para conhecer. Tememos
o que não conhecemos. Na medida em Mauro Lopes é jornalista e editor do
que conhecemos, tudo se torna próxi- site e canal no YouTube Paz e Bem.
mo, amigável”, complementa. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como tem sido quiserem caber. Todas as jorna- de uma visão de catolicismo que
o trabalho no campo das espi- das de espiritualidade entendidas estava impregnada pelos limites da
ritualidades que o senhor tem como jornada de humanidade ou, institucionalidade. Abrir as portas
realizado no Brasil? melhor, como jornadas de ser-es- do coração para acolher os outros
Mauro Lopes – Não tenho pro- tar no multiverso são acolhidas sem preconceito foi um passo di-
priamente um “trabalho” de espiri- e têm seu espaço no Paz e Bem. fícil no começo, mas fundamental.
tualidade. Apenas tomei a iniciativa Sinto-me bem no meu caminho.
de fundar um canal no Youtube, Sinto-me bem em outros, admi-
IHU On-Line – Quais os prin-
o Paz e Bem1, que tem um projeto ro-me deles, em alguns sinto mais
cipais desafios ao diálogo inter
simples: abrir-se a uma espiritu- dificuldade, estranhamento. Creio
-religioso e como esse trabalho
alidade plural e de paz. Cabe todo que o primeiro passo é a abertura
vem sendo feito?
mundo no canal, menos os que não para conhecer. Tememos o que não
Mauro Lopes – Creio que o pri- conhecemos. Na medida em que
meiro e grande desafio foi o de – conhecemos, tudo se torna próxi-
1 O site pode ser acessado em pazebem.org. (Nota da IHU
On-Line) não sem custo para mim – abdicar mo, amigável.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Abrir as portas do coração


para acolher os outros sem
preconceito foi um passo difícil
no começo, mas fundamental.
Sinto-me bem no meu caminho”

IHU On-Line – E como tem IHU On-Line – De que manei- sa-moral e vice-versa – e ambas são
sido esse trabalho nas platafor- ra esse trabalho de diálogo en- profundamente conformadas pela
mas digitais? tre pessoas religiosas e não re- visão de mundo das pessoas (ideolo-
ligiosas tem produzido frutos? gia). É uma equação complexa, mas
Mauro Lopes – Fundei o Paz e
creio que há linhas de rompimento:
Bem com a ideia de ter um progra- Mauro Lopes – Ah, isso é uma
a primeira é a da própria experiên-
ma diário de espiritualidade. Virou maravilha. O que o Paz e Bem nos
cia. Quem deseja um caminho de
um canal. Nosso desejo é que o Paz e tem mostrado é que essa fronteira
profundidade amorosa, de paz, em
Bem seja um bom “canto” de encon- entre “pessoas religiosas” e “pessoas
algum momento questionará aque-
tro e olhares cruzados, e não apenas não religiosas” é muito menos mar-
les e aquelas que a cercam num am-
na dimensão digital. A experiência cada do que imaginamos. Uma par-
biente de superficialidade, rancor e
do Brasil 247, a árvore frondosa e ge- te expressiva das pessoas com que
ódio. Portanto, a primeira demanda
nerosa que acolhe e distribui nossa com-vivemos no Paz e Bem (somos
do diálogo é paciência. Esperar que
programação, indica que há deman- hoje uma comunidade de mais de 21 47
cada qual faça seu caminho. A se-
mil inscritos e ainda temos o recorte
da e possibilidade de uma dimensão gunda – e fico com essas duas – é,
da comunidade do 247, de quase 450
digital-presencial que terá seu tem- como diz o Papa Francisco4, a do di-
mil) diz-se ateia ou agnóstica ou sem
po e lugares. Nosso trabalho é o de álogo pelo exemplo. Charles de Fou-
religião. Depois de um tempo assis-
receber, conversar, rezar juntos, re- cauld5 dizia: “eu quero ser tão bom,
tindo à programação do canal, elas
fletir, meditar, aprender. Pensamos
invariavelmente manifestam seu es-
muito nesse papel formativo. 4 Papa Francisco (1936): argentino filho de imigrantes ita-
panto: “mas eu não sabia que espiri- lianos, Jorge Mario Bergoglio é o atual chefe de estado do
Vaticano e Papa da Igreja Católica, sucedendo o Papa Bento
Temos, por exemplo, os cursos tualidade é isso!”. Da mesma forma, XVI. É o primeiro papa nascido no continente americano, o
de história, com o professor Pe- as pessoas “religiosas” que têm uma primeiro não europeu no papado em mais de 1200 anos e o
primeiro jesuíta a assumir o cargo. Em maio de 2018 a revista
dro Lima Vasconcellos2, primeiro o caminhada com um vínculo institu- IHU On-Line nº 522 publicou a edição A virada profética de
Francisco – Uma “Igreja em saída” e os desafios do mundo
de Canudos e depois o Retalhos da cional ao longo da vida, espantam- contemporâneo, em que uma série de entrevistados interna-
Nossa História – não são cursos de se como é possível fazer o caminho cionais debateram os cinco anos do pontificado de Bergo-
glio. Uma série de entrevistas e conferências foram realizadas
história tradicionais; nossa ideia é sem “rezar a cartilha”. Eu digo sem- durante o XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética
de Francisco, e podem ser acessadas no link http://bit.ly/2M-
capturar as expressões da espiritu- pre que aquela pessoa que é capaz qSsne. A edição 465 da revista IHU On-Line analisou os

