Você está na página 1de 18

Absurdo

Submundo

Como
Sempre Foi

Índice
1 – Renascida
A mão saiu firme de dentro da terra e segurou a dele tão forte que ele sentiu dor.
Olhou para o pulso que escapava do túmulo que ele cuidava das flores e viu que
a árvore de Danê estava lá. O coração disparou, aquilo só podia ser um sonho
lúcido ou estava alucinando.
Tentou primeiro livrar o pulso da mão que o prendia, mas poderia estar
simplesmente acordado e o impossível estar acontecendo diante de seus olhos.
Por mais que Bjorn dizia que cedo ou tarde ela se levantaria do túmulo, ele já
tinha deixado essa esperança para trás.
A mão o puxou com mais força, talvez Kattla tivesse o usando como ancora para
trazer seu corpo para cima com todo o peso da terra que estava sobre ele. Varg
temia como seria a aparência dela agora, depois de tanto tempo. Ele ainda mal
conseguia conceber como aquilo estava acontecendo.
Desviou por reflexo do cajado dela que perfurou a terra, saindo túmulo afora e foi
então, que caiu em si, sua Kin precisava deixar aquele túmulo. Começou a cavar
com as mãos, pois que não tinha nenhuma ferramenta consigo. Enquanto tirava
a terra, dizia:
— É o Varg, Kattla, fique calma, eu vou tirá-la daí!
Achou melhor buscar por alguma ferramenta, após olhar ao redor e perceber que
não havia nada que poderia servir como uma pá. Entrou em sua forma híbrida de
lobo e correu até sua casa onde pegou a ferramenta, retornando em seguida. Foi
cuidadoso, não sabia o que exatamente encontraria. Balançou a cabeça quando
percebeu-se com medo da situação.
Mensurava o quanto precisava cavar de acordo com o braço esquerdo dela que
ficava à mostra. Naquele momento preferiu usar as mãos novamente e a tirou do
túmulo. Ela se soltou dele, como se fosse um animal arisco, caindo sobre as mãos
e os joelhos e deixando a terra seca sair de sua boca.
Varg a olhou, o cabelo tinha crescido tanto que era impossível, roçavam no
quadril dela, metade dele estava completamente branco, enquanto a outra
continuava preta. A terra negra e seca não parava de sair da boca dela. Kattla se
balançava para frente e para trás de vez em quando.
Olhou para Varg e havia agonia em seus olhos esmeraldas, seu corpo estava
voltando a funcionar. Ela fez esforço no esôfago e o barulho a seguir era de quem
estava vomitando, mas apenas terra seca saia de sua boca. Ela tossiu e assim
que o fez, sinalizou para Varg bater em suas costas, como se estivesse engasgada.
Após um tempo apenas saindo terra seca, começou a sair algo um pouco mais
lamacento. Essa lama foi aos poucos se afinando, até chegar o ponto de tornar a
textura de água, ainda que negra. Com o indicador ela escreveu para ele sobre o
solo:
— Água.
Ele a tomou no colo e levou para a casa dele. Sem saber o que fazer, ofereceu um
copo de água pra ela, que ela aceitou e bebeu, mas ela precisava da banheira, o
deixou e subiu as escadas amadeiradas da casa dele, indo para o banheiro, onde
deixou a banheira encher.
Enquanto a água enchia seus ouvidos com seu ruído calmante, se olhou no
espelho. Até que gostou da mecha branca do cabelo, mas estava explodindo em
raiva e não via a hora de encontrar o irmão. Fechou a torneira e se afundou na
banheira, ficando completamente submersa.
Ela se levantou e a água era pura lama. Deixou a água esvair pelo ralo e virou-se
ao que notou que Varg ainda mantinha aquele olhar perplexo. Ela fez um gesto
que precisava beber bastante água e ele desceu para lhe trazer a garrafa e o copo.
Bebeu uns dois copos de água até entrar na banheira novamente e ficar
submersa por um tempo.
A água estava escura, mas já não estava lamacenta. Toda vez que ela fazia isso,
usava um procedimento mágico para retirar a terra que poderia prejudicá-la de
dentro de si. Era um ritual necromante muito antigo que apenas ela, Bjorn e Ava
conheciam naquele momento. Provável que outros necromantes conheceram
noutros tempos.
Fez o procedimento da banheira pela terceira e última vez, ainda mais demorada
do que as outras. Quando saiu da banheira, as gotas de água que escorriam
apressadas sobre seu corpo eram cristalinas. Varg fitou os cílios umedecidos, o
corpo ainda um pouco pálido, mas belo e chorou, tomando-a num abraço.
Ela deixou a língua invadir a boca dele, ele podia sentir que ela ainda não tinha
voltado à vida por completo, porque ainda estava fria para um corpo comum, mas
não se importava. Aquele momento fora tudo o que desejou nos últimos tempos,
todos os dias quando ia trocar as cores das flores do túmulo dela.
