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A razão vaidosa não parte de problemas, não ilumina caminhos, não projeta
sua imagem sobre o mundo e nem recebe dele o seu conteúdo. Como
Narciso, sua imagem se volta para si mesma, para contemplar-se e exibir-se.
A exibição de si mesma é, portanto, a única ponte que a liga aos outros. Por
isso, é um uso solitário e individualista da razão.
Para os que assim lidam com a razão, pouco importa quantos leram os
textos produzidos, quantos se iluminaram por suas reflexões e as usaram
para entender seu mundo, ou quantos problemas da realidade foram
compreendidos à luz de seus conceitos. À razão vaidosa só importa exibir a
quantidade e a complexidade dos títulos do que produz e a classificação dos
meios ranqueados que os veiculam. Ela mira apenas a si mesma e o mundo
acaba reduzido a um limitado palco ou passarela, onde se representa um
papel ou se exibe as modas em desfile. Os limites desse palco ou passarela
quase sempre se confundem com os limites do espaço acadêmico. O mundo
além se transforma em um universo paralelo, que pouco ou nada tem a ver
com a racionalidade da Filosofia e dos demais saberes acadêmicos.
É possível que tenha sido a respeito desse tipo de uso da razão que ironizou
Erasmo de Rotterdam em seu Elogio da Loucura. Disse ele sobre Sócrates:
“Tendo passado toda a vida a raciocinar em torno das nuvens e das ideias,
ocupando-se em medir o pé de uma pulga e se perdendo em admirar o
zumbido do pernilongo, descuidou-se esse filósofo do estudo e do
conhecimento dos homens, bem como da arte sumamente necessária de se
adaptar a eles. Aí tendes, nesse retrato, o que também diz respeito a muitos
dos nossos.”
Repito, para assumir como minha, a frase final de Erasmo: “Aí tendes, nesse
retrato, o que também diz respeito a muitos dos nossos”.
Por meio do uso cindido da razão, o universo passa a ser concebido como
algo sem vida, pura matéria a ser estudada, convertida em cálculos e
equações, apropriada, usada e descartada. O outro ser humano se torna
apenas um outro com quem preciso me relacionar contingencialmente pelo
fato casual de compartilharmos o mesmo espaço e termos interesses
confluentes ou divergentes. A essencialidade do relacionamento com o Outro
na própria constituição do que é o humano se perde na fria análise calculista,
estratégica e instrumental da razão cindida. A propósito, a razão instrumental
sobre a qual falavam os filósofos da Escola de Frankfurt só existe em função
da cisão da razão de sua integralidade constituinte.
A razão com a qual a filosofia deve trabalhar tem como elemento constituinte
de sua integralidade o mundo real, com o qual ela interage receptiva e
ativamente. Não se trata de um mundo linguístico, conceitual, ficcional,
ideal, mas do mundo do cotidiano, das lidas diária de homens e mulheres
reais, que precisam cuidar de seus corpos para manterem a sua essência, ou
seja, a sua vida. É um mundo contraditório, complexo, composto de outros
seres humanos em relação e de uma natureza da qual dependemos e
fazemos parte.
Quem pensa que nada disso tem a ver com a Filosofia pode querer estar
com ela, mas a Filosofia jamais estará com ele. Nem os filósofos julgados
mais obscuros e abstratos deixaram de pensar, cada um a seu modo, os
problemas de seu mundo.
Quem se acha sábio (ou amigo da sabedoria), mas não é capaz de sentir a
dor da Terra e dos homens e mulheres que a habitam, trabalha com a razão
vaidosa ou a razão cindida, mas não com a razão integral que manteve viva
a Filosofia na história.
Por isso, a razão filosófica deve ser integral e emancipatória. Deve levar-nos
à crítica e ao desejo de liberdade. Deve esforçar-se para contribuir na
superação de tudo que atenta contra as potencialidades do ser humano e de
nosso planeta.
Os filósofos devem estar nas escolas, nas igrejas, nas universidades, nos
movimentos sociais, nas redes sociais, nos distintos locais de trabalho, nos
jornais e revistas, nas rádios, enfim, em todos os espaços da produção da
subjetividade como agentes da racionalidade emancipatória e a voz da
filosofia crítica.