alidade-religiosidade do povo brasi- de emocionar-se com uma poesia é dois primeiros anos de pontificado de Francisco. Confira em
http://bit.ly/1Xw2tgu. Leia, ainda, a edição Amoris Laetitia e a
leiro e a reação das elites a essas ma- dotada de espiritualidade profunda. ‘ética do possível’. Limites e possibilidades de um documento
sobre ‘a família’, hoje, disponível em http://bit.ly/1SseNSc, e a
nifestações. Da mesma forma, com o Somos unidas e unidos em nossa hu- edição O ECOmenismo de Laudato Si’, disponível em http://
manidade, muito mais que em nossa bit.ly/1S6Luik. (Nota da IHU On-Line)
professor Faustino Teixeira3 temos 5 Charles Eugéne de Foucauld (1858-1916): ordenado
“espiritualidade” ou “religiosidade”. sacerdote em 1901, tinha a intenção de criar uma nova
tido um verdadeiro curso de espiri- ordem religiosa, o que sucedeu apenas depois da sua
tualidade que perpassa diversas tra- morte: os Irmãozinhos de Jesus. Foi assassinado por as-
saltantes, em 1916. Foi beatificado pelo Papa Bento XVI
dições e inspirações. E assim vamos. IHU On-Line – Como o senhor em novembro de 2005. Contribuições da espiritualidade
de Charles de Foucauld em contexto de pluralismo cultu-
vê a importância do diálogo in- ral e religioso, entrevista com Edson Damian publicada na
2 Pedro Lima Vasconcellos: Mestre e livre-docente em Ci- edição 269 da Revista IHU On-Line, de 18-8-2008, dispo-
ências da Religião, doutor em Ciências Sociais, pós-doutor ter-religioso no atual contexto nível em http://bit.ly/IPfX7U; Na plena luz de Charles de
em História e professor do programa de pós-graduação do Brasil, que tende à polariza- Foucauld, artigo de Bruno Forte publicado nas Notícias do
em História, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Dia, de 8-6-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
Sobre o tema Antonio Conselheiro e Belo Monte, publicou ção e radicalização política? – IHU, disponível em http://bit.ly/1hdG5oT. Em 2016, com-
os seguintes livros: Do Belo Monte das Promessas à Canu- pletou-se 100 anos de sua morte. Em alusão à data, o sítio
dos Destruída: o Drama Bíblico da Jerusalém do Sertão (Ca-
tavento, Maceió, 2010), Missão de Guerra: Capuchinhos no
Mauro Lopes – Creio que hoje o do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou uma série
de textos, entre eles Charles de Foucauld, um ser humano
Belo Monte de Antonio Conselheiro (Edufal, Maceió, 2014) diálogo tem muitas dificuldades em em busca de Deus. 1º centenário de sua morte, publicado
e O Belo Monte de Antonio Conselheiro: uma Invenção “Bi- nas Notícias do Dia de 30-11-2016, disponível em http://
blada” (Edufal, Maceió, 2015). (Nota da IHU On-Line) ambos os terrenos e eles estão muito bit.ly/2hQMUU4; Charles de Foucauld, irmão universal, pu-
3 Faustino Teixeira: Professor do Programa de Pós-Gra-
duação em Ciência da Religião, da Universidade Federal
imbricados. Os antagonismos políti- blicado nas Notícias do Dia de 1-12-2016, disponível em
http://bit.ly/2hLJMvu; e O marabuto Charles de Foucauld,
de Juiz de Fora – PPCIR-UFJF. (Nota da IHU On-Line) cos têm seu rebate na esfera religio- publicado nas Notícias do Dia de 1-12-2016, disponível

