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Em defesa da filosofia

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por Maurício Abdalla
Fevereiro 15, 2019

A Filosofia não se identifica com nenhuma das tantas profissões e saberes


específicos que se formam nos cursos superiores. Quem se forma em
Filosofia não recebe uma capacitação prática e técnica. Formar-se em
Filosofia é ser introduzido no mundo da razão com a missão de fazer dela o
seu instrumento de vida e trabalho, sem, obviamente fechar-se a outras
dimensões da vida e às outras faculdades que caracterizam a essência
multidimensional do ser humano. Em realidade, a razão só cumpre
corretamente sua função quando é compreendida como uma parte em
interação sistêmica dentro de uma totalidade que é o ser humano, que, por
sua vez, é parte de uma totalidade sistêmica que é o próprio universo.

Seja como professor, pesquisador, escritor, ou apenas como cidadãos e


cidadãs que exercem distintas funções, os filósofos e as filósofas devem ter a
razão como arma ou martelo (a metáfora é à escolha), sem as quais o
soldado ou o ferreiro não executam seu trabalho.

Há, no entanto, distintas maneiras de se lidar com a razão. Gostaria de


destacar três delas, nomeando-as de maneira livre, apenas para efeito de
exposição, sem pretensão de fazer uma taxonomia da racionalidade ou de
propor novos termos para o léxico filosófico.

Chamemos a primeira de razão vaidosa. Trata-se do uso da lógica, das


inferências, dos conceitos dos grandes pensadores, do discurso bem
elaborado e rebuscado da tradição filosófica e da linguagem esotérica,
apenas para a criação textual ou discursiva que impressiona, que confere ao
orador ou escritor a aura de intelectual erudito ou de acadêmico
ultraprodutivo, julgado e sacramentado apenas pelos parâmetros
quantitativos de avaliação da produtividade acadêmica.

A razão vaidosa não parte de problemas, não ilumina caminhos, não projeta
sua imagem sobre o mundo e nem recebe dele o seu conteúdo. Como
Narciso, sua imagem se volta para si mesma, para contemplar-se e exibir-se.
A exibição de si mesma é, portanto, a única ponte que a liga aos outros. Por
isso, é um uso solitário e individualista da razão.

Para os que assim lidam com a razão, pouco importa quantos leram os
textos produzidos, quantos se iluminaram por suas reflexões e as usaram
para entender seu mundo, ou quantos problemas da realidade foram
compreendidos à luz de seus conceitos. À razão vaidosa só importa exibir a
quantidade e a complexidade dos títulos do que produz e a classificação dos
meios ranqueados que os veiculam. Ela mira apenas a si mesma e o mundo
acaba reduzido a um limitado palco ou passarela, onde se representa um
papel ou se exibe as modas em desfile. Os limites desse palco ou passarela
quase sempre se confundem com os limites do espaço acadêmico. O mundo
além se transforma em um universo paralelo, que pouco ou nada tem a ver
com a racionalidade da Filosofia e dos demais saberes acadêmicos.

A razão vaidosa é a grande sedutora do meio acadêmico e propaga-se com


maior facilidade no terreno da Filosofia. Sua presença endêmica nas
universidades faz com que tenhamos, hoje, uma produção acadêmica tão
vasta e bela, mas um mundo real tão restrito e feio em termos de produção
de conhecimento e de uso da racionalidade.

A razão vaidosa fala para si mesma, guarda-se para seu próprio


engrandecimento. E, enquanto abarrotamos as universidades com conceitos,
reflexões, artigos, seminários, teses, etc. o irracionalismo e o
fundamentalismo ganham espaço no mundo da política e das relações
sociais, apropriando-se efetivamente do mundo real do qual a razão vaidosa
se esqueceu.

Quando prevalece o uso vaidoso da razão, a universidade se converte em


uma espécie de Elysyum, para usar uma metáfora hollywoodiana, para onde
querem ir os que desejam fugir do mundo real. Enquanto isso, todos
afundamos no lodo da barbárie teórica e prática que tomou conta do nosso
país e que mostrou sua força nas últimas eleições.

É possível que tenha sido a respeito desse tipo de uso da razão que ironizou
Erasmo de Rotterdam em seu Elogio da Loucura. Disse ele sobre Sócrates:

“Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das nuvens e das ideias,
ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o
zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do
conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se
adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que também diz respeito a muitos
dos nossos.”

Repito, para assumir como minha, a frase final de Erasmo: “Aí tendes, nesse
retrato, o que também diz respeito a muitos dos nossos”.

