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Voz – Movimento Corporal – Criação

Sandra Parra

UFMG

Palavras-chave: integração voz-movimento corporal; ciências cognitivas; criação.

Em meu trabalho artístico, venho buscando, já há vários anos, uma poética de cena que se
construa na zona de fronteira entre ator e espectador. E percebi, a uma determinada altura, que o modo
como entendemos a relação entre movimento corporal e voz são determinantes no modo como realizamos
a nossa criação – pois nossos movimentos e nossa voz são não apenas meio de expressão material de uma
idéia, mas geradores de idéia, e o entendimento e a relação prática que o criador tenha com esses
elementos irão definir grande parte da sua criação artística.

Assim, em minha pesquisa de mestrado1, parti da seguinte pergunta: em que instância do corpo se
dá a integração movimento corporal-voz no trabalho do ator? Neste trabalho proponho que, para responder
a essa pergunta, será necessário antes de tudo buscar a superação do modelo dualista de oposição entre
corpo e mente, pois notamos que o esquema dualista se reproduz, como microcosmo, na relação entre voz
e movimento corporal – não só na abordagem analítica que recebem nos trabalhos de preparação de ator
como também no esquema de hierarquização, de valoração de um em relação ao outro.

Parti da premissa de que voz e movimento corporal são fenômenos inseparáveis e, portanto,
podem ser trabalhados de maneira integrada, em uma “terceira via” alternativa àquelas que propõem ou o
trabalho analítico (ou “em separado”) de voz e movimento corporal ou o trabalho simplesmente
simultâneo de ambos; e que, para tanto, é necessário que o artista conheça não apenas seu meio físico de
expressão, mas os elementos que constroem o seu próprio pensamento e o seu meio cultural –
interdependentes e determinantes, ambos, de sua relação com a criação.

Para o cumprimento deste objetivo, realizei uma pesquisa interdisciplinar relacionando campos de
conhecimento como o teatro, a performance, as ciências cognitivas (principalmente em seus ramos da
filosofia da mente, das neurociências e da lingüística cognitiva), a fisiologia do movimento e a física do
som. Uma das questões centrais apontadas na discussão proposta é a relação entre estados mentais, estados
corporais e a produção da voz no corpo humano.

Segundo Churchland (2004:70-71), a concepção mais aceita na questão corpo-mente entre os


filósofos e estudiosos das ciências cognitivas é o funcionalismo – que, fundamentalmente, entende a
mente como algo que se constrói sempre em relação: do sujeito consigo mesmo, do sujeito com o

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ambiente, do sujeito com outro sujeito. Podemos encontrar uma conexão entre essa proposição e as
pesquisas de António Damásio, no campo das neurociências, sobre os substratos biológicos da mente.

Em O Erro de Descartes (1996), Damásio postula que a mente é resultado de uma série de
interações: do cérebro com o corpo,2 do organismo com o ambiente, do organismo com sua própria
história evolutiva, sua regulação biológica, seu contexto cultural etc.

Damásio afirma que o corpo fornece, constantemente, informações que constroem a mente; esta,
por sua vez, modifica o corpo, devolvendo-lhe outras informações;3 o corpo relaciona-se com o ambiente
e o modifica, e da mesma forma é modificado por ele; as informações provenientes do ambiente
modificam o corpo e, conseqüentemente, a mente; e assim, sucessiva e simultaneamente, ambiente e
corpo-mente estão em constante construção mútua, em um fluxo ininterrupto de processamento de
informações, constantemente atualizadas. Nossos estados mentais estão, assim, em simbiose contínua com
os estados corporais, determinando-os e modificando-os, e ao mesmo tempo sendo determinados e
modificados por eles.

Segundo Damásio, os estados corporais e estados mentais são inseparáveis e simultâneos,


existindo em uma relação de co-determinância. Ou seja, as representações mentais que nosso cérebro cria
para descrever uma situação e as respostas formuladas a essa situação dependem de interações mútuas
cérebro-corpo-ambiente.

Podemos depreender daí que toda vez que um organismo produz voz ele altera todo o seu estado
corporal e suas representações neurais, já que produz alterações na musculatura da laringe, provocando
por sua vez alterações em cadeia na musculatura de todo o corpo (ver SOUCHARD, 1989); e também no
sistema respiratório, que afeta por sua vez o sistema circulatório e conseqüentemente a produção e
distribuição de hormônios etc. Sem contar ainda com o efeito da vibração da voz sobre o próprio corpo e a
própria audição de quem está falando, que irão gerar outras informações, reações, imagens que comporão
e alterarão ativamente esses estados corporais – que por sua vez alterarão a produção da voz, com seus
componentes físicos, emocionais, mentais (como memória, p. ex.) etc.

Assim, produzir voz, mais do gerar ação ou movimento, também altera os estados do corpo. E,
conseqüentemente, altera as representações neurais constitutivas da consciência.