EDIÇÃO 546
TEMA DE CAPA

mas tão bom que alguém olhe pra vicções religiosas e políticas IHU On-Line – Como habitar
mim e se questione – se ele é tão bom torna-se um gesto não somente espiritualmente a Terra?
assim, como será o mestre dele?”. É necessário, mas também ético?
Mauro Lopes – Passar pela vida
preciso permanecer na bondade. Isso
Mauro Lopes – Porque é em roda fazendo o bem, nada mais.
abrirá portas. que se faz comunidade. É ao redor
da mesa que se cria cultura de co-
IHU On-Line – Deseja acres-
IHU On-Line – Por que pro- mensalidade. É na cultura do encon-
centar algo?
mover encontros dialógicos e tro que se planta humanidade. Mas é
dialogais entre diferentes con- preciso cuidado e respeito. É preci- Mauro Lopes – Apenas o desejo
so, repito, paciência, para esperar o de estar junto e fazer o caminho em
em http://bit.ly/2hibA6V. (Nota da IHU On-Line) tempo propício do outro-outra. alegria. ■

Leia mais
- País está dividido: pobres com Lula e ricos contra ele. Artigo de Mauro Lopes, publicado
nas Notícias do Dia, de 3-2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2LkbwET.
- João Paulo II: os anos de terror na Igreja. Reportagem de Mauro Lopes, publicada nas
Notícias do Dia, de 24-6-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/386et5Z.
- Carta de um jovem católico: da Renovação Carismática à descoberta da Teologia da
Libertação. Artigo de Mauro Lopes, publicado nas Notícias do Dia, de 18-8-2018, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/35VwgL5.
48 - Viagem de Francisco ao Chile: decepção e fiasco. Artigo de Mauro Lopes, publicado nas
Notícias do Dia, de 26-1-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2P7OHWf.
- “Malditas as armas que ferem e matam”. A indignação e o apelo dos franciscanos.
Artigo de Mauro Lopes, publicado nas Notícias do Dia, de 16-3-2018, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2DMFJIp.
- Capitalismo, dinheiro e excrementos. Artigo de Mauro Lopes, publicado nas Notícias do Dia,
de 27-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Yb48kq.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Retrospectiva Revista IHU On-Line 2019


Ricardo Machado

Com esta edição, a revista IHU On-Line contabiliza 15 números publicados em


2019. A pluralidade de temas e debates, novamente, marca presença, passando
por veganismo, mística, literatura, filosofia e conjuntura política. Para recordar os
eixos centrais de cada uma das edições, que ao todo tiveram mais de 130 entrevis-
tas e artigos, preparamos esta reportagem especial para as leitoras e os leitores da
IHU On-Line. Siga o fio!
Para conhecer e baixar todas as edições da IHU On-Line, acesse
ihuonline.unisinos.br.

EDIÇÃO 532
Veganismo. Por uma outra relação com a vida 49
no e do planeta
Na primeira edição do ano, o veganismo foi o carro-chefe do tema de
capa. A questão levantada pelos adeptos desse tipo de dieta alimentar é a
violência que envolve os abates e os modos de produção de alimentação
animal. O tema veganismo, entretanto, é mais do que não comer carne
em razão da forma como os animais são mortos, é uma recusa a todo o
sofrimento a que esses seres são sujeitados para se tornarem “bens de
consumo”. É também não humanizar os bichos, respeitando-os como par-
te de um projeto comum.

EDIÇÃO 533
Direito à Moradia, Direito à Cidade
Na primeira edição do ano, o veganismo foi o carro-chefe do tema de
capa. A questão levantada pelos adeptos desse tipo de dieta alimentar é a
violência que envolve os abates e os modos de produção de alimentação
animal. O tema veganismo, entretanto, é mais do que não comer carne
em razão da forma como os animais são mortos, é uma recusa a todo o
sofrimento a que esses seres são sujeitados para se tornarem “bens de
consumo”. É também não humanizar os bichos, respeitando-os como par-
te de um projeto comum.