Ele deixou que ela se secasse, oferecendo um moletom dele para ela vestir e
assim que se vestiu ela se encostou nele, mantendo silêncio porque ainda se
sentia muito confusa. Além de saber que teria um pouco de dificuldade de falar
naquele momento.
— Quer saber como estão as coisas aqui? - Ele perguntou, acariciando o rosto
dela.
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
— Luí tomou o posto de liderança da assembleia e agora todos os Viktis estão
recebendo um treinamento do seu irmão, mesmo Viktis que vivem em outros
vilarejos. Ava e Victor retornaram para Uada, para uma missão e Ladarius ficou
com o seu irmão.
Ela colocou as mãos fazendo um chifre na cabeça.
— Olyn?
Balançou a cabeça afirmativamente.
— Triste. Sua morte foi muito difícil para ele, mas continua escalando a floresta e
tocando musicas tristes. Não vai perguntar de Adara?
Ela balançou a cabeça negativamente. Se o irmão estava treinando os outros
Viktis, Adara morreu para que ela vivesse, não havia outro sangue familiar para
um ritual como aquele. Contudo, não achava que Bjorn e Ava tomaram a melhor
decisão, a morte veio para ela. Observando o rosto pensativo de Kattla, ele disse:
— Isso te deixou triste.
Ela balançou a cabeça afirmativamente e deitou a cabeça no ombro dele,
deixando-o que a acariciasse.

2 – Cálice de sangue

Kattla seguiu com Varg para a casa do irmão. Ficaram um longo tempo parados
na porta esperando ele voltar. Quando ele a viu, transformou-se num guepardo
para alcançá-la ainda mais rápido, deixando Ladarius para trás.
Ela deixou seu nariz tocar o pescoço alvo para se deliciar no cheiro do irmão que
há tanto tempo não via. Ele a pegou no colo e beijou-lhe a face vezes sem conta.
Carregando-a para dentro da casa, que ele abriu com facilidade. Após toda a
demonstração de afeto, ela deu um tapa no rosto dele, surpreendendo a todos.
— Eu era muito jovem para entender bem o que estava fazendo quando eu te
ensinei esse ritual, Bjorn. Ava não tem problema, porque ela deveria saber por si
mesma, mas não você. E não te dei a opção de escolher por minha vida ou minha
morte.
— Você não me deu, mas minha mãe me deu e entre Adara e você, eu escolhi o
obvio.
— Eu te proíbo de usar qualquer encantamento necromante.
— Você também é necromante? - Perguntou Ladarius.
— Não. Apenas minha irmã quando era mais jovem me ensinou alguns poucos
que a maioria eu não consigo fazer, porque ela achou que me protegeria com eles
em caso de necessidade.
— Por que ficou, Bjorn?
— Estava esperando por você, como não há nada para fazer nesse lugar, decidi
ajudar um pouco e manter minha forma.
— Eles estão querendo retomar Norga. - Disse Ladarius
— E nossa reputação familiar aqui é de traidores de todo jeito. - Havia deboche
na voz de Bjorn.
— Sabe que agora eu tenho que tomar dois cálices de sangue por dia, certo? -
Havia seriedade e raiva no tom da voz dela.
Ele maneou a cabeça, depois olhou de um lado para o outro, como se mover os
olhos lhe desse algum tipo de alívio e tomando a irmã pelo braço, a levou para
outro cômodo. E então, disse:
— Eu não tive escolha, certo? Eu sei que vamos precisar de sangue humano
diariamente, mas não precisamos matar para isso, pode beber do meu e de quem
mais quiser te dar. Você só não pode morder a pessoa.
— Tudo mudou e estou agitada, é como se eu não soubesse quem eu sou.
Ele segurou o rosto da irmã entre as mãos, dizendo:
— Olha para mim! Olha para mim! Você é Kattla Sethra que não usa o sobrenome
Kari porque diz que não é loira suficiente para isso. Você é a Ljot mais poderosa
de Uada até o momento, tem lutado essa guerra desde que começou e te
ocultaram quando Taber começou a matar os Ljots. Então, tomou para si a
missão principal de destruir Taber, que eu tirei e ficou com a base e no final, foi o
que fizemos. O que você traz do não-espaço e não-tempo? O que você traz do
submundo?
— Eu não sei. Por isso que estou confusa. Não sei do meu propósito. Não era
para você me trazer de volta. - O corpo de Kattla se agitava, o irmão era o único
com quem ela se sentia livre para se deixar expressar daquela forma.
— Eu vou te dar do meu sangue para beber, talvez ajude.
Ele se afastou pegando um cálice de cristal, de uma cristaleira de madeira
cerejeira que tinha no canto da sala num estilo vintage e tirando a faca do cinto
de sua calça cortou a mão e encheu o cálice, entregando para a irmã. Naquele
momento Varg entrou no recinto e a olhou.