Percebemos que os entendimentos dualistas que permeiam as concepções da relação corpo-mente


também estão presentes na relação corpo-voz. A voz é, de maneira geral, entendida como algo imaterial,
impalpável; tradicionalmente, é trabalhada como algo em separado do “corpo”4 – repetindo em muitos
pontos o padrão do dualismo cartesiano: duas substâncias diferentes, uma material (o corpo) e outra
imaterial (a voz), com um ponto de conexão (a glote).

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Também as relações de hierarquização entre corpo e mente presentes no dualismo cartesiano se
repetem aqui. Durante muitos anos (de fato, alguns séculos), no teatro ocidental, o texto verbal foi
hipervalorizado, em detrimento de todos os outros textos. Uma das principais reações a esse estado de
coisas, ocorrido no início do século XX na Europa, com a intenção de resgatar e valorizar o trabalho do
ator, foi a retirada de cena do texto verbal – e, com isso, também do texto vocal. Ou seja, junto com a
palavra, desapareceu a voz. Acredito que isso possa ter sido motivado pelo fato de a voz, na nossa
sociedade, ser percebida geralmente como meio de difusão da palavra, e por extensão de todas as idéias
significadas pelas palavras, às quais toda a criação cênica deveria, no teatro tradicional, se submeter.

No entanto, como nos diz Paul Zumthor, “a voz é uma coisa: descrevem-se suas qualidades
materiais, o tom, o timbre, o alcance, a altura, o registro...” (ZUMTHOR, 1997:11; grifo do original). Ela
é uma emanação corporal que possui espessura e tatilidade próprias, e ocupa um campo de significados
bastante diversos dos da palavra, caracterizando-se como entidade independente desta – ainda que a voz
seja o próprio substrato da palavra: “a voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita” (ZUMTHOR,
1997:13). A partir daí, a primeira dicotomia que precisamos desmanchar é a de “corpo x voz” – pois se a
voz é produto do corpo, não pode opor-se a ele; é impossível trabalhar-se ou o corpo ou a voz. Sempre que
se trabalhar com a voz, o corpo estará trabalhando; sempre que se trabalhar com o corpo, a voz estará
presente no trabalho, ainda que potencialmente.

Acredito que o artista cênico pode trabalhar sobre si mesmo de maneira a ampliar sua percepção, a
ponto de poder perceber as afecções da voz sobre o movimento corporal e do movimento corporal sobre a
voz – estando aí, nesse substrato onde a percepção pode captar as sutilezas das afecções de um sobre o
outro e das alterações que elas disparam em todo o corpo, o lugar do que chamamos de integração entre
voz e movimento corporal. A fim de desenvolver essa autopercepção, entendo ser necessário não só um
trabalho técnico corpóreo-vocal, mas principalmente a busca de uma abordagem diferenciada, de um outro
entendimento sobre o trabalho de voz e movimento corporal desde os seus princípios fundantes – pois será
principalmente o modo como o ator engaja sua atenção no treinamento executado o que criará essa
diferença perceptiva, desenvolvendo procedimentos libertos de modelos pré-estabelecidos, por mais
privilegiados culturalmente que estes possam ser.

Referências Bibliográficas
CHURCHLAND, Paul M. Matéria e Consciência – uma introdução contemporânea à filosofia da
mente. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
DAMÁSIO, António R. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.

10
HERCULANO-HOUZEL, Suzana. O Cérebro Nosso de Cada Dia: descobertas da neurociência sobre
a vida cotidiana. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2002.
SOUCHARD, Philippe-Emmanuel. Respiração. São Paulo: Summus, 1989.
VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte – formas de conhecimento: arte e
ciência; uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec/Educ, 1997.

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1
“Estudos para Integração Voz e Movimento Corporal no Trabalho do Ator Contemporâneo”. 2007. Dissertação
(Mestrado em Artes) UFMG, Belo Horizonte. Orientador prof. dr. Maurílio Rocha – UFMG; co-orientação profª. drª.
Rosa Hercoles – PUC-SP.
2
É preciso ter em mente aqui que, por questões metodológicas, para efeito de melhor desenvolver sua proposta,
Damásio separa “cérebro” (sistemas nervosos) de “corpo” (conjunto de todos os outros órgãos e estruturas que geram /
recebem informações, que por sua vez são lidas / processadas / devolvidas pelo “cérebro”). No entanto, ele mesmo
afirma que, convencionalmente, o sistema nervoso faz parte do corpo como um todo – o qual ele chama de organismo.
(DAMÁSIO, 1996:112.)
3
Utilizamos aqui o termo informação no sentido de “informação como diferença que gera diferenças” de qualidade ou
de quantidade (cf. VIEIRA, 2006:77).
4
Na dissertação, propus substituir, para melhor compreensão das idéias, o termo genérico “corpo” por “movimento
corporal”, já que este também é produzido pelo corpo, e tão parte constituinte dele quanto a voz.

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