Chamemos, agora, o segundo uso da razão de razão cindida. Como


mencionei anteriormente, a razão só adquire sentido quando concebida como
parte de uma totalidade sistêmica. Como tal, ela não é uma peça
independente que, colocada em contato com outras em um mecanismo
funcional, faz mover o todo. Na verdade, ela só é o que é, em sua própria
constituição particular, em função da interação com as demais dimensões da
totalidade complexa que é o ser humano em interação com o universo.

Assim, isolar a razão da arte, da poesia, da música, dos sentimentos, das


paixões, da mística, da fé, do prazer, do desejo e de outras tantas dimensões
do ser humano multidimensional é provocar uma cisão que, ao mesmo tempo
em que separa a razão da totalidade, provoca também a sua morte. A razão
não é apenas parte do todo. Ela se realiza (ou seja, existe como algo real)
apenas como parte integrante de uma totalidade que a subsume, conferindo-
lhe sentido e função.
Sabemos como a frieza da razão calculista e da pura lógica – muitas vezes
convertida erroneamente em razão “científica” – produziu em muitas
consciências a visão de um mundo desencantado, sem beleza, sem sentido
e, mais gravemente, sem apelo ao cuidado essencial com o que é Outro (a
natureza e os demais seres além de mim), como nos recorda Leonardo Boff.

Por meio do uso cindido da razão, o universo passa a ser concebido como
algo sem vida, pura matéria a ser estudada, convertida em cálculos e
equações, apropriada, usada e descartada. O outro ser humano se torna
apenas um outro com quem preciso me relacionar contingencialmente pelo
fato casual de compartilharmos o mesmo espaço e termos interesses
confluentes ou divergentes. A essencialidade do relacionamento com o Outro
na própria constituição do que é o humano se perde na fria análise calculista,
estratégica e instrumental da razão cindida. A propósito, a razão instrumental
sobre a qual falavam os filósofos da Escola de Frankfurt só existe em função
da cisão da razão de sua integralidade constituinte.

Ao cindir a razão da totalidade universal da qual o ser humano é também


parte, os problemas humanos, decorrentes de nossas relações inter-
humanas e com a natureza, foram diluídos em um conjunto de “forças cegas”
da natureza, implacáveis e eternas e pretensamente conhecidas pela razão
científica.

Assim, não haveria propriamente problemas humanos passíveis de serem


compreendidos e resolvidos à luz do pensamento filosófico e de outras
formas de saber e conhecimento, mas apenas a justificação naturalista da
forma como nos organizamos social e economicamente e de como nos
relacionamos predatoriamente com o ecossistema. E à filosofia restaria
apenas o exercício exegético, hermenêutico e crítico-literário de leitura de
textos de autores consagrados e de escrita sobre eles. Nada mais.

Alguns autores da contemporaneidade confundiram a razão cindida com a


própria razão. Hoje, um considerável número de filósofos e filósofas assesta
sua artilharia contra a própria racionalidade, confundindo-a com seu uso
espúrio e equivocado de uma razão que foi cindida em função dos interesses
do sistema econômico que prevaleceu na modernidade.

Esse sistema, ao mesmo tempo em que se impunha materialmente, forjou


uma racionalidade própria, com as características teóricas e conceituais que
o reproduziam e sustentavam no plano filosófico e científico, e uma
subjetividade moldada a sua forma de ser.

Porém, ao rejeitar a razão em si mesma, em nome de uma pretensa


resistência ou subversão à subjetividade construída pela predominância da
razão cindida, esses filósofos agem como soldados que, em uma guerra, ao
invés de lançarem-se à batalha contra o inimigo, ocupam-se em destruir as
armas que poderiam usar para esse objetivo, supondo-as com defeito de
fabricação antes de tentar usá-las corretamente.
O terceiro uso da razão que desejo destacar é a razão integral e
emancipatória. Essa forma de lidar com a racionalidade compreende que o
objeto da razão não podem ser os conceitos que ela cria para entender e dar
sentido ao mundo. Por óbvio, se os conceitos são criados pela razão para
dar inteligibilidade ao mundo, o papel da razão não pode ser usar conceitos
para compreender os próprios conceitos.

Seria como se se concebessem os óculos como um objeto apenas para ser


contemplado com as vistas que ele deveria ajudar a enxergar. Ou como
espelhos colocados de frente um para o outro. Nessa disposição, os
espelhos refletem-se a si mesmos ao infinito. Assim é a razão que se limita a
pensar conceitos e a filosofia que se limita a entender o pensamento de
autores.