Bjorn lhe lançou um olhar despreocupado e cortou a outra mão para encher o
cálice novamente, tinha a sorte de ser Vikti e se cicatrizar com rapidez. Varg a
tudo assistiu sem dizer uma palavra e por um segundo passou em sua cabeça as
frases tão comuns que ouvia em Norga: “A magia de Uada é muito perigosa” e
“Ljots são viciados em magia”.
— Pode conviver com isso? - Bjorn perguntou, ao observar o rosto de Varg.
— Por que me pergunta isso?
— Ama minha irmã, não é? Sempre cuidou do túmulo dela. Ela não é um zumbi
ou coisa do tipo, está tão viva quanto eu ou você, apenas precisa tomar sangue
todos os dias.
— Devo ser algo pior que um zumbi, já que estou viva, sou duas vezes nascida,
como é o certo dizer na minha ordem. - O corpo dela tremia, mas finalmente a
pele corava e ela sentia a vida pulsar dentro dela. — Quero ver Olyn.
— Não acha melhor ficar em casa hoje e tentar se acalmar e entender seu novo
estado de ser antes de procurar por ele? - Perguntou Bjorn. — Mesmo nós não
temos certeza de nada a respeito desse ritual. Vou preparar o jantar.
— Ele tem razão, Kattla, é melhor ficar aqui essa noite apenas para ver como você
está e se sente. O que muda sendo duas vezes nascida?
— Meu poder, é provável. - Ela respondeu despreocupada. — Sente nojo de mim?
Sente nojo que tenho que beber sangue?
— Sou um lobo e nunca me preocupei com o que você pensava sobre isso. - Ele
segurou o riso. — Mas, confesso que senti medo quando eu a vi saindo daquele
túmulo, quando agarrou minha mão.
— Você fez meu parto, isso deve significar alguma coisa ou nada.
— Sempre estive sobre o seu túmulo durante esse tempo, trocando as flores com
a magia, para que não fosse igual nenhum dia, por um tempo eu esperei que você
se levantasse dele, sem nem saber ao certo como isso seria, pensei muitas vezes
que eu estaria lá, porque estava sempre lá. Mas, quando aconteceu admito que
fiquei com muito medo. Vi que não sabia se acreditava na magia de vocês de
verdade, se Adara tinha morrido em vão.
— Como é ficar morta por tanto tempo? - Perguntou Ladarius.
— Ainda não consigo me lembrar. Tenho aquela sensação de que estava
sonhando por um longo tempo, mas não consigo trazer o sonho à consciência.
Ainda é tudo confuso, mesmo meu corpo parece confuso.
— Estou feliz que tenha voltado. Estou feliz com a vida que estou levando aqui
com o seu irmão, que honrou o pedido que você me fez de me manter com ele.
— Você era livre para decidir por isso, Ladarius.
— Eu não tinha mais ninguém, Kattla. Minha família está morta, minha
namorada morreu naquela prisão. Não havia nada que me segurasse ali.
— Você só controla a energia vital, certo?
— Sim.
— Algum problema em distorcer a energia vital ao ponto de causar doença ou
aumentar a imunidade? Não te tornará um curandeiro, mas, enfim, sou uma
necromante, causar doença será mais fácil pra você se eu te ensinar como fazer.
— Está propondo ser minha mestra? - Os olhos de Ladarius brilharam.
— Vou te ensinar tudo o que posso no manuseio da energia vital, se assim quiser,
como uma forma de gratidão ao que me fez naquela prisão. Infelizmente, acredito
que tenderá mais para a doença e morte.
— Não preciso pensar duas vezes para responder que quero.
— Acho que sinto falta da Adara e do drama dela.
— Ela vive em você ou coisa assim? - Perguntou Varg.
— Não.
— Não gosto de traidores. - Gritou Bjorn que a tudo ouvia da cozinha.
— Às vezes a pessoa se vê sem escolha. Não é algo que dá pra prever.
— Veja o que Taber fez e ele tinha escolha. Qual o sentido da escolha dele, ele
queria ter o seu lugar, mas nunca teria a não ser se você morresse, coisa que ele
tentou, mas quando viu que não era páreo roubou o segredo da Ava e mudou de
lado para ser importante no Império.
— Como o Império o aceitou com aquela religião louca deles? - Perguntou
Ladarius.
— O Rei Louco o aceitou e deu um alto posto para ele, o que o deixou acima da
igreja. Não podiam fazer nada contra ele, não podiam matá-lo ou afogá-lo porque
ele estava servindo o deus deles. - Disse Kattla.
— E no final a Igreja adorou matar um monte de Ljots que Taber capturou. -
Disse Bjorn.
— Então, a Igreja do Império que os condenava e matava? - Perguntou Varg,
curioso.