EDIÇÃO 546
REPORTAGEM

EDIÇÃO 534
Etty Hillesum - A resistência alegre contra o
mal
Pensar a vida por sua dimensão mística é um exercício que recorren-
temente aparece na IHU On-Line. Por ocasião da Páscoa, retomamos o
pensamento e a inspiração mística de Etty Hillesum. Fazer memória, so-
bretudo nos tempos presentes, toma a dimensão de um projeto ético de
defesa à vida e às formas de vida. Nesse sentido relembramos a experi-
ência mística de Etty Hillesum nos campos de concentração da Segunda
Guerra. Sua arma contra o nazifascismo era um canto de alegria em meio
às dificuldades.

EDIÇÃO 535
No Brasil das reformas, retrocessos no mundo
do trabalho
A questão trabalhista no Brasil, com a reforma implementada nos últimos
anos, foi um duro golpe na classe trabalhadora. Aliás, o dia dos trabalha-
dores e das trabalhadoras de 2019 foi marcado pelo tripé de retirada de
direitos: a reforma trabalhista, a Emenda Constitucional nº 95 que limita,
por 20 anos, os gastos públicos e a reforma previdenciária. A tríade do re-
trocesso joga as conquistas das populações mais vulneráveis no triângulo
das bermudas dos direitos sociais e do processo de desestruturação do mer-
50 cado de trabalho.

EDIÇÃO 536
Juventudes. Protagonismos, transformações e
futuro
As profundas transformações da adolescência que constituem uma ver-
dadeira ebulição na vida do ser humano foi tema da edição 536 da IHU
On-Line. Momento de muita expectativa, vontade de assumir o mundo com
protagonismo, traz também medo e apreensões diante do atual momento,
em que as transformações são das mais diferentes ordens e se dão a todo
instante e sob vários aspectos. Apesar dos desafios, essas novas gerações
assumem um protagonismo, como da jovem sueca Greta Thunberg, elei-
ta personalidade do ano pela Time, que levanta multidões de jovens pelo
mundo a fora.

EDIÇÃO 537
A fagocitose do capital e as possibilidades de
uma economia que faz viver e não mata
O Papa Francisco convocou um evento a ser realizado em Assis, Itália,
nos dias 26 a 28 de março de 2020, em que se debaterá a realização
de um pacto por “uma economia diferente, que faz viver e não mata,
inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não
a deprecia”. A IHU On-Line 537 teve como foco contribuir neste debate
e delinear possibilidades de uma outra economia, consciente das impos-
sibilidades impostas pela fagocitose do capital.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

EDIÇÃO 538
Grande Sertão: Veredas. Travessias

Toda a filosofia do Sertão expressada na poética de Guimarães Rosa foi


tema da edição 538. Travessia. Essa é a outra forma que Guimarães Rosa
encontrou de nos ensinar a escrever e dizer a palavra vida. A última pa-
lavra de sua obra Grande Sertão: Veredas é que liga o fio do tempo, o
passado e o presente de um Brasil que, tanto antes como agora, é o país
que poderia ter sido, mas nunca foi. A jagunçagem, para usar um termo
do autor, é uma forma política presente em muitas instâncias e nos joga
diante de desafios e contradições enormes.

EDIÇÃO 539
Do ethos ao business em tempos de “Future-se”
Costurada por múltiplas dimensões, as edições da IHU On-Line vão
conectando-se umas às outras, como é o caso da edição das juventudes,
das reformas que, unidas a essa edição, traçam um panorama da atual
conjuntura. O anúncio do programa Future-se teve como pilar de susten-
tação a proposta de abertura das universidades a parcerias com a inicia-
tiva privada, gestão descentralizada e sem a presença da máquina estatal,
além do financiamento associado a fundos de investimentos no mercado
de capitais. Debater as consequências da proposta foi o tema dessa edição.
51

EDIÇÃO 540
Hans Jonas. 40 anos de O princípio
responsabilidade
Para celebrar as quatro décadas de uma das mais importantes obras,
senão a mais importante, de Hans Jonas, a IHU On-Line dedicou o tema
de capa ao livro O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para
a civilização tecnológica. Os tempos atuais atestam sua profunda atuali-
dade em um mundo cuja Revolução 4.0 suspende uma série de preceitos
modernos – com seu exponencial desenvolvimento tecnológico e radical
indigência aos valores de humanidade – e nos convoca a reconstruirmos
uma ética compatível com as novas realidades.