O filósofo que não compreende a integralidade da racionalidade filosófica


torna-se especialista em pensamento alheio, mas cego para o objeto que foi
pensado pelos autores, ignorante sobre o mundo que o rodeia e incapaz de
apresentar o que poderia ser o seu próprio pensamento sobre algum objeto
real, inspirado em todo o acervo de pensamento da história da filosofia.

A razão com a qual a filosofia deve trabalhar tem como elemento constituinte
de sua integralidade o mundo real, com o qual ela interage receptiva e
ativamente.  Não se trata de um mundo linguístico, conceitual, ficcional,
ideal, mas do mundo do cotidiano, das lidas diária de homens e mulheres
reais, que precisam cuidar de seus corpos para manterem a sua essência, ou
seja, a sua vida. É um mundo contraditório, complexo, composto de outros
seres humanos em relação e de uma natureza da qual dependemos e
fazemos parte.

É o mundo de pessoas exploradas e oprimidas, de tragédias humanas e


ecológicas provocadas pela ganância do capital, como os crimes da Vale em
Mariana e Brumadinho, a desertificação verde pela monocultura do eucalipto,
a voracidade cruel da indústria de petróleo e das corporações financeiras que
destroem a democracia, planejam e financiam golpes de estado, massacram
países e impõem suas normas a todos. É o mundo da indústria de
agroquímicos, fármacos e alimentos processados que nos envenenam a
cada dia e corroem nossos corpos. É o mundo de pessoas sem teto e sem
alimento, dos transportes lotados, do trabalho sem compensação, da
violência contra os negros, mulheres e homossexuais, do descaso com os
idosos e portadores de deficiência, do etnocídio indígena, da manipulação
das leis o do processo jurídico para fins políticos e de tantas outras
realidades, impossíveis de serem todas citadas.

Neste mundo, as ideias, o conhecimento, os mitos, as verdades, os desejos,


os sonhos, a fantasia, têm sido manipulados para se construir um suporte ao
sistema no campo subjetivo, de forma que ele se reproduza e perpetue sem
questionamentos e críticas.

Esse é o mundo que integra a totalidade à qual a razão pertence e que se


deve tornar o conteúdo e objeto da filosofia.
Hegel, na Enciclopédia das ciências filosóficas, nos ensina que “o conteúdo
da filosofia é o mundo real, o mundo externo e interno da consciência – isto
é, que o seu conteúdo é a realidade efetiva”  (Wirklichkeit, no alemão). Não é,
portanto, o mundo bem estruturado dos conceitos, mas o mundo contraditório
de nossa realidade vivida.

Descartes, no Discurso do método, dizia que os filósofos que trabalham


apenas com os conceitos de autores “São como a hera, que não sobe mais
alto que as árvores que a sustentam, e que muitas vezes torna a descer,
depois de haver alcançado o topo. Pois tenho a impressão de que também
voltam a descer – ou seja, tornam-se de certa maneira menos sábios do que
se se abstivessem de estudar – aqueles que, não satisfeitos de saber tudo o
que é inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar
nele a solução de muitas dificuldades, acerca das quais [ele] nada declarou e
nas quais talvez jamais pensou”.

Spinoza, em seus Pensamentos metafísicos, diz que não se admira  “de que


filósofos presos ao verbalismo e à gramática incidam em (…) erros, pois eles
julgam as coisas pelos nomes  [ou seja, os conceitos]  e não os nomes pelas
coisas”. Aplicam o conceito a um mundo que não conhecem, ao invés de
instruírem os conceitos pelo conhecimento da coisa.

Sartre, em O existencialismo é um humanismo, nos alerta de que a filosofia,


na contemporaneidade, é novamente chamada a ocupar o seu espaço na
praça pública, onde nasceu e deve se manter.

Por fim, Merleau Ponty, no seu prefácio de  A fenomenologia da


percepção diz que “A verdadeira filosofia consiste em reaprender a ver o
mundo”.

À Filosofia cabe a destruição conceitual das bases que sustentam a


enganação e a ideologia em função de interesses. Ela é crítica em sua
essência e, como tal, deve levar à nossa emancipação.

Pensemos em alguns elementos deste mundo que devem despertar a


atenção dos filósofos. Só é possível aqui destacar os que adquiriram relevo
nos últimos anos e listá-los sem pretensão de uma classificação exaustiva.