— Sim, eles nos chamam de bruxos ou filhos do demônio.
— Sim, já ouvi o termo. Antes de virmos nos refugiarmos aqui, morava numa
cidade grande e éramos forçados a ir à Igreja todos os domingos, como uma
forma de provar que estávamos dispostos a servir o deus deles e o Império da
melhor forma possível. E eles sempre falavam que nossos deuses eram demônios
disfarçados de seres do bem, para roubar nossas almas e nos induzir ao erro.
Ouvi coisas piores, mas a grosso modo era isso.
— Talvez estejam certos, não sei, talvez sejamos demônios ou filhos dele, mas
devíamos ao menos ter o direito de sermos e vivermos assim. Por que forçar uma
outra forma de vida para algo que tem uma natureza diferente? - Disse Kattla.
— Não sei nem porque vocês discutem, não há filosofia nisso, eles são
gananciosos e pronto. Não estão preocupados com a gente, Fopros quer um
Império e quer tirar qualquer obstáculo do caminho dele, nós inclusive.
— Luí disse que estão vindo para cá para evacuar todos os vilarejos em torno do
Vale dos Deuses, porque disseram que há Viktis que ajudaram Uada escondidos
aqui. - Disse Ladarius.
— Sim, conversaremos sobre isso na assembleia de amanhã. Mas, estou contente
que minha irmã acordou em tempo.
— Acho que não temos que ficar aqui, Bjorn e sim, voltar para Uada que é aonde
pertencemos.
— A vida continua mesmo quando você morre, Kattla. - Disse Bjorn, colocando a
cabeça na porta da sala. — E muita coisa mudou desde que você morreu.
O olhar que ela depositou sobre Bjorn era carregado de sarcasmo e desacordo.
Mas, manteve-se em silêncio.

3 – Vida a ser vivida

Não fosse pela insistência de seu irmão não estaria naquela situação, sentada
numa mesa da assembleia, bebendo uma bebida alcoólica, com um xale preto a
cobrir os ombros, os cabelos enormes a modelar todo o torso até os quadris, com
a enorme mecha branca.
Os olhos estavam negros, todo o globo ocular era negro, suas unhas eram negras
e grandes, assim havia acordado e assim ficou durante todo o dia. Havia algo de
diferente em seu poder que ainda não entendia e não conseguiu mudar sua
aparência para o evento.
Não fosse por Ladarius sentado ao seu lado, nenhum conhecido estaria ali para
dar-lhe algum conforto dos olhares que inevitavelmente caiam sobre ela. Possuía
uma beleza exótica, isso não podia negar, mas doía-lhe que seus próximos como
Bjorn, Varg, Olyn e Luí estavam sentados nas cadeiras dos líderes.
Observar o irmão era de certa forma doloroso. Ele estava inserido naquela
cultura, estava ministrando a parte que cabia a família Kari, ela sabia que ele
tinha se encontrado. Sempre fora um Vikti e não um Ljot. Não queria pensar
naquilo, porque seus pensamentos também estavam em sua terra.
Embora comer causasse indigestão ainda, beber era bastante agradável e bebia
como se não houvesse amanhã, com a percepção estranha e sentimental que se
agitava em seu corpo. Seu irmão ficaria em Norga, estava certa e ela teria que
fazer uma escolha.
Todos eles estavam agitados, ela deixava deslizar o olhar sobre os outros líderes
que desconhecia e tentava entender o propósito de cada um deles, por isso se
mantinha calada e o que a ajudava a não se sentir tão incomodada com os
olhares.
— Nós vamos retomar o que é o nosso. - Disse Bjorn. — Vamos retomar Norga
com ou sem a ajuda política.
Ela queria gritar: “E Uada? Nós somos Uada!”, mas engasgou o grito no uísque
que escorregou por sua garganta. Sim, Uada. Aproximou-se do balcão e deu uma
olhada nos jornais. Ainda lutava em aliança a Traesia, a segunda já quase para
cair.
Ouviu seu próprio coração batendo. A lembrança foi retornando, a visão que teve
enquanto transava com Varg e Olyn ao mesmo tempo. Se viu andando nas ruas
asfaltadas de Uada. Sabia para onde ia. Os pés descalços sentiram as pedras da
pequena escada do templo da justiça.
Ela deixou deslizar a mão numa das colunas redondas que sustentavam o pórtico
e adentrou o templo. Era estranho, porque podia sentir seus homens em seu corpo,
mas ali estava, dentro do Templo da Justiça, que estava estranhamente vazio.
Estava se retirando quando sentiu algo úmido sob seus pés. Virou-se para olhar o
que era e viu que de um lado descia um líquido parecido com gelo e do outro lado
um que parecia com fogo. No meio do percurso eles se misturavam e se tornavam
uma coisa só e ouviu uma voz que sussurrou:
— Como sempre foi.