EDIÇÃO 541
Planos de saúde e o SUS. Uma relação
predatória
A nova ofensiva contra os planos de saúde privados foi tema da edição
541 da IHU On-Line. Ao contrário do que se imagina, e que normalmente
ocorre quando o tema é privatização, a ideia não é acabar com o SUS e
conceder a empresas a gestão e a assistência à saúde. O sonho das ope-
radoras é liberdade de mercado para venderem e entregarem somente o
que quiserem, empurrando para o sistema público o que é mais oneroso e
pode prejudicar seus lucros. Constitui-se uma espécie de relação parasitá-
ria entre planos privados de saúde e o SUS.

EDIÇÃO 546
REPORTAGEM

EDIÇÃO 542
Vilém Flusser. A possibilidade de novos
humanismos
A retomada do pensamento de Vilém Flusser em perspectiva com os de-
safios contemporâneos foi tema do número 542 da IHU On-Line. Nascido
em Praga, em 1920, na República Tcheca, Flusser viveu no Brasil após
fugir dos horrores da Segunda Guerra Mundial. O pensamento de Flusser
vislumbrava, décadas antes do advento de inúmeros dispositivos eletrôni-
cos presentes na vida contemporânea, como as sociedades tecnocientífi-
cas exigiriam novos modos de compreender, existir e viver em um mundo
prenhe de possibilidades.

EDIÇÃO 543
Ontologias Anarquistas. Um pensamento para
além do cânone
Na IHU On-Line 543 foi retomado que o pensamento dos povos nativos
do Brasil em uma perspectiva de reflexão teórica profunda exige deses-
tabilizar o cânone de uma forma de estar no mundo baseada exclusiva-
mente na lógica predicativa. Pensar para além da obsessão do ente foi um
exercício, em alguma medida, tentado por uma vertente do Modernismo
Brasileiro, que encontrou nas cosmologias ameríndias a inspiração para
um movimento ético, estético e teórico que dá tintas tropicais a um pen-
52 samento tipicamente brasileiro.

EDIÇÃO 544
Revolução 4.0. Novas fronteiras para a vida e a
educação
Os avanços científicos e tecnológicos que têm atravessado os mais va-
riados aspectos da vida foi o tema de debate da IHU On-Line 544. Diante
dessa constatação, a sociedade não tem mais como recusar, dar às costas
aos saltos que a tecnologia tem dado na chamada Revolução 4.0. Dentre
as questões emergentes nesse contexto, estão os usos das tecnologias em
perspectiva com os seres humanos e a necessidade de uma relação de não
subserviência às máquinas. Com atenção especial à saúde, a edição levan-
ta o questionamento sobre o cuidado e a formação desses profissionais
para as sociedades do futuro.

EDIÇÃO 545
Cultura Pop. Na dobra do óbvio, a emergência
de um mundo complexo
Ultrapassar a aparência imediata de produtos da cultura popular oferece
inúmeras camadas de compreensão da sociedade, tanto em suas dimen-
sões éticas – valores e princípios –, quanto em sua dimensão estética – da
reconfiguração do bom e do belo. Com o desejo de compreender as com-
plexidades em jogo nesses processos, a revista IHU On-Line 545 dedicou
seu tema de capa aos debates em torno da Cultura Pop, reunindo entre-
vistas de pesquisadoras e pesquisadores de todo o país.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

Cena do filme O Irlandes (2019, de Martin Scorsese)

53

A Babel de Scorsese
João Ladeira

“O ar de humor sombrio de O Irlandês se estende por boa parte do filme; mas a queda de seus
últimos instantes conduz ao ponto mais perverso do diretor”, escreve João Ladeira sobre a
mais recente obra de Martin Scorsese.

Eis a resenha.

O Irlandês (The Irishman, 2019) encerra um ciclo para Martin Scorsese. Desde Caminhos
Perigosos (Mean Streets, 1973), seus “filmes de máfia” amadureceram junto com ele. Essa ex-
tensa jornada atravessou Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990) e Cassino (Casino, 1995),
e a exploração de tantos temas derivava de uma mesma sensibilidade: o caminho que leva ao
pecado e à perdição.
Pois tais filmes versavam sobre homens buscando um modo de viver nesse mundo da matéria,
em histórias construídas por quem sabe sobre a existência do inferno. Em 1973, Scorsese nos
mostrou um personagem errático diante da crueldade indispensável a essa viagem. Em 2019, ele
se debruça sobre alguém que não tem dúvidas sobre a perversão.
Pois Frank Sheeran (Robert De Niro) talvez seja uma das criaturas mais impiedosas que já se
filmou. Na Film Comment de outubro, Rodrigo Prieto, diretor de fotografia de O Irlandês, nar-
rou as exigências de Scorsese sobre a objetividade das cenas de assassinato nesse filme. Tudo
deveria parecer o que significava para o pistoleiro: apenas um ofício frio.