Temos sido testemunhas da falta de racionalidade em todas as dimensões


da política, de uma mídia ideologizada e manipuladora de informações e
opiniões, da indústria de falsas notícias, da manipulação ideológica,
conceitual e teórica das consciências da população por diversos meios
bancados pelos agentes financeiros mais gananciosos que já existiram na
história.

Ao mesmo tempo, o obscurantismo fundamentalista tem ocupado o espaço


da política, da educação e do debate público, ameaçando-nos com um tempo
de trevas caso não nos movamos com agilidade e competência.
Tudo isso ocorre em um quadro em que a natureza e o ser humano sofrem
agressões injustificáveis e intoleráveis, em função unicamente do
enriquecimento estratosférico de apenas 1% da população mundial.

Quem pensa que nada disso tem a ver com a Filosofia pode querer estar
com ela, mas a Filosofia jamais estará com ele. Nem os filósofos julgados
mais obscuros e abstratos deixaram de pensar, cada um a seu modo, os
problemas de seu mundo.

Quem se acha sábio (ou amigo da sabedoria), mas não é capaz de sentir a
dor da Terra e dos homens e mulheres que a habitam, trabalha com a razão
vaidosa ou a razão cindida, mas não com a razão integral que manteve viva
a Filosofia na história.

A nossa faculdade raciocinativa e a racionalidade que é essência da Filosofia


devem ser movidas por elementos não racionais, como a sensibilidade, a
indignação, o amor, a solidariedade, e tantos outros, tanto quanto as
complexas operações lógicas e matemáticas dos computadores só
funcionam movidas pela energia elétrica. Retire o mais moderno computador
de uma simples fonte de energia e toda sua capacidade de processamento
afunda na mera potência.

A energia dos verdadeiros filósofos e filósofas para trabalhar com a razão


vem dos outros elementos da multidimensionalidade humana. Vem do
espanto diante do mundo, da admiração do que é belo, da contemplação
mística do mistério do universo e dos seres vivos, do amor ao Outro, da
indignação e insatisfação com a realidade vivida, da revolta com as
estruturas que edificam a sociabilidade, do medo e da angústia diante da
vida, da morte e do destino… Sem isso o filósofo é como um computador
fora da tomada, mesmo com a memória repleta de todas as informações
retiradas dos livros clássicos.

Por isso, a razão filosófica deve ser integral e emancipatória. Deve levar-nos
à crítica e ao desejo de liberdade. Deve esforçar-se para contribuir na
superação de tudo que atenta contra as potencialidades do ser humano e de
nosso planeta.

Esse é o apelo de Marx em suas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos até


hoje se esforçaram para interpretar o mundo de diferentes maneiras. A
questão é transformá-lo.” Marx nos propõe que a transformação do mundo, e
não apenas sua interpretação, seja considerada uma questão filosófica.

Sempre houve forças contrárias à razão emancipatória na história, mas


agora ela sofre com muito mais violência no quadro atual da política e das
relações sociais em tempos de pós-verdade. A Filosofia tem sofrido golpes
fatais. Querem-na fora das escolas e das universidades, monopolizada por
pseudofilósofos com agendas fundamentalistas e de extrema direita, com
reflexões rasas e associações falsas de ideias. Cabe aos filósofos que não
se entregarem à razão vaidosa ou à razão cindida serem os protetores da
Filosofia fundada na razão integral e emancipatória. A verdadeira tradição
crítica da filosofia tem potencial de gerar resistência, questionamento e
libertação.

Os filósofos devem estar nas escolas, nas igrejas, nas universidades, nos
movimentos sociais, nas redes sociais, nos distintos locais de trabalho, nos
jornais e revistas, nas rádios, enfim, em todos os espaços da produção da
subjetividade como agentes da racionalidade emancipatória e a voz da
filosofia crítica.

Kant, em seu “Resposta à pergunta: O que é o iluminismo”, defendeu a razão


emancipatória com a palavra de ordem: sapere aude! Ou seja: ouse saber!
Como complemento à exortação kantiana, eu acrescento, hoje, como
conclusão desse discurso e como apelo a uma filosofia baseada na razão
integral e emancipatória: pugnare aude! Ou seja, ouse lutar!

(Discurso proferido como paraninfo da turma de formandos em Filosofia da


Universidade Federal do Espírito Santo, 2019).

Maurício Abdalla  é professor de filosofia na Universidade Federal do


Espírito Santo

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