Uma memória de antes de sua morte a fez sorrir, ainda mais uma tão agradável
como aquela, lembrou-se daquele deus, do quanto gostara dele. Se gelo e fogo era
Norga e Uada, não tinha a menor ideia de como aquilo poderia ser possível. Pegou
outra garrafa de uísque e se sentou com Ladarius.
— Nós vamos deixar o vilarejo e nos mudaremos para a cidade de Shem, onde
ainda temos parte da floresta de Danê para nos proteger num bairro que já tomei
para nós com certa ajuda política, claro. - Disse Luí. — Também proporcionarei
alguns documentos para Kattla e Ladarius e terei que casá-los, como se tivessem
vindo de Uglain.
— Shem tem a vantagem de ser uma cidade que já foi fiscalizada e a próxima
fiscalização do império deve acontecer ano que vem ou além. - Disse um dos
outros líderes.
— E Uada? - Kattla finalmente perguntou.
O irmão a encarou prontamente, mas nada disse. Ela levantou tomando a garrafa
de uísque para si e deixou o lugar. Eles continuaram acertando todos os detalhes
da mudança que estava prevista para acontecer em três dias no máximo e Luí se
viu preocupado em tratar sobre a documentação de Kattla e com quem ele
deveria casá-la.
Ela encarava a floresta como sempre fizera, observando para onde o vento levava
seu costumeiro nevoeiro. O outro líder que falou sobre Shem parou ao lado dela,
fazendo-a o olhar. Não era muito diferente dos outros, exceto por ser ruivo e não
loiro. Os traços apessoados comuns de Norga. Ele disse:
— Sou do clã da sua mãe. Sou um corvo como ela.
— Não sei seu nome.
— Tephra. Você tem uma ligação forte com os corvos, não?
— Sim. Sempre tive.
— Eu sei, eu posso sentir. Mas, admito que te acho assustadora.
— Até eu estou me achando assustadora atualmente.
— Bjorn tem certeza de que se tivermos você ao nosso lado não há como perder
ou nosso plano dar errado. Ele sempre acreditou nisso.
— Sempre foi o problema do meu irmão, Tephra, Bjorn acredita demais e duvida
de menos.
— Você soa depressiva.
— Acho que estou. Acho que estou confusa. Talvez eu devesse subir na floresta.
— Posso te levar se quiser.
— Se tem algo que você precisa realmente saber sobre mim, é que eu vivo para
causar problemas. Se quiser viver em paz, é bom que fique longe de mim.
Ela o abandonou caminhando em direção da floresta até desaparecer na névoa.
Tephra foi abordado em seguida por Bjorn e Luí, que lhe perguntaram:
— Onde ela está?
— Acho que foi caminhar na floresta.
— Eu não posso demorar com a documentação. Não sabemos ao certo se temos
esse tempo de três dias para deixar esse lugar.
— Estou com medo de que ela venha a não querer deixar Uada, ela te perguntou
isso, não foi? - Perguntou Tephra.
— Unir as duas terras agora seria muito estranho, embora ela conseguiu pegar
Taber dessa maneira. Não subestimem minha irmã, mas ela precisa ser
convencida.
— Já não o fizemos? - Perguntou Luí.
— Se eu puder dizer o que se passa na cabeça da minha irmã, eu diria que para
ela agora que Taber está morto, vocês não estão correndo um risco real, que são
poderosos suficientes para lidar com a guerra. Embora uma caça Vikti começará,
não há um Taber para rastrear.
— Caso ela com Varg ou Olyn? - Perguntou Luí.
— Melhor perguntar para ela, mesmo. Minha irmã pode ser bem estranha com
essas coisas. Melhor a gente nem se meter nisso.
— Ela não foi me visitar ainda. - Disse Olyn, se aproximando.
— Ela está muito confusa com o renascimento, com tudo o que está acontecendo.
Acredito que fará em breve, pois que disse que queria te ver. Ou talvez não se
importe que você a encontre na floresta.
— Vou a observar de longe. - Disse Olyn, se retirando.
— Estou contente que ele está mais participativo. - Disse Luí. — Sempre senti
muita falta de Olyn.
— Muito ainda vai mudar. - Disse Bjorn.

4 – Estranhamento

Kattla desceu a rampa onde ficou presa e parou para tocar o elo onde a
prenderam. Caminhou mais um pouco para ver se o corpo de Oliver ainda estava
lá largado para os pássaros e entristeceu-se ao perceber que não foram sequer
capazes de lhe dar um enterro.
Ia tocá-lo, mas algo parou na fresta da porta da caverna, aquela palidez, o cabelo
branco caindo aos ombros, os olhos como dois buracos negros a carregar o
infinito. Sim, era Danê que a encarava, em pé, com sua coroa de galhos. Contudo
a deusa gritou tão alto que toda a floresta estremeceu.