EDIÇÃO 546
CINEMA

Especialistas sem espírito...


Mas o matador não é o verdadeiro demônio do filme. Esse lugar está reservado para a face do
diabo estampada no rosto magro de Joe Pesci. Foi preciso o ator envelhecer para descolar-se da
violência irracional de Nicky Santoro e Tommy DeVito, duas variações sobre o mesmo tema, tor-
nando-se Russell Bufalino. Isso lhe deu a feição roída pelo tempo, cuja podridão conduz Sheeran.
Em vários momentos, entende-se perfeitamente que o pistoleiro é apenas seu garoto. Guiado
por tantos anos, nada resta além de uma obediência meio cega, meio voluntária. Pois Sheeran
vai morrer convencido da necessidade de nunca dizer a verdade, de levar consigo as instruções
de todas as mortes, na sujeição a quem não está mais lá.
Tema semelhante já havia aparecido num filme de Scorsese completamente diferente, mais
próximo a suas investigações religiosas. Pois Silêncio (Silence, 2016) apresentava o mesmo com-
promisso por uma ótica distinta. Garupe (Adam Driver) carregou sua fé consigo em absoluta
mudez, mas seu ato era o engajamento de coragem que apenas a Graça consegue sustentar.
Sheeran se mantém calado pela servidão de escravo: na cadeia de comando do soldado, na
burocracia do businessman do sindicalismo – tudo é sempre apenas obediência, no Exército ou
nas ruas. Henry Hill (Ray Liotta) era tíbio o suficiente para se entregar às tentações que nunca
cogitou em renunciar. Quando a decrepitude incentivada pela cocaína o faz quebrar a omertà,
sente-se infeliz apenas por descobrir-se sem alma para novamente vender.
Tivesse algo mais a oferecer, Hill lutaria ainda pelo lugar que lhe concede o rispetto, a única
coisa que importa. Mas o destino de Sheeran foi selado de modo mais dramático. Sua conversão
plena foi na Missa Negra (Black Sabbath), quando ele e Bufalino comem o pão e bebem o vinho
enquanto conversam em italiano. A mesma cena se repete na prisão, quando o pacto entre am-
bos é reconstruído.

54 ... sensualistas sem coração


De onde vem tanta subserviência? Sheeran se revela o perfeito homem organizacional. Nesse
seu inferno, mostra-se incapaz de outro envolvimento. Escolher um caminho requer engajamen-
to, implica aceitar as consequências dos próprios atos devido exatamente à impossibilidade de
compreender todos os desígnios, pois o vento sopra onde quer. Mas qual o destino de quem se
mostra incapaz desse gesto?
O gângster do cânone oscilava entre a organização e a individualidade. Os personagens de
Alma no Lodo (Little Caesar, 1931, de Mervyn LeRoy), Scarface (1932, de Howard Hawks) ou
Fúria Sanguinária (White Heat, 1949, de Raoul Walsh) fracassam quando estão perto de triun-
far, numa punição individual que desqualificava todo o crime. Diferentes desses antecessores,
Sheeran sobrevive apenas porque foi tragado pela engre-
nagem.
Mas, ao contrário desse engajamento sobre seus próprios
atos – escolhas tomadas por cada um em seu coração –,
Sheeran pôde assassinar Jimmy Hoffa (Al Pacino) tão
somente como quem cumpre as ordens de seu general.
Quando a imagem de sua filha Peggy (Anna Paquin) ope-
ra como um fantasma shakespeariano que deveria servir
como sua consciência, o efeito é absolutamente nulo.
Pois não há alma à qual se apelar. Para o homem, cada es-
colha, sempre cega, deveria ser um gesto de fé num mundo
insondável, no qual um católico como Scorsese não ignora
a existência de uma força superior. Isso animava seus per-
sonagens. Certos sobre a decadência do mundo, debatiam-
se com isso, e os filmes serviam como um estudo sobre a
secularidade da carne.
Para isso, a mística dos gângsteres serviu perfeitamente.
Charlie (Harvey Keitel) sentia o chamado do crime, mas
sofria com seus desvios morais, sempre pronto a se au- Cartaz de O Irlandes

