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1 – Gritos

Olhou para os pés descalços sobre os asfalto áspero com estranheza, a estrada
seguia retilínea indo para além do horizonte, quilômetros e quilômetros de nada
adiante e de ambos os lados. O cabelo chicoteava o pescoço leitoso, as nuvens
que rolavam pesadas e negras no céu carregado… Onde estava?
O corpo tremeu involuntário diante da agonia que lhe dominava o peito. Como
fora parar naquele lugar? Estava alucinando novamente? Passou as mãos sobre o
rosto e esfregou os olhos, como se isso pudesse esclarecer toda a confusão que
lhe tomava o âmago.
Um relâmpago iluminou o descampado ao seu lado esquerdo, fazendo-a saltar de
susto e virar rapidamente para checar o evento, não pode acreditar em seus
próprios olhos, ele estava parado no meio do descampado, há alguns bons metros
de onde ela estava.
Os olhos flamejantes a encaravam, as asas enormes se abriram como que se ele
tivesse o desejo de revelar-lhe sua verdeira natureza, embora ela não soubesse ao
certo se tratar de um anjo ou demônio ou ambos. Estava alucinando novamente,
constatou.
— Você não é real! Nada disso é real! - Esbravejou.
Contudo havia um sentimento dentro dela, aquele exato sentimento de todos os
dias, que algo de estranho estava acontecendo no mundo, que todos os
fenômenos naturais destrutivos e outros eventos catastróficos estavam
relacionados com aquelas visões.
Não queria pensar no fim do mundo, nem em anjos e demônios, não queria
sequer estar viva. Por que aquelas coisas tinham que acontecer com ela? Queria
parar de ver aquele ser, mas as asas brancas e grandes, os olhos flamejantes, a
beleza de sua face a seduziam de tal forma que não conseguia parar de olhar.
O vento então passou a crepitar como se trouxesse o som de uma fogueira perto
de seus ouvidos e estranhamente podia sentir o calor sobre a pele alva e suave de
seu rosto. Tudo o que via foi aos poucos se tornando uma visão borrada, como
um quadro mal pintado.
O vento foi ficando cada vez mais agitado, levando para longe todo o horizonte e o
ser que pairavam sob seu olhar, desfazendo-se como papel picotado e redopiante
no ar. Contudo isso não afugentou a estranha voz que lhe disse:
— Está na sua essência.
O crepitar do fogo tornou-se ainda mais alto, a escuridão tomara sua paisagem,
como se a alma tivesse retornado para o corpo ela abriu os olhos, a fogueira ardia
diante dela, as mãos deslizaram no solo úmido no qual estava deitada, as folhas
secas enlaçaram-se nos dedos débeis.
Levou uma mão ao rosto, secando o suor que lhe escorria pelas têmporas, sabia
que estava mais frio do que ela sentia, já era quase inverno, mas, ainda assim,
estava suando. Porém, não conseguia se lembrar ainda de onde estava. Era outra
visão?
Aos poucos ouviu os acordes e se fez clara a melodia do violão de Gar, suspirou
com profundo alívio ao ouvir a musica, as lembranças lhe saltavam à mente
agora e sabia que aquele ser era apenas uma alucinação por causa do chá que
tomaram antes de entrarem na floresta.
Sentiu o corpo pesado ao impulsionar o torso adiante para se sentar, não
estavam sozinhos. Abaixou a cabeça por um momento para lembrar-se do próprio
nome, mas a mente inquieta continuava suspirando outro nome que sabia não
ser dela. Samael.
— Nia, você está bem? - Perguntou a moça que se abaixou diante dela.
Sim, era Miriam. Ela se lembrava dela. Fora a primeira amiga que fizera quando
se mudou para aquele lugar. Nia sem se importar acariciou o cabelo loiro
cacheado da amiga com todo o carinho que poderia lhe dar naquele momento
confuso e disse:
— Tirando algumas visões doidas do apocalipse, eu estou ótima. Só um pouco
confusa.
Miriam acariciou o cabelo castanho e comprido que dava vida ao verde feito um
lago dos olhos de Nia. Se conheciam há tão pouco tempo e parecia que já se
conheciam por toda a vida. A amiga esticou-lhe um copo com cerveja, dizendo:
— Beba um pouco, vai te fazer bem.
— Acho que ambos estão certos. Tanto o psiquiatra quanto o índio que
encontramos algum tempo atrás. Tem algo de errado comigo, Mi. Tem algo de
muito errado comigo.
— Não há nada de errado com você. Você tomou um psicoativo e é normal que
alucine um pouco por causa disso.
Por intuição achou melhor não dizer sobre as vozes que voltara a ouvir. Ao
mesmo tempo em que sentia falta delas, já que elas sempre estiveram presentes
desde a infância e lhe davam certo conforto, também lhe traziam a incerteza de
sua saúde mental.
Ouviu os outros gargalhando ao redor do fogo, virou-se para olhá-los, não
estavam sequer lembrando da existência dela, apenas conversando entre eles e lá
estava Gar, agora segurando o violão com um braço e bebendo cerveja, enquanto
ria com os outros, o riso da inocência.
Dividiam a casa, embora ela o achasse muito bonito, sempre atraída pelos loiros
de cabelo comprido, ainda mais músico. Mas, era apenas aquilo, um
reconhecimento da beleza dele com seus olhos cerúleos e o rosto com traços
suaves e delicados.
Como se pudesse senti-la, ele a olhou e sorriu. Não parecia tão preocupado como
Miriam estava, claro que a amiga sabia mais do que ele e tinha motivos para sua
preocupação. Sabia pelo que Nia estava passando naquele momento e era a única
com quem Nia conseguia conversar e se abrir.
— Tenho que encontrar forças para passar por uma iniciação ou algo do tipo e ao
mesmo tempo eu acho que é uma perda de tempo.
— Está falando de bruxaria?
— Se quiser encarar dessa forma.
— Você já fez isso antes?
Nia balançou a cabeça afirmativamente.
— Então, você é uma bruxa? - A pergunta soou tão alto que todos olharam para
elas.
— Costumava ser. - Respondeu a outra sem perceber os olhares sobre ela.
— O que mudou?
— Meus pensamentos, sentimentos e interesses sobre isso. - Respondeu Nia,
honesta. — Mas, em nada isso me fez sentir melhor comigo mesma. É minha
obsessão e não consigo me livrar dela. Acho que fico sem norte sem isso.
— Então, temos uma bruxa entre nós. - Disse Andreas, passando o braço sobre
os ombros de Nia. — Desculpe me intrometer, mas não pude deixar de ouvir.
— Vai me dizer que vai rir de mim por causa dessas superstições?
— Não sou eu quem glorifica a ciência, mas você mesma. - Ele disse sustentando
um sorriso carinhoso.
— Só estou confusa, Andreas. Acho que tomei mais chá do que devia.
— Acho que sua dose foi precisa. Eu te disse que estaria ao seu lado e te ajudaria
no que fosse necessário. O chá causa um pouco de alucinação, mas também lhe
causa uma explosão de serotonina e noradrenalina. O que teoricamente faz com
que você se sinta bem.

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