Kattla olhou para a árvore em seu pulso e estava dourada. Não estava
entendendo o que estava acontecendo e a deusa gritou com ela mais uma vez, tão
alto que fez os ouvidos de Kattla sangrarem. Acuada, começou a se afastar dando
alguns passos para trás.
Não entendia o que a deusa estava querendo dizer, mas ouviu a melodia que
vinha da flauta dele. Olyn estava por perto ao menos. Será que tinha se
transformado num monstro ao ponto de ser rejeitada por Danê? Não sabia dizer e
não ousava dar as costas para ela.
Sentiu o braço firme de Olyn agarrando-lhe pela cintura e a tirando de lá na
maior velocidade possível. Ele a levou para a casa dele, sem questionar se era
isso o que ela queria. Assim que ele trancou a porta, ela o apertou contra o
próprio corpo num forte abraço.
— Quando disseram que você tinha voltado eu nem acreditei. - Ele disse.
— Ainda não acho que isso foi uma coisa boa. - Disse ela olhando para a
tatuagem que ainda estava dourada. — O que isso quer dizer?
— Eu não sei. - Ele acariciou o rosto dela. — Você quer ir embora para Uada e
nos deixar, não é? Para lutar sua guerra. - Os olhos de Olyn marejaram. — O
quanto você é diferente agora? Você ainda se lembra de mim com carinho?
— Eu não te assusto? - Ela perguntou com os olhos marejados.
— Pediria para ficar comigo mesmo se tivesse levantado daquele túmulo como um
esqueleto. E você é a coisa gótica, esquisita, exótica mais linda que já vi.
Ela riu e deixou a boca encaixar-se na dele, numa luta débil. Sentir o calor e
hálito de Olyn a fazia se sentir melhor e menos assustada com o que acontecera
com Danê. O que teria acontecido se ela tivesse tocado o cadáver de Oliver? Será
que era isso que ela estava protegendo.
Não sabia dizer, mas se entregava sem pensar para o beijo quente de Olyn, que se
tornava cada vez mais calmo e mais sensual, afundando os dedos no cabelo preto
e liso dela. Ela começou a despi-lo e ele a acompanhou. Ele a pressionou contra a
parede, desabotoando a camisa, enquanto o vento batia na janela, como se
pedindo permissão para entrar.
Quando nua ele a tomou nos braços e deitou sobre o sofá, abrindo as pernas dela
e penetrando em seguida. “Deuses, o que era aquilo?” Ela pensava, sentia tanto
prazer que não podia conter em si mesma, como se ela e Olyn fossem todo o
cosmos.
Entretanto, num momento em que os lábios apertavam o lábio inferior de Olyn,
que ainda a amava, fitou os olhos dele e eles estavam exatamente iguais aos dela,
completamente negro. Ela o empurrou, com os lábios abertos, mas a voz parecia
não querer sair.
O que estava acontecendo? Ela não sabia dizer. Mas, não precisou se esforçar
para Olyn perceber que ela queria parar. Os olhos dele voltaram a ficar em seu
azul transparente que ela tanto amava tão logo deixou de penetrá-la.
— Minha lua o que eu fiz de errado?
— Seus olhos ficaram iguais aos meus enquanto estava dentro de mim.
— E o que isso quer dizer?
— Eu não faço ideia. O que você está sentindo?
— Tesão.
— Só isso?
Ele se aproximou dela, envolvendo seu pescoço com seus braços alvos, beijando
os lábios dela e olhando cada um de seus olhos de cada vez, negros e estranhos
como estavam. Eram lindos para ele e Olyn não se importava, disse:
— Não importa que meus olhos fiquem como os seus, só faça amor comigo.
— Mas e se eu estiver te causando algum mal? Se eu estiver te matando?
— Está me matando de desejo, Kattla. Não sabe o quanto senti sua falta. - Ele a
trouxe para mais perto, fazendo-a sentar sobre seu colo.
Contudo, ainda que ele beijasse o pescoço dela para excitá-la, ela não se movia,
temia que o estivesse machucando, não sabia o que estava acontecendo com ela e
teria que ir para o Templo de Mantus ler um dos antigos livros se quisesse obter
respostas.
Deixou Olyn beijar-lhe a boca, ajeitando-se sobre ele e sentindo o falo rijo dentro
dela novamente. Os olhos mudaram de cor prontamente, ela quis parar, mas ele
não deixou e ficou a encarando. Sentiu os dedos de Olyn passando entre seus
seios, quando ela mesma sentiu vontade de desenhar um símbolo.
Não era possível que um necromante tivesse domínio e controle sobre os vivos,
um pouco de controle sobre a energia vital, sim, mas não um controle como
aquele. Ela desejou que ele a colocasse de joelhos sobre o sofá e a penetrasse por
trás. E assim Olyn fez prontamente.