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

toflagelar com o fogo. Se Hill caminhava um passo adiante nessa indiferença, Ace Rothstein
(Robert De Niro) convivia com Las Vegas como uma Terra Prometida invertida, onde o jogo e a
ganância tornavam tudo possível.
O erro do bookmaker foi não ter percebido que a vida lhe ofereceu dados viciados. Sua busca
por amor e amizade, gestos tão puros, terminam num terrível fracasso. Mas, embora encerre sua
jornada de volta ao ponto onde começou, o lance de Ace valeu a pena. Difícil dizer o mesmo de
Sheeran, o homem vazio de um tempo que acreditou na consciência apenas para não perceber
nela mais qualquer valor a defender. ■

Ficha técnica
Título original: The Irishman
Ano: 2019
Direção: Martin Scorsese
Gênero: Biografia | Policial | Thriller
Nacionalidade: Estados Unidos
Assista o trailer em http://bit.ly/2Rz0G1T

55

EDIÇÃO 546
PUBLICAÇÕES

Tributação, políticas públicas e


propostas fiscais do novo governo

N
a sua 291ª edição, Cadernos IHU ideias traz o artigo de Róber Itur-
riet Avila e Mário Lúcio Pedrosa Gomes Martins, intitulado Tribu-
tação, políticas públicas e propostas fiscais do novo governo. Se-
gundo os autores, “a teoria da tributação ótima foi consolidada na década
de 1970, sugerindo a neutralidade dos tributos sobre a renda. Entretanto, a
partir dos dados de renda disponíveis no século XXI, tal teoria passou por
uma revisão, já que as previsões teóricas não se confirmaram”. Assim, a par-
tir desse cenário, o artigo se propõe a debater a teoria de tributação, o siste-
ma tributário brasileiro e as propostas de alteração legislativas do governo
Jair Bolsonaro. “Para tanto, a segunda seção
faz o debate da teoria da tributação ótima. A
terceira seção aborda a teoria da tributação
equitativa e os efeitos distributivos dos gas-
tos públicos. Por fim, a quarta seção discute
as propostas do novo governo brasileiro”,
antecipam os autores.
Róber Iturriet Avila é doutor em Eco-
56 nomia do Desenvolvimento, Professor Ad-
junto II do Departamento de Economia e
Relações Internacionais da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Também in-
tegra o Conselho Deliberativo do Instituto
de Justiça Fiscal. É revisor de seis periódi-
cos científicos e membro de comitê edito-
rial. Lecionou na Universidade do Vale do
Rio dos Sinos, na Universidade Federal do
Rio Grande, na Universidade de Caxias do
Sul e na UniRitter, em nível de graduação e
pós-graduação. Foi analista pesquisador da
Fundação de Economia e Estatística, onde
foi assessor da direção. Foi diretor do Sindi-
cato dos empregados em empresas de asses-
soramento, perícias, informações e pesqui-
sas de fundações estaduais do Rio Grande
do Sul. Foi funcionário do Banco do Brasil,
tendo atuado em equipe na Superintendên-
cia estadual.
Mário Lúcio Pedrosa Gomes Martins
é aluno de graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Integrante do grupo de pesquisa e extensão Capital e
Estado, listado no CNPQ.
Acesse a íntegra do texto em versão PDF em http://bit.ly/36uGO3V.
Esta e outras edições dos Cadernos IHU ideias também podem ser obtidas
diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leo-
poldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humani-
tas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

16 DE DEZEMBRO | 2019
REVISTA IHU ON-LINE

As identidades Chiquitanas
em perigo nas fronteiras

A
loir Pacini assina o artigo presente no número 292 dos Cadernos IHU
ideias, intitulado As identidades Chiquitanas em perigo nas frontei-
ras. A ideia é abordar o “mosaico étnico chiquitano” e as relações de
conflito por causa das terras indígenas. No texto, explica que “vistos como
‘estranhos’ em seu próprio território, os Chiquitanos são trabalhadores bra-
çais em fazendas brasileiras, e muitos vivem em ‘beiras de estradas, na zona
neutra da fronteira, na periferia das
cidades, não permitem o cultivo da
terra e isso os obriga a procurar tra-
balhos assalariados para garantir o
sustento familiar. Somente existe tra-
balho em fazendas para os que não se
reconhecem como indígenas.
Aloir Pacini possui graduação
em Filosofia pela Universidade Fe-
deral de Minas Gerais, graduação 57
em Teologia pela Faculdade Jesuí-
ta de Filosofia e Teologia, mestrado
em Programa de Antropologia Social
pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro e doutorado em Antropolo-
gia Social pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Atualmente é
professor da Universidade Federal
de Mato Grosso. Tem experiência na
área de Antropologia, com ênfase em
Etnologia Indígena (Chiquitanos, Ri-
kbaktsa, Manoki, Apiaká, Kawaiwete
(Kayabi), Boe (Bororo), Xavante, Ky-
sedje (Suyá), Terena, Guarani, etc.),
Quilombolas e Comunidades Tradi-
cionais. Suas pesquisas focam espe-
cialmente o território tradicional.
Acesse a versão completa do artigo
em PDF em http://bit.ly/36pO4y3.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 546
PUBLICAÇÕES