Poderia ser apenas coincidência, mas ele também parecia ter algum tipo de
autodomínio, pois que não seguiu o desejo dela de gozar depois dela. Ela se jogou
se sentindo até um pouco divertida, mas sabia que de divertido aquilo não tinha
nada. Olyn se deitou ao lado dela e ficou a observando, como era de costume.
— Acho que posso lidar com você controlando o sexo. - Ele riu. — Você gosta de
controlar tudo mesmo.
— Pode ser por causa do pacto que fizemos. Mas, eu precisava de um livro antigo
que só vou encontrar em Uada.
— Você decidiu partir mesmo? Seu irmão realmente esperava que você fosse ficar.
— Eu não preciso decidir isso agora, preciso?
— Precisa. Mas, está chateada demais com Bjorn para querer pensar nisso.
Ela deslizou delicadamente os dedos no rosto dele e beijando suavemente seus
lábios, disse:
— Você sempre sabe o que se passa comigo. O que você quer?
— Sabe que iria com você para Uada se tomasse essa decisão. Mas, prefiro que
decida ficar, nem que for por um tempo e que case comigo em vez de casar com
Varg. Assim podemos descobrir o que nosso sexo negro é capaz.
— Casar com você? Isso eu realmente não esperava, sempre pronto a deixar o
vento soprar para onde quer.
— Sabe que não me importo que fiquem juntos. Mas, não sei se é inteligente sair
propagando o sexo negro por aí. Ah não ser que…
— Não transamos. Não ainda.
Alguém bateu à porta, havia pressa nas batidas e os dois se levantaram. Olyn
vestiu a calça e abriu a porta, do lado de fora Varg e Bjorn olharam para Kattla
que se vestia. Bjorn adentrou agitado e disse aos berros:
— Eu fiquei preocupado com você. O que foram aqueles gritos? - Deu alguns
passos de um lado para o outro. — Vamos pra casa.
— Vou ficar com Olyn hoje. - E olhando para Varg. — Diga a Luí que vou me
casar com Olyn também.

4 – Shem

Bjorn protegia os olhos contra o sol, enquanto Varg caminhava ao lado dele.
Grande parte dos caminhões de mudança estavam prontos, pois que decidiram
que chegariam em Shem durante a madrugada. Bjorn queria conferir se tudo
estava certo, mas Varg ainda estava inconformado:
— Casar com Olyn? Sério?
— Sabe que Olyn não tem nenhum problema que vocês dois fiquem juntos.
Então, é um tanto faz.
— Você quer tanto ser como um de nós, Bjorn e num momento como esse fala
como um Uadani, capaz de dividir uma mulher com outro homem.
— É o que sou. Desculpa se não sou inteiro. Minha irmã Uadani deve estar tão
chateada comigo quanto você, porque estou priorizando Norga em vez de Uada.
Vocês são muito parecidos, por isso acho que tende a dar mais certo com Olyn,
sempre mais maleável.
— Ela fica?
— Não sei. Ela deixou bem claro que precisava de um tempo para deliberar sobre
tudo isso e só por isso decidiu ficar com a gente enquanto se decide. Na verdade,
ela pouco tem conversado comigo. Não sei dizer o que está se passando com ela,
Varg, me desculpe.
— Isso te preocupa?
— Um pouco, mas sei com quem eu estou lidando. A conheço desde que nasceu.
Só estou contente que foi tudo em tempo. Ela levantar do túmulo antes de termos
que partir foi um bom presságio.
— Até que gostei dessa ideia de vocês de me casarem com Ladarius, ele é
baixinho e me lembra Ava de certa forma. - Disse Nytt. E vendo Kattla se
aproximando, continuou: — Lá vem a esquisitona.
— Eu disse que queria ficar com a outra casa ao lado do cemitério, Bjorn.
— Você já é estranha o suficiente para querer morar na casa mais esquisita do
bairro. Vai ficar com sua segunda opção, tem vista do cemitério de lá e não vai
ficar tão próxima da floresta.
— Você devia se colocar no seu lugar e lembrar-se de seu posto.
— Para Uada você ainda está morta, irmã.
— Não me provoque, Bjorn.
— Não estou te provocando, apenas te lembrando de alguns pontos. E se não
quiser fazer por mim, tudo bem, mas faça por Varg e Olyn.
Toda mudança ocorrera de acordo como eles queriam. Ninguém os vira e no dia
seguinte ainda estavam organizando as coisas em suas novas casas. Claro que
um ou outro vizinho notou os novos moradores do bairro, mas ninguém pareceu
ligar muito para isso com a vida dura que levavam.
A resistência tinha bastante dinheiro, em especial dinheiro da Kattla, o que
deixava Bjorn um pouco preocupado, já que ele estava cuidando do montante,
um dinheiro que não era exatamente de Norga, mas de Uada. Contudo, Luí
também tinha uma boa parte e seu dinheiro era de Norga.