A Universidade em busca
de um novo tempo

O
número 290 dos Cadernos IHU ideias traz o artigo de Pedro Gilberto
Gomes, vice-reitor da Unisinos. No texto, intitulado “A Universidade
em busca de um novo tempo”, o autor se propõe a analisar aspectos
que, segundo ele, “deixam transparecer a encruzilhada na qual se encontra
o ensino superior hoje e, por conseguinte, a instituição universitária: ou
acontece uma reinvenção do processo, ou a universidade perderá espaço na
formação das pessoas”. Gomes ainda
destaca que, hoje, a universidade “é
chamada a atuar com novas formas e
novos métodos, nos desafios que a ela
são postos. Enfim, precisa se reinven-
tar”. “Nessa perspectiva, apresento
aqui reflexões e opiniões expressadas
por mim em momentos específicos da
vida brasileira e que talvez possam
contribuir modestamente para a es-
58 truturação de uma nova instituição
universitária nacional”, acrescenta.
Pedro Gilberto Gomes possui gra-
duação em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, especialização em Teologia
pela Pontifícia Universidad Católica
de Santiago, mestrado em Ciências
da Comunicação pela Universidade
de São Paulo e doutorado em Ciências
da Comunicação pela Universidade
de São Paulo. Atualmente é professor
titular da Unisinos. Tem experiência
na área de Comunicação, com ênfase
em Jornalismo e Editoração, atuando
principalmente nos seguintes temas:
comunicação, comunicação cristã,
comunicação, cultura e mídia. Mem-
bro do Conselho de Ciência, Tecnolo-
gia e Inovação do Rio Grande do Sul,
Membro e Vice-Presidente do Conse-
lho Superior da FAPERGS (Fundação
de Amparo à Pesquisa do estado do
Rio Grande do Sul). Exerce o cargo de Vice-Reitor da Unisinos e é diretor da
Editora da mesma Universidade.
Acesse a versão completa do Caderno em http://bit.ly/2C3I29k.
Estas e outras edições dos Cadernos IHU ideias também podem ser obtidas
diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leo-
poldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humani-
tas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Ivan Illich, pensador radical e inovador

Edição 46 – Ano II – 09-12-2002

Ivan Illich, pensador rebelde, segundo o jornal Le Monde, precursor do


movimento antiglobalização, foi o tema desse número da IHU On-Line.
Ele foi, nos anos 1970, o porta-voz entendido e brilhante de uma crítica
não marxista das instituições que fundamentam a economia contem-
porânea: a escola, a saúde, o desenvolvimento, o consumo de energia
têm sido os temas de um discurso poderoso e que deu à ecologia uma base
teórica sólida.

Hospitalidade - Desafio e Paradoxo. Por uma


cidadania ativa e universal 59

Edição 499 – Ano XVI – 19-12-2016

Uma dádiva de si, que abre caminhos para o diálogo com o Outro,
aquele desconhecido que bate à nossa porta em busca de acolhida. Em-
bora magnífico, o gesto de acolhimento não resguarda em si apenas
a maravilha do encontro, mas também tensões que surgem no limiar
desses dois mundos que se encontram e até mesmo se chocam. eas do
conhecimento.

Jesus de Nazaré. Humanamente divino e


divinamente humano
Edição 336 – Ano X – 06-07-2010

Jesus. Aproximação histórica é um livro que suscitou uma enorme polêmi-


ca na Europa, especialmente na Espanha. O autor do livro é José Antonio
Pagola, teólogo, autor de diversas obras de teologia, pastoral e cristologia.
Mais de 50 mil exemplares do livro foram vendidos na Espanha. Duramente
questionado pela Conferência Episcopal Espanhola, o livro já foi traduzido
em diversas línguas e acaba de ser publicado, no Brasil, pela Editora Vozes. O
debate suscitado pelo livro foi amplamente reproduzido pelas Notícias do Dia,
publicadas diariamente na página do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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