No geral o povo vivia com um salário miserável que mal dava para se alimentar,
muitos tentavam manter suas próprias hortas, criação de galinhas e porcos, ou
pequenos comércios. O lugar era cheio de pequenos comércios como bares e
padarias.
Grande parte do bairro trabalhava numa mina próxima e eram eles em maioria
que movia a economia do local. Todos os moradores eram obrigados a ir à Igreja
do Deus Único todos os domingos e depois do culto, fazerem aula da religião do
Império. Quem se recusasse poderia ser preso ou coisa pior.
Kattla e Olyn acabaram concordando de que ela sairia pouco durante o dia até
controlar a questão de sua aparência. Porque tinha dias que seus olhos estavam
verdes e normais e dias em que todo o glóbulo ocular estava negro. Óculos
escuros foi outro artefato que ela passou a usar com muita frequência.
Numa tarde decidiu entrar na Igreja que ficava sobre o topo de um monte e se
mantinha sempre aberta. As paredes eram repletas de escultura em relevo
contando histórias que ela desconhecia. Algumas estátuas de seres alados
chamaram sua atenção, enquanto caminhava lentamente pórtico adentro.
Logo sentiu que havia cadáveres em criptas no lugar. Não sabia bem o que aquilo
significava porque nunca tivera tempo em sua vida para conhecer mais sobre a
religião deles. Gostou do velário com suas várias chamas bruxuleantes e de toda
esfera ritualística que tinha aquele local. Lhe lembrava um culto antigo de Uada
de certa forma.
— Posso te ajudar em alguma coisa? - Perguntou-lhe o sacerdote aproximando-se
dela.
Ela o olhou por um momento, tinha o cabelo castanho encaracolado, era jovem,
talvez tivesse alguns poucos anos a mais que ela, os olhos tinham um tom avelã e
ele mantinha o rosto apessoado e imberbe. Ela sorriu, dizendo:
— Sou Kattla Diad, esposa de Olyn Diad que trabalha nas minas, deve saber que
sou adoentada e que por isso nem sempre deixo minha casa.
— Sim, fui avisado. E o que a traz aqui, Senhora Diad?
— Queria conhecer a igreja e até mesmo perguntar se há algum livro sobre a
religião para que eu possa ler. Sinto muito, nós trabalhávamos muito no vilarejo
onde morávamos e eu não tive tempo de saber muito sobre religião. Além de que
gosto de caminhar quando me sinto bem.
— Posso te emprestar um, não tem problema. Aguarda um minuto para que eu
possa buscá-lo?
— Claro.
Enquanto o esperava continuava olhando as várias estátuas que tinha no lugar.
Não se lembrava de sentir magia naquela religião quando entrou numa das
igrejas quando estava na guerra, mas havia algo muito estranho. Uma sensação
estranha percorria seu corpo e tão logo o sacerdote entregou o livro para ela,
deixou o lugar.
Todos eles tentavam levar a vida mais comum possível, por isso alguns Viktis
realmente passaram a trabalhar na mina, enquanto outros arrumaram empregos
em outros lugares. O sacerdote tinha tudo anotado, pois ele que tomava conta
daquela vila e sabia o que todos faziam.
— Algo estranho para um sacerdote. - Disse Kattla servindo a comida sobre
mesa, para Olyn que acabara de chegar do trabalho. — Políticos deviam ter todo
esse poder e informação, não um sacerdote.
— Eu não quero que você fique indo à Igreja, você sabe que é muito arriscado
para você até que entenda o que está acontecendo com o seu poder.
— E vão ficar fazendo o que aqui? Trabalhando na mina eternamente? Eles estão
vindo para pegar vocês, aquela igreja tinha algo esquisito que eu não reconheci.
Olyn se vão fazer algo que façam logo.
— Se fizermos magia aqui, logo saberão que estamos aqui, por mais que
estejamos numa cidade maior, ainda estamos num vilarejo perto da mina sob o
controle da Igreja.
— Por que eles têm túmulos dentro da Igreja?
— Dizem que são corpos de homens que fizeram milagres. O que seria o mesmo
que magia. - Disse Olyn, mordiscando o pão.
— Não faz sentido isso.
— Claro que não. Você está cozinhando melhor a cada dia.
— Você ainda precisa me dar de beber.
— Eu sei. Farei assim que terminar de comer. Ainda não está conversando com
Bjorn?
— Não e acho que não vamos insistir numa conversa por enquanto, até porque eu
não decidi nada sobre a minha vida. Eu preciso encontrar um tempo para
caminhar no cemitério sem ser vista, preciso entender o que está acontecendo
comigo. Antes disso eu não tenho nada o que conversar com Bjorn.

Você também pode gostar